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Mudança de horizonte_ O sol novo a cada dia nada de novo sob o sol, mas - Dietmar Kamper

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SUMÁRIO
Capa
Rosto
DIETMAR KAMPER E A SOCIOLOGIA DO CORPO VIVO
TERCEIRA ABERTURA
1. ABSTRAÇÕES DO CORPO
1.1. Minha escrivaninha, o campo de neve. Um cursor chamado HerrMann
1.2. O quadrado antropológico de espaço, plano, linha, ponto
1.3. A caixa – black box – la chose. Uma tripla circulação do quadrado
antropológico
1.4. O espaço vazio. Cinco respostas para perguntas que ainda não conheço
1.5. Desenhar no abismo da superfície. Onze sentenças sobre uma estranha e
misteriosa competência
2. OLHAR E VIOLÊNCIA
2.1. O futuro da visibilidade
2.2. Corpo como cadáver
2.3. Encore? En corps! Da repetição ao corpo
2.4. Sombras e contradições. Manifesto para São Paulo
2.5. A autópsia impossível
3. NADA DE NOVO SOB O SOL, MAS O SOL NOVO A CADA DIA
3.1. Não! Não é uma boneca, mas uma bela figura artística
3.2. Os pré-socráticos e o pensamento ao ar livre
3.3. A humanidade de Deus. A rosa na cruz da realidade. Hermetismo
3.4. Capacidade de embriaguez. O equilíbrio da felicidade
3.5. A falta de respostas do universo
4. A NORMA DETURPADA DA ANTROPOLOGIA
4.1. Viver sem inimigos
4.2. A trajetória da questão: o que é o ser humano?
4.3. O humano como destino, acaso e perigo. Paradoxia excêntrica
4.4. Ciência e paixão
4.5. A fala de terceira ordem: sobre a eficácia do incompreensível
5. ANTINARCISO
5.1. O picante da sedução
5.2. Por uma crítica do homo significans erectus
5.3. Mais uma vez: esforço como forma de vida
5.4. A altura da queda amorosa e a força do coração partido
5.5. O belo, o sublime e o que é o caso
NOTAS DA TRADUÇÃO
PRINCIPAIS OBRAS DE DIETMAR KAMPER
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
3
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F
DIETMAR KAMPER E A SOCIOLOGIA DO CORPO VIVO
oi em abril de 2001, abertura do milênio, poucos meses antes dos ataques às
torres gêmeas: Dietmar Kamper estava diante do grande TUCA (Teatro da
Universidade Católica de São Paulo) lotado e ao seu lado, Haroldo de Campos.
Havia um clima de reverência e celebração, mas sobretudo uma expectativa de
notável e rara degustação de pratos, ao mesmo tempo delicados e fartos. Ambos
os mestres com amplos sorrisos, anunciando que não se tratava de um embate,
mas de um grandioso banquete. Não pairava no ar nenhuma despedida,
embora todos soubéssemos que havia, sim, algo do canto do cisne, para os dois,
que sabiam haver conquistado a alta honraria da finitude. Os temas da noite
eram a antropofagia e a teofagia. E Hans Staden era uma das portas de entrada
ao tema, pois Kamper e sua companheira, Birke Mersmann, também integrando
a mesa, haviam trabalhado e vivido em Marburg, no estado de Hessen, próxima
da cidade natal do autor da notável A verdadeira história dos selvagens, nus e
ferozes devoradores de homens, encontrados no novo mundo, a América, e
desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os
últimos dois anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em
Hessen, os conheceu, e agora os traz ao conhecimento do público por meio da
impressão deste livro, publicada justamente em Marburg, em 1557, com
retumbante sucesso editorial para seu tempo. A grande polêmica da época de
Staden, pesquisada e apresentada ali por Kamper e Mersmann, demonstrava
que o grande embate entre católicos e reformadores era em torno da
comunhão, uns a viam como corpo de Cristo e outros a viam como símbolo do
corpo de Cristo, uns como verdadeira comunhão e incorporação, outros como
abstrata mediação simbólica. Haroldo, por seu lado, desdobrou em mil folhas a
poética da devoração oswaldiana em uma filosofia da transmutação do
metabolismo cultural, uma genealogia do espírito rebelde e criativo do século
XX.
Poucos meses depois, logo após o ataque às torres gêmeas, falei com Dietmar
Kamper ao telefone, comentando o grande golpe das imagens contra uma
sociedade das imagens cada vez mais grandiosas e onipresentes. Ainda
assustado com a dimensão e a repercussão gigantesca do episódio, ele
acrescentou, já muito ofegante, que, por outro lado, são eles também, os
americanos, “Kinder Gottes”, filhos de Deus. Foram as últimas palavras que
escutei do mestre. Menos de um mês depois, em 28 de outubro, ele pronuncia,
diante de Birke Mersmann, sua última palavra: “wunderbar!”, maravilhoso!
De 1992 a 2001 Kamper estivera inúmeras vezes no Brasil, e São Paulo era seu
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campo de observação antropológica. Da imagem e do corpo, em sua relação
conflituosa. Escreveu vários textos para São Paulo e a partir de São Paulo.
Sempre textos muito densos de imagens e crepúsculos conceituais (aqueles que
nos exigem ver além da luz e da razão). Deu inúmeros cursos, palestras,
conversas, seminários, participou de simpósios e encontros. Para auditórios
inteiros e para meia dúzia de alunos e pesquisadores. Trazia consigo sempre um
pouco mais de tempo, do tempo lento da observação, o tempo da escuta e o
tempo da espera, o tempo generoso de quem digere iguarias exóticas ou lautas
refeições. Ao fim de uma estadia, já deixava combinada a próxima, no ano
seguinte. E trazia sempre novos temas, novas pautas de diálogo e discussão.
Sempre chegava radiante nos voos da madrugada, às vezes confessava que não
sabia o sentido de estar aqui de novo (para logo em seguida dizer: Mas o
sentido só se sabe depois!), às vezes apenas curtia a cerração e a saturada
umidade paulistana das madrugadas em épocas de chuva, “o ar da
Champagne!”. Na última vez chegou ainda mais radiante, com o nascimento de
sua primeira neta, e contou que havia feito uma aposta consigo mesmo, de que
a vida é bela. E prosseguiu: “quando estou na Europa, tenho a sensação de que
vou perder a aposta”. E “apenas chego ao Brasil e me vem a certeza de que vou
ganhá-la!”.
Após a primeira visita, dei-lhe de presente um livro em português: Do Pau-
Brasil à antropofagia e às utopias, de Oswald de Andrade. Na segunda visita, ele
já citava Andrade e seu Manifesto Antropófago, recém-publicado na Alemanha
pela revista Lettre. E aqui já estava ele de novo, para devorar o que lhe
encantava, não para civilizar ou iluminar, nem para ensinar. Para observar com
os olhos que enxergavam os subterrâneos escuros das imagens da megalópole.
Sua obra é vasta e aparentemente diversa, mas a diversidade dos objetos não
nos deve iludir, seu olhar agudo e profundo mantém uma irrefutável coerência
ao tensionar os mais diferentes objetos. Os livros originados em simpósios e
ciclos de conferências, organizados juntamente com Christoph Wulf, dão uma
mostra da riqueza temática: O Evanescer dos Sentidos, O Retorno do Corpo, O
Tempo Moribundo, O riso, o sorriso e a gargalhada, Aparência do belo, O
Sagrado, O destino do amor, Retrospectiva sobre o fim do mundo, Na sombra da
Via Láctea, Teoria da fantasia, livros trabalhados por muitas mãos, das mais
hábeis do mundo para cada tema. Dietmar Kamper convidou, em seus
seminários e simpósios, ninguém menos que Foucault, Lyotard, Baudrillard,
Serres, Montagu, Leroi-Gourhan, Sloterdijk, Bodei, Morin, Girard, Virilio, Kittler,
Perniola, Belting, Grivel,
Maffesoli, Eco, Irigaray, Poulain, Samsonow, Dorfles, Sonnemann, Zielinski,
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Mondzain, Mitchell e tantos outros.
Outros ciclos e livros foram organizados e editados sozinho ou com outros
parceiros sobre: “Olhar e violência”, “Imagem e violência” (apresentado em São
Paulo, no SESC), “O jogo”, “A Atlântida”, por exemplo, “O homem (im)perfeito”,
“Mito Neanderthal”, “Obsessão e imaginação”, “Autocontrole”, “Sobre os
desejos”, “Poder e impotência da fantasia”, O trabalho como vida (também em
São Paulo, no SESC), Quel corps?.
Sua entrada nos temas e objetos, sua maneira surpreendente de tratá-los, seu
olhar lancinante sobre aquilo que parecia inofensivo e inócuo, fizeram dele um
pensador transversal onde quer que estivesse: em Colônia, na graduação em
Educação Física, interessou-se pela Filosofia; em Munique, na Filosofia,
doutorou-se sobre um autor pouco cultuado, Leopold Ziegler; em Marburg, na
Pedagogia, buscava padrões multidisciplinares para tensionar as gavetas
estanques do conhecimento e da educação; em Berlim, na Sociologia,lançou
mão de autores estranhos aos cânones estritamente sociológicos e trabalhou
inicialmente com Josef Taubes, um iconoclasta da Filosofia que havia
convidado Derrida a Berlim, quando este ainda era uma absoluta anonimidade.
Admiração e correspondência com Foucault e Cioran, paixão pelos românticos
como Novalis e cooperação com Odo Marquard, Helmuth Plessner e Adolf
Portmann, tudo isto e muito mais constituíam travessuras imperdoáveis no
mundo acadêmico alemão (e não só lá), sobretudo se a escritura e a fala do
professor e pesquisador se contaminavam de expressões e categorias saturadas
de poesia, exigindo leituras sensíveis e abertas para o ambivalente, o difuso, o
obscuro, o profundo, o metafórico, o sombrio. E foi com esse olhar de herege
que ele se dedicou aos campos de reflexão que introduziu na pauta acadêmico-
científica alemã: teoria do corpo, teoria da fantasia, história da imaginação,
crise da visibilidade, história da abstração, corpo e imagem, imagem e
abstração, o virtual como variante da ausência e ainda muitos outros.
Não é de espantar que alguns de seus colegas se sentiram mortalmente
incomodados pela postura e pela linguagem de Kamper e tivessem até mesmo
promovido uma campanha difamatória por revistas e jornais. Acusavam-no de
não explicar, não esclarecer, não simplificar os conceitos e os objetos que
tratava. Sua resposta foi reafirmar sua recusa de redução da complexidade.
Reduzir a complexidade significa capitular diante das estratégias de um mundo
feito de imagens e ausências.
O presente livro é a tradução de sua última obra publicada em vida, no auge
de seu vigor crítico e analítico. Merece menção especial e gratidão eterna o
trabalho sensível, preciso e delicado de Danielle Naves ao traduzir a obra.
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Danielle realizou uma verdadeira transcriação da linda obra de Kamper. A
tradutora preserva até mesmo a música das frases (e isto é fundamental em
Kamper!), a beleza de certas imagens conceituais, a polissemia, o
obscurecimento crepuscular e poético de cenas, frases e palavras. Deve-se
igualmente destacar a ousadia do diretor da coleção, Ciro Marcondes Filho,
também revisor técnico que enriquece a linda tradução anotada de Danielle
Naves, por ter proposto a publicação no Brasil desta obra tão atual e
inseminadora, tão desafiadora e surpreendente.
Por fim, quero alertar o leitor para as dificuldades de se aprender a ler
Kamper, com “a cabeça estilhaçada, assim como os românticos sentiam com o
coração partido”, nas palavras do próprio autor. Relato aqui, ao caro leitor, uma
experiência que um colega professor relatou a partir da indicação de um breve
texto kamperiano para jovens alunos de graduação.
Recomendou que lessem o texto, mas não uma única vez! Duas, três, quatro...,
vinte vezes! Em voz baixa, em voz alta, aos amigos, aos familiares, sozinhos,
gravando e ouvindo, diante do espelho, deitados, andando, sentados. Na sala,
no quintal, no jardim, no banheiro. Pelo menos vinte vezes! Na semana seguinte
chega uma aluna muito jovem e relata que leu o texto até a décima nona vez
sem entender nenhuma palavra, até que de repente, ao lê-lo mais uma vez, ele
se abre como por magia e ela começa a chorar.
Kamper nos ensina a ler/sentir o mundo com o corpo vivo, presente,
pulsante! Não apenas com os olhos e com a cabeça, como manifestação
próxima de uma distância. Ele nos convida para um embate ao vivo que
também é um banquete, nos convida a retomar o corpo, a presença, o presente.
Norval Baitello Junior
CISC-PUC-SP
7
E
TERCEIRA ABERTURA
Sou um fazedor de palavras:
Que importância dou às palavras?
Que importância dou a mim?
Friedrich Nietzsche
m grande parte, sem que o autor se desse conta, os textos deste livro, ao
surgirem, foram apontando pontos de fuga, que, para além de todas as
intenções, marcam um único point of no return (ponto de irreversibilidade).
Assim, formaram-se direções fundamentais que se quebram a si mesmas. Os
encadeamentos de metáforas tensionam-se entre metástases e quiasmas.(i) São
letras, palavras, frases que não indicam saídas, sempre sob o perigo da
pululação desordenada e de uma retrógrada incisão em forma de cruz. Não se
trata mais de arbitrariedade, mas de uma escrita pela vida, puras
correspondências, formadora de uma rede, esticada até arrebentar, uma rede
das amizades.
Os textos, escritos a partir da primavera de 1999, agruparam-se praticamente
sem que eu interferisse. Enquanto escrevia, estive todo o tempo a caminho de
um ponto zero, que me acomete inclusive agora, no meio da jornada. A coisa
veio me acontecendo desde os esforços de Karlsruhe, Colônia e Bonn (1.
Abstrações do corpo); atropelou-me em São Paulo (2. Olhar e violência);
queimou-me, no foco do pensamento hermético, como me ocorreu nas últimas
semanas, até a medula (3. Nada de novo sob o sol, mas o sol novo a cada dia);
emergiu na ensolarada Neandertal e em Dresden (4. A escala danificada da
antropologia); foi como uma corda no pescoço durante a tentativa de iniciar
uma crítica do homo significans erectus no corpo do próprio autor (5.
Antinarciso).
Constantemente aparecem cortes transversais entre autobiografia e
antropologia histórica, que expõem uma nova mistura de destino, acaso e
perigo. Já não se trata da filosofia da identidade e tampouco do pensamento da
diferença, mas uma reflexão elevada à terceira potência, na qual a esvaziada
relação entre esfera pública e privada é reescrita em favor de uma
singularidade, que é a verdadeira adversária da pluralidade, da maioria e da
multiplicidade. Nisso, a velha visibilidade fica se torcendo. A questão se o ponto
zero da história faz aqui o papel de pivô pode ser respondida com um sim,
inclusive com o adendo: ça dépend! (depende).
Antinarciso marca perceptivelmente a transição da repetição à
contratransferência psicanalítica. Não se trata de um novo tipo de socialização,
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mas do destino da metodologia do pensamento-corpo,(ii) que necessita de
tempo para demonstrar suas capacidades. O que está em questão é a troca de
horizonte de encore para en corps (de novamente para corporalmente), do
mesmo modo como foi tematizada ao longo do afastamento histórico e social
do corpo, na forma como se tornou o problema principal na concepção de uma
estética da ausência, como foi posta como meta na abertura primeira de
“Pesquisa de fantasmas e estenografia” e que, na segunda abertura, apareceu
em cápsulas decompostas, “rastros”.
Na sequência da estética da ausência, que representou o afastamento do
corpo como fait accompli (fato consumado) da civilização e ainda exigiu aquilo
que era decisivo da força expressiva do corpo, a terceira abertura significa
mostrar a própria desaparição. Desta vez, há uma prova irrefutável. Apenas
aquilo que linguisticamente se autodevora pode ser declarado. Eis o até agora
impensado arranque da metástase ao quiasma. O que resulta numa abertura
para o anúncio da libertação. A mudança de horizonte acontece por si e não
poupa quem a escreve. Antes de pivotear e sair do eixo, o visado ponto zero da
história custa, principalmente, a cabeça. Isso não é dialética, mas o desabrochar
da rosa na cruz da realidade. Fim da exibição. Nem uma primeira, nem uma
última vontade. Toda pessoa pode fazer mágica, a não ser que não queira e não
seja viciada em imagem.
Quanto à forma do texto, não faço mais escolhas. São dissertações,
exposições, teses, fantasias ricamente insinuantes e inconclusas, assim como
desvios, que ainda seguem modelos logicamente compulsivos e tentam captar
aquilo que está aberto em suas inter-relações. Mas há também encadeamentos
de palavras – como em citações – que se desassociam e abrem espaços a
pensamentos insólitos, no sentido mais literal do termo. Para quem suportar,
aqui a barreira do indescritível torna-se inequivocamente clara. Mais do que
nunca, chega-se à representação, à representabilidade tal como exposta há cem
anos por Sigmund Freud ao tratar dos sonhos. O consciente tem um defeito: não
consegue conter o assombro de ter se descoberto mortal. Ele disfarça o
horizonte tanto pelo esquecimentoquanto pela lembrança e é, sobretudo,
incapaz de uma mudança. Com isso, se acrescenta mais uma discrepância à já
existente entre percepção e consciência: a que há entre sonho e consciência,
um sem-fundo (Ab-Grund) que só pode ser transposto pelo lado do sonho.
Somente essa discrepância faz com que o pensamento-corpo se realize. Afinal,
ela também permite que diferenças velhas e saturadas apareçam sob uma luz
completamente nova.
Consciência – percepção – sonho:
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Como indica o alinhamento de palavras, aqui não há um continuum, mas
antes um encadeamento de fraturas a ser realizado, a partir de agora, sem
dialética alguma.
O que isso significa, na totalidade, é imprevisível. Por ora, darei o esboço de
três pontos.
Primeiro: mudança de horizonte
A mudança de paradigma proposta por Thomas Kuhn mantém-se na linha e
sobre chão firme. Para saber como ela funciona, basta olhar aqui e acolá, da
esquerda à direita, o antes e o depois. Essas mudanças da perspectiva, que por
longo tempo mantiveram todo um mundo em aberto, conseguem abalar e
colocar em questão o acima e o abaixo. Exigem uma cabeça tranquilamente
assentada sobre os ombros e capaz de encontrar, a partir de irritações, nova
estabilidade que possa sustentá-la. Mas a mudança de horizonte reivindica, por
seu turno, que aqueles que a reconhecem adicionem a tudo isso um salto
mortal, uma cambalhota metodológica, a fim de que possam alcançar o ponto
de virada do interno para o externo, o trecho perigoso da fita de Moebius em
seu processo autorreferencial. Aliás, esse salto mortal pode ser visto em imagens
medievais de acrobatas e artistas de rua. Ele contribui para o anúncio de um
gesto extremamente repreensível, que contradiz o Santo Espírito, o espírito da
unidade, da certeza e da consolação.
Segundo: infinita falta de tempo
Tal é o termo com que Jacques Lacan fez alusão à falta de Ser. E já se
opondo a Heidegger: “Existem Ser e Tempo”, frase cujo esclarecimento deveria
vir no segundo volume, caso este tivesse sido escrito.(iii) Mas não existe, nem o
segundo volume, nem ser, nem tempo. Não existe. Nada se dá. No fundo, não
há nenhum alcance quádruplo.(iv) O que há é uma forma radical da falta de
respostas do mundo. Contudo, essa disposta indisponibilidade tem como
consequência uma situação tão flagrante que não conseguimos tomá-la como
verdadeira e muito menos continuar falando em termos de tempo real e
presente. O significado de “presente impossível” é, portanto, expressão de um
balanço que, conforme a coerção da
existência, fracassou completamente. Os humanos são um ponto vazio no
universo. Eles estão ausentes não apenas parcial, mas totalmente. E nenhuma
vontade ou consciência pode mudar algo. De uma forma honesta, a
antropologia histórica mantém livres os espaços para o pensamento. Talvez o
pensamento-corpo possa ajudar. Rastrear. Ouvir. Sentir. Ver. O horizonte, não
mais como moldura, mas borda que desaparece, é, por fim, um silêncio gritante.
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Terceiro: saber-se existente
Já foi assim: sou, mas não me tenho. Logo, só nos tornamos. Ou: ser um
corpo vivo (Leib) versus ter um corpo morto (Körper).(v) Ou: penso, logo não
sou. Sou, logo não penso. Ou: nunca estou onde você me vê; onde estou, você
não me vê etc. Bataille, a partir de tais trivialidades antropológicas, concluiu
que o não saber é o que há de supremo e melhor. Mas isso só se alcança vez ou
outra. É preciso manifestamente entrar em forma. É preciso fazer como Sven
Lindqvist, que por estranhas desventuras chega ao seu melhor conhecimento: o
conhecimento da existência, que é o avesso da ignorância da inexistência. Já
faz algum tempo que é necessário perceber e sonhar simultaneamente o verso e
o reverso. Estar-aí (Dasein) e estar-ausente (Wegsein)(vi) são uma coisa só, sob a
extrema condição de possibilidade do ser humano. A “viagem ao extremo do
possível do ser humano” (Bataille) tornou-se inevitável. Sem mais ingenuidade
alguma, tampouco estereótipo da inocência. Sorry.
O que hoje é necessário ao escrever é veneno e bílis, também brandura. Esse
poderia ser o nome do método de uma crítica à antropologia histórica, cujo
objeto, por sua vez, chamar-se-ia: bílis venenosa e dom. Dom é um fato social,
bílis um fato antropológico. Ela designa a ira da descoberta do quanto se está
ferido e exposto, antes mesmo que se possa começar a pensar. Chole é a palavra
grega para bílis, fel, amarelo e ira, presente, por exemplo, em colérico e cólera.
Diz-se da ira que não é bom pressuposto para um conhecimento claro. O
colérico é tido normalmente como inapto à tarefa pacífica da ciência
disciplinar e ao necessário entendimento da informação equilibrada. No
entanto, desde que existe o fenômeno da ciência comprada e corrupta, ou seja,
desde que para cada problema pertinente são encontrados especialistas e
contraespecialistas, o melhor mesmo é ficar irado. Mais complicado, portanto, é
o problema de uma ameaçadora autoneutralização.
Quem entra em contato com a antropologia histórica acaba por desistir no
momento em que se depara, no diálogo, com a frase: “Você não consegue
suportar isso na cabeça”. Tanta acumulação do que é inútil. Tantos movimentos
de reforma fracassados. Tantas lutas vãs por uma vida correta, “natural”. É
preciso ser radical, ao menos radical na idade,(vii) para poder discernir e
selecionar através dos séculos a confusão criada, a gigantesca montanha de
entulhos de argumentos. É verdade que, sem radicalidade, a identificação com
o agressor é inevitável. É, então, que a pessoa se instala nalgum fronte e deixa-se
acomodar, inclusive teoricamente. Não é de suspeitar que, assim, alguns
desistam da posição conquistada com tanta luta ou que outros ainda continuem
atraídos pelo posto já perdido.
11
É preciso, portanto, estudar, aprender e querer conhecer algo com exatidão.
Não se pode permitir ser consumido pelos pensamentos da moda, que nada
mais são do que uma vasilha de esmolas, transbordante de enganos e
desenganos históricos. Sobretudo, não se pode renegar, reprimir e rejeitar a
zona do silêncio e das verdades silenciadas, a partir da qual ocasionalmente
emerge uma injustiça gritante. O inconsciente é um factum brutum da história,
mais precisamente da história à qual outrora ele se dirigiu em busca de mais
humanidade. Somente a ira, ao concluir que não há mais nada a ser feito, pode
se tornar produtiva sem cegar. Contra a estupidez autoimposta, ajuda somente
uma crítica não disciplinante ao poder disciplinar, tal como a que está
associada desde o início à antropologia histórica. Neste ponto, pode-se e deve-
se seguir Michel Foucault.
Já se disse que o paradigma, a perspectiva e o horizonte do anjo da história
não são os mesmos que os nossos, e que, não sem motivos, Benjamin distingue
com exatidão duas coisas que nos aparecem como uma única catástrofe: a
cadeia de acontecimentos e o que anjo vê.(viii) Porém, justamente nisso estaria a
urgente mudança de horizonte, indo da crença idiota no progresso da
humanidade para a percepção do monstro que sitia a cadeia da liberdade
humana, um monstro que é tanto autogerado quanto gerado pela razão. Pois só
a partir daí podem surgir os desdobramentos inconvenientes: primeiro,
visualizar a catástrofe como um horror perfeito; segundo, suportar o pavor da
própria história de crimes; terceiro, desfazer-se das asas, pois nunca houve
sentido em tornar-se anjo quando não se quer também virar diabo; quarto,
confiar nas próprias costas, pois elas servem como arquivo da evolução e da
história; quinto, desligar-se da tormenta do paraíso, afinal não perdemos o
paraíso, mas, por bons motivos e força do futuro imediato, saímos de lá fugidos.
Como fica essa história sagrada, mesmo que receba aqui apenas um parco
esboço? Um foco das próprias idiossincrasias; uma vasilha de esmolas de
metáforas devoradas; uma mistura peculiar de como meu corpo atua no teatro
do insuportável. A insistência do renegado, o retorno do recalcado, a epifania
do rejeitado têm também como consequência, verbal e textualmente,
repetições que, ao fim, custam a própriacabeça. Uma das suspeitas aponta para
as seguintes questões: por que eu? Por que agora? Por que assim? e mostra que
eu, com minha escrita, revelei um segredo cujas consequências são mortais e
que, pelo fato de ter negado o esquecimento, ameaçaria habilidosamente a
morte como fatalidade. A partir de então, o jogo troca seu status de indignidade
pelo de seriedade mortal. Ajudem-me, amigos!
Certamente ao modo dos santos...(ix)
12
Uma confissão com consequências fatais? J. P. S. Uberoi disse, há anos, em
Berlim, que a pena para a revelação de conhecimento secreto é o puro
esquecimento, esquecimento do esquecimento. Então, por que ainda a morte?
Nunca mais saber o que se soube, o que para sempre se aprendeu enquanto
neófito da vida é algo que já soa suficientemente mal.
Uma conferência de Friedrich Kittler, em Neandertal, teve o seguinte tema:
não foi o último, mas sim o primeiro homem quem matou seu deus. Prometi-lhe
uma cópia das impactantes passagens em que Hölderlin escreve sobre a traição
de Deus em relação aos homens. Eis o ponto mais secreto da amizade que, sob
o mote “Reino de Deus”, se reacendeu em torno do ano de 1800.
Em sua carta de Otzberg, Rudolf Heinz chama esse problema de “o suicídio
de Deus em nós”, que só conseguimos abandonar pelo espanto ou pelo riso.
Que o absoluto morra, tal fato é ou uma catástrofe da história mundial ou uma
piada – ou ambos. O conhecimento absoluto hegeliano é, por ora, um não
saber que ainda não conhece a si mesmo.
Isso acontece primeiramente com Georges Bataille e seu deboche da morte,
pois ela é um deus, o mais poderoso. Como eu poderia saber que a colline
éternelle, de Vézelay, seria o palco extraordinário de um suicídio?(x) E que
apenas ali foi possível o anúncio de um noivado para toda a vida? E cujo
testemunho aconteceu em longa solidão? E que, com isso, a história da culpa
chegou ao fim?
O que ainda não está claro são as direções que se seguem à descida da cruz.
(xi) Califórnia ou Brasil? E a partir de onde? Finis terrae na França e no norte da
Espanha?(xii) Ou mesmo diretamente a partir de Granada, evidenciada por
Otzberg, pelo menos até aquele sofá em Lengfeld, no qual se sentavam Karoline
Günderrode e Clemens Brentano em vão.(xiii)
Cada gargalhada é a libertação de uma imagem, escreve Jacques Lacan. Isso
antecipa a lógica compulsiva do imaginário e explica a impossibilidade de
haver uma imagem para o fim das imagens. A aposta com Jan Fabre terá um
resultado parecido. Contudo, estamos ainda em desacordo e ficamos até alta
noite discutindo.
O que parece ser o ponto de reversão da alienação, ou o retorno da
enantiodromia,(xiv) é tão somente a duplicação do quiasma no caminho das
metáforas. As dores da abstração são inevitáveis. Porém, o fato de que Deus e os
deuses sejam imortais e de repente morram, isso é demais. Exatamente aí
acontece o levante dos homens que querem viver, claro, ao modo dos santos.
A rede das amizades estende-se no esplendor terrestre como um firmamento,
com nós e tensões de horizonte a horizonte.
13
Otzberg, 5 de outubro de 2000.
Pensado, conversado, escutado e escrito em companhia de:
Contemporâneos de hoje
Jean-Christophe Ammann, Hans-Dieter Bahr, Norval Baitello Jr., Carlo Barck,
Jean Baudrillard, Hans Belting, Ulysses Belz, Hartmut Böhme, Norbert Bolz,
Christina von Braun, Silvia Breitwieser, Bazon Brock, Hans Peter Dreitzel, Hajo
Eickhoff, Eva e Adele, Jan Fabre, Tom Fecht, Ute Frietsch, Susanne Froböse,
Gunter Gebauer, Paul Good, Rudolf Heinz, Udo Hock, Christian Holtorf, Urs
Jaeggi, Thomas Jung, Wolfgang Kaempfer, Bernd Kauffmann, Alexander Kluge,
Matthias Kroß, Peter Lilienthal, Franz Littmann, Thomas Macho, Gert Mattenklott,
Odo Marquard, Anthony Moore, Edgar Morin, Jean-Luc Nancy, Hans Ulrich
Reck, Otto E. Rössler, Elisabeth von Samsonow, Valerij Savchuk, Michel Serres,
Peter Sloterdijk, Bernd Ternes, Georg Christoph Tholen, Gerburg Treusch-Dieter,
Heinz Treziak, J. P. S. Uberoi, Paul Virilio, Peter Warsitz, Hans Peter Weber, Peter
Weibel, Gert Weniger, Stefanie Wenner, Christoph Wulf, Siegfried Zielinski,
Raimar Zons,
e
contemporâneos de ontem
Theodor W. Adorno, Günther Anders, Antonin Artaud, Ingeborg Bachmann,
Georges Bataille, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Jorge Luis Borges, Clemens
Brentano, Georg Büchner, Paul Celan, Vilém Flusser, Michel Foucault, Sigmund
Freud, Karoline von Günderrode, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Martin
Heidegger, E. T. A Hoffmann, Friedrich Hölderlin, Max Horkheimer, Franz Kafka,
Immanuel Kant, Heinrich von Kleist, Jacques Lacan, Jean-François Lyotard, Karl
Marx, Maurice Merleau-Ponty, Michel de Montaigne, Robert Musil, Friedrich
Nietzsche, Blaise Pascal, Helmuth Plessner, Rainer Maria Rilke, Ulrich
Sonnemann, Baruch de Spinoza, Jonathan Swift, Paul Valéry, Viktor von
Weizsäcker,
(e continua)
e a companheira do espaço.
14
E
1.
ABSTRAÇÕES DO CORPO
1.1. Minha escrivaninha, o campo de neve. Um cursor chamado HerrMann
m meio à mudança da caligrafia para a escrita em computador, apareceram
dois textos, com intervalo de um ano e meio. O primeiro, de 19 de abril de
1998; o segundo, de 19 de novembro de 1999. O primeiro trata de uma longa
despedida, uma despedida à la longue; o segundo, de um difícil começo,
intencionalmente um pouco exagerado na descrição. Do cursor, com seus
disfarçados e subterrâneos construtos, não se pode aproveitar sequer um fio de
cabelo, nenhum mesmo. Computadores não têm cabelos. Reuni toda minha ira
para tentar descrever do modo mais duro possível esse processo forçado de
aprendizado. O “socius maquínico” não preenche nenhuma das expectativas
propagadas mundo afora pela megalomania da publicidade. Nenhuma
comunicação acontece nas redes de dados. Se acontecer, talvez seja num
monólogo maníaco, no diálogo interno de algum maluco capaz de falar e ouvir
todas as vozes ao mesmo tempo. A virtualidade dos meios é coisa de singles
extremamente parecidos entre si. Enquanto o primeiro texto termina em letras
melancólicas, o segundo chega ao fim atolado, num desespero da tela que só
pode ser chamado de melancolérico, palavra que HerrMann(xv) desconhece,
embora lhe diga respeito. Quantas vezes ele me chamou atenção para não
cometer tantos erros. Quando ele próprio é o grande “error”. Quod erat
demonstrandum (como se pretendeu demonstrar).
15
Minha escrivaninha, o campo de neve. Em vinte e três parágrafos
Não, não a neve do ano passado, la neige d’antan (de outrora), mas aquela
da noite passada. Neve de sonho. Nada pode ser escrito com o mesmo calor
com que acontece. Que se deixe, portanto, esfriar até o limite do gelo. Mas a
neve também tem a cor do primeiro esquecimento. Branca, com sombras azuis.
Às vezes, à noite, a lua brilha sobre ela. Então, seria possível dizer adeus.
Minha escrivaninha nunca foi uma passarela de manobras, uma central de
decisões, um posto de comando, um parlatório de governo. Nenhum passo
soberano na escrita, nenhuma ordem, nenhuma obediência, mas sim a
desordenada superfície de uma ordem escondida nas coisas. Seria preciso
escrever uma estética da ausência para fazer justiça a tal ordem invisível. Pele
por corpo, imagem por espaço. Prudência lúcida de dispersão descuidada e de
dor abafada.
Dossiês. O que é um dossiê? A cristalização de um processo que foi domado
por um acontecimento. A ordem burocrática foi e é fria. Reprime-se a excitação
até o ponto de sua irreversibilidade. O ejaculativo, o ruinoso, o perecível são
capturados pelo ciclo do tempo retornante. Guardar silêncio não é suficiente. A
rotação é o alvo, que gira como um ponteiro de relógio, para a direita.
O protocolo do caso, a outra forma originária da escrita – depois da prece e
do registro. A escrivaninha não serve nem aos deuses nem à postura voltada às
provisões, embora a maior parte do que é guardado fique vagando no arquivo,
no
depósito. Raramente isso significa que se guarda algo para sempre. Sobre o
tampo da mesa não há lugar para reminiscências humanas. Ao sentar-se, elas se
perderiam.
E se a desordem da escrivaninha – até onde habitualmenteentendo – for um
alívio para a confusão que reina no mundo? Em todo caso, ordem de
escrivaninha é algo risível, uma estratégia impotente para ordenar ou mesmo
dominar os assuntos humanos, tal como quer a burocracia. Não, é antes o
computador (o qual não tenho aqui) que gera a ilusão de um sujeito
controlador.
Continuo escrevendo como antes, com caneta esferográfica, inclusive agora,
quando no rádio toca a canção Greensleaves e é tarde de sábado. A velocidade
dos pensamentos segue a da caligrafia. Trata-se da mais complicada de todas as
ações – li isto no Hermes, de Michel Serres –, pois une simultaneamente a
virtuosidade manual e a mais individual das expressões, apesar da prescrita
linearidade.
16
Com linhas estruturar um plano – tal foi a infinita e incansável preparação do
monitor que recentemente dá significado ao mundo. Mas esta tela se localiza no
espaço, confronta o olho; as escrivaninhas, por sua, vez ficam na horizontal,
ocasionando alguns dorsos curvados. O vidro nunca será capaz de acolher
tantas lágrimas desesperadas quanto o papel.
O copiar, atividade de escrivaninha avant la lettre, era uma intensa arte da
leitura, condição necessária para a compreensão. Ler tão lentamente quanto o
andamento da escrita. Lia-se então em voz alta, depois em silêncio, depois
simplesmente não se leu mais. Nos meios eletrônicos não se pode mais ler, não
há mais condição para isso devido à velocidade. O sentido quádruplo da escrita
se desmantela.
O papel, instrumento para escrita vindo do papiro, é paciente. Assim se diz a
partir de longas experiências. Ele é
tolerante e não se deixa apressar. Não segue na velocidade da luz, mas em
acordo com mão e cabeça, com o corpo duplamente dobrado em ângulos. Ou
devemos voltar, escrevendo, ao púlpito sobre o qual Søren Kierkegaard
escreveu sua obra, em pé e três vezes seguidamente?
Poder-se-ia, assim, deduzir que o escritor, em especial o religioso, não é um
burocrata. Quem sabe? Desde que não comece a utilizar formulários. Nem
sempre é possível dedicar-se renovadamente à superfície vazia. Tal é o motivo
da esquematização do papel em linhas, quadrados, losangos, tabelas: quando a
pessoa esquece que é da esquerda para a direita que se escreve, agrupando as
linhas de cima para baixo.
Se o escritor não esquecer isso, conseguirá subverter a neve, brincará com o
fogo. O papel não é somente paciente, ele também queima. Foucault escreveu:
“Meu corpo, o papel, o fogo”. É impossível esquecer que o papel escrito
representa a pele do homem. Nenhuma tela admite tal lembrança do modelo
arcaico.
A escrivaninha é o lugar do esquecimento, não da lembrança. Campos de
neve não são somente belos, mas também superfícies de cansaço, como tecidos
com os quais a terra se cobre do céu. Apesar de toda a paixão, conservar o mais
urgente na memória. A luta dos acontecimentos postergados, esperando na fila,
é finalmente perdida. Exceções confirmam a regra.
Os casos flagrantes chamam-se arquivos mortos. Enfim, é uma lei geral que a
força da gravidade triunfe. O trabalho para e na verticalidade não pode ser
vencido. No melhor dos casos, o ser humano fica parado no meio, onde pode se
estender até o horizonte. Por isso, a vista que o escritor tem é indispensável para
a produtividade de suas mãos.
17
À estigmatização da injustiça causada por não se andar na linha dá-se o
nome de reclamação. Quem reclama chega sempre a alguma mesa de escritório
onde torres de papel se acumulam e prateleiras se arqueiam. Talvez as
escrivaninhas existam porque primeiro existiram as reclamações. O que pode
ser protelado desobriga a burocracia. É uma guerra por reconhecimento.
Agentes da escrivaninha, vítimas da escrivaninha são, literalmente,
memoriais da inadequação entre vida e escrita, entre morte e escrita. O que vale
genericamente é que a escrita é um substituto, um primeiro suplemento da
corporeidade para suportar a transitoriedade, o desvanecer-se, se bem que não
eternamente, mas, ao menos, por um longo, longo tempo. Uma época
intermediária da civilização, ou seja, espiritualização da matéria.
Se bem que tal abstração do corpo ainda seja eminentemente corporal em
relação à atual revolução eletrônica. Ao menos o papel ainda é pele, a tinta ou
a impressão ainda é sangue ou sêmen, mantendo contato com a essência do
que é inexorável nas mensagens enviadas. Cartas de amor ou condenações à
morte não seriam possíveis sem a escrita.
Em resumo, são cartas escritas antecipadamente com sangue do coração até
o dilaceramento do coração vindo das coisas, sempre sem resposta e sem
retorno ao remetente. Elas foram testemunhas de uma grande época. Quando o
ausente era apenas ausente e não precisava de nenhuma aparência de presente.
Apenas a dor pura e assintomática, rebento súbito de um idioma indolor, bem
protegida no segredo do correio e mesmo da própria irreconhecibilidade.
Deixar viver e fazer morrer como efeito da escrita? Pronunciam-se
julgamentos, bate-se o martelo, proferem-se sentenças, mas na base da língua
vale finalmente apenas a assinatura, a marca nominal. Se num e-mail houver um
trecho assinado, um pedido de desculpas é indiscutivelmente apropriado.
Mas a fortaleza ainda cairá. Resignação é, desde sempre, a tentação de toda
cultura da escrita; ela se expande atualmente sobre todas as escrivaninhas do
mundo e força uma nova relação com o mundo. Resignação significa recuo
daquele que escreve, do escritor. A chancelaria e o claustro dos poetas saem de
cena. Não dá mais. Os senhores engenheiros têm a palavra.
Ora, o escrito passou efetivamente para o lado do obsceno. Não se pode
fazer nada quanto a isso. O literal domina. A partir da escrita, não há mais
nenhum além, nenhuma censura, nenhuma cadeia de signos que possa manter
suas promessas. O espírito humano alcançou o ambicionado estado de
masturbação mental. Ele é pornográfico. Sua pureza é a sujeira deste mundo.
Uma temerosa pergunta se impõe: a mudança para um novo registro
conseguirá deter o desmoronamento do significado? A cultura da escrita foi e é
18
falocracia, poder erigido através da imaginação produtora de signos. O poder
fracassa não no material, no corpo, mas nos próprios signos, nos padrões
prontos, nos esquemas, nas imagens do poder.
O imaginário elimina o simbólico. O mundo de imagens é como um golpe
gélido, como a última paisagem nevada em uma manhã de inverno. Com sua
imanência totalitária, vence o invisível. Os humanos estão aprisionados no
fundo da visão. “No cristal, tua queda” – tal é a fórmula de E. T. A. Hoffmann.
(xvi) Somente por meio da fala e da escrita foi possível uma chance contra o
êxito insano da arbitrariedade proibida.
Não escrevo mais em minha escrivaninha, mas durante períodos de espera,
em viagens de trem ou avião. A escrivaninha é somente arquivo temporário.
Seus papéis naufragam em melancolia, numa ordem sui generis, espelho
empoeirado do universo que não consegue se manter nos jogos velozes e nas
altas apostas. Na longa despedida, um serviço é quitado, serviço este que não
faz sentido diante da desmedida superexcitação das forças.
19
Um cursor chamado Herrmann, em sete parágrafos
É ruidoso diante da tela. Neva pela primeira vez neste ano. Mas neve não
gruda no monitor. Sem esquecimento. Tudo, cada erro deletado é anotado. Por
que deletar? Será que ainda queima? Cinzas não são, há tempos, ubiquidade?
Computadores são construídos por bombeiros e não por incendiários. Por todos
os lados instalam-se proteções com a finalidade de evitar flamas e inflamações.
E os temidos vírus, por sua vez, apagam o fogo residual dos especialistas em
segurança. Não há inscrição sem proscrição, tampouco sem prescrição. Essa
mesma inconveniente presunção às vezes tem êxito. E a partir de diferentes
níveis: do painel de controle, do gerenciador de programas, mesmo do “sistema
bios”. Uma insolência espreita. Uma predeterminação gritante tenta domar
minha escrita. Mas será isso tão grave? Eu estava com tudo à mão, quando então
foi necessário formatar. Aceitei: o pensamento em janelas e em páginas
preenchidas em bloco;o aplanado das linhas; o confessado das letras. O lance
rumo ao estranho, tão típico da escrita à mão, é agora completamente omitido.
Sempre o retorno rápido para o mesmo. Identificação de si próprio. Senha.
Identificação de um si mesmo que, com seus erros ridículos de construção, está
francamente longe da perfeição. Mas a quem pertence esse si mesmo? Há anos
alguém escreveu que o computador é um gerador de sujeitos. Enquanto “socius
maquínico”, ele alcança regularmente um estado em que é fácil considerar-se o
senhor da situação. Tal suposição permanece e é muito apoiada. É preciso
renunciar. Tornar-se escravo. Prestar serviço. Para isso, é necessário haver
poder. Mando. Mando e bando do senhor HerrMann. Tal delírio é a antecipação
de uma loucura em escala mundial, que não consegue reconhecer a si mesma.
A coexistência de humanos e computadores é oscilante. Alterna-se num terreno
baldio, entre vencedor e perdedor. E, pouco a pouco, sendo incapaz de viver e
de morrer.
Por longo tempo esteve aberta a questão se existe uma saída do espírito
autorreferente, agora presente nos aparelhos. Eu também a procurei. Será o
virtual um espelho distorcido do sujeito que serve às máquinas e, nesta medida,
outro jogo cujos novos resultados não dizem mais respeito nem aos usuários
nem aos programadores? Sim, o virtual é antiquíssimo e bem conhecido de
cada sonhador. No exit! Todas as conquistas permanecem no mundo de
espelhos do imaginário, mundo formado por nostalgias do ser humano. Como
puderam surgir esperanças? Esperanças de que na camada mais externa do
mundo virtual, a partir da troca consigo mesmo, fosse ao menos possível
encontrar alguns desses alienígenas? Afinal, a imanência do imaginário é
20
construída como o Windows da Microsoft, em escalas e camadas, sobrepostas
consecutivamente, porém sem profundidade. E sem limites. O ato de escrever
demanda em si pouca energia. A maior parte destina-se à permanente rotação
do sistema operacional, com vistas em criar e manter a impressão de que o todo
vive como um corpo humano, com forças recarregadas e desperto. A atividade
do usuário fica na tela, exercida em pleno campo minado. Claro que existem
relatos da proximidade corporal e textual, textos que enfim tocam as dimensões
adjacentes. De algum modo, o mundo das imagens parece ter origem na
periferia para encontrar sua morte no núcleo. Pelo menos isso diferencia a
margem do centro. A margem é pulsante, enquanto o centro é morto. Mais
morto do que a morte. Mortíssimo. Tal descoberta só tem sua dor compensada
se, com ela, também se renunciar à busca pela diferença entre vida e morte.
Caso contrário, a dor permanece. Assim como a ira.
Há uma escalada da morte. Não se pode viver nem morrer em contêineres
superficiais. No emudecimento diante das imagens, há o prenúncio de algo que
surge do “mais íntimo” de uma virtualidade mediada: a absoluta falta de
respostas. Ao espelho que ficou cego corresponde uma visão ofuscada. Mesmo
um espelho colocado na diagonal não mudaria nada. O triunfo da superfície
sobre o espaço, das imagens sobre os corpos, atrai para si, como que à força,
uma derrota secular da visão, da escrita e do cálculo. A falta de respostas do
mundo, também chamada de morte de Deus, retrocede até uma perfeição na
produção de imagens, que foi um assassinato do corpo. A visibilidade perfeita
do signo puro, alvo secreto de toda apresentação, representação e exposição, é
mortal. O preceito mitológico desse drama é Narciso. Por fim, o espírito humano
autorreferente é incapaz de beber. No espelho, é tudo imaterial. Assim morre o
homo significans erectus. A imaginação produtora de signos, segundo Hegel, a
arbitrariedade humana mais genuína, perece no auge de seu triunfo. Ela se
quebra, como o um diante do zero. Assim considerada, a atual produção de
imagens sobre telas, papéis fotográficos e monitores é o contrário do
Iluminismo, no sentido de esclarecimento, um potente motor de desaparição
definitiva. As coisas não levantam mais os olhos, não há mais nenhum olhar
para trás. Aqui seria indispensável um resto de invisibilidade. Apenas e ainda os
rastros do próprio homem. Foi no espelho que começou a perda do contorno,
da face, da resposta. A tela foi inventada com a finalidade de salvar o
empreendimento na significação. No entanto, a tela é o espelho cego
milimetricamente quadriculado que provoca uma visão ofuscada e, sobretudo,
executa finalmente a desmontagem da arbitrariedade humana.
A falta de respostas do universo: seria este um tema digno de ser posto na
21
internet? Sobre como ela há tempos inspira as ciências mais avançadas?
Durante o século XX, a autorreferencialidade do espírito humano caiu numa
prisão de imagens, padrões e signos da qual não existe saída. Isso não foi
apenas impedido pelos aparelhos, mas por eles realizado. Os bilhões de
computadores são o lugar onde a própria imponência humana experimenta seu
schibboleth.(xvii) No pensamento dos aparelhos só existem transcendências
presunçosas. Mas isso já foi diferente? Sim! Ao menos segundo os testemunhos
da literatura, da religião, da arte e da filosofia. Deus está morto. E os deuses
retiraram-se horrorizados. Os corpos humanos, enquanto restos heterogêneos
num mundo completamente homogeneizado, têm um destino parecido com o
de Deus e dos deuses. O outro, o diferente, está definitivamente excluído.
Monstruosidades, quando aparecem, são porque são autogeradas, sendo que
sua produção é simplesmente esquecida. Quanto à virtualidade e suas
máquinas, são artefatos de um si mesmo que não conhece mais a si próprio. O
humano é o monstruoso. Trata-se, de fato, de um crime perfeito, no qual um
assassino desprevenido e insolente, sem perceber, destruiu, reduziu a nada, o
melhor de todos os mundos possível. Algo que não tem nada a ver com mundo,
natureza ou matéria. Diante da extrema força desses conhecimentos não há
escapatória.
Não temos nenhuma possibilidade de jogar o real e o simbólico contra o
imaginário. Precisamos nos mover numa mesma dimensão. Se sonhamos
dormindo ou acordados, ou mesmo se temos visões, permanecemos na
imanência, ou seja, no mesmo medium dos que estão a serviço de imagens pré e
pós-fabricadas. Os raros sonhos da vida são feitos da mesma matéria que as
corriqueiras metáforas da morte. Obscenidade e castidade partilham o mesmo
palco, o mais profundo desespero e o mais raso tédio. Confundem-se grandes
poetas com garotinhas escolares. Precisamos, portanto, misturar o marginal com
o central, o descentralizado com o que já foi fronteiriço. O mais difícil é captar o
movimento próprio do imaginário. De início, ele é um espaço eterno, um
recipiente que esteve lá desde sempre e sempre estará. Em seguida, as imagens
aprendem a andar e isso cria a impressão de que o movimento esteve lá desde o
início. Mas trata-se de um pseudomovimento, como o que Marx reconheceu no
capital. A presente crítica do imaginário pode perfeitamente perder-se no meio
do caminho, assim como aconteceu com a crítica do capitalismo. Ela diz
respeito às mesmas implicâncias teológicas e antropológicas: como o desejo
humano caiu no jugo do Deus morto e, com isso, na malha fina de uma
compulsão à repetição, que é infinita e exige sacrifícios.
Um dos piores impactos dessa descoberta é a troca impossível, l’échange
22
impossible (Jean Baudrillard). As pessoas se transformam em bombas que tanto
explodem quanto implodem, que, de qualquer forma, se eliminam. Nem o
excessivamente inflado nem o excessivamente esvaziado pode sobreviver. O
pior, contudo, é o completo fracasso da crítica. Cada tentativa bem-sucedida
traz em si aquilo que foi desprezado nos outros. Essa é a lei que definitivamente
aplaina a realidade, tal como um cenário sem pano de fundo, que devemos
destruir se quisermos compreender. Por exemplo, as imagens do massacre na
escola de Ohio e o atentado à central do Partido em Belgrado durante a guerra
do Kosovo eram as mesmas: fachadas destruídas, sujas de sangue, em
labaredas. A elas, podem-se unir as fachadas da Côte D’Azur e da Riviera
Francesa quevi na primavera passada e me deixaram aterrorizado. Seriam
ataques contra o caráter de fachada do nosso mundo autoproduzido? Será que
todas as guerras desse século recém-terminado contribuíram para isso? Sem que
ninguém percebesse direito?
Já foi lançada a suspeita de que a internet, por fim, é um evento feito de
voyeurs para voyeurs. Mas agora eles querem saber. E não somente ver. Querem
saber como se dá a perfeita visibilidade do segredo, o desvendamento luminoso
da geração da vida, até o fim. À sombra das moças em flor. Para liquidá-la com
um olhar fatal, de uma vez por todas. Agora, a imagem obscena no centro é o
vazio. Sem chances de defesa pública. O crime é perfeito. Em vez de proteção
às pessoas e às coisas, o que se reivindica é proteção em relação à tela. E nós,
estarrecidos, sentamos. Em duplos ângulos retos que nos roubam a mobilidade
e aprisionam o desejo. Para que nunca mais possamos tocar o que amamos. E
para ser impossível desfrutá-lo. Para todo o sempre. Por mera impotência, ficar à
espreita do infinito aumento da frigidez do mundo. O teclado com suas letras
não é um substituto. A sensação na ponta dos dedos acaba levando à
insensibilidade. Além disso, escrita e imagem são apenas concessões feitas aos
corpos enquanto eles ainda forem necessários. O que está em questão é o
cálculo, da ociosidade da mathesis universalis(xviii) no ponto zero da história,
diante do nada do mundo, do nada da natureza, do nada da matéria. Ao
ficarmos sabendo desse desastre, o melhor é sumirmos rapidamente e
deixarmos as cinzas serem cinzas. Porém, a descoberta do monstruoso no
coração da humanidade força o surgimento de um conjunto de testemunhos,
(xix) nem que seja pela escrita com o computador. Isso aumenta a ira. Se bem
que a necessidade de entrar nas ilusões desprovidas de qualquer ilusão já seja,
há muito, um modelo de ação dos novos tempos. O epitáfio de Jonathan Swift,
de sua própria autoria, começa com as seguintes palavras: “Aqui jaz J.S., onde a
irada indignação não pôde mais dilacerar-lhe o coração”.
23
1.2. O quadrado antropológico de espaço, plano, linha, ponto
Espaço – eis aqui minhas dores.
Vilém Flusser
Tudo começou com uma aparição de Vilém Flusser num curso no início dos
anos 1990, que organizei juntamente com Norbert Bolz, na Universidade Livre
de Berlim. Flusser apresentou o que era então sua obsessão de pensamento.
Caminhou gesticulando sobre o tablado da sala de aula, primeiramente para
trás até bater com as costas na lousa. Em seguida, caminhou para frente até
chegar à beirada enquanto ensinava sobre tecnoimaginação e imagens
sintéticas. Deu quatro passos para trás e encenou com seu corpo a abstração
corporal histórica e biográfica da qual tratou repetidamente em seus últimos
escritos. Confesso que essa performance do suposto progresso da espécie
humana como um andar para trás até a parede, de onde não dava mais para
continuar, impressionou-me tanto que não consegui mais prestar atenção no
resto da aula. As propostas flusserianas de como se pode reverter o retrocesso
histórico da abstração ainda não me parecem convincentes. Ele próprio
reclamava dessa precariedade e tentava sempre encontrar melhores saídas.
Acredito que o diagnóstico que desenvolveu sobre o desastre – abertamente –
nas obras póstumas e nas discussões cheias de temperamento com aqueles que
ele chamava “críticos pessimistas da cultura” é mais importante do que a
terapia. Afinal, poucas vezes alguém conseguiu apresentar e demonstrar, de
modo tão despretensioso, a situação na qual os humanos são sujeitos, submissos
e dependentes de seus artefatos, como Flusser dos últimos anos. Ele o fez sem se
precaver contra as chances de um “enfrentamento”. Apenas a determinação em
fazer com que o impeditivo e o repulsivo fossem discernidos e esclarecidos ao
máximo assegurou que Flusser, com sua preocupação em relação aos “novos
media” e à atual revolução dos signos, não entrasse para a estúpida
classificação de “integrados” e “apocalípticos”.
Causou-me uma segunda forte impressão, pouco depois, ao ler uma
passagem na qual diferenciava as duas “forças imaginativas”,(xx) a tradicional
imaginação e a nova “faculdade sintética de imaginar”, expostas no contexto de
sua “antropologia negativa”. Eu próprio já tentava, há muitos anos,
compreender uma sentença que me parecia evidente diante de crescentes
ambivalências: “Contra o imaginário – esse impedimento quase perfeito à
liberdade – ajuda somente a força da imaginação”. Ele, por sua vez, resumiu o
pensamento a partir do modelo dos estágios da hominização:
Através dessa tentativa de diferenciar as duas forças da imaginação, surgiu uma série de gestos que, se
24
vistos em conjunto, oferecem uma imagem do desenvolvimento da humanidade. Algo assim como,
primeiro, o ser humano renunciou ao mundo da vida (Lebenswelt) para imaginá-lo a si mesmo. Em
seguida, renunciou à força da imaginação para se descrever. Então, renunciou a crítica da escrita linear
para analisá-la. Por fim, projetou-se para fora da análise graças à força da imaginação de imagens
sintéticas. Claro que essa cadeia de gestos não deve ser vista como uma série linear. Os gestos não se
descolam ou soltam individualmente, mas se agarram e sobrepõem-se uns aos outros. Paralelamente
à sintetização de imagens, continua-se pintando, escrevendo e analisando, e esses gestos avançarão
juntos rumo a tensões imprevisíveis e a fecundações mútuas. Mas, existencialmente, aqui e agora, o
que nos diz respeito é o árduo salto do linear ao não dimensional (ou seja, ao “quântico”) e à
sintetização (ao computacional), do qual temos de dar conta. O desafio que nos está posto é o de
ousar o salto rumo à nova força da imaginação.[1]
Ao fim, isso soou como um pedido de socorro. Venham para o ar livre,
amigos! Entremos em acordo quanto às obrigações. Aceitemos as
dependências, não como alvo, mas como pressuposto de nosso estado, nossa
situação, nosso caso, nossa queda no sem-chão (Bodenlos). Cessemos as
palavras, vejamos as metáforas. Não temos nada, além disso. – Outro encontro
aconteceu em uma das academias de verão da Academia de Artes de Berlim, ali
organizadas por Peter Lilienthal desde 1989. Vilém Flusser, radiante, falava sobre
as novas possibilidades da tecnoimaginação, que podem agora transformar em
imagem tudo o que existe. Abruptamente, perguntei se ele também gostaria de
transformar sua mulher em uma dessas imagens sintéticas. Respondeu lacônico:
“Ela não. Ela precisa escutar quando falo”. Curiosamente, o ouvir e o falar não
apareceram no quadro das etapas encadeadas. Terá Flusser esquecido ou
omitido conscientemente?
De todo modo, na fase final de sua vida, continuou descrevendo
repetidamente esse processo que, em marcha contrária à apresentação que
fazia de si, não conduzia acima, rumo à luz, mas sim “escada abaixo”,
representando uma “des-escalada”. Esse percurso, dependendo do caráter de
quem o segue, é compulsório e causa a impressão de uma libertação
progressiva. Se percebermos exteriormente o preceito hegeliano “Espírito é
avanço na consciência da liberdade”, veremos que está literalmente invertido.
O fim da sentença está no espírito, entendido como abstração do corpo; não no
saber absoluto, mas no nada, com letra minúscula.(xxi)
O lento e custoso desenvolvimento da humanidade pode ser considerado como um recuo gradual e
um crescente afastamento do mundo da vida (Lebenswelt). Com o primeiro passo em retrocesso do
mundo da vida – partindo do contexto das coisas que têm a ver com o homem – tornamo-nos
manufatureiros (Behandlern), e a práxis que dali deriva é a produção de instrumentos. Com o segundo
passo para trás – desta vez, a partir da tridimensionalidade das coisas manufaturadas – tornamo-nos
observadores e a práxis que dali deriva é a de fazer imagens. Com o terceiro passo para trás – desta
vez, a partir da bidimensionalidade da imaginação – passamos a descrever, e a práxis que dali deriva é
a produção de textos. No quarto passo para trás – desta vez, a partir da unidimensionalidade da escrita
alfabética– viramos calculadores, e a práxis que dali deriva é a técnica moderna. Esse quarto passo em
25
direção à total abstração – à nulodimensionalidade – foi implantado pelo Renascimento e hoje
encontra-se concluído. Um próximo passo para trás não é realizável: não há nada que seja menos do
que nada. Partindo disso, por assim dizer, fazemos a volta em 180 graus e recomeçamos novos passos
para trás, lentamente e com dificuldade, em direção ao concreto (do mundo da vida). Da nova práxis
da computação e da projeção em pontos, para linhas, planos, corpos e corpos que nos dizem respeito.
[2]
Nesse aspecto, o que me interessa é a compreensão mais precisa possível das
figurações históricas, tal como se impuseram objetiva e subjetivamente contra a
consciência e a vontade humanas, sem que, com essa análise, o “retorno” ao
ponto zero da história seja obscurecido. Trata-se, de fato, de um evento que
pega os homens “pelas costas”, apesar de eles saberem algo diferente, apesar de
quererem algo diferente. O evento ainda não está no fim, o processo encontra-se
em execução, a história ainda não deu sua pior virada. O ponto zero está em
vias de se firmar como ponto de virada. É possível que Vilém Flusser tenha feito
seus diagnósticos, que pôde chegar a eles, apenas com o objetivo de fugir de
suas propostas terapêuticas. Estas ocupam, inclusive, um espaço cada vez maior
e logo terão um quê de atrevimento. Além disso, elas entram em conflito com o
cerne das evidências correntes, justamente agora, que o conhecimento exato da
abstração do corpo torna-se francamente imprescindível – como um
“emagrecimento” histórico do conhecimento – para a descrição do movimento
retroativo, que Flusser descreve como uma série de projeções. Projeção do
sujeito (Subjekt) ao projeto (Projekt) significa: ir da submissão à verticalidade,
(xxii) não mais cometer os velhos erros após o salto para a nova força da
imaginação. Que isso não aconteça imediatamente é aceitável. Mas ao fim,
apesar de todas as boas intenções, se a volta, o giro, a virada, o “retorno na
contracorrente” (René Char) não forem organizados como mudança para o ar
livre, tudo poderá retomar a antiga direção.
Somente quando ao tropeçar se percebe que se é um sujeito, somente aí é que é possível começar a se
projetar. Somente ao se perceber submisso, pode-se começar a emergir. E assim, sob o signo do
tropeço, o conceito de “verticalidade” adquire seu significado completo: ele é aquela atitude que se
toma ao tropeçar, indignado com a humilhação, e ao tentar transformar sua sujeição em projeção.
“Verticalidade”, portanto, não como indignação contra algo, mas como esboço para o anthropos, o
humano. Isso se dá com passos para trás. Chegamos literalmente a “nada”, à nulodimensão do
pensamento digital. Foi um longo caminho. Precisamos caminhá-lo de volta: até o mundo do corpo,
no qual podemos ser corpos de corpos. O caminho seguiu, de fato, ao contrário, do espaço à
superfície, desta à linha, e da linha ao ponto. Ou em termos do mundo da vida, mais existencialmente:
do corpo à superfície da imagem, da imagem à linha da escrita, da escrita ao instante, na dimensão
zero de um presente impossível.[3]
Como representar a relação de tais dimensões, das quais os humanos
participam rastreando,(xxiii) vendo, escrevendo e tateando, é uma questão ainda
26
não respondida a contento e que também foi deixada em aberto por Vilém
Flusser. É preciso saber qual a estrutura, a gênese, a topologia e a história das
abstrações corporais, considerando que estas não são apenas objeto do
conhecimento, mas também condição de possibilidade do conhecimento. Ao
trabalhar com essa questão empírico-transcendental, não se pode sonegar o fato
de que, normalmente a partir da linha, no melhor dos casos, a partir da
superfície, é que se escreve e se pensa. No entanto, a superfície, devido à sua
reduzida dimensionalidade em termos de mundo da vida, só consegue
representar realidades autênticas de “n” dimensões com grande perda. O
mesmo acontece quando alguém se esquece de algo e não sabe o que fazer.
Para se lembrar, seria preciso construir um caixote que seja também um modelo
– espécie de caixa mágica – para evitar as inevitáveis abstrações que surgem
enquanto se reflete sobre elas. Portanto, o todo não seria nenhuma quadratura
do círculo, e sim uma circulação do quadrado. À mais antiga experiência do
pensamento poder-se-ia acrescentar a reconciliação consigo mesmo.
Num projeto em comum com Hans Belting sobre “Imagem e corpo”, foram
realizados quatro eventos na Escola
Superior da Imagem em Karlsruhe, durante o semestre de verão de 1999, nos
quais esse debate póstumo de Vilém Flusser foi tratado minuciosamente. Tenho
afirmado, ao ser perguntado, que já estava inconscientemente envolvido há
vários anos no trabalho de elaboração do “quadrado antropológico”, e
intensamente. De fato, a maior parte de minhas publicações relevantes dos
últimos sete anos está organizada no padrão de tal “quadrado”: corpo, imagem,
escrita/linguagem, tempo. Por isso me interessei e assumi para Karlsruhe uma
tarefa teórica especial: como é possível pensar o “estar no mundo” do ser
humano a partir do “mais simples” contexto das condições objetivas e
subjetivas? Como vivem e morrem as pessoas com e no espaço, no plano, na
linha, no ponto? Fui tomado entre os meses de maio e junho de 1999 pela
seguinte fórmula, agora em tom flusseriano: “Precisamos nos levantar da
sujeição e lançarmo-nos à projeção. Enquanto sujeitos, estamos submetidos a
nossos artefatos; enquanto projetos, podemos ser eretos, ou seja, anthropos no
sentido grego, humanos”.
Claro que o mundo não está somente organizado segundo número, medida e
peso, mas também segundo espaço e tempo. Eis a seguir quatro dimensões que
– principalmente por suas inter-relações – dão muito a pensar. Em formulação
abstrata e geométrica, são elas: espaço, plano, linha, ponto. O espaço é
tridimensional, o plano é bidimensional, a linha é unidimensional e ponto
pertence à “nulodimensão”. Numa definição cautelosa, pode-se dizer que o
27
espaço é composto de planos, o plano é composto de linhas, e a linha,
finalmente, é composta de pontos. O ponto é composto de nada. Do ponto de
vista do “quadrado antropológico”, as dimensões se chamam: corpo-espaço,
imagem-plano, escrita-linha, tempo-ponto. Isso traz à cena outra dinâmica e,
provavelmente, outro ponto de fuga. O discurso corrente de um continuum de
espaço e
tempo é completamente insuficiente, a menos que se considere a possibilidade
de um continuum como receptáculo para meras descontinuidades. E a
respectiva passagem de uma dimensão a outra, em termos precisos, é um ab-
ismo (Ab-grund). Assim, o contexto fica ainda mais congestionado do que já é.
Além disso, não dá para se contentar com a definição do quadrado formado por
quatro marcações. Qual é o lugar da linguagem? Justamente quando é preciso
considerar as competências humanas especificamente dimensionais, o estado
das coisas se torna hipercomplexo. Aqui, elas podem atender pelos seguintes
nomes: rastrear (spüren) no corpo-espaço, ver (sehen) na imagem-plano,
escrever (schreiben) na escrita-linha, triar com os dedos (klauben(xxiv)) no
tempo-ponto. Ler pertence ao escrever; calcular, ao triar com os dedos,
dedilhar. Mas e quanto ao falar e ao ouvir? É forte a suspeita de que a ordem
segundo espaço e tempo não seja possível sem tais “competências”, ou seja, que
ferramentas, instrumentos e meios de comunicação sejam, portanto, decisivos
para as dimensões e seu contexto. Para o fazer e o entendimento daquilo que é
feito. Não existem espaço e tempo em si. Pois o espaço pode ser espaço morto e
o tempo pode ter se embaralhado consigo mesmo.
Em relação ao significado da palavra “abstração”, chama atenção desde o
início uma confrontação entre pensamento e corpo. O fato de ambos terem sido
criados juntos é concreto; mas sua separação é abstrata. O pensamento assume
a forma do geral, enquanto o corpo é definido como estofo, matéria e, com isso,
como algo particular do qual se pode abstrair,pois ele, em última análise, é
irreconhecível e impensável. Abstrahere, em latim, significa tirar da vista, desviar
o olhar, remover, separar, segregar, desvincular, arrancar, surrupiar e assim por
diante. No início, a abstração dos nomes era restrita ao mundo dos nomes,
como marca primeira de uma diferença, depois ela se expandiu à totalidade do
conhecimento. O que resiste é a cópia. Abstração significa que sempre dois
estão em jogo, dúvida, mas também desespero em relação à distância crescente
entre o pensamento e seu oposto, o corpo. Com a necessidade, o pensamento
abstrato vai reduzindo a abundância, vai esfolando, esfolando, até chegar aos
ossos. É de espantar que, já desde cedo, se tenha anunciado um protesto a tal
abstração “exangue”, que se tenha elaborado conceitos e “conseguido
28
atravessar de forma concisa o deserto gélido da abstração rumo a um filosofar
concreto” (Nietzsche, Benjamin, Adorno, entre outros). A apoteose de Hegel
mostra que o entendimento, como algo próprio da abstração, é a força
monstruosa do negativo, a capacidade de deter o morto e, no extremo da perda
do corpo, transformá-lo em vida do espírito; porém, apesar dessa apoteose,
mesmo com uma variada articulação da contradição, não houve na sequência
nenhuma chance efetiva de romper o que há de compulsivo na “des-escalada”
em cascata da abstração e de torná-la menos retrocedente. Mesmo a defesa
apaixonada de Alfred Whitehead não surtiu muito efeito: “Pensar é abstrato e o
uso intransigente de abstrações é a maior desgraça do intelecto. Através da
retomada da experiência concreta, tal doença não será curada por completo”.
[4] Ao contrário, é preciso ocupar-se mais intensamente das categorias da razão
calculante, a saber, através da mobilização de outras habilidades: ler, ver, ouvir,
sentir. No caso, a multiplicidade interna poderia ser tomada como chance.
Tomás de Aquino, já em seu tempo, preferiu não responsabilizar o objeto pela
produção de abstrações do intelecto humano: non separata, sed separatim.(xxv)
Somente chamando a atenção dessa forma, abriu-se a visão para a gênese e a
estrutura do mundo abstrato que, atualmente, se expande ao infinito como
cópia imaginária do mundo real. Porém, no contexto das fantasias tradicionais
de progresso, essa ideia não pode ser reconhecida como tal. Isso vale
principalmente para os produtos. O “exangue” adquire vida própria: mundo real
das assombrações, realidade secundária de fantasias e fantasmas. Isso ainda
parece um retorno do recalcado. Porém, é do rejeito que emergem para o real
os primeiros zumbis, indiscerníveis entre vida e morte.
Por isso, seria preciso inter-relacionar as abstrações corporais (Körper-
Abstraktionen) eficazes histórica e estruturalmente, que são desde o início
abstrações do corpo (Abstraktionen vom Körper): corpo/espaço;
imagem/superfície; escrita/linha; tempo/ponto; e deve-se, em todo momento,
saber em que dimensão se está e se age. Aqui é possível seguir longamente
Vilém Flusser em sua “antropologia negativa” da falta de solo (Bodenlosigkeit).
No ápice da época do computar, cresce a dor da falta, da carência, da privação.
O vazio do presente torna-se quase insuportável. Tal ausência marca, no
medium mais avançado, uma fronteira intransponível da arbitrariedade humana,
ou seja, do poder da abstração. Aqui, o velho modelo “sujeito-objeto” deu sua
última cartada. O homem sai da confrontação para a diversidade rugosa
(Manchfaltigkeit) na qual se vê envolvido. De objeto, o mundo se transforma em
horizonte. Flusser abordou com ênfase essa virada – onde literalmente
chegamos a “nada” – como algo a ser seguido; e o fez primeiramente através de
29
sua concepção de uma “nova força da imaginação” e, posteriormente, em sua
obra póstuma Hominização: do sujeito ao projeto. O caminho de volta do andar
para trás, o retorno do espaço à superfície, da superfície à linha, da linha ao
ponto (e, dali, a nulodimensão) precisaria ser caminhado em direção contrária:
do tempo/ponto à
escrita/linha, da escrita/linha à imagem/superfície, da imagem/superfície ao
corpo/espaço temporal (e, a partir dali, para a quarta, a enésima dimensão).
Somente a esse caminho, como volta do retrocesso, deveria ser concedido o
título de “tornar-se humano” (Menschwerdung). Tudo dependeria de rastrear em
qual nível de abstração encontra-se cada relação. Afinal, as abstrações corporais
são pensadas em seu próprio interior. O “quadrado antropológico” de tempo,
escrita, imagem, corpo é certamente relevante do ponto de vista “objetal”,
porém muito mais relevante do aspecto “metódico” ou, mais precisamente,
“metodológico”. Ele exige um pensamento que não reivindique mais para si a
exceção à regra por ele mesmo proposta. Foi exatamente isso que Vilém Flusser
tentou apaixonadamente realizar. Um desafio a todos os companheiros
pensantes do nosso tempo. A partir de então, pensar poderá ser algo tão
precário quanto pregnante.
Duas coisas complementares poderiam ser adicionadas aos esforços
flusserianos: primeiramente, uma tradução mais precisa possível do “quadrado
antropológico” para as competências interativas humanas aí envolvidas:
calcular (para a dimensão tempo/ponto), escrever (para a dimensão escrita/
linha), ver (para dimensão imagem/superfície); sentir (para a dimensão
corpo/espaço); e, em segundo lugar, concentrar-se na passagem da imagem
para o corpo, o que implica a aceitação de uma dimensão seguinte
(linguagem/espaço ou linguagem/superfície) e de sua respectiva competência:
escutar ou falar. Escrita e linguagem não podem ser fundidas numa única
dimensão, tal como Flusser o faz eventualmente. Isso fica evidente quando
imagem e corpo são situados, tanto em termos de objeto quanto de método,
entre o ver e o sentir. Admite-se que também as outras transições do quadrado
antropológico sejam indiscerníveis e confusas devido a seu caráter desconexo,
porém o que há atualmente entre imagem e corpo (entre ver/saber e
ouvir/sentir) é um acúmulo de problemas. O que aconteceu no desembarque
regressivo do corpo/espaço para a imagem/superfície? O que aconteceu e o que
acontecerá no reembarque progressivo da imagem para o corpo, do ver para o
sentir? Será o tornar-se invisível das imagens um problema para o ouvido, para
sua audição e seu senso de equilíbrio? Surgirá uma vertigem?
Meu esforço aqui é fazer a seguinte anotação sem perder o equilíbrio:
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Três, dois, um, zero
Espaço, superfície, linha, ponto
Corpo, imagem, escrita, tempo
Sentir, ver, ler, calcular
A tese flusseriana sobre o efeito histórico das abstrações do corpo sugere um
encadeamento de épocas no qual a altura da dimensionalidade, em linha
cadente, é transformada em grandeza condutora do processo civilizatório. Trata-
se de recuar progressivamente a partir da tridimensionalidade até a dimensão
zero, do corpo-espaço até o tempo-ponto. Embora os mundos e percepções
superdimensionados sejam constantes, eles perdem paulatinamente seu valor.
Sob as condições da civilização, o sentir, do mesmo modo que o ver e o ler,
assume uma carreira regressiva. Quando tudo se tornar ponto e a experiência
humana estiver finalmente transcodificada do pensamento em letras para o
numérico, a humanidade, tanto a sofredora quanto a atuante, vai dar em nada.
Então, haverá o confronto de um espírito sem mundo (ser humano) com um
corpo sem espírito (terra) numa relação intransponível – auge e fim do
cartesianismo. Em disputa com os “críticos da cultura”, Flusser articula agora
sua objeção contra a fatalidade da abstração. A destruição definitiva da
substância, da matéria, do corpo não pode ser final nem finalidade da atividade
do espírito humano sobre a terra. A modernidade, a contemporaneidade, a
história, precisariam ter outro sentido que não seja, na consciência do saber
absoluto, sempre trazer à baila esse nada radical que se escreve com letra
minúscula. Isso não passaria de um delírio antiemancipatório, uma
imbecilidade autoprescrita do mais alto grau que confunde liberdade com
aniquilação. “Independência é loucura”, escreve Flusser, mesmoquando a
“realidade” massiva, que dela resulta, associa sua massividade à certeza de não
poder errar.
Pode-se e deve-se perguntar como se chegou a tal ponto e em que sentido o
impulso a um niilismo global do pensamento teve e ainda tem a ver com sua
real destruição. Minha tese a esse respeito é a seguinte: tratou-se e trata-se de
negligência em relação ao limite do arbítrio do ser humano, do limite de sua
capacidade e incapacidade através de si mesmo. A transgressão permanente
deixou consequências catastróficas que, hoje, são atribuídas a outras causas e
outros causadores. Sim, os emaranhados se formam sozinhos e crescem,
inclusive, como uma corrente de autoestrangulamento. Esse poder humano,
juntamente com suas limitações diante de cada impossibilidade específica,
apresenta um percurso histórico ascendente. Em cada uma das dimensões
citadas, empreende-se uma tentativa fracassada de aumento de poder. O
31
fracasso, contudo, não é acolhido como oportunidade para uma crítica ao
poder, mas sim negado, reprimido e rejeitado para que aconteça uma nova
intensificação da abstração. Assim se produz o inconsciente, com suas
retroalimentações bloqueadoras, ironizantes e absurdas. Até o ponto zero.
A meu ver, diante do muro do impossível, em nada ajudará mobilizar as
capacidades remanescentes das dimensões menos abstratas, como fazem quase
todos os contramovimentos críticos da civilização, enfim, quando recorrem ao
ler, ao ver e ao sentir, sem mudar a atual situação determinada pelo cálculo da
excludente. Foi o que ocorreu com a reciclagem cultural, que nesse meio-
tempo se tornou entediante, lamentada com frequência também por Flusser.
Seria muito mais conveniente a transcodificação do fracasso que surge da
própria transcodificação. O que também valeria retroativamente para os níveis
anteriores de abstração. Nesse sentido, trata-se de um assunto sem pathos.
Fracasso não como queixa diante do Altíssimo, do Juízo Final, mas fracasso
principalmente como forma processual descrita do conhecimento humano,
tanto do já passado quanto do ex post, daquele que poderá ser posteriormente
determinável a partir do ponto de virada, que é o zero, o nada, o nulo, a
nulidade, como uma forma de direção do sol poente.(xxvi) Em conformidade
com isso, a dificuldade do “retroceder em passos para trás”, chamada por
Flusser de “tornar-se humano” (Menschwerdung), consiste em duas coisas:
primeiro, compreender a queda do humano da terceira dimensão ao nada, do
corpo ao zero, principalmente sua fatalidade, tanto no geral quanto no
particular; em segundo lugar, denunciar a arbitrariedade humana como
síndrome infantil e, ainda, explicar como foi possível que o “primeiro liberto da
Criação” (Herder, Gehlen) responda à recente insuportabilidade do mundo por
ele mesmo recriada, à sua própria miséria nisso, enfim, ao isolamento
autoinflingido (Günther Anders),(xxvii) sempre com um novo delírio de sua
pretensa onipotência intelectual.
É possível encontrar um lugar para as competências não contempladas pelo
plano de Flusser (linguagem, audição e fala), desde que o quadrilátero das
dimensões corpo-espaço, imagem-superfície, escrita-linha e tempo-ponto seja
colocado no horizonte de um outro tempo e, então, reesquematizado a partir
dele, isto é, dos sentidos do corpo. Deste modo, obtém-se o seguinte quadro
que, devido à disposição meramente superficial, deverá logo em seguida ser
apagado.
Não-dimensional
(nicht-dimensional)
Tridimensional
(drei-dimensional)
Bidimensional
(zwei-dimensional)
Unidimensional
(ein-dimensional)
Nulo dimensional
(null-dimensional)
CORPO VIVO CORPO MORTO IMAGEM ESCRITA (DES)TEMPO
32
(Leib) (Körper) (Bild) (Schrift) (Un-Zeit)
Sentir ou rastrear
(spüren)
Escutar/falar
(hören/sprechen)
Ver
(sehen)
Escrever/ler
(schreiben/lesen)
Calcular
(rechnen)
Pele
(Haut)
Ouvido/voz
(Ohr/Stimme)
Olho
(Auge)
Olho/mão
(Auge/Hand)
Cérebro
(Gehirn)
TEMPO-ESPAÇO
(Zeit-Raum)
ESPAÇO
(Raum)
SUPERFÍCIE
(Fläche)
LINHA
(Linie)
PONTO
(Punkt)
Para interpretar minimamente o esquema, seria útil citar outro grande
fenomenólogo da atualidade.(xxviii) Através dele, fica clara a autossuperação do
“quadrado antropológico” em “pentágono”: “O corpo é uma extensão pré-
dimensional, indivisivelmente sem superfície, ou seja, de dimensão não
quantificável; por exemplo, não é nenhum volume tridimensional com
dinâmica de estreitamento e alargamento”.[5] Alargamento, porém, só pode
funcionar depois da passagem pelo portal mais estreito. Até lá, tudo só fica mais
e mais apertado.
Isso porque as abstrações corporais se instalam na história da civilização
como uma retirada gradual dos corpos, que vai do pleno ao vazio, do altamente
dimensional mundo da vida ao deserto gélido da abstração, até o zero, isto é,
do cálculo com o zero até o cálculo binário (zero/um). Essa “des-escalada” tem
algo de inevitável e irreversível. Por isso não se pode retornar tão facilmente. Se
tomada a devida distância, isso tudo parece uma história de sacrifício, como um
ato sacrificial sob efeito de choque. Nietzsche denominou-a terceira crueldade
religiosa: autossacrifício do espírito humano triunfante que, acima de tudo, fez
do corpo, da imagem e da escrita vítimas de seu cálculo. E se considerada de
perto e em relação à particularidade das dimensões e suas transições, a situação
mostra algo inesperado. Que se guarde pelo menos o seguinte: o escrever é
sempre incalculável; o ver é sempre indescritível; o ouvir tange o invisível; o
sentir é inaudito. De acordo com o modelo do “Jardim dos caminhos que se
bifurcam” (Borges), é preciso saltar para antes das decisões que levaram a
alternativas erradas ou insustentáveis. Este é o retorno rio acima do pensamento-
corpo que, em sua dificuldade elementar, está aí para todos verem.
Tenho, contudo, um indicativo de como esse empreendimento pode se
realizar. Flusser meditou muito sobre mãos, inclusive sobre como as mãos foram
liberadas no processo em que o homo sapiens sapiens se tornou vertical. Para
ele, a metáfora corpórea das mãos libertas encontrou-se, desde o início, em
tamanha vantagem, que não foi alcançada por todas as funcionalidades
sucessivas da história; nem a negociação (Handel), nem as ações (Handlungen),
33
certamente nem o trabalho, talvez a capacidade de escrever – o que de fato é
um movimento dos mais complexos. Flusser volta os olhos para jogo das mãos
de apreender e aprender (begreifen).
“Uma mão que se tornou realmente humana não trabalha, mas aprende a
não precisar trabalhar. Ofuscada pela moral do trabalho, a maioria de nós teme
a falta de trabalho e a automação completa. Somos macacos decaídos, vis.”[6]
Mas não poderia a mão humana ser o modelo da relação das quatro dimensões
(ponto, linha, superfície, espaço e, respectivamente, tempo, escrita, imagem,
corpo) que, por sua vez, podem ser “confrontadas” uma a uma com o tempo, tal
como os demais dedos com o polegar? Poderia ser ela o modelo com o qual o
homem ereto pode explicar sua situação no mundo? Não poderia ser que,
liberada de sustentar o corpo, a mão tenha começado a contar e também a
escrever, a ver, a tocar? Até três, até cinco; escrever e, ao copiar, ler o que
escreveu; ver a partir do invisível; tocar e sentir, às cegas, se necessário? Não
poderia ser que os ossos que se salientam ao cerrarmos o punho mostrem algo
mais do que o andamento do calendário dos meses do ano, mais precisamente,
a ligação das dimensões em carne e sangue e sua separação através dos ossos?
E o que dizer das linhas da palma da mão, de sua ordem fisionômica e
pantomímica? Não poderia ser, estruturalmente, que o quadrado antropológico
de tempo, escrita, imagem e corpo seja estendido e mantido pelo tempo,
porque este age como ponto no quadrado corporal e como esfera que circunda
todo o quadrado. A tal ponto que, por meio das mãos, fosse possível uma
circulação? Seria isso, então, o tempo efetivo enquanto linguagem? Efetividade
tanto no aspecto pontual, linear, superficial quanto corporal?
Ao fim do livro Comunicologia, dedicado

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