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2 SUMÁRIO Capa Rosto DIETMAR KAMPER E A SOCIOLOGIA DO CORPO VIVO TERCEIRA ABERTURA 1. ABSTRAÇÕES DO CORPO 1.1. Minha escrivaninha, o campo de neve. Um cursor chamado HerrMann 1.2. O quadrado antropológico de espaço, plano, linha, ponto 1.3. A caixa – black box – la chose. Uma tripla circulação do quadrado antropológico 1.4. O espaço vazio. Cinco respostas para perguntas que ainda não conheço 1.5. Desenhar no abismo da superfície. Onze sentenças sobre uma estranha e misteriosa competência 2. OLHAR E VIOLÊNCIA 2.1. O futuro da visibilidade 2.2. Corpo como cadáver 2.3. Encore? En corps! Da repetição ao corpo 2.4. Sombras e contradições. Manifesto para São Paulo 2.5. A autópsia impossível 3. NADA DE NOVO SOB O SOL, MAS O SOL NOVO A CADA DIA 3.1. Não! Não é uma boneca, mas uma bela figura artística 3.2. Os pré-socráticos e o pensamento ao ar livre 3.3. A humanidade de Deus. A rosa na cruz da realidade. Hermetismo 3.4. Capacidade de embriaguez. O equilíbrio da felicidade 3.5. A falta de respostas do universo 4. A NORMA DETURPADA DA ANTROPOLOGIA 4.1. Viver sem inimigos 4.2. A trajetória da questão: o que é o ser humano? 4.3. O humano como destino, acaso e perigo. Paradoxia excêntrica 4.4. Ciência e paixão 4.5. A fala de terceira ordem: sobre a eficácia do incompreensível 5. ANTINARCISO 5.1. O picante da sedução 5.2. Por uma crítica do homo significans erectus 5.3. Mais uma vez: esforço como forma de vida 5.4. A altura da queda amorosa e a força do coração partido 5.5. O belo, o sublime e o que é o caso NOTAS DA TRADUÇÃO PRINCIPAIS OBRAS DE DIETMAR KAMPER Coleção Ficha Catalográfica Notas 3 kindle:embed:000C?mime=image/jpg F DIETMAR KAMPER E A SOCIOLOGIA DO CORPO VIVO oi em abril de 2001, abertura do milênio, poucos meses antes dos ataques às torres gêmeas: Dietmar Kamper estava diante do grande TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo) lotado e ao seu lado, Haroldo de Campos. Havia um clima de reverência e celebração, mas sobretudo uma expectativa de notável e rara degustação de pratos, ao mesmo tempo delicados e fartos. Ambos os mestres com amplos sorrisos, anunciando que não se tratava de um embate, mas de um grandioso banquete. Não pairava no ar nenhuma despedida, embora todos soubéssemos que havia, sim, algo do canto do cisne, para os dois, que sabiam haver conquistado a alta honraria da finitude. Os temas da noite eram a antropofagia e a teofagia. E Hans Staden era uma das portas de entrada ao tema, pois Kamper e sua companheira, Birke Mersmann, também integrando a mesa, haviam trabalhado e vivido em Marburg, no estado de Hessen, próxima da cidade natal do autor da notável A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no novo mundo, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os últimos dois anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os conheceu, e agora os traz ao conhecimento do público por meio da impressão deste livro, publicada justamente em Marburg, em 1557, com retumbante sucesso editorial para seu tempo. A grande polêmica da época de Staden, pesquisada e apresentada ali por Kamper e Mersmann, demonstrava que o grande embate entre católicos e reformadores era em torno da comunhão, uns a viam como corpo de Cristo e outros a viam como símbolo do corpo de Cristo, uns como verdadeira comunhão e incorporação, outros como abstrata mediação simbólica. Haroldo, por seu lado, desdobrou em mil folhas a poética da devoração oswaldiana em uma filosofia da transmutação do metabolismo cultural, uma genealogia do espírito rebelde e criativo do século XX. Poucos meses depois, logo após o ataque às torres gêmeas, falei com Dietmar Kamper ao telefone, comentando o grande golpe das imagens contra uma sociedade das imagens cada vez mais grandiosas e onipresentes. Ainda assustado com a dimensão e a repercussão gigantesca do episódio, ele acrescentou, já muito ofegante, que, por outro lado, são eles também, os americanos, “Kinder Gottes”, filhos de Deus. Foram as últimas palavras que escutei do mestre. Menos de um mês depois, em 28 de outubro, ele pronuncia, diante de Birke Mersmann, sua última palavra: “wunderbar!”, maravilhoso! De 1992 a 2001 Kamper estivera inúmeras vezes no Brasil, e São Paulo era seu 4 campo de observação antropológica. Da imagem e do corpo, em sua relação conflituosa. Escreveu vários textos para São Paulo e a partir de São Paulo. Sempre textos muito densos de imagens e crepúsculos conceituais (aqueles que nos exigem ver além da luz e da razão). Deu inúmeros cursos, palestras, conversas, seminários, participou de simpósios e encontros. Para auditórios inteiros e para meia dúzia de alunos e pesquisadores. Trazia consigo sempre um pouco mais de tempo, do tempo lento da observação, o tempo da escuta e o tempo da espera, o tempo generoso de quem digere iguarias exóticas ou lautas refeições. Ao fim de uma estadia, já deixava combinada a próxima, no ano seguinte. E trazia sempre novos temas, novas pautas de diálogo e discussão. Sempre chegava radiante nos voos da madrugada, às vezes confessava que não sabia o sentido de estar aqui de novo (para logo em seguida dizer: Mas o sentido só se sabe depois!), às vezes apenas curtia a cerração e a saturada umidade paulistana das madrugadas em épocas de chuva, “o ar da Champagne!”. Na última vez chegou ainda mais radiante, com o nascimento de sua primeira neta, e contou que havia feito uma aposta consigo mesmo, de que a vida é bela. E prosseguiu: “quando estou na Europa, tenho a sensação de que vou perder a aposta”. E “apenas chego ao Brasil e me vem a certeza de que vou ganhá-la!”. Após a primeira visita, dei-lhe de presente um livro em português: Do Pau- Brasil à antropofagia e às utopias, de Oswald de Andrade. Na segunda visita, ele já citava Andrade e seu Manifesto Antropófago, recém-publicado na Alemanha pela revista Lettre. E aqui já estava ele de novo, para devorar o que lhe encantava, não para civilizar ou iluminar, nem para ensinar. Para observar com os olhos que enxergavam os subterrâneos escuros das imagens da megalópole. Sua obra é vasta e aparentemente diversa, mas a diversidade dos objetos não nos deve iludir, seu olhar agudo e profundo mantém uma irrefutável coerência ao tensionar os mais diferentes objetos. Os livros originados em simpósios e ciclos de conferências, organizados juntamente com Christoph Wulf, dão uma mostra da riqueza temática: O Evanescer dos Sentidos, O Retorno do Corpo, O Tempo Moribundo, O riso, o sorriso e a gargalhada, Aparência do belo, O Sagrado, O destino do amor, Retrospectiva sobre o fim do mundo, Na sombra da Via Láctea, Teoria da fantasia, livros trabalhados por muitas mãos, das mais hábeis do mundo para cada tema. Dietmar Kamper convidou, em seus seminários e simpósios, ninguém menos que Foucault, Lyotard, Baudrillard, Serres, Montagu, Leroi-Gourhan, Sloterdijk, Bodei, Morin, Girard, Virilio, Kittler, Perniola, Belting, Grivel, Maffesoli, Eco, Irigaray, Poulain, Samsonow, Dorfles, Sonnemann, Zielinski, 5 Mondzain, Mitchell e tantos outros. Outros ciclos e livros foram organizados e editados sozinho ou com outros parceiros sobre: “Olhar e violência”, “Imagem e violência” (apresentado em São Paulo, no SESC), “O jogo”, “A Atlântida”, por exemplo, “O homem (im)perfeito”, “Mito Neanderthal”, “Obsessão e imaginação”, “Autocontrole”, “Sobre os desejos”, “Poder e impotência da fantasia”, O trabalho como vida (também em São Paulo, no SESC), Quel corps?. Sua entrada nos temas e objetos, sua maneira surpreendente de tratá-los, seu olhar lancinante sobre aquilo que parecia inofensivo e inócuo, fizeram dele um pensador transversal onde quer que estivesse: em Colônia, na graduação em Educação Física, interessou-se pela Filosofia; em Munique, na Filosofia, doutorou-se sobre um autor pouco cultuado, Leopold Ziegler; em Marburg, na Pedagogia, buscava padrões multidisciplinares para tensionar as gavetas estanques do conhecimento e da educação; em Berlim, na Sociologia,lançou mão de autores estranhos aos cânones estritamente sociológicos e trabalhou inicialmente com Josef Taubes, um iconoclasta da Filosofia que havia convidado Derrida a Berlim, quando este ainda era uma absoluta anonimidade. Admiração e correspondência com Foucault e Cioran, paixão pelos românticos como Novalis e cooperação com Odo Marquard, Helmuth Plessner e Adolf Portmann, tudo isto e muito mais constituíam travessuras imperdoáveis no mundo acadêmico alemão (e não só lá), sobretudo se a escritura e a fala do professor e pesquisador se contaminavam de expressões e categorias saturadas de poesia, exigindo leituras sensíveis e abertas para o ambivalente, o difuso, o obscuro, o profundo, o metafórico, o sombrio. E foi com esse olhar de herege que ele se dedicou aos campos de reflexão que introduziu na pauta acadêmico- científica alemã: teoria do corpo, teoria da fantasia, história da imaginação, crise da visibilidade, história da abstração, corpo e imagem, imagem e abstração, o virtual como variante da ausência e ainda muitos outros. Não é de espantar que alguns de seus colegas se sentiram mortalmente incomodados pela postura e pela linguagem de Kamper e tivessem até mesmo promovido uma campanha difamatória por revistas e jornais. Acusavam-no de não explicar, não esclarecer, não simplificar os conceitos e os objetos que tratava. Sua resposta foi reafirmar sua recusa de redução da complexidade. Reduzir a complexidade significa capitular diante das estratégias de um mundo feito de imagens e ausências. O presente livro é a tradução de sua última obra publicada em vida, no auge de seu vigor crítico e analítico. Merece menção especial e gratidão eterna o trabalho sensível, preciso e delicado de Danielle Naves ao traduzir a obra. 6 Danielle realizou uma verdadeira transcriação da linda obra de Kamper. A tradutora preserva até mesmo a música das frases (e isto é fundamental em Kamper!), a beleza de certas imagens conceituais, a polissemia, o obscurecimento crepuscular e poético de cenas, frases e palavras. Deve-se igualmente destacar a ousadia do diretor da coleção, Ciro Marcondes Filho, também revisor técnico que enriquece a linda tradução anotada de Danielle Naves, por ter proposto a publicação no Brasil desta obra tão atual e inseminadora, tão desafiadora e surpreendente. Por fim, quero alertar o leitor para as dificuldades de se aprender a ler Kamper, com “a cabeça estilhaçada, assim como os românticos sentiam com o coração partido”, nas palavras do próprio autor. Relato aqui, ao caro leitor, uma experiência que um colega professor relatou a partir da indicação de um breve texto kamperiano para jovens alunos de graduação. Recomendou que lessem o texto, mas não uma única vez! Duas, três, quatro..., vinte vezes! Em voz baixa, em voz alta, aos amigos, aos familiares, sozinhos, gravando e ouvindo, diante do espelho, deitados, andando, sentados. Na sala, no quintal, no jardim, no banheiro. Pelo menos vinte vezes! Na semana seguinte chega uma aluna muito jovem e relata que leu o texto até a décima nona vez sem entender nenhuma palavra, até que de repente, ao lê-lo mais uma vez, ele se abre como por magia e ela começa a chorar. Kamper nos ensina a ler/sentir o mundo com o corpo vivo, presente, pulsante! Não apenas com os olhos e com a cabeça, como manifestação próxima de uma distância. Ele nos convida para um embate ao vivo que também é um banquete, nos convida a retomar o corpo, a presença, o presente. Norval Baitello Junior CISC-PUC-SP 7 E TERCEIRA ABERTURA Sou um fazedor de palavras: Que importância dou às palavras? Que importância dou a mim? Friedrich Nietzsche m grande parte, sem que o autor se desse conta, os textos deste livro, ao surgirem, foram apontando pontos de fuga, que, para além de todas as intenções, marcam um único point of no return (ponto de irreversibilidade). Assim, formaram-se direções fundamentais que se quebram a si mesmas. Os encadeamentos de metáforas tensionam-se entre metástases e quiasmas.(i) São letras, palavras, frases que não indicam saídas, sempre sob o perigo da pululação desordenada e de uma retrógrada incisão em forma de cruz. Não se trata mais de arbitrariedade, mas de uma escrita pela vida, puras correspondências, formadora de uma rede, esticada até arrebentar, uma rede das amizades. Os textos, escritos a partir da primavera de 1999, agruparam-se praticamente sem que eu interferisse. Enquanto escrevia, estive todo o tempo a caminho de um ponto zero, que me acomete inclusive agora, no meio da jornada. A coisa veio me acontecendo desde os esforços de Karlsruhe, Colônia e Bonn (1. Abstrações do corpo); atropelou-me em São Paulo (2. Olhar e violência); queimou-me, no foco do pensamento hermético, como me ocorreu nas últimas semanas, até a medula (3. Nada de novo sob o sol, mas o sol novo a cada dia); emergiu na ensolarada Neandertal e em Dresden (4. A escala danificada da antropologia); foi como uma corda no pescoço durante a tentativa de iniciar uma crítica do homo significans erectus no corpo do próprio autor (5. Antinarciso). Constantemente aparecem cortes transversais entre autobiografia e antropologia histórica, que expõem uma nova mistura de destino, acaso e perigo. Já não se trata da filosofia da identidade e tampouco do pensamento da diferença, mas uma reflexão elevada à terceira potência, na qual a esvaziada relação entre esfera pública e privada é reescrita em favor de uma singularidade, que é a verdadeira adversária da pluralidade, da maioria e da multiplicidade. Nisso, a velha visibilidade fica se torcendo. A questão se o ponto zero da história faz aqui o papel de pivô pode ser respondida com um sim, inclusive com o adendo: ça dépend! (depende). Antinarciso marca perceptivelmente a transição da repetição à contratransferência psicanalítica. Não se trata de um novo tipo de socialização, 8 mas do destino da metodologia do pensamento-corpo,(ii) que necessita de tempo para demonstrar suas capacidades. O que está em questão é a troca de horizonte de encore para en corps (de novamente para corporalmente), do mesmo modo como foi tematizada ao longo do afastamento histórico e social do corpo, na forma como se tornou o problema principal na concepção de uma estética da ausência, como foi posta como meta na abertura primeira de “Pesquisa de fantasmas e estenografia” e que, na segunda abertura, apareceu em cápsulas decompostas, “rastros”. Na sequência da estética da ausência, que representou o afastamento do corpo como fait accompli (fato consumado) da civilização e ainda exigiu aquilo que era decisivo da força expressiva do corpo, a terceira abertura significa mostrar a própria desaparição. Desta vez, há uma prova irrefutável. Apenas aquilo que linguisticamente se autodevora pode ser declarado. Eis o até agora impensado arranque da metástase ao quiasma. O que resulta numa abertura para o anúncio da libertação. A mudança de horizonte acontece por si e não poupa quem a escreve. Antes de pivotear e sair do eixo, o visado ponto zero da história custa, principalmente, a cabeça. Isso não é dialética, mas o desabrochar da rosa na cruz da realidade. Fim da exibição. Nem uma primeira, nem uma última vontade. Toda pessoa pode fazer mágica, a não ser que não queira e não seja viciada em imagem. Quanto à forma do texto, não faço mais escolhas. São dissertações, exposições, teses, fantasias ricamente insinuantes e inconclusas, assim como desvios, que ainda seguem modelos logicamente compulsivos e tentam captar aquilo que está aberto em suas inter-relações. Mas há também encadeamentos de palavras – como em citações – que se desassociam e abrem espaços a pensamentos insólitos, no sentido mais literal do termo. Para quem suportar, aqui a barreira do indescritível torna-se inequivocamente clara. Mais do que nunca, chega-se à representação, à representabilidade tal como exposta há cem anos por Sigmund Freud ao tratar dos sonhos. O consciente tem um defeito: não consegue conter o assombro de ter se descoberto mortal. Ele disfarça o horizonte tanto pelo esquecimentoquanto pela lembrança e é, sobretudo, incapaz de uma mudança. Com isso, se acrescenta mais uma discrepância à já existente entre percepção e consciência: a que há entre sonho e consciência, um sem-fundo (Ab-Grund) que só pode ser transposto pelo lado do sonho. Somente essa discrepância faz com que o pensamento-corpo se realize. Afinal, ela também permite que diferenças velhas e saturadas apareçam sob uma luz completamente nova. Consciência – percepção – sonho: 9 Como indica o alinhamento de palavras, aqui não há um continuum, mas antes um encadeamento de fraturas a ser realizado, a partir de agora, sem dialética alguma. O que isso significa, na totalidade, é imprevisível. Por ora, darei o esboço de três pontos. Primeiro: mudança de horizonte A mudança de paradigma proposta por Thomas Kuhn mantém-se na linha e sobre chão firme. Para saber como ela funciona, basta olhar aqui e acolá, da esquerda à direita, o antes e o depois. Essas mudanças da perspectiva, que por longo tempo mantiveram todo um mundo em aberto, conseguem abalar e colocar em questão o acima e o abaixo. Exigem uma cabeça tranquilamente assentada sobre os ombros e capaz de encontrar, a partir de irritações, nova estabilidade que possa sustentá-la. Mas a mudança de horizonte reivindica, por seu turno, que aqueles que a reconhecem adicionem a tudo isso um salto mortal, uma cambalhota metodológica, a fim de que possam alcançar o ponto de virada do interno para o externo, o trecho perigoso da fita de Moebius em seu processo autorreferencial. Aliás, esse salto mortal pode ser visto em imagens medievais de acrobatas e artistas de rua. Ele contribui para o anúncio de um gesto extremamente repreensível, que contradiz o Santo Espírito, o espírito da unidade, da certeza e da consolação. Segundo: infinita falta de tempo Tal é o termo com que Jacques Lacan fez alusão à falta de Ser. E já se opondo a Heidegger: “Existem Ser e Tempo”, frase cujo esclarecimento deveria vir no segundo volume, caso este tivesse sido escrito.(iii) Mas não existe, nem o segundo volume, nem ser, nem tempo. Não existe. Nada se dá. No fundo, não há nenhum alcance quádruplo.(iv) O que há é uma forma radical da falta de respostas do mundo. Contudo, essa disposta indisponibilidade tem como consequência uma situação tão flagrante que não conseguimos tomá-la como verdadeira e muito menos continuar falando em termos de tempo real e presente. O significado de “presente impossível” é, portanto, expressão de um balanço que, conforme a coerção da existência, fracassou completamente. Os humanos são um ponto vazio no universo. Eles estão ausentes não apenas parcial, mas totalmente. E nenhuma vontade ou consciência pode mudar algo. De uma forma honesta, a antropologia histórica mantém livres os espaços para o pensamento. Talvez o pensamento-corpo possa ajudar. Rastrear. Ouvir. Sentir. Ver. O horizonte, não mais como moldura, mas borda que desaparece, é, por fim, um silêncio gritante. 10 Terceiro: saber-se existente Já foi assim: sou, mas não me tenho. Logo, só nos tornamos. Ou: ser um corpo vivo (Leib) versus ter um corpo morto (Körper).(v) Ou: penso, logo não sou. Sou, logo não penso. Ou: nunca estou onde você me vê; onde estou, você não me vê etc. Bataille, a partir de tais trivialidades antropológicas, concluiu que o não saber é o que há de supremo e melhor. Mas isso só se alcança vez ou outra. É preciso manifestamente entrar em forma. É preciso fazer como Sven Lindqvist, que por estranhas desventuras chega ao seu melhor conhecimento: o conhecimento da existência, que é o avesso da ignorância da inexistência. Já faz algum tempo que é necessário perceber e sonhar simultaneamente o verso e o reverso. Estar-aí (Dasein) e estar-ausente (Wegsein)(vi) são uma coisa só, sob a extrema condição de possibilidade do ser humano. A “viagem ao extremo do possível do ser humano” (Bataille) tornou-se inevitável. Sem mais ingenuidade alguma, tampouco estereótipo da inocência. Sorry. O que hoje é necessário ao escrever é veneno e bílis, também brandura. Esse poderia ser o nome do método de uma crítica à antropologia histórica, cujo objeto, por sua vez, chamar-se-ia: bílis venenosa e dom. Dom é um fato social, bílis um fato antropológico. Ela designa a ira da descoberta do quanto se está ferido e exposto, antes mesmo que se possa começar a pensar. Chole é a palavra grega para bílis, fel, amarelo e ira, presente, por exemplo, em colérico e cólera. Diz-se da ira que não é bom pressuposto para um conhecimento claro. O colérico é tido normalmente como inapto à tarefa pacífica da ciência disciplinar e ao necessário entendimento da informação equilibrada. No entanto, desde que existe o fenômeno da ciência comprada e corrupta, ou seja, desde que para cada problema pertinente são encontrados especialistas e contraespecialistas, o melhor mesmo é ficar irado. Mais complicado, portanto, é o problema de uma ameaçadora autoneutralização. Quem entra em contato com a antropologia histórica acaba por desistir no momento em que se depara, no diálogo, com a frase: “Você não consegue suportar isso na cabeça”. Tanta acumulação do que é inútil. Tantos movimentos de reforma fracassados. Tantas lutas vãs por uma vida correta, “natural”. É preciso ser radical, ao menos radical na idade,(vii) para poder discernir e selecionar através dos séculos a confusão criada, a gigantesca montanha de entulhos de argumentos. É verdade que, sem radicalidade, a identificação com o agressor é inevitável. É, então, que a pessoa se instala nalgum fronte e deixa-se acomodar, inclusive teoricamente. Não é de suspeitar que, assim, alguns desistam da posição conquistada com tanta luta ou que outros ainda continuem atraídos pelo posto já perdido. 11 É preciso, portanto, estudar, aprender e querer conhecer algo com exatidão. Não se pode permitir ser consumido pelos pensamentos da moda, que nada mais são do que uma vasilha de esmolas, transbordante de enganos e desenganos históricos. Sobretudo, não se pode renegar, reprimir e rejeitar a zona do silêncio e das verdades silenciadas, a partir da qual ocasionalmente emerge uma injustiça gritante. O inconsciente é um factum brutum da história, mais precisamente da história à qual outrora ele se dirigiu em busca de mais humanidade. Somente a ira, ao concluir que não há mais nada a ser feito, pode se tornar produtiva sem cegar. Contra a estupidez autoimposta, ajuda somente uma crítica não disciplinante ao poder disciplinar, tal como a que está associada desde o início à antropologia histórica. Neste ponto, pode-se e deve- se seguir Michel Foucault. Já se disse que o paradigma, a perspectiva e o horizonte do anjo da história não são os mesmos que os nossos, e que, não sem motivos, Benjamin distingue com exatidão duas coisas que nos aparecem como uma única catástrofe: a cadeia de acontecimentos e o que anjo vê.(viii) Porém, justamente nisso estaria a urgente mudança de horizonte, indo da crença idiota no progresso da humanidade para a percepção do monstro que sitia a cadeia da liberdade humana, um monstro que é tanto autogerado quanto gerado pela razão. Pois só a partir daí podem surgir os desdobramentos inconvenientes: primeiro, visualizar a catástrofe como um horror perfeito; segundo, suportar o pavor da própria história de crimes; terceiro, desfazer-se das asas, pois nunca houve sentido em tornar-se anjo quando não se quer também virar diabo; quarto, confiar nas próprias costas, pois elas servem como arquivo da evolução e da história; quinto, desligar-se da tormenta do paraíso, afinal não perdemos o paraíso, mas, por bons motivos e força do futuro imediato, saímos de lá fugidos. Como fica essa história sagrada, mesmo que receba aqui apenas um parco esboço? Um foco das próprias idiossincrasias; uma vasilha de esmolas de metáforas devoradas; uma mistura peculiar de como meu corpo atua no teatro do insuportável. A insistência do renegado, o retorno do recalcado, a epifania do rejeitado têm também como consequência, verbal e textualmente, repetições que, ao fim, custam a própriacabeça. Uma das suspeitas aponta para as seguintes questões: por que eu? Por que agora? Por que assim? e mostra que eu, com minha escrita, revelei um segredo cujas consequências são mortais e que, pelo fato de ter negado o esquecimento, ameaçaria habilidosamente a morte como fatalidade. A partir de então, o jogo troca seu status de indignidade pelo de seriedade mortal. Ajudem-me, amigos! Certamente ao modo dos santos...(ix) 12 Uma confissão com consequências fatais? J. P. S. Uberoi disse, há anos, em Berlim, que a pena para a revelação de conhecimento secreto é o puro esquecimento, esquecimento do esquecimento. Então, por que ainda a morte? Nunca mais saber o que se soube, o que para sempre se aprendeu enquanto neófito da vida é algo que já soa suficientemente mal. Uma conferência de Friedrich Kittler, em Neandertal, teve o seguinte tema: não foi o último, mas sim o primeiro homem quem matou seu deus. Prometi-lhe uma cópia das impactantes passagens em que Hölderlin escreve sobre a traição de Deus em relação aos homens. Eis o ponto mais secreto da amizade que, sob o mote “Reino de Deus”, se reacendeu em torno do ano de 1800. Em sua carta de Otzberg, Rudolf Heinz chama esse problema de “o suicídio de Deus em nós”, que só conseguimos abandonar pelo espanto ou pelo riso. Que o absoluto morra, tal fato é ou uma catástrofe da história mundial ou uma piada – ou ambos. O conhecimento absoluto hegeliano é, por ora, um não saber que ainda não conhece a si mesmo. Isso acontece primeiramente com Georges Bataille e seu deboche da morte, pois ela é um deus, o mais poderoso. Como eu poderia saber que a colline éternelle, de Vézelay, seria o palco extraordinário de um suicídio?(x) E que apenas ali foi possível o anúncio de um noivado para toda a vida? E cujo testemunho aconteceu em longa solidão? E que, com isso, a história da culpa chegou ao fim? O que ainda não está claro são as direções que se seguem à descida da cruz. (xi) Califórnia ou Brasil? E a partir de onde? Finis terrae na França e no norte da Espanha?(xii) Ou mesmo diretamente a partir de Granada, evidenciada por Otzberg, pelo menos até aquele sofá em Lengfeld, no qual se sentavam Karoline Günderrode e Clemens Brentano em vão.(xiii) Cada gargalhada é a libertação de uma imagem, escreve Jacques Lacan. Isso antecipa a lógica compulsiva do imaginário e explica a impossibilidade de haver uma imagem para o fim das imagens. A aposta com Jan Fabre terá um resultado parecido. Contudo, estamos ainda em desacordo e ficamos até alta noite discutindo. O que parece ser o ponto de reversão da alienação, ou o retorno da enantiodromia,(xiv) é tão somente a duplicação do quiasma no caminho das metáforas. As dores da abstração são inevitáveis. Porém, o fato de que Deus e os deuses sejam imortais e de repente morram, isso é demais. Exatamente aí acontece o levante dos homens que querem viver, claro, ao modo dos santos. A rede das amizades estende-se no esplendor terrestre como um firmamento, com nós e tensões de horizonte a horizonte. 13 Otzberg, 5 de outubro de 2000. Pensado, conversado, escutado e escrito em companhia de: Contemporâneos de hoje Jean-Christophe Ammann, Hans-Dieter Bahr, Norval Baitello Jr., Carlo Barck, Jean Baudrillard, Hans Belting, Ulysses Belz, Hartmut Böhme, Norbert Bolz, Christina von Braun, Silvia Breitwieser, Bazon Brock, Hans Peter Dreitzel, Hajo Eickhoff, Eva e Adele, Jan Fabre, Tom Fecht, Ute Frietsch, Susanne Froböse, Gunter Gebauer, Paul Good, Rudolf Heinz, Udo Hock, Christian Holtorf, Urs Jaeggi, Thomas Jung, Wolfgang Kaempfer, Bernd Kauffmann, Alexander Kluge, Matthias Kroß, Peter Lilienthal, Franz Littmann, Thomas Macho, Gert Mattenklott, Odo Marquard, Anthony Moore, Edgar Morin, Jean-Luc Nancy, Hans Ulrich Reck, Otto E. Rössler, Elisabeth von Samsonow, Valerij Savchuk, Michel Serres, Peter Sloterdijk, Bernd Ternes, Georg Christoph Tholen, Gerburg Treusch-Dieter, Heinz Treziak, J. P. S. Uberoi, Paul Virilio, Peter Warsitz, Hans Peter Weber, Peter Weibel, Gert Weniger, Stefanie Wenner, Christoph Wulf, Siegfried Zielinski, Raimar Zons, e contemporâneos de ontem Theodor W. Adorno, Günther Anders, Antonin Artaud, Ingeborg Bachmann, Georges Bataille, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Jorge Luis Borges, Clemens Brentano, Georg Büchner, Paul Celan, Vilém Flusser, Michel Foucault, Sigmund Freud, Karoline von Günderrode, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Martin Heidegger, E. T. A Hoffmann, Friedrich Hölderlin, Max Horkheimer, Franz Kafka, Immanuel Kant, Heinrich von Kleist, Jacques Lacan, Jean-François Lyotard, Karl Marx, Maurice Merleau-Ponty, Michel de Montaigne, Robert Musil, Friedrich Nietzsche, Blaise Pascal, Helmuth Plessner, Rainer Maria Rilke, Ulrich Sonnemann, Baruch de Spinoza, Jonathan Swift, Paul Valéry, Viktor von Weizsäcker, (e continua) e a companheira do espaço. 14 E 1. ABSTRAÇÕES DO CORPO 1.1. Minha escrivaninha, o campo de neve. Um cursor chamado HerrMann m meio à mudança da caligrafia para a escrita em computador, apareceram dois textos, com intervalo de um ano e meio. O primeiro, de 19 de abril de 1998; o segundo, de 19 de novembro de 1999. O primeiro trata de uma longa despedida, uma despedida à la longue; o segundo, de um difícil começo, intencionalmente um pouco exagerado na descrição. Do cursor, com seus disfarçados e subterrâneos construtos, não se pode aproveitar sequer um fio de cabelo, nenhum mesmo. Computadores não têm cabelos. Reuni toda minha ira para tentar descrever do modo mais duro possível esse processo forçado de aprendizado. O “socius maquínico” não preenche nenhuma das expectativas propagadas mundo afora pela megalomania da publicidade. Nenhuma comunicação acontece nas redes de dados. Se acontecer, talvez seja num monólogo maníaco, no diálogo interno de algum maluco capaz de falar e ouvir todas as vozes ao mesmo tempo. A virtualidade dos meios é coisa de singles extremamente parecidos entre si. Enquanto o primeiro texto termina em letras melancólicas, o segundo chega ao fim atolado, num desespero da tela que só pode ser chamado de melancolérico, palavra que HerrMann(xv) desconhece, embora lhe diga respeito. Quantas vezes ele me chamou atenção para não cometer tantos erros. Quando ele próprio é o grande “error”. Quod erat demonstrandum (como se pretendeu demonstrar). 15 Minha escrivaninha, o campo de neve. Em vinte e três parágrafos Não, não a neve do ano passado, la neige d’antan (de outrora), mas aquela da noite passada. Neve de sonho. Nada pode ser escrito com o mesmo calor com que acontece. Que se deixe, portanto, esfriar até o limite do gelo. Mas a neve também tem a cor do primeiro esquecimento. Branca, com sombras azuis. Às vezes, à noite, a lua brilha sobre ela. Então, seria possível dizer adeus. Minha escrivaninha nunca foi uma passarela de manobras, uma central de decisões, um posto de comando, um parlatório de governo. Nenhum passo soberano na escrita, nenhuma ordem, nenhuma obediência, mas sim a desordenada superfície de uma ordem escondida nas coisas. Seria preciso escrever uma estética da ausência para fazer justiça a tal ordem invisível. Pele por corpo, imagem por espaço. Prudência lúcida de dispersão descuidada e de dor abafada. Dossiês. O que é um dossiê? A cristalização de um processo que foi domado por um acontecimento. A ordem burocrática foi e é fria. Reprime-se a excitação até o ponto de sua irreversibilidade. O ejaculativo, o ruinoso, o perecível são capturados pelo ciclo do tempo retornante. Guardar silêncio não é suficiente. A rotação é o alvo, que gira como um ponteiro de relógio, para a direita. O protocolo do caso, a outra forma originária da escrita – depois da prece e do registro. A escrivaninha não serve nem aos deuses nem à postura voltada às provisões, embora a maior parte do que é guardado fique vagando no arquivo, no depósito. Raramente isso significa que se guarda algo para sempre. Sobre o tampo da mesa não há lugar para reminiscências humanas. Ao sentar-se, elas se perderiam. E se a desordem da escrivaninha – até onde habitualmenteentendo – for um alívio para a confusão que reina no mundo? Em todo caso, ordem de escrivaninha é algo risível, uma estratégia impotente para ordenar ou mesmo dominar os assuntos humanos, tal como quer a burocracia. Não, é antes o computador (o qual não tenho aqui) que gera a ilusão de um sujeito controlador. Continuo escrevendo como antes, com caneta esferográfica, inclusive agora, quando no rádio toca a canção Greensleaves e é tarde de sábado. A velocidade dos pensamentos segue a da caligrafia. Trata-se da mais complicada de todas as ações – li isto no Hermes, de Michel Serres –, pois une simultaneamente a virtuosidade manual e a mais individual das expressões, apesar da prescrita linearidade. 16 Com linhas estruturar um plano – tal foi a infinita e incansável preparação do monitor que recentemente dá significado ao mundo. Mas esta tela se localiza no espaço, confronta o olho; as escrivaninhas, por sua, vez ficam na horizontal, ocasionando alguns dorsos curvados. O vidro nunca será capaz de acolher tantas lágrimas desesperadas quanto o papel. O copiar, atividade de escrivaninha avant la lettre, era uma intensa arte da leitura, condição necessária para a compreensão. Ler tão lentamente quanto o andamento da escrita. Lia-se então em voz alta, depois em silêncio, depois simplesmente não se leu mais. Nos meios eletrônicos não se pode mais ler, não há mais condição para isso devido à velocidade. O sentido quádruplo da escrita se desmantela. O papel, instrumento para escrita vindo do papiro, é paciente. Assim se diz a partir de longas experiências. Ele é tolerante e não se deixa apressar. Não segue na velocidade da luz, mas em acordo com mão e cabeça, com o corpo duplamente dobrado em ângulos. Ou devemos voltar, escrevendo, ao púlpito sobre o qual Søren Kierkegaard escreveu sua obra, em pé e três vezes seguidamente? Poder-se-ia, assim, deduzir que o escritor, em especial o religioso, não é um burocrata. Quem sabe? Desde que não comece a utilizar formulários. Nem sempre é possível dedicar-se renovadamente à superfície vazia. Tal é o motivo da esquematização do papel em linhas, quadrados, losangos, tabelas: quando a pessoa esquece que é da esquerda para a direita que se escreve, agrupando as linhas de cima para baixo. Se o escritor não esquecer isso, conseguirá subverter a neve, brincará com o fogo. O papel não é somente paciente, ele também queima. Foucault escreveu: “Meu corpo, o papel, o fogo”. É impossível esquecer que o papel escrito representa a pele do homem. Nenhuma tela admite tal lembrança do modelo arcaico. A escrivaninha é o lugar do esquecimento, não da lembrança. Campos de neve não são somente belos, mas também superfícies de cansaço, como tecidos com os quais a terra se cobre do céu. Apesar de toda a paixão, conservar o mais urgente na memória. A luta dos acontecimentos postergados, esperando na fila, é finalmente perdida. Exceções confirmam a regra. Os casos flagrantes chamam-se arquivos mortos. Enfim, é uma lei geral que a força da gravidade triunfe. O trabalho para e na verticalidade não pode ser vencido. No melhor dos casos, o ser humano fica parado no meio, onde pode se estender até o horizonte. Por isso, a vista que o escritor tem é indispensável para a produtividade de suas mãos. 17 À estigmatização da injustiça causada por não se andar na linha dá-se o nome de reclamação. Quem reclama chega sempre a alguma mesa de escritório onde torres de papel se acumulam e prateleiras se arqueiam. Talvez as escrivaninhas existam porque primeiro existiram as reclamações. O que pode ser protelado desobriga a burocracia. É uma guerra por reconhecimento. Agentes da escrivaninha, vítimas da escrivaninha são, literalmente, memoriais da inadequação entre vida e escrita, entre morte e escrita. O que vale genericamente é que a escrita é um substituto, um primeiro suplemento da corporeidade para suportar a transitoriedade, o desvanecer-se, se bem que não eternamente, mas, ao menos, por um longo, longo tempo. Uma época intermediária da civilização, ou seja, espiritualização da matéria. Se bem que tal abstração do corpo ainda seja eminentemente corporal em relação à atual revolução eletrônica. Ao menos o papel ainda é pele, a tinta ou a impressão ainda é sangue ou sêmen, mantendo contato com a essência do que é inexorável nas mensagens enviadas. Cartas de amor ou condenações à morte não seriam possíveis sem a escrita. Em resumo, são cartas escritas antecipadamente com sangue do coração até o dilaceramento do coração vindo das coisas, sempre sem resposta e sem retorno ao remetente. Elas foram testemunhas de uma grande época. Quando o ausente era apenas ausente e não precisava de nenhuma aparência de presente. Apenas a dor pura e assintomática, rebento súbito de um idioma indolor, bem protegida no segredo do correio e mesmo da própria irreconhecibilidade. Deixar viver e fazer morrer como efeito da escrita? Pronunciam-se julgamentos, bate-se o martelo, proferem-se sentenças, mas na base da língua vale finalmente apenas a assinatura, a marca nominal. Se num e-mail houver um trecho assinado, um pedido de desculpas é indiscutivelmente apropriado. Mas a fortaleza ainda cairá. Resignação é, desde sempre, a tentação de toda cultura da escrita; ela se expande atualmente sobre todas as escrivaninhas do mundo e força uma nova relação com o mundo. Resignação significa recuo daquele que escreve, do escritor. A chancelaria e o claustro dos poetas saem de cena. Não dá mais. Os senhores engenheiros têm a palavra. Ora, o escrito passou efetivamente para o lado do obsceno. Não se pode fazer nada quanto a isso. O literal domina. A partir da escrita, não há mais nenhum além, nenhuma censura, nenhuma cadeia de signos que possa manter suas promessas. O espírito humano alcançou o ambicionado estado de masturbação mental. Ele é pornográfico. Sua pureza é a sujeira deste mundo. Uma temerosa pergunta se impõe: a mudança para um novo registro conseguirá deter o desmoronamento do significado? A cultura da escrita foi e é 18 falocracia, poder erigido através da imaginação produtora de signos. O poder fracassa não no material, no corpo, mas nos próprios signos, nos padrões prontos, nos esquemas, nas imagens do poder. O imaginário elimina o simbólico. O mundo de imagens é como um golpe gélido, como a última paisagem nevada em uma manhã de inverno. Com sua imanência totalitária, vence o invisível. Os humanos estão aprisionados no fundo da visão. “No cristal, tua queda” – tal é a fórmula de E. T. A. Hoffmann. (xvi) Somente por meio da fala e da escrita foi possível uma chance contra o êxito insano da arbitrariedade proibida. Não escrevo mais em minha escrivaninha, mas durante períodos de espera, em viagens de trem ou avião. A escrivaninha é somente arquivo temporário. Seus papéis naufragam em melancolia, numa ordem sui generis, espelho empoeirado do universo que não consegue se manter nos jogos velozes e nas altas apostas. Na longa despedida, um serviço é quitado, serviço este que não faz sentido diante da desmedida superexcitação das forças. 19 Um cursor chamado Herrmann, em sete parágrafos É ruidoso diante da tela. Neva pela primeira vez neste ano. Mas neve não gruda no monitor. Sem esquecimento. Tudo, cada erro deletado é anotado. Por que deletar? Será que ainda queima? Cinzas não são, há tempos, ubiquidade? Computadores são construídos por bombeiros e não por incendiários. Por todos os lados instalam-se proteções com a finalidade de evitar flamas e inflamações. E os temidos vírus, por sua vez, apagam o fogo residual dos especialistas em segurança. Não há inscrição sem proscrição, tampouco sem prescrição. Essa mesma inconveniente presunção às vezes tem êxito. E a partir de diferentes níveis: do painel de controle, do gerenciador de programas, mesmo do “sistema bios”. Uma insolência espreita. Uma predeterminação gritante tenta domar minha escrita. Mas será isso tão grave? Eu estava com tudo à mão, quando então foi necessário formatar. Aceitei: o pensamento em janelas e em páginas preenchidas em bloco;o aplanado das linhas; o confessado das letras. O lance rumo ao estranho, tão típico da escrita à mão, é agora completamente omitido. Sempre o retorno rápido para o mesmo. Identificação de si próprio. Senha. Identificação de um si mesmo que, com seus erros ridículos de construção, está francamente longe da perfeição. Mas a quem pertence esse si mesmo? Há anos alguém escreveu que o computador é um gerador de sujeitos. Enquanto “socius maquínico”, ele alcança regularmente um estado em que é fácil considerar-se o senhor da situação. Tal suposição permanece e é muito apoiada. É preciso renunciar. Tornar-se escravo. Prestar serviço. Para isso, é necessário haver poder. Mando. Mando e bando do senhor HerrMann. Tal delírio é a antecipação de uma loucura em escala mundial, que não consegue reconhecer a si mesma. A coexistência de humanos e computadores é oscilante. Alterna-se num terreno baldio, entre vencedor e perdedor. E, pouco a pouco, sendo incapaz de viver e de morrer. Por longo tempo esteve aberta a questão se existe uma saída do espírito autorreferente, agora presente nos aparelhos. Eu também a procurei. Será o virtual um espelho distorcido do sujeito que serve às máquinas e, nesta medida, outro jogo cujos novos resultados não dizem mais respeito nem aos usuários nem aos programadores? Sim, o virtual é antiquíssimo e bem conhecido de cada sonhador. No exit! Todas as conquistas permanecem no mundo de espelhos do imaginário, mundo formado por nostalgias do ser humano. Como puderam surgir esperanças? Esperanças de que na camada mais externa do mundo virtual, a partir da troca consigo mesmo, fosse ao menos possível encontrar alguns desses alienígenas? Afinal, a imanência do imaginário é 20 construída como o Windows da Microsoft, em escalas e camadas, sobrepostas consecutivamente, porém sem profundidade. E sem limites. O ato de escrever demanda em si pouca energia. A maior parte destina-se à permanente rotação do sistema operacional, com vistas em criar e manter a impressão de que o todo vive como um corpo humano, com forças recarregadas e desperto. A atividade do usuário fica na tela, exercida em pleno campo minado. Claro que existem relatos da proximidade corporal e textual, textos que enfim tocam as dimensões adjacentes. De algum modo, o mundo das imagens parece ter origem na periferia para encontrar sua morte no núcleo. Pelo menos isso diferencia a margem do centro. A margem é pulsante, enquanto o centro é morto. Mais morto do que a morte. Mortíssimo. Tal descoberta só tem sua dor compensada se, com ela, também se renunciar à busca pela diferença entre vida e morte. Caso contrário, a dor permanece. Assim como a ira. Há uma escalada da morte. Não se pode viver nem morrer em contêineres superficiais. No emudecimento diante das imagens, há o prenúncio de algo que surge do “mais íntimo” de uma virtualidade mediada: a absoluta falta de respostas. Ao espelho que ficou cego corresponde uma visão ofuscada. Mesmo um espelho colocado na diagonal não mudaria nada. O triunfo da superfície sobre o espaço, das imagens sobre os corpos, atrai para si, como que à força, uma derrota secular da visão, da escrita e do cálculo. A falta de respostas do mundo, também chamada de morte de Deus, retrocede até uma perfeição na produção de imagens, que foi um assassinato do corpo. A visibilidade perfeita do signo puro, alvo secreto de toda apresentação, representação e exposição, é mortal. O preceito mitológico desse drama é Narciso. Por fim, o espírito humano autorreferente é incapaz de beber. No espelho, é tudo imaterial. Assim morre o homo significans erectus. A imaginação produtora de signos, segundo Hegel, a arbitrariedade humana mais genuína, perece no auge de seu triunfo. Ela se quebra, como o um diante do zero. Assim considerada, a atual produção de imagens sobre telas, papéis fotográficos e monitores é o contrário do Iluminismo, no sentido de esclarecimento, um potente motor de desaparição definitiva. As coisas não levantam mais os olhos, não há mais nenhum olhar para trás. Aqui seria indispensável um resto de invisibilidade. Apenas e ainda os rastros do próprio homem. Foi no espelho que começou a perda do contorno, da face, da resposta. A tela foi inventada com a finalidade de salvar o empreendimento na significação. No entanto, a tela é o espelho cego milimetricamente quadriculado que provoca uma visão ofuscada e, sobretudo, executa finalmente a desmontagem da arbitrariedade humana. A falta de respostas do universo: seria este um tema digno de ser posto na 21 internet? Sobre como ela há tempos inspira as ciências mais avançadas? Durante o século XX, a autorreferencialidade do espírito humano caiu numa prisão de imagens, padrões e signos da qual não existe saída. Isso não foi apenas impedido pelos aparelhos, mas por eles realizado. Os bilhões de computadores são o lugar onde a própria imponência humana experimenta seu schibboleth.(xvii) No pensamento dos aparelhos só existem transcendências presunçosas. Mas isso já foi diferente? Sim! Ao menos segundo os testemunhos da literatura, da religião, da arte e da filosofia. Deus está morto. E os deuses retiraram-se horrorizados. Os corpos humanos, enquanto restos heterogêneos num mundo completamente homogeneizado, têm um destino parecido com o de Deus e dos deuses. O outro, o diferente, está definitivamente excluído. Monstruosidades, quando aparecem, são porque são autogeradas, sendo que sua produção é simplesmente esquecida. Quanto à virtualidade e suas máquinas, são artefatos de um si mesmo que não conhece mais a si próprio. O humano é o monstruoso. Trata-se, de fato, de um crime perfeito, no qual um assassino desprevenido e insolente, sem perceber, destruiu, reduziu a nada, o melhor de todos os mundos possível. Algo que não tem nada a ver com mundo, natureza ou matéria. Diante da extrema força desses conhecimentos não há escapatória. Não temos nenhuma possibilidade de jogar o real e o simbólico contra o imaginário. Precisamos nos mover numa mesma dimensão. Se sonhamos dormindo ou acordados, ou mesmo se temos visões, permanecemos na imanência, ou seja, no mesmo medium dos que estão a serviço de imagens pré e pós-fabricadas. Os raros sonhos da vida são feitos da mesma matéria que as corriqueiras metáforas da morte. Obscenidade e castidade partilham o mesmo palco, o mais profundo desespero e o mais raso tédio. Confundem-se grandes poetas com garotinhas escolares. Precisamos, portanto, misturar o marginal com o central, o descentralizado com o que já foi fronteiriço. O mais difícil é captar o movimento próprio do imaginário. De início, ele é um espaço eterno, um recipiente que esteve lá desde sempre e sempre estará. Em seguida, as imagens aprendem a andar e isso cria a impressão de que o movimento esteve lá desde o início. Mas trata-se de um pseudomovimento, como o que Marx reconheceu no capital. A presente crítica do imaginário pode perfeitamente perder-se no meio do caminho, assim como aconteceu com a crítica do capitalismo. Ela diz respeito às mesmas implicâncias teológicas e antropológicas: como o desejo humano caiu no jugo do Deus morto e, com isso, na malha fina de uma compulsão à repetição, que é infinita e exige sacrifícios. Um dos piores impactos dessa descoberta é a troca impossível, l’échange 22 impossible (Jean Baudrillard). As pessoas se transformam em bombas que tanto explodem quanto implodem, que, de qualquer forma, se eliminam. Nem o excessivamente inflado nem o excessivamente esvaziado pode sobreviver. O pior, contudo, é o completo fracasso da crítica. Cada tentativa bem-sucedida traz em si aquilo que foi desprezado nos outros. Essa é a lei que definitivamente aplaina a realidade, tal como um cenário sem pano de fundo, que devemos destruir se quisermos compreender. Por exemplo, as imagens do massacre na escola de Ohio e o atentado à central do Partido em Belgrado durante a guerra do Kosovo eram as mesmas: fachadas destruídas, sujas de sangue, em labaredas. A elas, podem-se unir as fachadas da Côte D’Azur e da Riviera Francesa quevi na primavera passada e me deixaram aterrorizado. Seriam ataques contra o caráter de fachada do nosso mundo autoproduzido? Será que todas as guerras desse século recém-terminado contribuíram para isso? Sem que ninguém percebesse direito? Já foi lançada a suspeita de que a internet, por fim, é um evento feito de voyeurs para voyeurs. Mas agora eles querem saber. E não somente ver. Querem saber como se dá a perfeita visibilidade do segredo, o desvendamento luminoso da geração da vida, até o fim. À sombra das moças em flor. Para liquidá-la com um olhar fatal, de uma vez por todas. Agora, a imagem obscena no centro é o vazio. Sem chances de defesa pública. O crime é perfeito. Em vez de proteção às pessoas e às coisas, o que se reivindica é proteção em relação à tela. E nós, estarrecidos, sentamos. Em duplos ângulos retos que nos roubam a mobilidade e aprisionam o desejo. Para que nunca mais possamos tocar o que amamos. E para ser impossível desfrutá-lo. Para todo o sempre. Por mera impotência, ficar à espreita do infinito aumento da frigidez do mundo. O teclado com suas letras não é um substituto. A sensação na ponta dos dedos acaba levando à insensibilidade. Além disso, escrita e imagem são apenas concessões feitas aos corpos enquanto eles ainda forem necessários. O que está em questão é o cálculo, da ociosidade da mathesis universalis(xviii) no ponto zero da história, diante do nada do mundo, do nada da natureza, do nada da matéria. Ao ficarmos sabendo desse desastre, o melhor é sumirmos rapidamente e deixarmos as cinzas serem cinzas. Porém, a descoberta do monstruoso no coração da humanidade força o surgimento de um conjunto de testemunhos, (xix) nem que seja pela escrita com o computador. Isso aumenta a ira. Se bem que a necessidade de entrar nas ilusões desprovidas de qualquer ilusão já seja, há muito, um modelo de ação dos novos tempos. O epitáfio de Jonathan Swift, de sua própria autoria, começa com as seguintes palavras: “Aqui jaz J.S., onde a irada indignação não pôde mais dilacerar-lhe o coração”. 23 1.2. O quadrado antropológico de espaço, plano, linha, ponto Espaço – eis aqui minhas dores. Vilém Flusser Tudo começou com uma aparição de Vilém Flusser num curso no início dos anos 1990, que organizei juntamente com Norbert Bolz, na Universidade Livre de Berlim. Flusser apresentou o que era então sua obsessão de pensamento. Caminhou gesticulando sobre o tablado da sala de aula, primeiramente para trás até bater com as costas na lousa. Em seguida, caminhou para frente até chegar à beirada enquanto ensinava sobre tecnoimaginação e imagens sintéticas. Deu quatro passos para trás e encenou com seu corpo a abstração corporal histórica e biográfica da qual tratou repetidamente em seus últimos escritos. Confesso que essa performance do suposto progresso da espécie humana como um andar para trás até a parede, de onde não dava mais para continuar, impressionou-me tanto que não consegui mais prestar atenção no resto da aula. As propostas flusserianas de como se pode reverter o retrocesso histórico da abstração ainda não me parecem convincentes. Ele próprio reclamava dessa precariedade e tentava sempre encontrar melhores saídas. Acredito que o diagnóstico que desenvolveu sobre o desastre – abertamente – nas obras póstumas e nas discussões cheias de temperamento com aqueles que ele chamava “críticos pessimistas da cultura” é mais importante do que a terapia. Afinal, poucas vezes alguém conseguiu apresentar e demonstrar, de modo tão despretensioso, a situação na qual os humanos são sujeitos, submissos e dependentes de seus artefatos, como Flusser dos últimos anos. Ele o fez sem se precaver contra as chances de um “enfrentamento”. Apenas a determinação em fazer com que o impeditivo e o repulsivo fossem discernidos e esclarecidos ao máximo assegurou que Flusser, com sua preocupação em relação aos “novos media” e à atual revolução dos signos, não entrasse para a estúpida classificação de “integrados” e “apocalípticos”. Causou-me uma segunda forte impressão, pouco depois, ao ler uma passagem na qual diferenciava as duas “forças imaginativas”,(xx) a tradicional imaginação e a nova “faculdade sintética de imaginar”, expostas no contexto de sua “antropologia negativa”. Eu próprio já tentava, há muitos anos, compreender uma sentença que me parecia evidente diante de crescentes ambivalências: “Contra o imaginário – esse impedimento quase perfeito à liberdade – ajuda somente a força da imaginação”. Ele, por sua vez, resumiu o pensamento a partir do modelo dos estágios da hominização: Através dessa tentativa de diferenciar as duas forças da imaginação, surgiu uma série de gestos que, se 24 vistos em conjunto, oferecem uma imagem do desenvolvimento da humanidade. Algo assim como, primeiro, o ser humano renunciou ao mundo da vida (Lebenswelt) para imaginá-lo a si mesmo. Em seguida, renunciou à força da imaginação para se descrever. Então, renunciou a crítica da escrita linear para analisá-la. Por fim, projetou-se para fora da análise graças à força da imaginação de imagens sintéticas. Claro que essa cadeia de gestos não deve ser vista como uma série linear. Os gestos não se descolam ou soltam individualmente, mas se agarram e sobrepõem-se uns aos outros. Paralelamente à sintetização de imagens, continua-se pintando, escrevendo e analisando, e esses gestos avançarão juntos rumo a tensões imprevisíveis e a fecundações mútuas. Mas, existencialmente, aqui e agora, o que nos diz respeito é o árduo salto do linear ao não dimensional (ou seja, ao “quântico”) e à sintetização (ao computacional), do qual temos de dar conta. O desafio que nos está posto é o de ousar o salto rumo à nova força da imaginação.[1] Ao fim, isso soou como um pedido de socorro. Venham para o ar livre, amigos! Entremos em acordo quanto às obrigações. Aceitemos as dependências, não como alvo, mas como pressuposto de nosso estado, nossa situação, nosso caso, nossa queda no sem-chão (Bodenlos). Cessemos as palavras, vejamos as metáforas. Não temos nada, além disso. – Outro encontro aconteceu em uma das academias de verão da Academia de Artes de Berlim, ali organizadas por Peter Lilienthal desde 1989. Vilém Flusser, radiante, falava sobre as novas possibilidades da tecnoimaginação, que podem agora transformar em imagem tudo o que existe. Abruptamente, perguntei se ele também gostaria de transformar sua mulher em uma dessas imagens sintéticas. Respondeu lacônico: “Ela não. Ela precisa escutar quando falo”. Curiosamente, o ouvir e o falar não apareceram no quadro das etapas encadeadas. Terá Flusser esquecido ou omitido conscientemente? De todo modo, na fase final de sua vida, continuou descrevendo repetidamente esse processo que, em marcha contrária à apresentação que fazia de si, não conduzia acima, rumo à luz, mas sim “escada abaixo”, representando uma “des-escalada”. Esse percurso, dependendo do caráter de quem o segue, é compulsório e causa a impressão de uma libertação progressiva. Se percebermos exteriormente o preceito hegeliano “Espírito é avanço na consciência da liberdade”, veremos que está literalmente invertido. O fim da sentença está no espírito, entendido como abstração do corpo; não no saber absoluto, mas no nada, com letra minúscula.(xxi) O lento e custoso desenvolvimento da humanidade pode ser considerado como um recuo gradual e um crescente afastamento do mundo da vida (Lebenswelt). Com o primeiro passo em retrocesso do mundo da vida – partindo do contexto das coisas que têm a ver com o homem – tornamo-nos manufatureiros (Behandlern), e a práxis que dali deriva é a produção de instrumentos. Com o segundo passo para trás – desta vez, a partir da tridimensionalidade das coisas manufaturadas – tornamo-nos observadores e a práxis que dali deriva é a de fazer imagens. Com o terceiro passo para trás – desta vez, a partir da bidimensionalidade da imaginação – passamos a descrever, e a práxis que dali deriva é a produção de textos. No quarto passo para trás – desta vez, a partir da unidimensionalidade da escrita alfabética– viramos calculadores, e a práxis que dali deriva é a técnica moderna. Esse quarto passo em 25 direção à total abstração – à nulodimensionalidade – foi implantado pelo Renascimento e hoje encontra-se concluído. Um próximo passo para trás não é realizável: não há nada que seja menos do que nada. Partindo disso, por assim dizer, fazemos a volta em 180 graus e recomeçamos novos passos para trás, lentamente e com dificuldade, em direção ao concreto (do mundo da vida). Da nova práxis da computação e da projeção em pontos, para linhas, planos, corpos e corpos que nos dizem respeito. [2] Nesse aspecto, o que me interessa é a compreensão mais precisa possível das figurações históricas, tal como se impuseram objetiva e subjetivamente contra a consciência e a vontade humanas, sem que, com essa análise, o “retorno” ao ponto zero da história seja obscurecido. Trata-se, de fato, de um evento que pega os homens “pelas costas”, apesar de eles saberem algo diferente, apesar de quererem algo diferente. O evento ainda não está no fim, o processo encontra-se em execução, a história ainda não deu sua pior virada. O ponto zero está em vias de se firmar como ponto de virada. É possível que Vilém Flusser tenha feito seus diagnósticos, que pôde chegar a eles, apenas com o objetivo de fugir de suas propostas terapêuticas. Estas ocupam, inclusive, um espaço cada vez maior e logo terão um quê de atrevimento. Além disso, elas entram em conflito com o cerne das evidências correntes, justamente agora, que o conhecimento exato da abstração do corpo torna-se francamente imprescindível – como um “emagrecimento” histórico do conhecimento – para a descrição do movimento retroativo, que Flusser descreve como uma série de projeções. Projeção do sujeito (Subjekt) ao projeto (Projekt) significa: ir da submissão à verticalidade, (xxii) não mais cometer os velhos erros após o salto para a nova força da imaginação. Que isso não aconteça imediatamente é aceitável. Mas ao fim, apesar de todas as boas intenções, se a volta, o giro, a virada, o “retorno na contracorrente” (René Char) não forem organizados como mudança para o ar livre, tudo poderá retomar a antiga direção. Somente quando ao tropeçar se percebe que se é um sujeito, somente aí é que é possível começar a se projetar. Somente ao se perceber submisso, pode-se começar a emergir. E assim, sob o signo do tropeço, o conceito de “verticalidade” adquire seu significado completo: ele é aquela atitude que se toma ao tropeçar, indignado com a humilhação, e ao tentar transformar sua sujeição em projeção. “Verticalidade”, portanto, não como indignação contra algo, mas como esboço para o anthropos, o humano. Isso se dá com passos para trás. Chegamos literalmente a “nada”, à nulodimensão do pensamento digital. Foi um longo caminho. Precisamos caminhá-lo de volta: até o mundo do corpo, no qual podemos ser corpos de corpos. O caminho seguiu, de fato, ao contrário, do espaço à superfície, desta à linha, e da linha ao ponto. Ou em termos do mundo da vida, mais existencialmente: do corpo à superfície da imagem, da imagem à linha da escrita, da escrita ao instante, na dimensão zero de um presente impossível.[3] Como representar a relação de tais dimensões, das quais os humanos participam rastreando,(xxiii) vendo, escrevendo e tateando, é uma questão ainda 26 não respondida a contento e que também foi deixada em aberto por Vilém Flusser. É preciso saber qual a estrutura, a gênese, a topologia e a história das abstrações corporais, considerando que estas não são apenas objeto do conhecimento, mas também condição de possibilidade do conhecimento. Ao trabalhar com essa questão empírico-transcendental, não se pode sonegar o fato de que, normalmente a partir da linha, no melhor dos casos, a partir da superfície, é que se escreve e se pensa. No entanto, a superfície, devido à sua reduzida dimensionalidade em termos de mundo da vida, só consegue representar realidades autênticas de “n” dimensões com grande perda. O mesmo acontece quando alguém se esquece de algo e não sabe o que fazer. Para se lembrar, seria preciso construir um caixote que seja também um modelo – espécie de caixa mágica – para evitar as inevitáveis abstrações que surgem enquanto se reflete sobre elas. Portanto, o todo não seria nenhuma quadratura do círculo, e sim uma circulação do quadrado. À mais antiga experiência do pensamento poder-se-ia acrescentar a reconciliação consigo mesmo. Num projeto em comum com Hans Belting sobre “Imagem e corpo”, foram realizados quatro eventos na Escola Superior da Imagem em Karlsruhe, durante o semestre de verão de 1999, nos quais esse debate póstumo de Vilém Flusser foi tratado minuciosamente. Tenho afirmado, ao ser perguntado, que já estava inconscientemente envolvido há vários anos no trabalho de elaboração do “quadrado antropológico”, e intensamente. De fato, a maior parte de minhas publicações relevantes dos últimos sete anos está organizada no padrão de tal “quadrado”: corpo, imagem, escrita/linguagem, tempo. Por isso me interessei e assumi para Karlsruhe uma tarefa teórica especial: como é possível pensar o “estar no mundo” do ser humano a partir do “mais simples” contexto das condições objetivas e subjetivas? Como vivem e morrem as pessoas com e no espaço, no plano, na linha, no ponto? Fui tomado entre os meses de maio e junho de 1999 pela seguinte fórmula, agora em tom flusseriano: “Precisamos nos levantar da sujeição e lançarmo-nos à projeção. Enquanto sujeitos, estamos submetidos a nossos artefatos; enquanto projetos, podemos ser eretos, ou seja, anthropos no sentido grego, humanos”. Claro que o mundo não está somente organizado segundo número, medida e peso, mas também segundo espaço e tempo. Eis a seguir quatro dimensões que – principalmente por suas inter-relações – dão muito a pensar. Em formulação abstrata e geométrica, são elas: espaço, plano, linha, ponto. O espaço é tridimensional, o plano é bidimensional, a linha é unidimensional e ponto pertence à “nulodimensão”. Numa definição cautelosa, pode-se dizer que o 27 espaço é composto de planos, o plano é composto de linhas, e a linha, finalmente, é composta de pontos. O ponto é composto de nada. Do ponto de vista do “quadrado antropológico”, as dimensões se chamam: corpo-espaço, imagem-plano, escrita-linha, tempo-ponto. Isso traz à cena outra dinâmica e, provavelmente, outro ponto de fuga. O discurso corrente de um continuum de espaço e tempo é completamente insuficiente, a menos que se considere a possibilidade de um continuum como receptáculo para meras descontinuidades. E a respectiva passagem de uma dimensão a outra, em termos precisos, é um ab- ismo (Ab-grund). Assim, o contexto fica ainda mais congestionado do que já é. Além disso, não dá para se contentar com a definição do quadrado formado por quatro marcações. Qual é o lugar da linguagem? Justamente quando é preciso considerar as competências humanas especificamente dimensionais, o estado das coisas se torna hipercomplexo. Aqui, elas podem atender pelos seguintes nomes: rastrear (spüren) no corpo-espaço, ver (sehen) na imagem-plano, escrever (schreiben) na escrita-linha, triar com os dedos (klauben(xxiv)) no tempo-ponto. Ler pertence ao escrever; calcular, ao triar com os dedos, dedilhar. Mas e quanto ao falar e ao ouvir? É forte a suspeita de que a ordem segundo espaço e tempo não seja possível sem tais “competências”, ou seja, que ferramentas, instrumentos e meios de comunicação sejam, portanto, decisivos para as dimensões e seu contexto. Para o fazer e o entendimento daquilo que é feito. Não existem espaço e tempo em si. Pois o espaço pode ser espaço morto e o tempo pode ter se embaralhado consigo mesmo. Em relação ao significado da palavra “abstração”, chama atenção desde o início uma confrontação entre pensamento e corpo. O fato de ambos terem sido criados juntos é concreto; mas sua separação é abstrata. O pensamento assume a forma do geral, enquanto o corpo é definido como estofo, matéria e, com isso, como algo particular do qual se pode abstrair,pois ele, em última análise, é irreconhecível e impensável. Abstrahere, em latim, significa tirar da vista, desviar o olhar, remover, separar, segregar, desvincular, arrancar, surrupiar e assim por diante. No início, a abstração dos nomes era restrita ao mundo dos nomes, como marca primeira de uma diferença, depois ela se expandiu à totalidade do conhecimento. O que resiste é a cópia. Abstração significa que sempre dois estão em jogo, dúvida, mas também desespero em relação à distância crescente entre o pensamento e seu oposto, o corpo. Com a necessidade, o pensamento abstrato vai reduzindo a abundância, vai esfolando, esfolando, até chegar aos ossos. É de espantar que, já desde cedo, se tenha anunciado um protesto a tal abstração “exangue”, que se tenha elaborado conceitos e “conseguido 28 atravessar de forma concisa o deserto gélido da abstração rumo a um filosofar concreto” (Nietzsche, Benjamin, Adorno, entre outros). A apoteose de Hegel mostra que o entendimento, como algo próprio da abstração, é a força monstruosa do negativo, a capacidade de deter o morto e, no extremo da perda do corpo, transformá-lo em vida do espírito; porém, apesar dessa apoteose, mesmo com uma variada articulação da contradição, não houve na sequência nenhuma chance efetiva de romper o que há de compulsivo na “des-escalada” em cascata da abstração e de torná-la menos retrocedente. Mesmo a defesa apaixonada de Alfred Whitehead não surtiu muito efeito: “Pensar é abstrato e o uso intransigente de abstrações é a maior desgraça do intelecto. Através da retomada da experiência concreta, tal doença não será curada por completo”. [4] Ao contrário, é preciso ocupar-se mais intensamente das categorias da razão calculante, a saber, através da mobilização de outras habilidades: ler, ver, ouvir, sentir. No caso, a multiplicidade interna poderia ser tomada como chance. Tomás de Aquino, já em seu tempo, preferiu não responsabilizar o objeto pela produção de abstrações do intelecto humano: non separata, sed separatim.(xxv) Somente chamando a atenção dessa forma, abriu-se a visão para a gênese e a estrutura do mundo abstrato que, atualmente, se expande ao infinito como cópia imaginária do mundo real. Porém, no contexto das fantasias tradicionais de progresso, essa ideia não pode ser reconhecida como tal. Isso vale principalmente para os produtos. O “exangue” adquire vida própria: mundo real das assombrações, realidade secundária de fantasias e fantasmas. Isso ainda parece um retorno do recalcado. Porém, é do rejeito que emergem para o real os primeiros zumbis, indiscerníveis entre vida e morte. Por isso, seria preciso inter-relacionar as abstrações corporais (Körper- Abstraktionen) eficazes histórica e estruturalmente, que são desde o início abstrações do corpo (Abstraktionen vom Körper): corpo/espaço; imagem/superfície; escrita/linha; tempo/ponto; e deve-se, em todo momento, saber em que dimensão se está e se age. Aqui é possível seguir longamente Vilém Flusser em sua “antropologia negativa” da falta de solo (Bodenlosigkeit). No ápice da época do computar, cresce a dor da falta, da carência, da privação. O vazio do presente torna-se quase insuportável. Tal ausência marca, no medium mais avançado, uma fronteira intransponível da arbitrariedade humana, ou seja, do poder da abstração. Aqui, o velho modelo “sujeito-objeto” deu sua última cartada. O homem sai da confrontação para a diversidade rugosa (Manchfaltigkeit) na qual se vê envolvido. De objeto, o mundo se transforma em horizonte. Flusser abordou com ênfase essa virada – onde literalmente chegamos a “nada” – como algo a ser seguido; e o fez primeiramente através de 29 sua concepção de uma “nova força da imaginação” e, posteriormente, em sua obra póstuma Hominização: do sujeito ao projeto. O caminho de volta do andar para trás, o retorno do espaço à superfície, da superfície à linha, da linha ao ponto (e, dali, a nulodimensão) precisaria ser caminhado em direção contrária: do tempo/ponto à escrita/linha, da escrita/linha à imagem/superfície, da imagem/superfície ao corpo/espaço temporal (e, a partir dali, para a quarta, a enésima dimensão). Somente a esse caminho, como volta do retrocesso, deveria ser concedido o título de “tornar-se humano” (Menschwerdung). Tudo dependeria de rastrear em qual nível de abstração encontra-se cada relação. Afinal, as abstrações corporais são pensadas em seu próprio interior. O “quadrado antropológico” de tempo, escrita, imagem, corpo é certamente relevante do ponto de vista “objetal”, porém muito mais relevante do aspecto “metódico” ou, mais precisamente, “metodológico”. Ele exige um pensamento que não reivindique mais para si a exceção à regra por ele mesmo proposta. Foi exatamente isso que Vilém Flusser tentou apaixonadamente realizar. Um desafio a todos os companheiros pensantes do nosso tempo. A partir de então, pensar poderá ser algo tão precário quanto pregnante. Duas coisas complementares poderiam ser adicionadas aos esforços flusserianos: primeiramente, uma tradução mais precisa possível do “quadrado antropológico” para as competências interativas humanas aí envolvidas: calcular (para a dimensão tempo/ponto), escrever (para a dimensão escrita/ linha), ver (para dimensão imagem/superfície); sentir (para a dimensão corpo/espaço); e, em segundo lugar, concentrar-se na passagem da imagem para o corpo, o que implica a aceitação de uma dimensão seguinte (linguagem/espaço ou linguagem/superfície) e de sua respectiva competência: escutar ou falar. Escrita e linguagem não podem ser fundidas numa única dimensão, tal como Flusser o faz eventualmente. Isso fica evidente quando imagem e corpo são situados, tanto em termos de objeto quanto de método, entre o ver e o sentir. Admite-se que também as outras transições do quadrado antropológico sejam indiscerníveis e confusas devido a seu caráter desconexo, porém o que há atualmente entre imagem e corpo (entre ver/saber e ouvir/sentir) é um acúmulo de problemas. O que aconteceu no desembarque regressivo do corpo/espaço para a imagem/superfície? O que aconteceu e o que acontecerá no reembarque progressivo da imagem para o corpo, do ver para o sentir? Será o tornar-se invisível das imagens um problema para o ouvido, para sua audição e seu senso de equilíbrio? Surgirá uma vertigem? Meu esforço aqui é fazer a seguinte anotação sem perder o equilíbrio: 30 Três, dois, um, zero Espaço, superfície, linha, ponto Corpo, imagem, escrita, tempo Sentir, ver, ler, calcular A tese flusseriana sobre o efeito histórico das abstrações do corpo sugere um encadeamento de épocas no qual a altura da dimensionalidade, em linha cadente, é transformada em grandeza condutora do processo civilizatório. Trata- se de recuar progressivamente a partir da tridimensionalidade até a dimensão zero, do corpo-espaço até o tempo-ponto. Embora os mundos e percepções superdimensionados sejam constantes, eles perdem paulatinamente seu valor. Sob as condições da civilização, o sentir, do mesmo modo que o ver e o ler, assume uma carreira regressiva. Quando tudo se tornar ponto e a experiência humana estiver finalmente transcodificada do pensamento em letras para o numérico, a humanidade, tanto a sofredora quanto a atuante, vai dar em nada. Então, haverá o confronto de um espírito sem mundo (ser humano) com um corpo sem espírito (terra) numa relação intransponível – auge e fim do cartesianismo. Em disputa com os “críticos da cultura”, Flusser articula agora sua objeção contra a fatalidade da abstração. A destruição definitiva da substância, da matéria, do corpo não pode ser final nem finalidade da atividade do espírito humano sobre a terra. A modernidade, a contemporaneidade, a história, precisariam ter outro sentido que não seja, na consciência do saber absoluto, sempre trazer à baila esse nada radical que se escreve com letra minúscula. Isso não passaria de um delírio antiemancipatório, uma imbecilidade autoprescrita do mais alto grau que confunde liberdade com aniquilação. “Independência é loucura”, escreve Flusser, mesmoquando a “realidade” massiva, que dela resulta, associa sua massividade à certeza de não poder errar. Pode-se e deve-se perguntar como se chegou a tal ponto e em que sentido o impulso a um niilismo global do pensamento teve e ainda tem a ver com sua real destruição. Minha tese a esse respeito é a seguinte: tratou-se e trata-se de negligência em relação ao limite do arbítrio do ser humano, do limite de sua capacidade e incapacidade através de si mesmo. A transgressão permanente deixou consequências catastróficas que, hoje, são atribuídas a outras causas e outros causadores. Sim, os emaranhados se formam sozinhos e crescem, inclusive, como uma corrente de autoestrangulamento. Esse poder humano, juntamente com suas limitações diante de cada impossibilidade específica, apresenta um percurso histórico ascendente. Em cada uma das dimensões citadas, empreende-se uma tentativa fracassada de aumento de poder. O 31 fracasso, contudo, não é acolhido como oportunidade para uma crítica ao poder, mas sim negado, reprimido e rejeitado para que aconteça uma nova intensificação da abstração. Assim se produz o inconsciente, com suas retroalimentações bloqueadoras, ironizantes e absurdas. Até o ponto zero. A meu ver, diante do muro do impossível, em nada ajudará mobilizar as capacidades remanescentes das dimensões menos abstratas, como fazem quase todos os contramovimentos críticos da civilização, enfim, quando recorrem ao ler, ao ver e ao sentir, sem mudar a atual situação determinada pelo cálculo da excludente. Foi o que ocorreu com a reciclagem cultural, que nesse meio- tempo se tornou entediante, lamentada com frequência também por Flusser. Seria muito mais conveniente a transcodificação do fracasso que surge da própria transcodificação. O que também valeria retroativamente para os níveis anteriores de abstração. Nesse sentido, trata-se de um assunto sem pathos. Fracasso não como queixa diante do Altíssimo, do Juízo Final, mas fracasso principalmente como forma processual descrita do conhecimento humano, tanto do já passado quanto do ex post, daquele que poderá ser posteriormente determinável a partir do ponto de virada, que é o zero, o nada, o nulo, a nulidade, como uma forma de direção do sol poente.(xxvi) Em conformidade com isso, a dificuldade do “retroceder em passos para trás”, chamada por Flusser de “tornar-se humano” (Menschwerdung), consiste em duas coisas: primeiro, compreender a queda do humano da terceira dimensão ao nada, do corpo ao zero, principalmente sua fatalidade, tanto no geral quanto no particular; em segundo lugar, denunciar a arbitrariedade humana como síndrome infantil e, ainda, explicar como foi possível que o “primeiro liberto da Criação” (Herder, Gehlen) responda à recente insuportabilidade do mundo por ele mesmo recriada, à sua própria miséria nisso, enfim, ao isolamento autoinflingido (Günther Anders),(xxvii) sempre com um novo delírio de sua pretensa onipotência intelectual. É possível encontrar um lugar para as competências não contempladas pelo plano de Flusser (linguagem, audição e fala), desde que o quadrilátero das dimensões corpo-espaço, imagem-superfície, escrita-linha e tempo-ponto seja colocado no horizonte de um outro tempo e, então, reesquematizado a partir dele, isto é, dos sentidos do corpo. Deste modo, obtém-se o seguinte quadro que, devido à disposição meramente superficial, deverá logo em seguida ser apagado. Não-dimensional (nicht-dimensional) Tridimensional (drei-dimensional) Bidimensional (zwei-dimensional) Unidimensional (ein-dimensional) Nulo dimensional (null-dimensional) CORPO VIVO CORPO MORTO IMAGEM ESCRITA (DES)TEMPO 32 (Leib) (Körper) (Bild) (Schrift) (Un-Zeit) Sentir ou rastrear (spüren) Escutar/falar (hören/sprechen) Ver (sehen) Escrever/ler (schreiben/lesen) Calcular (rechnen) Pele (Haut) Ouvido/voz (Ohr/Stimme) Olho (Auge) Olho/mão (Auge/Hand) Cérebro (Gehirn) TEMPO-ESPAÇO (Zeit-Raum) ESPAÇO (Raum) SUPERFÍCIE (Fläche) LINHA (Linie) PONTO (Punkt) Para interpretar minimamente o esquema, seria útil citar outro grande fenomenólogo da atualidade.(xxviii) Através dele, fica clara a autossuperação do “quadrado antropológico” em “pentágono”: “O corpo é uma extensão pré- dimensional, indivisivelmente sem superfície, ou seja, de dimensão não quantificável; por exemplo, não é nenhum volume tridimensional com dinâmica de estreitamento e alargamento”.[5] Alargamento, porém, só pode funcionar depois da passagem pelo portal mais estreito. Até lá, tudo só fica mais e mais apertado. Isso porque as abstrações corporais se instalam na história da civilização como uma retirada gradual dos corpos, que vai do pleno ao vazio, do altamente dimensional mundo da vida ao deserto gélido da abstração, até o zero, isto é, do cálculo com o zero até o cálculo binário (zero/um). Essa “des-escalada” tem algo de inevitável e irreversível. Por isso não se pode retornar tão facilmente. Se tomada a devida distância, isso tudo parece uma história de sacrifício, como um ato sacrificial sob efeito de choque. Nietzsche denominou-a terceira crueldade religiosa: autossacrifício do espírito humano triunfante que, acima de tudo, fez do corpo, da imagem e da escrita vítimas de seu cálculo. E se considerada de perto e em relação à particularidade das dimensões e suas transições, a situação mostra algo inesperado. Que se guarde pelo menos o seguinte: o escrever é sempre incalculável; o ver é sempre indescritível; o ouvir tange o invisível; o sentir é inaudito. De acordo com o modelo do “Jardim dos caminhos que se bifurcam” (Borges), é preciso saltar para antes das decisões que levaram a alternativas erradas ou insustentáveis. Este é o retorno rio acima do pensamento- corpo que, em sua dificuldade elementar, está aí para todos verem. Tenho, contudo, um indicativo de como esse empreendimento pode se realizar. Flusser meditou muito sobre mãos, inclusive sobre como as mãos foram liberadas no processo em que o homo sapiens sapiens se tornou vertical. Para ele, a metáfora corpórea das mãos libertas encontrou-se, desde o início, em tamanha vantagem, que não foi alcançada por todas as funcionalidades sucessivas da história; nem a negociação (Handel), nem as ações (Handlungen), 33 certamente nem o trabalho, talvez a capacidade de escrever – o que de fato é um movimento dos mais complexos. Flusser volta os olhos para jogo das mãos de apreender e aprender (begreifen). “Uma mão que se tornou realmente humana não trabalha, mas aprende a não precisar trabalhar. Ofuscada pela moral do trabalho, a maioria de nós teme a falta de trabalho e a automação completa. Somos macacos decaídos, vis.”[6] Mas não poderia a mão humana ser o modelo da relação das quatro dimensões (ponto, linha, superfície, espaço e, respectivamente, tempo, escrita, imagem, corpo) que, por sua vez, podem ser “confrontadas” uma a uma com o tempo, tal como os demais dedos com o polegar? Poderia ser ela o modelo com o qual o homem ereto pode explicar sua situação no mundo? Não poderia ser que, liberada de sustentar o corpo, a mão tenha começado a contar e também a escrever, a ver, a tocar? Até três, até cinco; escrever e, ao copiar, ler o que escreveu; ver a partir do invisível; tocar e sentir, às cegas, se necessário? Não poderia ser que os ossos que se salientam ao cerrarmos o punho mostrem algo mais do que o andamento do calendário dos meses do ano, mais precisamente, a ligação das dimensões em carne e sangue e sua separação através dos ossos? E o que dizer das linhas da palma da mão, de sua ordem fisionômica e pantomímica? Não poderia ser, estruturalmente, que o quadrado antropológico de tempo, escrita, imagem e corpo seja estendido e mantido pelo tempo, porque este age como ponto no quadrado corporal e como esfera que circunda todo o quadrado. A tal ponto que, por meio das mãos, fosse possível uma circulação? Seria isso, então, o tempo efetivo enquanto linguagem? Efetividade tanto no aspecto pontual, linear, superficial quanto corporal? Ao fim do livro Comunicologia, dedicado
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