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Os miseráveis - Victor Hugo

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2
Sumário
CAPA
ROSTO
CITAÇÃO
APRESENTAÇÃO FALANDO SOBRE VICTOR HUGO
FALANDO SOBRE A OBRA
1. MONSENHOR BIENVENU
2. FANTINE E A COTOVIA
3. PAI MADELEINE
4. JAVERT
5. REMORSOS
6. COSETTE
7. DILEMAS E ESTRATAGEMAS
8. SUSPEITA
9. FUGA
10. MARIUS
11. CONFUSÃO NO CASEBRE GORBEAU
12. AMOR E DESESPERO
13. DESCOBERTA
14. LOUCURA
15. GAVROCHE, O REVOLUCIONÁRIO
16. VIDA E MORTE
17. HORAS GLORIOSAS DE UM PEQUENO REVOLUCIONÁRIO
18. CONFLITOS
19. SEM RUMO
20. FELICIDADE
21. UM HOMEM BOM
COLEÇÃO
CRÉDITOS
3
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Liberdade não é estar solto. Pode-se sair da prisão, mas
não da condenação.
OS MISERÁVEIS, de Victor Hugo
4
N
APRESENTAÇÃO FALANDO SOBRE VICTOR
HUGO
um país tão privilegiado com grandes autores, torna-se uma temeridade rotular-
se este ou aquele como “o maior autor” e, claro, não o farei. De qualquer forma,
posso garantir que Victor Hugo é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores de todos
os tempos quando se fala de literatura francesa em particular e da literatura mundial
em geral.
Nascido no início do século XIX – 1802 –, filho de um dos generais de Napoleão,
Victor Marie Hugo viveria uma vida de peregrinações em sua infância, marcado pelas
incessantes mudanças paternas e políticas que assolariam a França naqueles tempos.
Precoce intelectualmente e até sentimentalmente – se casaria com Adèle Foucher
alguns meses depois de completar dezoito anos – alcançaria rapidamente o sucesso
através de obras como O Corcunda de Notre Dame, Trabalhadores do Mar, entre
outros. Nesse meio tempo, se tornaria também um dos mais ardorosos defensores da
República e participaria inclusive das várias agitações republicanas que sacudiriam o
país a partir de 1830, experiência que o levaria a escrever OS MISERÁVEIS um pouco
depois da última delas, em 1848, e concluiria a obra anos mais tarde, na ilha de
Guernesey, para onde fora banido por Napoleão III, a quem acusava de usurpador e
tirano. De vida tumultuada e tão aventuresca quanto a de muitos de seus personagens,
passaria por momentos igualmente infelizes – casamento infeliz, uma relação
amorosa jamais completamente assumida, com a atriz Juliette Drouet, todos os filhos
mortos com exceção de uma filha, amargurado diante da ingratidão de alguns amigos.
Aquele que seria aclamado como o Cidadão nº 1 da França logo depois do
lançamento de sua maior obra, considerado o maior poeta do país, estaria cercado
pelos netos a quem chamava de “meus doces anjinhos”, quando morreu no dia 22 de
maio de 1885. Um homem simples que em suas vontades finais deixou 50 mil francos
para os pobres, exigiu ser levado ao cemitério num carro fúnebre humilde e apesar de
recusar as preces de todas as igrejas, garantia: “Creio em Deus”.
5
U
FALANDO SOBRE A OBRA
ma das obras-primas da Literatura Mundial, na minha opinião OS MISERÁVEIS
é o ponto alto do gênio criativo de Victor Hugo. Nele, mais do que em outros de
seus belos livros, encontramos a completa e complexa constelação de personagens
inesquecíveis, o desencadear dos sentimentos mais diversos que compõem a própria
natureza humana, as forças, por vezes mágicas, dessa mesma existência. A força de
convicções inabaláveis estão em suas páginas, provocando conflitos, conduzindo seus
personagens a gestos por vezes extremados, acrescentando a urgência e o desespero a
sentimentos tão profundos quando completos quanto o amor e o ódio. Tendo como
pano de fundo a França antes, mas acima de tudo após a Era Napoleônica, época de
grandes conflitos e transformações, Hugo conseguiu neste gigantesco painel de vida e
sacrifícios apresentar-nos personagens que ficaram para sempre em nossa memória, a
começar por Jan Valjean, o homem bom e humilde levado pela incompreensão cega e
implacável da justiça à desumanidade de uma condenação cruel e injusta.
Concebido logo depois das grandes insurreições de 1848, da qual participou
ativamente, republicano convicto que era, e concluído em plena revolução industrial,
OS MISERÁVEIS vale-se das vidas das pessoas tão comuns como eu e você para falar
das grandes e dramáticas transformações que agitaram a Europa naqueles anos
tumultuosos ao mesmo tempo que nos remete ao essencial de nossas existências tais
como o amor, o ódio, a inveja e a generosidade nos quase intermináveis sacrifícios do
ex-presidiário ou na retidão implacável de seu incansável perseguidor, o detetive
Javert, sem contar aqueles que animam outras tantas dezenas de pequenos e grandes
personagens. Aliás, não existem pequenos ou grandes nessa obra monumental. Todos
são grandes, mesmo quando aparecem episodicamente em suas páginas. Impossível
destacá-los ou minimizar este ou aquele. Todos interdependem. Todos estão
irremediavelmente interligados em prol de uma teia infinita de dramas, tramas e
acontecimentos onde, muitas vezes, o real se confunde com o imaginário, supremo
elogio que se poderia destinar a uma obra literária. Em suma, Os MISERÁVEIS é um
livro que vale a pena ser conhecido em sua totalidade e cuja pálida amostra eu tive a
coragem de produzir através dessa despretensiosa adaptação.
Espero que vocês gostem.
Julio Emílio Braz
 
6
O
1. MONSENHOR BIENVENU
mundo não é justo e provavelmente jamais o será. Os seres humanos são
imperfeitos. A constatação é triste mas não invencível. No dia a dia, frente a
frente com a pequenez de nossa imperfeição, com a fragilidade do mundo real,
continuamos a interagir e progredir, a pensar no próximo, bem verdade que uns mais
do que os outros. Aqui e ali, poderosos titãs do coração ingênuo e generoso vencem a
natureza imperfeita do ser humano – exatamente por ser também humano ou por
saber o que é ser humano –, movidos pela fé, mas essencialmente pela crença maior
de que todos somos capazes de fazer o bem e que portanto somos em princípio bons,
não importa por que caminhos a vida tenha nos levado e as circunstâncias dos
sentimentos ruins que permeiam muitos de nossos atos cotidianos, nos consomem e
nos constrangem. Gente como Monsenhor Bienvenu.
Verdade seja dita: criaturas de natureza tão benigna provocam reações desconfiadas
nos dias em que vivemos. Honestidade e caridade, a generosidade dos atos motivados
simplesmente pela preocupação com o próximo ou pelo interesse de apenas fazer o
bem, nos tornam vítimas da descrença e da suspeita da maioria das pessoas e com o
venerando religioso não foi muito diferente. Os seus primeiros dias na pequena e até
certo ponto remota Digne foram quase que inteiramente à mercê do distanciamento e
da curiosidade de seus moradores, a gente humilde da região entregando-se a uma
busca interminável por mais e mais informações sobre o misterioso bispo que
ocupava a diocese local. Pouco a pouco, quanto mais se falava mas principalmente
quanto mais o religioso se apresentava a eles como um homem bondoso e paciente,
entregue a um zelo por vezes extremado e outras tantas temerário pela salvação da
alma de cada um deles, Monsenhor Bienvenu foi deixando de ser Charles-François
Bienvenu Myril, filho de nobres, homem casado que perdera a esposa para uma
doença pulmonar quando ambos viviam na Itália e, sem filhos e sem família,
praticamente destruída nos trágicos anos da Revolução Francesa em 1793, tornara-se
padre. Naquele ano de 1815 era apenas o estimado bispo de Digne, religioso de
modos austeros porém simples, completamente destituído de vaidades, que vivia de
maneira modesta com a irmã Baptistine, dez anos mais nova do que ele, e uma antiga
criada de nome Magloire, uma velhinha clara, baixa e muito gorda, incansável tanto
nos cuidados da casa – não tão grande quanto o palácio episcopal, que Bienvenu
transformara num hospital logo depois que chegara à região, e na verdade o antigo
hospital – quanto na relação com os dois irmãos. Nenhum homem a serviço de Deus
merecia tanta consideração entre a gente rude que vivia nas montanhas desconfiando
de tudo e de todos, mas que lhe abria a porta das casas sempre que aparecia para rezar
uma missa, abençoar um recém-nascido ou dispensar os últimos sacramentos para
aqueles que abandonavam esse mundo de tantossofrimentos e mínimas alegrias.
Ninguém entre os mais ricos ou poderosos conseguia esconder seu espanto e até um
evidente desconforto diante de seu desprendimento quanto aos bens materiais. Todos
eram iguais não só aos olhos de Deus, mas também aos olhos do bom bispo de Digne.
Não se viam janelas ou portas fechadas em sua casa para quem quer que fosse, a não
ser, é claro, durante os meses de fortes ventos e nevascas e mesmo em tais ocasiões
7
era possível vê-lo, no lombo de um burro ou a pé, desafiando a violência do inverno
para chegar até um de seus fiéis. Portanto, nada mais natural que naquela noite, a
despeito das desconfianças e do olhar de censura da Sra. Magloire, ele tenha aberto a
porta e o coração para o desconhecido que se apresentou muito francamente como
Jean Valjean, um ex-presidiário que saíra da prisão há quatro dias apenas e a quem
ninguém na cidade quisera dar abrigo e muito menos comida, muitos expulsando-o
até sob a mira de armas.
– Eu juntei algum dinheiro nos dezenove anos que passei na prisão – informou,
fechando a porta atrás de si, o olhar hostil de quem estava cansado de andar de um
lado para o outro, vítima dos muitos olhares, ferozes como o de Magloire, que o
haviam perseguido o dia inteiro.
– Estou muito cansado... andei doze léguas e estou com fome. Posso ficar?
Bienvenu sorriu e gesticulou para que se aproximasse.
– Ponha mais um prato na mesa, Sra. Magloire – pediu.
– Eu sou um presidiário que saiu da prisão há... – Valjean tirou do bolso uma grande
folha de papel amarelo, a declaração de sua condição, um passaporte humilhante, que
era obrigado a carregar e apresentar onde quer que fosse. – Todo mundo me põe para
fora depois que lê o que está escrito aqui...
O bispo continuou sorrindo enquanto dava novas ordens à criada e apontou para uma
das cadeiras vazias ao longo da mesa, insistindo:
– Sente-se, meu amigo, e procure se aquecer. Depois nós podemos comer enquanto a
Sra. Magloire arruma a cama para que possa descansar.
Sem saber o que dizer, não parecendo entender muito bem o que se passava ou
mesmo que aquele homem a sua frente não dava a impressão de ter o menor interesse
em expulsá-lo, Jean Valjean sentou-se, a folha de papel amarelo ainda numa das
mãos.
Comeu depressa. Mal falou e só o fez de vez em quando, alcançado pelas indagações
simpáticas do velho religioso. Uma sopa feita de água, azeite, pão e sal. Um pedaço
de toucinho. Outro de carne de carneiro. Figos. Queijo fresco. Vários pedaços de pão
de centeio. Um banquete para um homem esfomeado. Comeu sem pudor e por vezes,
sem qualquer controle, a atenção atraída meramente para os talheres de prata que
Bienvenu costumeiramente exigia que fossem colocados à mesa sempre que tinha
algum convidado para o jantar. Uma tentação. Desde que os viu e os teve à
disposição, Valjean não conseguiu tirá-los da cabeça. Nem eles nem os dois castiçais
que a empregada trouxe da lareira do quarto do bispo e igualmente de prata. Depois
de vê-los, por mais que Bienvenu falasse e se mostrasse interessado, curioso e um
anfitrião dos mais bondosos, os talheres e os castiçais não lhe saíam da mente. Um
tormento que se prolongaria mesmo depois que foi deixado sozinho num dos quartos
da casa, vítima de lembranças dolorosas dos tempos vividos no inferno da prisão e,
muito antes, dos anos de penúria que o levaram a roubar um pão e consequentemente
8
àqueles anos de prisão. Mal dormira e sempre fechava os olhos, lembrava-se da irmã
mais velha que o acolhera depois da morte de seu pai. Viúva e mãe de sete filhos,
passaram anos de dificuldades, à sombra espreitando-os de tempos em tempos. Fora o
temor de ver os sobrinhos passando fome que levara um Jean Valjean desempregado
e desesperado a roubar o pão que o confinou a uma cela. Os cinco anos da primeira
condenação foram aumentados após uma frustrada tentativa de fuga e novos anos
foram sendo somados à medida que aconteciam novas tentativas. Todas fracassaram e
ele amargou mais de dezenove anos numa das piores prisões francesas.
Pensou na irmã.
Onde estaria?
E seus sobrinhos?
Teriam sobrevivido à miséria e à fome?
Apavorava-se sempre que imaginava que qualquer um deles, sobrevivendo àquela
existência miserável, estivesse preso em algum lugar e passando por tudo o que
passara naqueles anos infernais na prisão de Bicêtre.
Mesmo depois de tanto tempo, ele, trabalhador, analfabeto, sentia-se injustiçado.
Revoltava-se diante da extensão absurda de sua pena e da própria pena. Condenado
por roubar um pão...
O grande ódio por tudo e por todos era o resultado final daqueles anos de provação e
sofrimento. Sentia-se indignado. Mais do que revoltado, injustiçado, a indignação era
imensa em seu coração. A sensação de perda – anos, experiências, vida – apenas
agravava ódio e indignação. Era um homem em constante distanciamento de bons
sentimentos e pessoas como Bienvenu o constrangiam, pois se convertiam num
lampejo de esperança, um hiato na certeza que alimentava de que ao ódio e aversão
do mundo deveria responder com um ódio e aversão ainda maior.
Vivia na escuridão permanente dos maus sentimentos, imune a crenças em coisas e
em pessoas como Bienvenu. Odiar era sobreviver. Agredir era a única arma que lhe
garantira a própria existência nos anos de tortura e escravidão. Bater era melhor do
que apanhar. Vitimar antes de se converter em vítima. As trevas do ressentimento
eram refúgio seguro contra a luz enganadora do sorriso e da solidariedade dos poucos
como o velho bispo que de tempos em tempos cruzavam o seu caminho.
Não, não se permitiria ser enganado. Não se deixaria levar. O temor que provocava
nas pessoas, longe de angustiá-lo ou enchê-lo de vergonha, o envaidecia. O
passaporte que era obrigado a carregar o classificava como homem muito perigoso.
Parte da máscara que gostava de exibir para todos os que o ameaçavam ou o
exploravam. Algo útil mesmo depois de sair da cadeia, pois, mesmo longe da prisão,
dificilmente seria um homem livre. Restaria sempre a condenação.
O mundo lhe devia algo. O mundo era aquela gente que cruzava seu caminho.
Bienvenu não era diferente. Era bondoso. Acolhera-o com generosidade. Alimentara-
o. Dera-lhe um lugar para dormir. De qualquer forma, fazia parte daquele mundo que
9
odiava tanto.
Mal dormira e, quando o relógio da catedral soou duas horas da manhã, abandonou a
cama – há quase vinte anos que não se deitava numa e a experiência fora indescritível
– e esgueirou-se pela casa até encontrar os seis talheres de prata que o obcecaram
tanto desde que os vira pela primeira vez. Prata maciça. Valeriam cerca de duzentos
francos, avaliou, se a eles acrescentasse uma concha que encontrou numa cesta.
Colocou-os em sua mochila e depois de apanhar o cajado que deixara no oratório
junto ao quarto do bispo, saiu para os jardins. Soou três horas quando saltou o muro e
fugiu.
A noite não o acolheu nem se converteu numa grande companheira de fugas. Uma
grande lua cheia pairava sobre o silêncio dos caminhos vazios e aldeias sonolentas, a
luminosidade leitosa de seus raios empurrando a escuridão para os pontos mais
extremos de uma noite que se dissipava bem depressa. Revelou-o para um grupo de
soldados que, à sua simples aparição, alcançaram-no e o prenderam.
– De quem você roubou isso? – perguntou o cabo que comandava o grupo, o punhado
de talheres retirado de dentro da mochila.
– Não roubei nada! – mentiu Jean Valjean, esperneando, os outros soldados
agarrando-o pelos braços e pelo pescoço.
– Mentiroso! – um deles o esmurrou.
– O bispo me deu! Perguntem ao bispo!
Amanhecia e um pequeno cortejo de camponeses e moradores da aldeia os
acompanhou quando, ao longo de mais ou menos duas horas, atravessaram estradas e
ruas a caminho da casa de Monsenhor Bienvenu. Ele acabara de almoçar e levantava-
se da mesa no momento em que bateram em sua porta.
– Monsenhor... – o cabo fez uma continência e seus comandados empurraram Valjean
na direção do religioso.
Bienvenu, ao vê-lo, achegou-se o mais depressa que lhe permitia sua idade avançada
e sorriu amistosamente,braços abertos, dizendo:
– Mas o que houve, meu amigo? Voltou?
Entreolhou-se com os soldados, tão espantados quanto o próprio Valjean, e
acrescentou:
– Foi bom trazê-lo, cabo.
– Como assim?
Novo sorriso para Valjean, e Bienvenu continuou falando:
– Ainda bem que você voltou. Acaso não notou? Eu lhe dei os castiçais também. Por
que não os levou juntou com os talheres? Apenas eles podem lhe render uns bons
duzentos francos...
10
Valjean continuou encarando-o, perplexo.
– Então o que esse homem está dizendo é verdade, monsenhor? – perguntou o cabo,
os olhos indo de um para o outro, confusão e desconfiança rivalizando-se neles. –
Desde que o pegamos na estrada para Portalier que ele vem repetindo que...
– Quem um padre lhe deu a prataria?
– É...
– Sou eu esse padre, meu filho...
– Quer dizer que posso soltá-lo?
– Mas é claro. Tudo não passou de um lamentável engano. Quer dizer, foi até bom
que tal tenha ocorrido, pois me permite concluir a minha doação – enquanto os
soldados largavam Valdjean, o padre caminhou até a lareira de onde trouxe os dois
castiçais e lhe entregou, pedindo: – Tome, pegue os castiçais.
Jean Valjean apanhou-os maquinalmente, quase sem dar conta do que fazia, por que o
fazia e, acima de tudo, por que Bienvenu o fazia.
– Agora, vá em paz – o velho bispo abençoou e disse aos soldados, insistindo: –
Quanto a vocês, podem se retirar.
Eles lhe obedeceram rapidamente. Quando Valjean virou-se para a porta e fez
menção de fazer o mesmo, Bienvenu alcançou-o e disse-lhe bem baixinho, quase num
sussurro:
– Nunca se esqueça do que me prometeu, meu bom homem...
Valjean pestanejou, intrigado.
– Prometi – repetiu, abobalhado.
Bienvenu sacudiu a cabeça e por trás de outro de seus sorrisos, insistiu:
– Não se esqueça de que me prometeu empregar o dinheiro para tornar-se um homem
de bem.
Valjean encarou-o, intrigado, pois não se recordava de tal promessa. Ainda pensou
em protestar, argumentar que o religioso estava enganado, confundindo-o com outra
pessoa ou mais provavelmente se valendo da situação para arrancar-lhe uma
promessa que sob outras circunstâncias jamais faria a homem algum, nem mesmo a
ele.
– Lembre-se, meu irmão, de que a partir de hoje você não pertence mais ao mal, mas
sim ao bem. Acabo de comprar sua alma. Tomo-a dos maus pensamentos e ao
espírito de perdição para entregá-la a Deus.
Jean Valjean correu. Sem entender muito bem o que acontecera, sentimentos distintos
misturavam-se em sua cabeça à medida que corria e procurava se afastar o mais
depressa possível de Digne. Ora sentindo-se humilhado, noutras tantas irritado e
11
louco para descarregar aquela frustração nervosa sobre o primeiro que cruzasse seu
caminho, andou em círculos, seguindo por caminhos que, longe de afastá-lo da vila, o
levavam sempre até seu amontoado de construções envelhecidas e à lembrança de
Monsenhor Bienvenu. Ele. Sua generosidade inexplicável. A benevolência misteriosa
das palavras que ainda o confundiam, sem saber o que realmente significavam.
Como era habitual em tais situações, a perplexidade o empurrou de encontro a uma
raiva ameaçadora que o levaria a tirar uma moeda de um menino na estrada e ao
perceber o que fizera, a passar o entardecer atrás dele, tentando devolvê-la. Sequer
sabia por que o fizera, mas o fez, e ao fazê-lo, desastrado, arrependido, acabaria por
assustar um padre a quem perguntara pelo menino e, chegara mesmo a fazer uma
generosa doação tirada do pouco que tinha.
Por que afinal de contas resolvera lhe dizer que era um ladrão?
O padre fustigou a mula que montava e desapareceu numa nuvem de poeira.
Por fim, vencido pelo cansaço e pela impossibilidade de encontrar a criança, deixou-
se cair sobre os joelhos e chorou por muito tempo, o primeiro choro depois de
dezenove anos!
Dor. Vergonha. Uma compreensão que não alcançava e o atormentava, aumentando a
culpa que sentia, a imagem do bom Monsenhor Bienvenu vindo-lhe à mente,
misturando-se à do menino de quem, sabe-se lá por quê, roubara a preciosa moeda.
Chorou por não saber-se capaz de cumprir a promessa que o religioso lhe tirara com
seu gesto. Em dado momento, desejou que não tivesse feito tal gesto. Melhor seria se
simplesmente tivesse deixado que os policiais o levassem de volta à prisão. Lágrimas
e mais lágrimas. Não seria capaz de ser bom, temia.
12
N
2. FANTINE E A COTOVIA
o início tudo parecera um sonho. Um belo sonho de verão que rapidamente –
poucos meses na verdade – se transformou num amargo pesadelo.
Fantine ainda se lembrava.
Como poderia esquecer?
Fora lindo. Fora belo. É, no início fora real e verdadeiramente um doce sonho de
amor para a jovem ingênua e apaixonada, recém-chegada a Paris. Ela e as amigas.
Tudo era só felicidade. Tudo parecia inacreditavelmente possível – o amor, aqueles
loucos dias em Paris, mas, acima de tudo, Tholomyès.
Ah, Tholomyès!...
Como poderia esquecê-lo?
As palavras. Os gestos. Os carinhos. As tantas promessas.
Um frágil sonho de amor que se esvaíra como o calor de um dia de verão sucumbe ao
frescor de um entardecer chuvoso. A chuva forte que varre para o esquecimento as
boas e más recordações. O tempo que não volta mas deixa fragmentos angustiantes,
meros vestígios das doces promessas feitas e dos sonhos desfeitos com a rapidez e
leviandade de uma tarde de muitos prazeres e diversão em que Tholomyès e alguns
amigos abandonaram a ela e a suas amigas num restaurante dos Champs-Elysées após
um dia inteiro de alegrias.
Lembrava-se de ter rido da brincadeira dos quatro, abandonando-as com um pequeno
bilhete transbordante de encantos e mentiras. Ela rira. Todos riram. A vida
continuaria para uns e outros. Novos amores surgiriam, garantira uma de suas amigas.
Fantine concordou. Riu um pouco mais. O sorriso desapareceria de seu rosto quando
finalmente trancou-se em seu quarto. Chorou por seu amor perdido. Pela partida e
pela inconsequência de Tholomyès. Pela certeza de que ele a esqueceria bem
depressa. Chorou pela criança que gerou alguns meses mais tarde, sua filha com
Tholomyès.
Abandonada por tudo e por todos, mesmo pelas amigas que desapareceram logo que
souberam de sua gravidez, sozinha em Paris, Fantine resolveu voltar para casa. Levou
consigo a filha, o amado fruto daquela primeira e única decepção amorosa.
À pequena Cosette – esse era seu nome – dera o melhor de si com o pouco que tinha,
a começar pelo belo enxoval de seda que carregava quando juntas rumaram para a
pequena Montreuil-sur-Mer, a cidadezinha onde nascera e passara muitos de seus
poucos e infelizes anos. Pensava em recomeçar entre aqueles que conhecia e
certamente acreditariam em qualquer história que inventasse para explicar a origem
de Cosette.
A viagem longa e nos últimos quilômetros feita sob as maiores dificuldades – afinal
13
de contas, o pouco dinheiro que carregava esgotava-se rapidamente, mercê das
necessidades naturais de tão penosa jornada e da pequena Cosette –, tornou-a
prisioneira de si mesma, vítima de suas apreensões e temores. Invariavelmente, temia
menos por si e mais pela menina. Perguntas viriam e, ao serem respondidas,
despertariam mais e mais curiosidade. Receava que mais dia, menos dia se
atrapalhasse em suas próprias e tantas mentiras. Acabaria por desmascarar-se.
Suportaria tudo e qualquer coisa, humilhação, desprezo, a raiva surda e os olhares
silenciosos da recriminação, mas não queria o mesmo para Cosette.
Mal dormia, acossada por tais temores. Fora por isso e por nenhum outro motivo que,
ao passar por Montfermeil, uma pequena cidade nas proximidades de Paris, e parar
por uma taverna conhecida pelo nome de Ao Sargento de Waterloo, encantou-se com
o carinho com que a proprietária tratava suas filhas. O cuidado e a atenção, a
generosidade feita a partir de uma vida simples e até bem difícil acabaram por
convencê-la de que seria melhor deixar a filha aos cuidados de uma família do que
arriscar-se a vê-la a pagar o alto preço de uma sempre provável condenação por parte
da gente de Montreuil-sur-Mer.
Trabalharia muito e se sujeitaria a todo e qualquertipo de trabalho para que um dia
estivesse em condição de retornar e levar a filha para viver novamente e para sempre
em sua companhia. Promessa feita e acertado o pagamento – afinal de contas,
segundo o Sr. Thénardier, proprietário da taverna, criança pequena dava muitas
despesas e exigia cuidados ainda maiores –, despediu-se, o coração apertado,
mortificado pela certeza da grande saudade que sentiria, porém tranquilizada,
acreditando que, com um teto sobre sua cabeça e uma família para ampará-la, a filha
teria uma existência mais tranquila.
Somente uma mulher atormentada por grandes temores acreditaria tão facilmente nas
boas intenções de pessoas desconhecidas. Mal virou-lhe as costas e desapareceu
numa curva da estrada, os Thénardier apressaram-se em gastar todo o dinheiro que
deixara no pagamento de uma dívida que poderia lhes causar inclusive a perda da
taverna. Um pouco depois, venderam todo o rico enxoval de seda de Cosette e o
substituíram por trapos velhos, roupas antigas de suas filhas que cresciam. Em muito
pouco tempo, a infeliz Cosette se converteria no alvo fácil das maldades de suas
“irmãs” e da empregada que, apesar da pouca idade, se veria obrigada a fazer alguns
dos trabalhos mais pesados dentro da taverna. De todo carinho que a velha e
rabugenta Thénardier dedicava às filhas não sobraria nada para Cosette, a não ser, é
claro, as pancadas dadas por qualquer motivo e a pretexto das menores e menos
explicadas faltas.
Pior, realmente bem pior, apenas a crença entre os moradores do lugarejo de que
Cosette deveria ser agradecida pelo teto que tinha sobre a cabeça ou pela pouca
comida que recebia ou pelos trapos que vestia, pois fora abandonada pela própria
mãe. Para muitos, os Thénardier eram pessoas de bom coração e Cosette deveria ser a
primeira a reconhecer tal fato e ser agradecida.
Ah, se Fantine soubesse o que estava acontecendo com sua filha...
14
Mas como poderia se, nas cartas que recebia e nas poucas notícias que obtinha, o
casal lhe garantira que Cosette crescia bela e forte e só insistia em que o dinheiro que
mandava era pouco para manter-lhe o luxo e a boa saúde?
Deveria suspeitar, é bem verdade, pois mal se passaram os primeiros meses que
pagara para que cuidassem da filha e os dois exigiam mais e mais dinheiro,
chantageando-a com ameaças de todo tipo, obrigando-a a trabalhar e trabalhar e
trabalhar cada vez mais para mandar sempre mais dinheiro!
Ninguém, nenhuma pessoa em sã consciência e de bom coração seria capaz de
condená-la por pagar sem suspeitar por um momento sequer do que se passava
realmente com a filha.
Na aldeia passaram a chamá-la de Cotovia e, como o passarinho, Cosette era uma
criaturinha assustada e trêmula, a primeira a levantar toda manhã, não apenas na
taverna mas em toda a aldeia. Infelizmente, medrosa, abandonada e infeliz, aquela
cotovia não tinha realmente nenhum motivo para cantar.
Onde estaria sua mãe?
A pergunta não saía de sua cabecinha atormentada.
15
Q
3. PAI MADELEINE
uando Fantine chegou à sua cidade, já haviam se passado dez anos e pouca
gente se lembrava dela. A própria Montreuil-sur-Mer transformara-se de
maneira extraordinária e grande parte da responsabilidade repousava sobre uma
enorme fábrica construída anos antes, mas acima de tudo sobre seu misterioso
proprietário, conhecido pela gente da região como Pai Madeleine.
Nada sabia sobre ele. O pouco que ouvira o fora através da gente da cidade e a quase
nada podia se dar muita fé, fruto da imaginação que, não encontrando a realidade e a
verdade, constrói a lenda e entrega-se facilmente ao encanto da fantasia.
Sabia-se com certeza que chegara àquele pedaço esquecido da França como um
simples e humilde operário. A sorte e a providência divina o colocaram num dos
eventos mais falados de Montreuil-sur-Mer: o grande incêndio no conselho
municipal. Corajosamente aquele que seria conhecido como Madeleine atirou-se ao
fogo e salvara duas crianças, filhos do capitão da guarda. Tão agradecido ficaram
todos que não lhe pediram seu passaporte, valendo para tudo e para todos aquele
nome que rapidamente se transformaria numa lenda e fonte inesgotável para todo tipo
de boato e comentários na região.
Comentava-se sua extraordinária capacidade de trabalho. A humildade de seus modos
e atitudes. A maneira simples como vivia apesar da grande fortuna que asseguravam
possuía no Banco Lafitte. A generosidade que o levara a construir escolas e asilos
para os filhos de seus operários ou para velhos e enfermos. A preferência que o
levava a preferir a companhia de operários e camponeses ao invés de aceitar os
convites da gente rica que o cumulava de convites e honrarias que sistematicamente
recusava. Ainda se dizia que apenas aceitara o cargo de prefeito local na segunda ou
terceira vez e mesmo assim depois de muita insistência, por conta do apelo feito por
uma velha senhora a quem estimava muito.
Fantine não se preocupara em dar maior atenção a nenhum daqueles comentários.
Sentira-se agradecida simplesmente pelo fato de Madeleine ter lhe dado um emprego
em sua fábrica. Todavia, seria aquele homem que odiaria de modo crescente e
inexplicável quando, cerca de um ano depois, foi despedida.
Odiaria sem saber exatamente por que ou talvez simplesmente porque a fábrica lhe
pertencia e, sem o pagamento que recebia, voltaria à miséria e ao desespero agravado
pelas cartas dos Thénardier, cada vez mais frequentes e simplesmente querendo mais
e mais dinheiro, sempre mais e sempre a pretextos dos mais variados.
Talvez devesse odiar a velha e amarga Madame Victurnien, a bisbilhoteira que
encarregara a si mesma de descobrir os motivos desta ou daquela lágrima que Fantine
derramava ocasionalmente na fábrica, que vigiava a correspondência trocada com os
Thénardiers ao ponto de embebedar o escrevente que partilhava tal segredo com
Fantine – afinal de contas, a pobre coitada mal sabia escrever o próprio nome e se
valia daquele homem para saber notícias da filha distante – e se dera ao trabalho de
16
procurar os Thénardier em sua taverna de Montfermeil.
Eu vi a criança!
Não foi o que ela gritara triunfalmente, transbordante de indignação e com os olhos
cheios de severa condenação, para quem quisesse ouvir?
Não foi a sua descoberta que causou a sua demissão?
A miséria não a alcançou mais uma vez por conta daquele gesto de crueldade sem
sentido?
Não foram as suas palavras, os muitos dedos apontando-a na rua para quem quer que
fosse, mais do que as cartas dos Thénardier sempre pedindo mais dinheiro e
ameaçando atirar sua filha febril na rua, que cultivaram a erva daninha do
ressentimento e da mágoa em seu coração?
Não cabia àquela mulher horrível o seu derradeiro gesto de degradação ao voltar a se
prostituir para que Cosette não sofresse?
Por que odiar Pai Madeleine?
Não sabia. Sentia-se confusa, quase sempre desesperada, angustiada com o destino da
filha, com a separação a que se viam lançadas por aquele cotidiano amargo de
indignidades e condenação sem fim.
Despenteada e suja, despojada de qualquer vaidade, perseguindo a menor moeda
como se fosse o resgate de um rei pelas ruas de Montreuil-sur-Mer, primeiramente
entregou-se aos caprichos de um músico mendigo que não tinha muito a lhe oferecer
a não ser a violência da dor física – as brigas eram frequentes e em qualquer lugar em
que se encontrassem – e da miséria. Posteriormente, empurrada ainda com mais
violência pelas cartas ameaçadoras dos Thénardier, tropeçou um pouco mais na
humilhação. Permitiu que um dentista itinerante e charlatão lhe arrancasse os dois
dentes da frente para enviar o dinheiro à filha. Por mais que procurasse a honestidade
e o trabalho, a miséria crescia e nas ruas começou a passar a maior parte do dia e a
enfrentar os perigos da noite. A violência dos olhares. Dos tapas e empurrões. As
brincadeiras perversas dos seus habituais frequentadores, uma fauna constituída de
bêbados e prostitutas, soldados e marinheiros, a escória da marginalidade mas
principalmente os bem-nascidos do lugar, homens com os bolsos cheios de dinheiroe
vitimados pelo tédio de existências vazias, sem nada para fazer a não ser gastar o seu
dinheiro. Acreditavam-se superiores e, por sê-lo, livres para fazer o que bem
entendessem com gente como Fantine.
Na maioria das vezes ela se submetia. Precisava do dinheiro. Amava a filha tanto
quanto odiava as cartas dos Thénardier. A poderosa onipresença de Madeleine estava
por toda parte, visto como um homem bom e caridoso, mas a quem Fantine atribuía
boa parte da miséria em que se encontrava. Aqueles homens que se aproveitavam
dela e a humilhavam para se sentirem maiores ou melhores.
Naquela noite, no entanto, Fantine viu no homem que a maltratava e se divertia às
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suas custas – seu nome era Bamatabois e ela o conhecia – todos aqueles rostos que
transformavam a sua vida num inferno.
Tholomyés. Os Thénardier. Madeleine. Victurnien. Pai Madeleine. Todos. De certo
modo, até Cosette, sua filha querida, amada, pela qual se entregara a toda sorte de
humilhações e...
Lançou-se sobre ele com ódio, muito ódio no coração. Derrubou-o e continuou
arranhando. Arranhando e mordendo. Batendo. Xingando. A multidão se estreitava à
sua volta. Riam. Aplaudiam. Gritavam. Rosnavam como uma alcateia de lobos
famintos a esperar apenas pelo desenlace para lançar-se sobre o derrotado e
despedaçá-lo. Bamatabois não tinha chance. Sangrava sob a fúria enlouquecida de
Fantine. Ela parou apenas quando um braço muito forte enlaçou-lhe a cintura como
uma poderosa tenaz de aço e a tirou de cima de Bamatabois.
Tremeu. Empalideceu. No momento em que seus olhos se encontraram com os de seu
captor, encolheu-se, muda de terror. Reconheceu-o.
Era Javert.
18
O
4. JAVERT
inspetor de polícia Javert já estava em Montreuil-sur-Mer há alguns anos, mas
desde os primeiros dias sua presença implacável e sombria infundia medo e
respeito a todos os seus moradores. O olhar penetrante sob as espessas sobrancelhas.
O corpo empertigado e esguio. O ar severo e quase sempre carrancudo. A ameaça
sempre presente em suas palavras ou meramente entrevista por aqueles que o
evitavam – e não necessariamente os que tinham razões naturais, dada a natureza de
seu ofício, para temê-lo mais até mesmo muitos entre aqueles que poderíamos
enfileirar entre os chamados homens de bem. Tudo nele inspirava um reverencioso
distanciamento, algo por vezes peculiar à relação da sociedade com seus agentes da
lei e da justiça – todos ou pelo menos a quase totalidade da sociedade os prezam e os
estimam, mas se podem, evitam-nos e a sua proximidade.
Não era nem um dos mais truculentos que o lugar já conhecera. Houvera outros bem
piores. O que realmente intimidava em Javert era a certeza inabalável que o mesmo
tinha de seu papel na sociedade e a maneira incontornável com que aplicava a ele
onde quer que estivesse. Incorruptível. Implacável. Muitos e muitos outros adjetivos
se encaixariam à perfeição em sua figura séria e intimidadora.
Fantine sabia o que poderia esperar ao cair em suas mãos e por isso, lançada a um
canto da delegacia da polícia e apesar do calor do fogareiro, estremeceu. Não
conseguia parar de tremer. Suplicou. Inútil.
– Você vai passar seis meses na prisão pelo que fez – sentenciou ele, imperturbável,
gesticulando para que os soldados a levassem.
Ela suplicou. Ajoelhou-se a seus pés. Arrastou-se pelo chão. Falou da filha. Do
dinheiro que precisava mandar para os Thénardier para que eles não jogassem Cosette
na rua. Prometeu que se desculparia com o homem que agredira.
– Levem-na! – ordenou secamente, indiferente a seus apelos.
Fantine e os soldados que a seguravam pelos braços quase se chocaram com
Madeleine, que acabara de entrar e, diante do olhar espantado de todos, virou-se para
Javert e ordenou:
– Ponha essa mulher em liberdade, inspetor.
Ela não pôde acreditar no que ouvia e, num gesto mais de incredulidade do que de
raiva, cuspiu nele e refugiou-se mais uma vez num canto da delegacia. Ainda tremia,
olhos fixos nele, repetindo:
– Não, não foi o senhor que disse isso! Foi o inspetor! O inspetor...
Javert o encarava, pasmo, tão confuso quanto ela, porém por outras razões. Há
tempos que olhava para aquele homem à sua frente com olhos interrogadores. Algo
nele o deixava inquieto e pouco à vontade. Não sabia exatamente o quê, mas algo em
Madeleine lhe soava falso ou pelo menos desconcertante, e o que irritava
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profundamente é que não sabia definir aquele sentimento.
Talvez fosse o mistério que cercava sua origem. Quando chegara em Montreuil-sur-
Mer, Madeleine já era um homem poderoso e influente, estimado por muitos e
invejado por outros tantos.
Não, não. Não o odiava e muito menos o invejava. Era simplesmente incapaz de tais
sentimentos. O mundo em que vivia e construíra para si desde os tempos em que,
filho de uma cartomante com um homem preso, nascera e crescera numa prisão. Um
mundo onde homens de bem e do mal dividiam o mesmo espaço de maneira tensa e
forçada e em muitas ocasiões se confundiam uns com os outros. Um mundo onde
definira sua personalidade, uma personalidade devotada ao cumprimento férreo e por
vezes cego da lei.
Não era o ódio ou qualquer sentimento parecido que transformara Madeleine numa
obsessão para Javert. Era aquela sensação. Aquela permanente inquietação em que se
via lançado sempre que estava em sua presença e que o levava, principalmente depois
que Madeleine se tornou prefeito da cidade, a evitá-lo o mais que podia ou que seu
cargo permitia.
Aquela sensação apenas aumentou no instante em que ele entrou e insistiu, a despeito
de Fantine ter cuspido nele, para que soltasse aquela mulher.
Como era possível?
Ela cuspira no prefeito da cidade.
Um fato abominável que merecia uma punição severa.
Como poderia ignorar tal fato e tratá-la com tamanha deferência?
Eram diferentes e Madeleine não poderia tratá-la de outro jeito, a não ser que se
sentisse como um igual e partilhasse de seu infortúnio.
Não, não! Absurdo, Javert! – disse de si para si.
Lembrou-se de um fato em particular ocorrido algum tempo antes e que despertara
nele idêntico pensamento e igual inquietação. O acidente com o velho Fauchelevent.
Fauchelevent, um antigo tabelião que tivera um pequeno comércio, à época era um
dos poucos inimigos que Madeleine tinha na cidade, uma inimizade forjada na inveja
e no ressentimento. Seu negócio ia de mal a pior enquanto Madeleine prosperava e
isso o deixara inicialmente inconformado e, posteriormente, fora o combustível que o
levava a falar mal do rival sempre que a oportunidade se lhe aparecia. Finalmente
falido, sem mulher ou filhos, viu-se obrigado a sobreviver como charreteiro.
Numa certa manhã, o cavalo que puxava sua charrete quebrara as duas pernas e o
veículo tombara exatamente sobre seu velho condutor. Uma multidão reunia-se em
torno do infeliz sem que nenhum deles se dispusesse ou estivesse em condições de
ajudá-lo. Foi nesse momento que Madeleine apareceu. Inutilmente ofereceu dinheiro
para que alguns aceitassem ajudá-lo a retirar Fauchelevent debaixo da charrete.
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– Boa vontade não nos falta, Pai Madeleine – argumentou um dos homens. – Mas a
carga da charrete é muito pesada!...
– O sujeito teria de ser forte como o Diabo para tentar algo assim e ainda correria o
risco de ser esmagado – acrescentou um outro.
Madeleine insistiu ainda por uns instantes, dobrando e dobrando o valor que oferecia.
Em vão. Nem os gemidos angustiados de Fauchelevent sensibilizavam a multidão e
alguns baixavam a cabeça, envergonhados, ou simplesmente se afastavam.
– Seria preciso ser um homem incrível para levantar uma carroça dessas apenas com
as costas – disse uma voz repentinamente atrás de Madeleine. Ele se virou e
reconheceu Javert. Olharam-se. Uma fração de segundos e não mais do que isso antes
que o policial prosseguisse: – Em toda a minha vida conheci apenas um homem capaz
de fazer o que o senhor quer. Um condenado.
A súbita palidez no rosto de Madeleine inquietou Javert.
– Foi na prisão de Toulon – insistiu.
Madeleine olhou ao redor e insistiu:
– Não há ninguém aqui que queira ganhar vinte moedaspara salvar a vida do pobre
Fauchelevent?
O silêncio foi a única resposta que recebeu. Ao voltar-se encontrou mais uma vez o
olhar dardejante e afiado de Javert fixo em sua figura corpulenta. Hesitou. Mordeu a
ponta do lábio e seus olhos foram de um rosto a outro, súplices e indagadores. Talvez
até angustiados. O gemido do velho carroceiro fê-lo estremecer e, resoluto, lançar-se
para baixo do veículo tombado. No momento seguinte, para assombro de todos, a
charrete se moveu e puderam finalmente tirar Fauchelevent do terreno lamacento.
Javert jamais esqueceu aquele incidente e, naquele instante em que Madeleine insistia
para que libertasse aquela prostituta, voltou-lhe à mente e ficou se repetindo.
Protestou. Argumentou que soltar Fantine seria fugir às responsabilidades a ele
impostas pelo cargo. Quis reagir e recusar-se a obedecer a ele, mas era um sério
cumpridor de ordens e crescera acreditando numa obediência cega à hierarquia e à
autoridade. Por fim, mesmo contrariado, soltou-a. Deixou que a levassem. No
entanto, continuou com Madeleine em sua mente. Único pensamento, vasculhando
cada lembrança, por menor e menos significativa que lhe parecesse, em busca de uma
explicação para aquela inquietação que só fazia crescer em seu coração e nos últimos
tempos, lhe tirava o sono.
Assim era Javert.
21
T
5. REMORSOS
udo aconteceu depressa demais. Fantine não sabia o que fazer ou como reagir a
tudo o que ouvia – as promessas de Madeleine despejavam-se sobre si
entremeadas a uma infinidade de pedidos de desculpas e explicações. Ele se julgava
culpado por seus sofrimentos e garantia que lhe compensaria por tudo. Fantine queria
xingá-lo mas, confusa, via-se atingida por suas explicações e se constrangia, pois
percebia sinceridade no que dizia. Sua angústia era genuína. A dor, maior do que a
sua. As promessas soavam irreais e partes de um sonho perverso do qual despertaria a
qualquer momento para se descobrir naquele quartinho sórdido onde vivia na mais
completa miséria e desesperança...
Vou pagar suas dívidas, vou mandar buscar sua filhinha, ou irá encontrá-la, o que
achar melhor ou mais conveniente. As duas viverão aqui, em Paris, ou onde
desejarem. Cuidarei de você e de sua filha. Não precisa mais trabalhar se não
quiser. Darei todo o dinheiro que precisar. Você voltará a ser honrada e feliz...
Desnorteada e zonza, Fantine mal podia acreditar. Não encontrava tempo para odiá-lo
ou para qualquer outro gesto. Sentiu-se fraca. Os joelhos dobraram. Balançou no ar
como uma marionete a quem, de um momento para o outro, lhe surrupiassem as
cordas que a prendiam ao movimento e, consequentemente, à vida. Desmaiou. Ao
despertar, encontrou-se num quarto amplo, limpo e perfumado, a cama macia
revigorando-lhe o corpo extremamente cansado, e Madeleine sentado aos pés da
cama, os olhos fixos em algum ponto acima da cabeceira. Seguiu-lhe o olhar e viu
que se diria para um crucifixo pregado na parede.
Nos dias que se seguiriam, um conforto diante de tanta dor, ele estaria sempre ali, a
seu lado, velando por sua vida, angustiando-se pela demora com que os Thénardier,
mesmo depois de muitas vezes pagos, insistiam em não enviar-lhes Cosette, ou pelo
agravamento daquela doença que por fim a lançou numa febre interminável, crescente
e preocupante. Preocupação. Nas poucas vezes em que abriu os olhos, encontrou-o
cada vez mais preocupado. Restos de uma longa e tensa conversa entre ele e o médico
– segundo o médico, não havia muitas esperanças de que sobrevivesse àquela doença.
Pobre Fantine, desconhecia que Madeleine tinha outras preocupações além dela e da
filha. Algo bem mais grave, provocado por sua libertação.
Javert irritara-se com a intromissão do prefeito e dera corpo a sua irritação e a uma
velha desconfiança, solicitando a seus superiores informações sobre ele. Acreditava
que fosse um condenado que conhecera na prisão de Toulon e foi com certa
frustração, bem dissimulada, que lhe informou que o tal Jean Valjean, que acreditava
ser o prefeito, fora encontrado e preso em outra cidade. Chamava-se Champmathieu
e, apesar de protestar inocência, fora reconhecido por dois outros antigos
companheiros de cela do desaparecido Valjean.
Longe de sentir-se tranquilo e aliviado, Madeleine andava inquieto, incomodado pela
insistência de Javert em ser demitido...
22
...É muito fácil ser bom, difícil é ser justo! – repetia sempre que tentava fazê-lo
desistir de tal gesto.
Javert se mostrou irredutível. Implacável com os outros, não se sentiria à vontade se,
depois de desconfiar de um superior, continuasse sob suas ordens.
Madeleine estranhou. Passou a se sentir intranquilo com sua presença, os olhos de
falcão, naturalmente desagradáveis, dando a impressão de espreitar-lhe cada gesto,
por menor que fosse, na expectativa de que traísse sua verdadeira identidade. Porém,
algo maior lhe consumia as noites geralmente insones, e devastava-lhe o espírito: sua
consciência.
Pouco depois da notícia que lhe trouxera o policial acerca da prisão de Jean Valjean,
viu-se consumido pelo remorso. Champmathieu, fosse quem fosse, fosse
provavelmente um ladrão, não merecia cumprir uma vida inteira de prisão por crimes
que ele, o verdadeiro Valjean, cometera. Não seria justo nem para ele, nem para o
bispo que anos antes confiara em sua transformação e insistira para que se tornasse
um homem de bem, mas antes de mais nada, para si mesmo. Por outro lado, havia
Fantine, sua filha e a gente da região que dependiam de suas fábricas e de todo
progresso que trouxera para suas vidas.
Um sábio alemão já dissera que se Deus tivesse realmente a intenção de ter no
homem uma criatura feliz não lhe teria dado consciência, e Madeleine concordava.
Amarga verdade. Angustiante hesitação. Medos. Temores. Uma infinidade
desesperadora de sentimentos vagavam por sua mente naquelas noites sem sono e
atormentado pela culpa. Por fim, certa manhã, não mais suportando tanta dúvida e a
mesma quantidade de remorsos, alugou um tílburi e partiu para Arras onde,
acreditava, conseguiria impedir que um inocente pagasse por seus crimes.
Muitos acidentes e dificuldades o surpreenderam na longa e angustiante viagem. Em
mais de uma ocasião acreditou que a mão de Deus lhe indicava o caminho de volta
para casa e para a responsabilidade que tinha com relação à pobre Fantine. Noutras,
no entanto, imbuía-se da certeza de que não havia nada mais justo e correto a se fazer
do que pagar por seus erros.
Novas dificuldades o acompanhariam ao chegar a Arras. Inicialmente não pôde entrar
no tribunal, pois este se encontrava lotado. Apenas a sua condição de prefeito de
Montreuil-sur-Mer abriu-lhe as portas e arranjou-lhe um lugar junto às autoridades.
Acompanhou o julgamento daquele que acreditavam ser ele, o desventurado
Champmathieu. As testemunhas, a começar por Javert – Valjean respirou, aliviado,
ao não encontrá-lo – o identificavam, uma após outra. Não tinha a menor chance de
escapar àquela condenação e a passar o que lhe restasse de vida nas galés em Toulon.
Os remorsos pesaram sobre a alma atormentada de Valjean e de tal maneira que em
dado momento, não mais conseguindo se controlar, levantou-se e insistiu que ele e
não o homem que estava sendo julgado era Jean Valjean. Questionou o testemunho
de três ex-condenados que haviam reconhecido Champmathieu e instalou de tal
maneira a dúvida entre os presentes que conseguiu que o inocentassem, apesar de
23
nenhum dos jurados e muito menos os espectadores terem acreditado que realmente
fosse Valjean.
Saiu precipitadamente de Arras, aqueles instantes de remorso e esclarecimentos o
transformaram num homem inacreditavelmente cansado, os próprios cabelos, de um
momento para o outro, embranquecendo por completo. Retornou para junto de
Fantine, alheio às consequências de seu gesto. Culpou-se um pouco mais ao saber que
Irmã Simplice, a freira a quem incumbira de cuidar dela, fora obrigada a mentir –
algo imperdoável e impensável para aquela religiosa – para mantê-la calma e
tranquila.
– Disse-lhe que o senhor havia partido para trazer-lhea filha de volta – informou,
ainda envergonhada.
Mal tiveram tempo de conversar, pois mal entrou no quarto de Fantine e tentou
explicar-lhe sua ausência – ela ainda acreditava que tivera se ocupado em trazer-lhe
Cosette e crivava-o de perguntas –, foi interrompido pela aparição de Javert.
– Proteja-me, Sr. Madeleine! – suplicou Fantine, horrorizada, ao vê-lo, acreditando
que o policial viera prendê-la.
Madeleine – ou Jean Valjean, como voltaremos a chamá-lo de agora em diante –
dirigiu-lhe um sorriso tranquilizador e encarou o recém-chegado.
– Acalme-se, querida – pediu. – Não se preocupe – insistiu. – O Inspetor Javert não
veio aqui atrás de você...
Fantine, receosa mas ainda mais perplexa, olhou para um e para outro, sem entender
muito bem o que estava acontecendo, ao mesmo tempo que o policial deu mais
alguns passos para dentro do quarto e, sustentando o olhar do prefeito, informou:
– Vamos, depressa!
– Senhor prefeito... – gemeu Fantine.
Um sorriso de medonha satisfação desenhou-se nos lábios de Javert, os olhos
brilhantes fixos em sua figura desamparada e trêmula, ao replicar:
– Não tem mais nenhum senhor prefeito aqui, mulher!
Mais perplexidade nos olhos marejados de lágrimas de Fantine.
Valjean colocou-se entre ela e o policial e suplicou para que ele lhe concedesse
apenas três dias para buscar Cosette e aplacar o coração atormentado de Fantine.
Javert mostrou-se irredutível. Nem pensar.
– Nunca pensei que fosse tão tolo! Quer três dias apenas para fugir! – argumentou.
– Senhor prefeito! – quase gritou Fantine, os olhos enormes, tomados pela mais
absoluta incompreensão. – Minha filha... minha filhinha...
Javert rugiu:
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– Já lhe disse que não existe mais nenhum prefeito aqui, mulher idiota! Esse é Jean
Valjean, um ladrão, um salteador!
Fantine levantou-se da cama num salto, os olhos esquadrinhando tudo à sua volta,
mãos crispadas, a mais completa imagem do desespero e da confusão. Mãos
crispadas, tudo redemoinhando em torno de si, esforçou-se para caminhar, fugir
daquela loucura, das palavras incompreensíveis que pareciam vir de todas as
direções; fugir para correr ao encontro da filha ansiosamente esperada.
– Por favor, querida... – suplicou Irmã Simplice, apressando-se em ampará-la.
Fantine escapou-lhe das mãos e estatelou-se de volta na cama, a cabeça batendo na
cabeceira com força. Morta.
– Você matou essa mulher! – gritou Jean Valjean e rapidamente rumou para uma
segunda cama, uma velha cama de ferro, que ficava em um canto e habitualmente era
usada pelas irmãs que cuidavam dos doentes. Num piscar de olhos, deslocou a
cabeceira e apropriou-se de uma barra de ferro e tornou a olhar para o policial que
recuou para a porta, assustado. – Não o aconselho a me incomodar nesse momento.
Javert, pálido como um morto, sem desviar o olhar de sua figura imponente e,
naquele instante, enfurecida, entreabriu a porta e esperou que Valjean tivesse a
iniciativa para o que quer que tivesse em mente naquele momento. Ele, no entanto,
limitou-se a contemplar o corpo sem vida de Fantine durante certo tempo, inclinando-
se em dado momento e sussurrando-lhe algumas palavras, nada que qualquer um
pudesse ouvir. Em seguida, tomou-lhe a cabeça entre as mãos, ajeitou-a
carinhosamente no travesseiro, amarrando o cordão de sua camisola e colocando os
cabelos para dentro da touca, antes de fechar-lhe os olhos.
Finalmente virou-se para Javert e disse:
– Agora podemos ir.
O policial levou-o para a cadeia da cidade e, como é fácil de se imaginar, a prisão de
Madeleine suscitou tantos comentários quanto observações nem sempre lisonjeiras
sobre o fato de por trás de tal identidade se esconder um foragido da justiça
conhecido como Jean Valjean. Falou-se muito e a maledicência, a inveja e a
ingratidão, ingredientes desagradáveis mas infelizmente presentes na maioria dos
seres humanos, destruiu o bem feito em anos numa fração surpreendente de horas ou
dias. Muitos comentários surgiriam mesmo depois que Valjean fugiu.
Muito foi dito e pouco realmente ficou provado. Conta-se, por exemplo, que antes de
se transformar num fantasma que assombraria Montreuil-sur-Mer por muitos e muitos
anos, o dito Sr. Madeleine, logo depois de sua fuga, retornou ao imponente casarão
que lhe servira de moradia por mais de oito anos. Não se sabe maiores informações
sobre o ocorrido já que, ao ser interrogada pela polícia, representada pelo Inspetor
Javert, Irmã Simplice, que, na companhia de outra freira, velava o corpo da infeliz
Fantine, assegurou que não o vira no casarão, mas dizia-se que, antes de partir,
Madeleine – ou Valjean, como queiram – deixou como prova contra si mesmo a
25
moeda roubada de um menino e suas velhas roupas de preso junto à carta onde
relatava tudo o que ocorrera. Por outro lado, quanto às insinuações de que deixara
dinheiro suficiente para assegurar um enterro decente para Fantine e autorizara que o
restante fosse distribuído entre os pobres, seriam apenas mais alguns boatos, a que se
somariam o desaparecimento dos milhões que guardava no Banco Lafitte ou do
próprio Sr. Madeleine.
26
A
6. COSETTE
notícia apareceria nas páginas do Drapeau Blanc de 25 de julho de 1823 e seria
apenas a notícia da prisão de mais um antigo foragido da justiça se o
personagem, Jean Valjean, não tivesse investido sua fuga e os quase dez anos de
bem-sucedida fuga de cores realmente extraordinárias, únicas. Dizia-se que,
ardilosamente oculto sob a identidade de Madeleine, lograra transformar-se num
bem-sucedido industrial de Montreuil-sur-Mer e, ainda mais extraordinário, no
prefeito daquela cidade. Falava-se finalmente que fora condenado a retornar pelo
resto da vida à prisão em Toulon e finalizava-se com a informação de que o
novamente prisioneiro – a mudança mais significativa, salientava, era que deixara de
ser o prisioneiro de nº 24-601 para se transformar em 9430 – Jean Valjean, antes de
sua captura e julgamento, desaparecera com mais de meio milhão que mantinha numa
conta do banco Lafitte, salientando que tal fortuna fora amealhada muito legítima e
honestamente em seu comércio.
Nada se saberia sobre tão espetacular criatura durante mais ou menos quatro meses
até que outra notícia, desta vez publicada pelo único jornal da cidade de Toulon,
traria a informação de um surpreendente acontecimento ocorrido em meados de
novembro por ocasião da entrada no porto daquela cidade de uma embarcação de
nome Órion com sérias avarias. Numa certa manhã, logo depois de se iniciarem os
últimos reparos, a tripulação estava ocupada em prender as velas quando, de maneira
inesperada e terrível, um dos marinheiros, encarregado de prender a extremidade da
grande vela de estibordo, desequilibrou-se e caiu, ficando preso a um dos cabos
estendidos.
A multidão reunida no Arsenal de Toulon observava a tudo, impotente, incapaz de
fazer qualquer gesto para salvar o infeliz de uma queda vertiginosa e mortal. Foi
nesse instante que, estupefatos, viram um homem subindo agilmente o cordame.
Vestia-se com o vermelho dos prisioneiros das galés locais e usava um boné verde,
que identificava aqueles condenados à prisão perpétua.
As poucas informações obtidas davam conta de que se tratava realmente de um
condenado e que solicitara ao oficial responsável por sua presença a bordo
autorização para tentar resgatar o marinheiro. Obtida e solto da corrente que lhe
prendia o pé, este se alçou mais do que depressa ao vazio e com grande agilidade.
Correndo pela verga, conseguiu atar uma corda ao infeliz e transportá-lo até a gávea,
onde outros marinheiros o resgataram. Palavras entusiasmadas descreviam a reação
da multidão que gritava, assobiava e aplaudia. Gritos de “O perdão! Perdoem a este
homem!” espalharam-se por todos os lados e, segundo o jornal, só emudeceram,
substituídos por expressões de horror e espanto, quando o misterioso herói escorregou
do alto da verga e caiu no mar. O noticiário se encerrava informando que, apesar dos
esforços dos vários homens que se atiraram n’água na tentativa de resgatá-lo, seu
corpo não foi encontrado.
...Pressume-se que tenha ficado preso nas estacas da ponta do Arsenal. Esse homem
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estava inscrito com o número 9.430 e se chamava Jean Valjean, finalizava.
Aquelas notícias, como muitas outras, passaram bem rapidamente pela estalagem dos
Thénardier em Montfermeil, mas, se a ouviu, o estalajadeiro não lhe deu a menor
importância. Velhaco, astucioso como uma raposa e interesseiro feito um cobrador de
impostos, a luta pela sobrevivência o fizera muito cedo adquirir uma certa habilidade
que aos poucos fora dando aspectos de refinada arte, que era entrever uma
oportunidade de lucrar mal seus olhos cruzassem com ela. Bastava uma palavra dita
aqui, solta e quase sem a menor importância, um instante de descuido com esse gesto
ou com aquele olhar, para que se entregasse àquilo que sabia fazer de melhor: lucrar.
Assim fora quando ainda seguia as tropas de Napoleão nos gloriosos cem dias que se
encerraram de maneira sangrenta porém inesquecível nos atoleiros de Waterloo e
onde, passando-se por sargento, dedicou-se a despojar cadáveres de amigos e
inimigos, butim suficiente para adquirir aquela velha estalagem em Montfermeil.
Prosseguira nos anos em que, por trás do balcão e na companhia da esposa, uma
matrona briguenta e grandalhona de péssimo humor, mas que lhe obedecia
cegamente, explorava sem piedade a viajantes que frequentavam seu estabelecimento.
Sempre que tal pensamento lhe passava pela cabeça, quase instintivamente seus olhos
procuravam a pequena Cosette através do ambiente escuro e enfumaçado. Má
lembrança. Péssimo negócio.
Há mais ou menos seis meses, a mãe parara de enviar-lhe dinheiro. O que lhe
parecera promissor e lucrativo quando Fantine passara pela estalagem – e realmente o
fora por mais de um ano, pois a mulher pagava a quantia que ele e a esposa cobraram
para cuidar de sua filha sem um atraso sequer; e se revelara inesperada e
extraordinariamente lucrativo meses antes quando, por mais que pedisse, a mãe
pagava, insistindo apenas que lhe devolvesse a criança –, uma maneira interessante e
duradoura de colocar dinheiro no bolso, transformara-se num logro. O mistério por
trás do súbito silêncio da mãe, algo que o inquietou por certo tempo – teria ela o
denunciado à polícia?, perguntou-se –, ultimamente diagnosticara como simples
desinteresse pelo destino da filha. De um jeito ou de outro, restara-lhe Cosette. Uma
lembrança constrangedora de que nem sempre seu senso atilado de oportunidade
funcionava.
Não se preocupava com a menina. Cosette cabia à sua esposa e ela bem depressa,
assim que Fantine sumiu na distância, a transformara numa criada. Relegara-a aos
cantos da estalagem e aos trapos com que cobria o corpo cada vez mais frágil e
doentio. Destinava-lhe serviços pesados, e o pagamento por qualquer demora ou
insinuação de desobediência – ou que encarasse como tal –, era sempre sob a forma
de pancadas, tapas, empurrões e a temida palmatória.
Como Montfermeil se localizava na parte meridional do planalto que separava o
Ourcq do Marne, a água era escassa, e a tarefa de buscá-la depois de certas horas,
particularmente à noite, quando os homens que o faziam iam para suas casas, era
atribuída a Cosette.
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– Tome essa moeda, sua preguiçosa, e na volta pegue um pão grande com o padeiro –
rugiu a grandalhona Thénardier, irritada e esbaforida, quando a despachou para a
fonte com um grande balde e a tal moeda. Empurrou-a, acrescentando: – Vamos,
vamos. Não vê que a estalagem está cheia de viajantes?
Thénardier, o miúdo porém astucioso estalajadeiro, a viu sair, encolhida, temendo
antecipadamente a grande escuridão que tomava conta dos caminhos que levavam aos
bosques sombrios que rodeavam o lago onde sabia que costumava buscar água.
Sacudiu a cabeça, um risinho zombeteiro preso aos lábios.
Duvidava que Cosette trouxesse muita água. O balde era maior do que ela. Pesava
vazio. Pesaria ainda mais cheio. Mesmo que conseguisse enchê-lo, a maior parte se
transformaria numa trilha líquida porém inútil a umedecer a poeira da estrada e não a
saciar a sede dos hóspedes ou de seus animais. Ao fim e ao cabo, a palmatória
golpearia sem dó nem piedade as mãos corroídas pela frieira da infeliz. Natural,
portanto, que se surpreendesse ao vê-la aparecer no limiar da porta na companhia de
um desconhecido de grande estatura e vestido pobremente que carregava o balde
d’água e um olhar carinhoso para Cosette que não lhe escapou à observação e ao
interesse. Notou principalmente que assim que viu sua esposa, a menina tomou-lhe o
balde da mão e o conduziu para dentro da estalagem, o desconhecido bem em seus
calcanhares.
– Esse senhor quer se hospedar, senhora – informou ela, trêmula, as duas mãos
apertando com força e receio a alça metálica do balde, completamente encoberta pela
sombra ameaçadora da temível estalajadeira.
A enorme mulher mediu-o dos pés à cabeça com os olhos, o desprezo no brilho opaco
dos olhos oblíquos, quase fechados pelas dobras de gordura, substituído por uma
expressão francamente hostil tanto para um quanto para outro.
– Não temos lugar! – trovejou, após o marido sinalizar negativamente com o
indicador, os lábios repuxados de modo depreciativo.
– Posso ficar em qualquer lugar. No sótão, na estrebaria. Pagarei como se fosse um
quarto...
Ela cobrou-lhe o dobro de um quarto. Ele aceitou e sentou-se à uma mesa nos fundos
da estalagem. Cosette colocou uma garrafa de vinho e um copo à sua frente e
desapareceu debaixo de uma mesa próxima, ao alcance de seu olhar.
Apesar de o recém-chegado esforçar-se para aparentar indiferença, Thénardier notou
que sua atenção acompanharia a menina onde estivesse e no que fizesse ou sofresse.
Quando suas filhas apareceram e se puseram a brincar com uma boneca, notou o
interesse de Cosette pelo brinquedo. Interesse crescente e, por fim, irresistível, que a
levou a pegá-la num momento de distração das filhas e brincar debaixo da mesa até
ser descoberta. Coube a ele impedir que sua esposa a espancasse com a palmatória
como tentara fazê-lo ao descobrir que a menina não trouxera o pão encomendado –
ele chegou a dar-lhe uma moeda de valor maior do que aquela que dera a Cosette para
comprar o pão e que a menina perdera na viagem de volta na companhia do homem e
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do balde d’água.
Espanto geral. Sem nada dizer ou sequer alterar a voz, ele levantou-se e saiu; apenas
para retornar carregando uma boneca linda, um brinquedo cobiçado tanto por Cosette
como por cada menina, a começar pelas filhas dos Thénardier, que a tinham visto
numa das barracas da feira que tomara conta da rua em frente à estalagem naqueles
dias próximos ao Natal. Brinquedo caro que o desconhecido comprou e deu para
Cosette. Um gesto carinhoso que se repetiria ao longo da noite e particularmente
sempre que a estalajadeira se dispunha a maltratar Cosette.
Apesar dos protestos da esposa, a Thénardier pouco importava o que aquele homem
fazia ou deixava de fazer por Cosette.
– Ele tem dinheiro – observou. – Se quer gastá-lo com mimos a menina, que me
importa?
Por isso e por nenhuma outra razão, quando o homem quis saber o caminho para a
estrebaria, apressou-se em lhe conseguir um amplo e arejado quarto pelo qual, no dia
seguinte, lhe cobraria quase trinta francos.
– Ele não vai se importar já que gastou o mesmo naquela boneca – assegurou, cheio
de si. Dito e feito e mais um pouco: quando a mulher retornou, lhe garantindo que o
desconhecido concordara em lhe pagar o valor cobrado sem reclamações e ainda se
oferecia para livrá-los do fardo representado por Cosette, levando-a consigo,
Thénardier, grande observador e conhecedor da alma humana, exultou. Era o que o
homem queria desde o início: a menina.
Por que razão, quais seriam as suas intenções, pouco importava.
Raciocínio de estalajadeiro, importava apenas o dinheiro e houvesse muito, o que
acreditava ser mais do que uma certeza apesar do aspecto humilde, quase miserável,
do desconhecido, ele a venderia por bom preço. Na verdade, pelo valor de uma dívida
que o perseguia há tempos e para a qual não tinha dinheiro para pagar. Mil e
quinhentosfrancos. Era o valor da dívida e foi o que conseguiu tirar de seu hóspede
depois de longa negociação.
Mal conteve sua excitação ao ver o desconhecido tirar de um dos bolsos uma velha
carteira de couro preto, abri-la e tirar três notas que pôs em cima da mesa. Teve
ímpetos de lançar-se sobre elas e imaginou que ele tivesse percebido, pois as prendeu
sob o polegar e, olhando-o fixamente, pediu:
– Mande vir Cosette.
Tudo aconteceu depressa demais em seguida. O taverneiro mandou que a esposa
trouxesse a menina e esforçou-se o máximo possível para que o desconhecido não
percebesse que a confinava debaixo de um desvão triangular debaixo da escada que
levava aos quartos – um verdadeiro antro que a criança dividia com um monte
empoeirado e coberto de teias de aranha, de cestos e trastes velhos. Algo inútil, pois
na noite anterior, logo depois que fora deixado num dos quartos, o misterioso
benfeitor de Cosette a procurara e a encontrara naquele recanto miserável, dando-se
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ao trabalho inclusive de colocar uma moeda de ouro no tamanco que ela deixara à
espera de algum presente de Natal.
Mesmo contrariada, a rabugenta Thénardier limitou-se a obedecer ao marido. O casal
entreolhou-se, intrigado, quando o homem desatou o pacote que trazia consigo e dele
retirou um vestido de lã, um avental, uma blusa de fustão, uma saia, um lenço para o
pescoço, meias de lã, sapato, um vestuário completo para uma menina de sete anos.
Tudo de cor preta.
– Pegue isso e vá se vestir bem depressa, minha menina – pediu ele.
A Senhora Thénardier, criatura truculenta e pouco afeita a profundidades de reflexão
e pensamento, confiava na perspicácia e tino comercial do marido. Não se envolvia
em suas negociações e aceitava as decisões que tomava, fossem quais fossem elas.
Todavia, ao ver a menina deixar a estalagem na companhia do desconhecido, e pior,
distanciar-se através das ruas ainda sonolentas de Montfermeil, não se conteve e
resmungou:
– Então é isso?
O senhor Thénardier a encarou e exibiu as três notas, informando:
– Mil e quinhentos francos, mulher!
– Só isso?
– Como só isso? São mil e quinh...– calou-se como se tivesse recebido um golpe dos
mais violentos ou percebido a verdadeira extensão de um erro. Soltou um palavrão e
resmungou: – Fui um imbecil!
Apanhou o chapéu e precipitou-se na direção da porta. Rumou no encalço do
desconhecido, sentindo o olhar silencioso porém abrasador da condenação silenciosa
contida na figura carrancuda da mulher. Ela estava coberta de razão, pois se aquele
homem lhe pagara tão rapidamente o dinheiro que pedira pela menina, seguramente
pagaria o dobro, o triplo, quanto pedisse. Pedira pouco e o grande negócio que
acreditava ter feito numa fração atordoante de segundos se transformara num logro
perpetrado contra si mesmo.
Correu. Precisava alcançá-los. Desfazer o negócio e propor um outro bem mais caro e
consequentemente mais vultuso. Enveredou por estradas a leste e ao sul. Rumou para
vários caminhos ao norte. Pensou tê-los visto a oeste, mas foi encontrá-los no
caminho para Chelles. Interpelou-os, insistiu em devolver os mil e quinhentos francos
e levar Cosette de volta à Montfermeil. Ao ver o desconhecido levantar-se e remexer
na carteira, um tremor de incontrolável entusiasmo sacudiu seu corpo. Acreditou que
ele lhe daria mais dinheiro, o quanto pedisse, para conservar a menina. Espantou-se
quando o viu retirar um pedaço de papel e, depois de desdobrá-lo, oferecê-lo para si.
Apanhou-o e leu:
Montreuil-sur-Mer, 25 de março de 1823
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Senhor Thénardier,
Entregue Cosette ao portador desta. Todas as pequenas despesas lhe serão
pagas.
Tenho a honra de saudá-lo com toda a consideração.
Fantine
Reconheceu a assinatura. Era realmente de Fantine.
Ainda quis argumentar. Surrupiar mais alguns francos com artimanhas e alegações,
mas o desconhecido foi irredutível. Simplesmente estendeu a mão para a menina e
disse:
– Venha, Cosette!
Ela agarrou-se à sua mão esquerda enquanto ele, o olhar ameaçador e enviezado fixo
no taverneiro, apanhava seu cajado no chão com a direita, sopesando-o por um
instante, ameaçador.
– Estou lhe deixando mil e quinhentos francos, homem – grunhiu. – Contente-se com
eles e nos deixe em paz!
Partiram.
Thénardier ainda insistiu em segui-los por certo tempo, esgueirando-se pela mata e
procurando escapar àquele olhar que o atemorizava. Inútil. Por mais que tentasse,
seus olhares sempre se cruzavam e em certa ocasião, uma chispa de ódio fê-lo recuar.
Pensou na figura corpulenta e silenciosa do desconhecido. As mãos enormes que se
fechavam com tanta força em torno do cajado que seus dedos apresentavam uma
brancura cadavérica. O próprio cajado exibido como arma poderosa e mortífera aqui e
ali. Por fim, parou, deu meia-volta e contentou-se com o que havia amealhado
algumas horas antes.
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E
7. DILEMAS E ESTRATAGEMAS
le não falava muito. Pela carta que entregara a Thénardier, imaginou que fosse
amigo de sua mãe. Na verdade, o medo e o sofrimento entre os Thénardier era
tão grande que o simples fato de ele a ter livrado daquela gente já era motivo
suficiente para acompanhá-lo sem maiores perguntas ou indagações. Esperou que ele
lhe falasse sobre si mesmo ou em que circunstâncias conhecera sua mãe quando bem
lhe interessasse.
Seu nome era Jean Valjean, saberia bem mais tarde. Entretanto, toda a extensão de
sua existência e as muitas peripécias que a povoaram até o momento em que se
encontraram na estalagem em Montfermeil lhe seriam inteiramente desconhecida até
muitos anos após aquele acontecimento. Nunca, por exemplo, saberia daqueles anos
em sua vida em que fora conhecido como Sr. Madeleine e chegara a ser um industrial
de sucesso e um prefeito dos mais estimados. Muito menos, que por ocasião de sua
primeira fuga, logo após a morte de Fantine, Valjean passara alguns dias fora do
alcance da lei. Tal período, sobre o qual pouco se sabia e ele jamais falara com
qualquer pessoa, nem quando interrogado durante seu julgamento, usara-o para retirar
todo o dinheiro que depositara durante anos no banco Laffitte e escondê-lo nas
imediações de Montfermeil antes de ser preso (a respeito do fato, durante certo
tempo, um certo Boulatruelle, antigo condenado que trabalhava na manutenção de
estradas naquela região, espalhou um boato de que o próprio Diabo escolhera a
floresta que rodeava a cidade para esconder os tesouros que amealhara há mais de
dois ou três séculos, garantindo que ele mesmo o vira. O próprio Thénardier chegou a
acreditar no que dizia e pensara seriamente em usá-lo como guia para alcançar tão
formidável fortuna). Esperaria quase seis meses antes do incidente no navio Órion
para permitir-lhe simular a própria morte.
Não caíra do alto da embarcação e muito menos morrera. Logo que desapareceu nas
águas escuras do porto de Toulon, escondeu-se e somente abandonou o esconderijo à
noite. Numa taverna que costumeiramente ajudava presos a fugir das galés, conseguiu
roupas que lhe permitiram transitar pela cidade e embarcar numa tortuosa marcha
através de incontáveis caminhos até alcançar Paris. A notícia de seu desaparecimento
e morte, lida num jornal da capital francesa, o deixou aliviado. Ninguém o procurava.
Para todos, Jean Valjean não existia mais. Muito menos o prisioneiro 9.430, morto
heroicamente no Arsenal do porto de Toulon.
Sem tempo a perder, comprou roupas de luto para uma criança entre os seis ou sete
anos, para uma meni- na, e arranjou um lugar numa carruagem que o dei- xou em
Montfermeil. Cumprida a promessa feita a Fantine de livrar a pequena Cosette do
inferno em que vivia na estalagem dos Thénardier, naquela mesma noite retornava a
Paris e hospedou-se em sua compa- nhia num velho casarão nas imediações do bairro
de Marche-aux-Chevaux.
Era um casebre de aspecto miserável que a gente do lugar conhecia como casa
Gorbeau, nome de seu primeiro proprietário. Outra criança certamente se assustaria e
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talvez se recusasse a entrar em construção tão velha e abandonada, mas para Cosette
o simples fato de estar livre e feliz na companhia deCatherine – nome que dera a
linda boneca que seu misterioso salvador lhe presen- teara ainda na estalagem dos
Thénardier – já era suficiente para ignorar-lhe o aspecto medonho.
Apenas uma velha senhora residia no casarão e fora ela que alugara o quarto que
passaram a dividir. Valjean apresentou-se a ela como alguém que vivia de rendas e
que, arruinado por maus negócios feitos na mocidade, pretendia naquele endereço
residir com a filha pequena. Pagou seis meses adiantados e a incumbiu de mobiliar da
melhor maneira possível o ambiente em que passariam as primeiras semanas na mais
completa felicidade.
Cauteloso, Valjean pouco saía, e quando o fazia era pelo entardecer, quando a noite
se aproximava e as ruas e as praças do lugar forneciam proteção garantida contra os
olhares de curiosos de toda espécie. O dilema de ser um foragido, mesmo que muitos
o considerassem morto, era não estar permanentemente tranquilo, ter o sono inquieto
e ver um inimigo por trás até mesmo de um simples sorriso ou cumprimento. Aos
poucos, nem os muitos expedientes e os estratagemas imaginados para burlar
qualquer curiosidade mais incomum seriam suficientes para escapar ao maior
interesse de sua locatária e de um mendigo que costumava presentear com algumas
moedas sempre que visitava a igreja de Saint-Médard – apesar de saber que muitos o
identificavam como um antigo policial. Sobressalto ainda maior teria ao descobrir
que havia mais alguém no velho casarão, outro inquilino, que numa certa manhã
identificaria como Javert.
– Venha – foi a única coisa que conseguiu dizer a Cosette ao acordá-la e gesticular
para que não fizesse barulho, antes de fugir o mais depressa possível.
Como ele descobrira-o ali? E mais, como soubera que estava vivo?
Não fazia ideia. E naquele momento a única coisa que importava era estar o mais
distante possível dele e dos outros policiais que certamente o acompanhavam. Inútil
esgueirar-se sem que notassem, pois descuidara-se e na fuga deixara cair uma moeda.
O barulho atraíra-os como um bando de lobos famintos lançando-se ferozmente no
encalço de uma presa indefesa.
Ziguezagueou de um lado para o outro. Era vigiado. Perseguido a certa distância mas
de maneira tenaz e obstinada. Viu Javert. Os outros policiais. Via-os não importa em
que direção corresse, a menina, alheia a tudo, abraçada a sua boneca, acompanhando-
o mas, ao mesmo tempo, obrigando-o a andar mais devagar ou, como o fizera em
mais de uma ocasião, forçando-o a carregá-la.
Sem entender muito bem o que acontecia, Cosette quis saber de quem fugiam.
Valjean pensou em mencionar a polícia. O nome de Javert passou-lhe pela cabeça em
meio a uma praga. Desistiu. Não significaria nada para ela e, pior, aumentaria a
confusão mental em que se encontrava. Encontrou uma solução mais simples mas
extremamente eficaz:
– É a senhora Thénardier. Ela veio buscá-la!
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O frágil corpinho de Cosette experimentou um estremecimento de enorme pavor e,
angustiada, ela agarrou-se à mão direita que Valjean lhe ofereceu protetoramente.
Encurralado, enveredaram por um beco que os levou até a um muro de mais de cinco
metros de altura e que separava um prédio de aspecto sombrio do emaranhado de
becos e ruas escuras daquela parte de Paris. Os passos e vozes, se misturando na
distância cada vez menor, alertaram-no. Javert aproximava-se. Sob outras
circunstâncias, escapar não seria um grande problema para Valjean. Galgaria o muro
e estaria no outro lado antes que qualquer um de seus perseguidores percebesse. Mas
agora havia Cosette e de maneira alguma a deixaria para trás.
O que fazer?
Naquele instante, no auge do desespero, os olhos indo de um lado para o outro,
avistou um dos postes de iluminação.
Naqueles tempos ainda inexistia a luz a gás nas ruas parisienses. Assim que
começava a escurecer, alguns homens eram encarregados de acender os lampiões
colocados a uma determinada distância um do outro. Valiam-se de uma corda que
atravessava a rua de um lado para outro, presa na ranhura de um dos postes, para
subi-los e descê-los. A carretilha em que se enrolava era chumbada por baixo do
lampião, em compartimento de ferro cuja chave era guardada pelo encarregado de
acendê-lo. Um tubo de metal fornecia mais uma proteção para a corda.
Valjean não deteve o olhar sobre ela mais do que por um segundo e ágil e
desesperadamente atravessou a rua. Entrou no beco e, após soltar a lingueta do
compartimento com a ponta do canivete, apossou-se da corda.
Valendo-se da escuridão, já que naquele ponto os lampiões ainda não haviam sido
acesos, retirou sua gravata, passou-a em volta do corpo de Cosette por baixo dos
braços, e atou a gravata à ponta da corda. Segurando a outra ponta entre os dentes,
tirou os sapatos e as meias, lançando-os por cima do muro. Por fim escalou o muro
com a coragem e a ousadia temerária dos desesperados. Escarranchou-se e num fio de
voz olhou para a menina, pedindo:
– Encoste no muro.
Foi obedecido.
No momento seguinte, cuidadosa e delicadamente, alçou-a para cima, abraçando-a e
descendo para um jardim às escuras. Ali ficaram escondidos durante certo tempo.
Esquadrinharam a grande extensão arborizada até se deterem num velho barracão
cujo telhado lhe servira para que descesse. Depois de calçar os sapatos, esconderam-
se dentro dele. Olhos inquietos, os corpos tiritando de frio e de medo, aconchegaram-
se um no outro e passaram o resto da noite ouvindo o rumor de Javert e seus homens
vindo do outro lado do muro, certamente ainda procurando-os, e misteriosos cânticos
que davam a impressão de desprender-se da escuridão da noite, provenientes da
construção fantasmagórica que apenas pela manhã os dois descobririam se tratar do
Convento de Petit-Picpus.
35
E
8. SUSPEITA
m dezembro de 1823, enquanto lia um jornal, Javert teve a atenção atraída por
uma pequena notícia na parte inferior de uma página, dando conta da morte de
Jean Valjean. Não deu maior importância ao fato e até mesmo o esqueceu.
Lembrar-se para quê? Com que objetivo? A troco de quê?
Estava morto.
Algum tempo depois, entretanto, tal convicção começaria a ser abalada por uma nota
transmitida pelo departamento de polícia de Seine-et-Loise ao de Paris, informando
sobre o rapto de uma criança ocorrido no vilarejo de Montfermeil. Uma menina de
sete ou oito anos, acrescentava a nota, que fora confiada pela mãe a um estalajadeiro
local. Javert interessou-se sem saber exatamente por quê. Talvez tenha sido por conta
do nome da menina, Cosette, mas muito provavelmente tenha sido pelo nome da mãe:
Fantine. A nota finalizava que a mãe falecera num hospital, mas não informava onde
nem quando e muito menos sob que circunstâncias. De qualquer forma o policial
ficou com aquela notícia redemoinhando por sua cabeça, esgueirando-se
insidiosamente por seus pensamentos.
Fantine. O nome não lhe era estranho. Sem quê nem porquê associou-o a Valjean.
Recordou-se de que ele, quando ainda o conhecia por Madeleine, lhe pedira três dias
para sair em busca da filha de uma mulher de nome Fantine. Fantine que morreu
naquele mesmo dia ao saber que ele seria preso. Fantine que tinha uma filha que
atendia pelo nome de Cosette e que o condenado, ainda prefeito da cidade, se
comprometera a ir buscar. Lembrou que Valjean fora preso quando se preparava para
embarcar numa diligência para Montfermeil. Segundo sabia, não seria a primeira vez
que ele se dirigia àquele lugarejo e ninguém soubera dizer o que fizera enquanto
estivera por lá.
O coração de Javert bateu mais forte. Sabia o que tanto lhe interessava em
Montfermeil. A filha de Fantine vivia lá. Muito provavelmente era a menina que
naquele instante se sabia desaparecida, raptada.
Uma ideia absurda lhe passara pela cabeça.
Teria Jean Valjean levado a criança?
Absurdo.
Como poderia se estava morto?
Estava?
Javert embarcou na primeira carruagem que encontrou e partiu para Montfermeil,
onde um Thénardier extremamente reticente e nervoso tentou minimizar sua própria
queixa (passada a raiva e irritação com o gesto de Valjean, o estalajadeiro começou a
raciocinar

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