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Papa Francisco_ A vida e os desafios - Saverio Gaeta

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Sumário
INTRODUÇÃO
A biografia
O pensamento
Os desafios
Apêndice
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P
INTRODUÇÃO
A PROFECIA DE UMA RENÚNCIA
or volta das 19 horas de quarta-feira, 13 de março, na Capela Sistina
ressoou uma vez mais o tradicional “Accepto”: a fórmula mediante a qual
aquele que até o momento era o cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo
de Buenos Aires (Argentina), acolheu a vontade manifestada pelos
coirmãos, que acabavam de elegê-lo como novo Papa.
Iniciou-se assim o 266° pontificado da história. O mais inesperado, e ao mesmo
tempo aquele que abre cenários inéditos e põe na mesa questionamentos em parte
ainda não definitivamente solucionados.
O noticiário das últimas semanas, às portas de se tornar história, ainda está vivo
nos olhos e no coração de centenas de milhões de pessoas. Não somente católicos ou
cristãos, visto que a voz do Pontífice, que de Roma se expande até os extremos
confins da terra, é sólido baluarte de valores e um significativo apelo também para
muitos que não compartilham o caminho de fé.
Por isso, o anúncio de Bento XVI durante o Concistório ordinário público para a
canonização de alguns beatos, há tempo programado para o dia 11 de fevereiro
passado no Palácio Apostólico Vaticano, não foi “um raio em pleno céu sereno” –
como o definiu o decano do Colégio cardinalício Angelo Sodano – somente para as
poucas dezenas de pessoas presentes à cerimônia. Num par de segundos a notícia deu
a volta no mundo e desencadeou uma avalanche de opiniões em todos os níveis.
De acordo com os especialistas em Direito Canônico, pela primeira vez foi
plenamente aplicada a norma que todavia sempre fez parte do corpus jurídico da
Igreja. O Código de 1983, no segundo parágrafo do cânone 332, a propõe da seguinte
forma: “No caso que o Romano Pontífice renuncie ao seu ofício, exige-se para a
validade que a renúncia seja feita livremente e que seja devidamente manifestada, não
se exige porém que alguém a aceite”.
E com efeito Bento XVI usou justamente esses conceitos em seu discurso: “Bem
consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro renunciar ao
ministério de bispo de Roma, sucessor de são Pedro, a mim confiado pelas mãos dos
cardeais no dia 19 de abril de 2005, de forma que, a partir de 28 de fevereiro de 2013,
às 20 horas, a sede de Roma, a sede de são Pedro, estará vacante”. A partir deste
último momento, Joseph Ratzinger tornou-se formalmente o primeiro “Papa emérito”
da história.
Como explicação do seu gesto, uma sintética confidência: “Após haver
repetidamente examinado minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que
as minhas forças, dada a idade avançada, não são mais aptas para exercer de forma
adequada o ministério petrino. Estou muito consciente de que este ministério, pela
sua essência espiritual, deve ser realizado não somente com as obras e as palavras,
mas não menos sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas
mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para
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governar a barca de são Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor
tanto do corpo quanto do ânimo, vigor que, nos últimos meses, em mim diminuiu de
tal forma a ponto de ter que reconhecer a minha incapacidade em administrar bem o
ministério a mim confiado”.
Para documentar quão essa decisão fosse conhecida por pouquíssimos, é
sintomática a ausência na sala do Concistório de vários cardeais que haviam preferido
dar sequência aos seus compromissos de trabalho em vez de participar de um
encontro que, embora significativo (reconhecia-se a santidade de alguns beatos, entre
os quais os mártires de Otranto), parecia de qualquer modo rotineiro. Entre os poucos
que estavam a par, além do secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertone, e do
secretário particular, Georg Gänswein, havia o decano Angelo Sodano (que fora
informado somente no dia anterior), o cardeal Gianfranco Ravasi (chamado a pregar
os exercícios espirituais de Quaresma na semana sucessiva) e, parece, o cardeal Marc
Ouellet, recebido como de costume na tarde de sábado, dia 9, na condição de prefeito
da Congregação para os bispos.
A decisão de Bento XVI foi sofrida e não abafou a própria luta interior. No
Angelus de 17 de fevereiro, comentando as tentações de Jesus no deserto, fez
compreender que tivera dúvidas de que essa renúncia pudesse ser uma tentação à qual
ele próprio estava sendo submetido: “Nas tentações está em jogo a fé, porque Deus
está em jogo. Nos momentos decisivos da vida, mas, olhando bem, a todo momento,
estamos diante de uma encruzilhada: queremos seguir o eu ou Deus? O interesse
individual ou o verdadeiro Bem, aquilo que realmente é bem?”
E na Audiência geral de 27 de fevereiro explicou: “Nestes últimos meses percebi
que minhas forças haviam diminuído, e pedi a Deus com insistência, na oração, que
me iluminasse com sua luz para fazer-me tomar a decisão mais justa não para o meu
bem, mas para o bem da Igreja. Dei esse passo plenamente consciente da sua
gravidade e também de sua novidade, mas com profunda serenidade de ânimo. Amar
a Igreja significa também ter a coragem de fazer escolhas difíceis, sofridas, tendo
sempre à frente o bem da Igreja e não a si próprios”.
Provavelmente essa iluminação não teve conotações sobrenaturais nem as
características de revelação mística. Mas, do mesmo modo provável, deve ter
acontecido numa absoluta certeza interior, uma espécie de sigilo divino, referente à
bondade de sua iniciativa. Caso contrário, não se explicariam as fortes expressões no
Angelus de 24 de fevereiro: “O Senhor me chama para ‘subir à montanha’, a dedicar-
me ainda mais à oração e à meditação. Mas isto não significa abandonar a Igreja, pelo
contrário, se Deus me pede isto é justamente para que eu possa continuar servindo-a
com a mesma dedicação e o mesmo amor com o qual procurei fazê-lo até agora, mas
de modo mais adequado à minha idade e às minhas forças”. E outras palavras da
Audiência de 27 de fevereiro: “Não abandono a cruz, mas fico de modo novo junto ao
Senhor crucificado”.
Para alguém tingiu-se com tom profético a referência à montanha e à cruz
(juntamente com o anúncio feito na festa de Nossa Senhora de Lurdes e no final da
proclamação de novos santos mártires), relendo as palavras da terceira parte do
terceiro segredo de Fátima, onde irmã Lúcia conta ter visto “um bispo vestido de
branco (tivemos o pressentimento de que fosse o Santo Padre) [...] subir uma
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montanha íngreme, no topo da qual havia uma grande cruz de troncos brutos como se
fosse uma corticeira com a casca; o Santo Padre, antes de chegar lá, atravessou uma
grande cidade em meio a ruínas e meio trêmulo com passo vacilante, afligido de dor e
de pena, rezava pelas almas dos cadáveres que encontrava em seu caminho; chegado
ao topo da montanha, prostrado de joelhos aos pés da grande cruz, foi morto por um
grupo de soldados que dispararam vários tiros de arma de fogo e flechas. [...] Sob os
dois braços da cruz havia dois anjos, cada qual com um regador de cristal na mão, nos
quais recolhiam o sangue dos mártires e com ele regavam as almas que se
aproximavam de Deus”.
Ao passo que para outro adquiriu valor de prenúncio aquilo que aconteceu em
abril de 2009, durante a sua visita à cidade de Áquila, poucos dias após o devastador
terremoto de 6 de abril. Com efeito, durante as homenagens aos restos mortais de
Celestino V, na basílica de Collemaggio, o papa Ratzinger tirou o pálio pontifício, a
faixa de lã branca de formato circular que indica o poder do Bom pastor, e o
depositou sobre a urna do santo pontífice passado à história por causa da “grande
recusa” feita no dia 13 de dezembro de 1294, após pouco mais de cem dias de
reinado.
A síntese mais intensa desses seus quase oito anos de pontificado Bento XVI a
propôs durante a última Audiência Geral, referindo-se sobretudo ao momento em que
aceitou assumir o ministério petrino: “As palavras que ecoaram em meu coração
foram: Senhor, por que me pedes isto e o quê me pedes? Aquilo que me pões nos
ombros é um peso grande, mas se tu o pedesa mim, na tua palavra lançarei as redes,
certo de que tu me guiarás, apesar de todas as minhas fraquezas. E oito anos depois
posso dizer que o Senhor me guiou, esteve perto de mim, pude perceber
cotidianamente a sua presença”.
Portanto, prosseguiu: “Foi um trecho de caminho da Igreja que teve momentos de
alegria e de luz, mas também momentos não fáceis; eu me senti como são Pedro com
os apóstolos na barca no lago da Galileia: o Senhor nos concedeu muitos dias de sol e
de brisa suave, dias nos quais a pesca foi abundante; houve também momentos em
que as águas estavam revoltas e o vento era contrário, como em toda a história da
Igreja, e o Senhor dava a impressão de dormir. Mas eu sempre soube que naquela
barca há o Senhor e sempre soube que a barca da Igreja não é minha, não é nossa,
mas é dele. E o Senhor não a deixa afundar; é ele quem a conduz, certamente também
mediante os homens que escolheu, porque assim quis. Esta tem sido e é uma certeza,
que nada pode ofuscar”.
As últimas palavras de despedida, pronunciadas no balcão central do Palácio
apostólico de Castel Gandolfo encarnam inteiramente a sua profunda humildade:
“Sou simplesmente um peregrino que inicia a última etapa da sua peregrinação nesta
terra”. Mas representam também um viático para o sucessor, que na sua difícil missão
poderá contar com a intercessão no céu do beato João Paulo II e na terra com o
patrocínio da oração de Bento XVI.
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B
A BIOGRAFIA
UMA VIDA SEGUNDO OS PLANOS DE DEUS
Uma família de imigrantes
ricco Marmorito, distrito de Portacomaro Stazione, algumas centenas de
habitantes, dez quilômetros ao norte da principal cidade, Asti, no
Piemonte. Aqui estão as raízes familiares paternas de papa Francisco.
Estamos no baixo Monferrato, terra de vinhos famosos, mas que nos
inícios do século XX infelizmente não tinha condições de matar a fome
de todos os seus filhos. “Emigro para comer” havia sido a frase de um camponês
usada por Edmondo De Amicis, no livro Sull’oceano de 1889, para sintetizar
eficazmente a dramática realidade da migração italiana rumo à América Latina.
Uma vez mais, em janeiro de 1929, a fatigante travessia oceânica depositou no
porto de Buenos Aires a enésima família à procura de vida mais digna. Não que a
família Bergoglio estivesse exatamente na miséria: possuíam uma casa e
administravam uma padaria. Mas o pedido dos parentes que já se encontravam na
Argentina ecoara com força, e prevalecera o desejo de reatar as relações.
A partida da Itália se deu em pleno inverno, mas, no lado oposto da terra, no
hemisfério sul, estávamos em pleno verão. O capote com o pescoço de pele que vovó
Rosa Margherita Vasallo vestia resultava decisivamente excêntrico. Porém, nenhuma
tentação de tirá-lo: no bolso interno da veste escondia-se todo o dinheiro que ela e o
marido Giovanni Angelo haviam juntado para enfrentar o mundo desconhecido que
os esperava na Argentina e o jovem filho de vinte e quatro anos Mario Giuseppe
Francesco, o pai do futuro Pontífice.
Já em 1922, três irmãos de Giovanni Angelo haviam-se transferido para Buenos
Aires e iniciado uma empresa de pavimentação de estradas. O edifício em que
habitavam havia sido construído por eles próprios. Quatro andares, um para cada
irmão, e o primeiro elevador da cidade: um espetáculo que atraía a curiosidade de
quem passava por lá. Mas a crise econômica de 1929-1932 foi devastadora também
para eles, obrigando-os a encerrar as atividades. Algum tempo depois, Giovanni
Angelo, que era contador e era encarregado da administração, abriu uma loja junto
com um dos irmãos, para em seguida deslocar-se a trabalhar em outra empresa.
Em 1934, Mario Giuseppe Francesco e a futura esposa, Regina María Sívori (filha
de um argentino e de um piemontês), se conheceram no oratório salesiano de Santo
Antonio, no bairro Almagro, onde ambos iam à missa. No dia 12 de dezembro de
1935 se casaram e aos 17 de dezembro de 1936 nasceu Jorge Mario, o primeiro de
outros quatro irmãos: os homens Alberto Horacio e Oscar Adrián, as mulheres Marta
Regina e María Elena (a única ainda viva).
Entre as paredes do apartamento no bairro Flores, na região centro-ocidental de
Buenos Aires, se conservava o prazer de falar o dialeto piemontês, que o pequeno
Jorge Mario assimilou junto com o doce idioma espanhol. Especialmente vovó Rosa
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Margherita esteve com ele nos primeiros anos de sua vida, quando os pais estavam
ocupados em outras atividades, e por essa razão ainda agora é citada por ele como a
pessoa que mais habita seu coração.
Entre os conteúdos transmitidos de memória, o canto Rassa nostrana, do poeta
turinês Nino Costa, que também papa Francisco ainda hoje consegue recitar. Um
texto que se encerra com a consciência do duro destino dos emigrantes: “Ma el pi dle
volte na stagiun perdüa / o na frev o un malör del so mesté / a j’incioda ant na tumba
patanüa / spersa ant un camp-sant foresté” (Mas na maioria das vezes uma estação
perdida / ou uma febre ou uma doença associada ao seu mister / o prega dentro de
uma nua tumba / perdida num campo santo estrangeiro).
A memória das raízes
De passagem na Itália para o Conclave de 2005, conseguirá visitar aqueles lugares
de origem. E em 2010 confidenciará: “Senti-me como em minha casa, falando em
piemontês. Conheci um irmão do meu avô, meus tios e meus primos. A mais idosa
dentre as minhas primas tem 78 anos e, quando vou visitá-la, tenho a impressão de ter
vivido sempre aí. Ajudo-a nos trabalhos de casa, ponho a mesa...”.
Esta última, Giuseppina Ravedone, contou que o irmão do arcebispo Bergoglio
havia reservado um hotel de luxo no centro de Turim: mas Jorge Mario “não estava
de modo algum contente, continuava dizendo que num lugar como aquele não podia
dormir. Não era o lugar dele, embora o irmão tivesse pago a conta. De qualquer
modo, a partir daquela visita, toda vez que vinha aqui visitar meu marido, e nos
últimos anos a mim e a outros parentes, hospedava-se na casa de outra prima, Carla,
que tinha uma casa grande e que podia oferecer-lhe um quarto”.
Nas suas recordações de criança, os jogos de bisca com o pai, as tardes de sábado
diante do rádio com a mãe escutando as obras líricas, aos domingos com toda a
família no estádio do San Lorenzo, o time de futebol fundado em 1908 pelo salesiano
Lorenzo Massa (na adolescência, além do futebol, jogará também basquete).
Por essa razão, revelou, “uma das coisas que pergunto sempre aos jovens pais, em
confissão, é se jogam com seus filhos”. A seguir, voltando da escola, uma mão na
cozinha. Após o quinto parto, com efeito, sua mãe ficou com as pernas paralisadas.
Assim, ela preparava os ingredientes e os organizava sobre a mesa, enquanto os filhos
seguiam as suas instruções para combiná-los e cozinhá-los. Um ensinamento útil
também para o futuro, quando Jorge Mario será reitor e bispo, para virar-se sozinho.
De 1943 a 1948, Jorge Mario frequentou a escola elementar Antonio Cerviño,
onde agora se conservam os registros que atestam os resultados dos seus estudos:
“Obteve sempre o suficiente nas diversas matérias previstas pelo programa:
aritmética, geometria, história, geografia e desenho. Mas naquele tempo não havia
notas, os alunos eram somente suficientes ou insuficientes”, explicou a atual diretora,
Efe Roxana Domínguez.
De Amalia Damonte, uma amiguinha de quando tinham cerca de doze anos,
chegou uma graciosa notícia. Certo dia, Jorge Mario lhe entregou uma folha de papel
na qual desenhara uma casinha branca com o teto vermelho, dizendo-lhe: “Esta é a
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casa que comprarei quando nos casarmos”. Em seguida, acrescentou: “Se você não
me disser sim, vou ser padre”. Porém ela não lhe respondeu e, mais ainda, quando
aquele desenho acabou nas mãos da mãe, os seus pais a proibiram de tornar a vê-lo.
Acabado o ciclo elementar e iniciada a escola secundária, por volta dos 13 anos de
idade, o pai lhe propôs fazer algum pequeno trabalho na fábrica têxtil onde ele
exercia a atividade de contador, de modo a ganhar algum dinheiro. Por dois anos o
rapazinho fez trabalhos de faxina e no ano seguinte colaborouno setor
administrativo. A seguir, inscreveu-se no instituto técnico-industrial especializado em
química da alimentação e começou a trabalhar das 7h às 13h no laboratório,
frequentando as aulas das 14h às 20h.
Enquanto isso, Jorge Mario continuava frequentando a sua paróquia de San José
de Flores, onde ia à missa todos os domingos. Tinha também amplo grupo de amigos,
entre os quais houve também uma paquera, com os quais ia dançar o tango e a
milonga: “Gosto muito, é algo que sai de dentro de mim”, confidenciou. Seus artistas
preferidos são Juan D’Arienzo, Julio Sosa, Astor Piazzolla e Amelita Baltar.
A descoberta da vocação
Em 1953 tinha quase 17 anos e a sua fé se tornara um tanto embaçada, como
acontece frequentemente com os adolescentes. Na manhã de 21 de setembro,
tradicional dia da Festa do aluno, decidira dar um pulo na igreja, onde encontrou
padre Duarte, um sacerdote que nunca vira antes, mas que lhe transmitiu a sensação
de uma grande espiritualidade. Confessou-se com ele, e naqueles momentos percebeu
no coração o chamado a se tornar sacerdote. “Foi o estupor de um encontro com
alguém que está à tua espera”, contou em seguida.
A certeza dessa vocação, porém, não teve sequência imediata. Por algum ano,
alcançado o diploma de técnico químico, continuou trabalhando num laboratório de
análise dos alimentos. Aos vinte anos, de repente, a doença: uma pneumonia
gravíssima. Febre altíssima, três dias transcorridos entre a vida e a morte, médicos
impotentes, a seguir uma cirurgia para extrair a parte superior do pulmão direito. Mas
foram necessárias dolorosas terapias para fazer a situação voltar à normalidade.
Naquele tempo difícil, entre as muitas palavras de circunstância, a religiosa que o
havia preparado à primeira comunhão foi a única a fazê-lo compreender o sentido
daquele sofrimento: “Você está imitando Jesus”. Não foi por acaso, o nome da irmã
era Dolores Tortolo. E ela prognosticará a seguir às coirmãs: “Ele subirá muito ao
alto”.
Um pouco mais tarde, a decisão de entrar em Villa Devoto, o seminário diocesano
de Buenos Aires. Mais algum mês, e no dia 11 de março de 1958 deu-se a passagem
ao noviciado da Companhia de Jesus. Na família, essa decisão foi tomada com
sentimentos diversificados: o pai ficou feliz, a mãe decisivamente menos, e por muito
tempo sentiu a falta da sua companhia diária. A mais feliz foi a avó, que prorrompeu
num “Bem, se Deus te chama, que seja bendito”, e a seguir acrescentou com sadio
realismo: “Todavia, não esquecer que a porta de casa está sempre aberta e que
ninguém te censurará coisa alguma se mudares de ideia”.
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Apenas completara 21 anos, e na Companhia de Jesus o esperava longo caminho
antes de poder ser ordenado sacerdote e, mais ainda, de poder pronunciar os votos
perpétuos. Em primeiro lugar o enviaram ao Chile para que adquirisse as bases dos
estudos humanísticos. Em 1963, de volta à Argentina, obteve o doutorado em
filosofia na Faculdade do colégio Massimo di San Miguel, onde continuou os estudos
de teologia, obtendo também esse doutorado em 1970. Nesse ínterim, tivera algumas
experiências de magistério: entre 1964 e 1965 havia sido professor de literatura e de
psicologia no colégio da Imaculada de Santa Fé, em 1966 ensinara as mesmas
matérias no colégio do Salvador de Buenos Aires.
Pouco antes de tornar-se sacerdote viveu um momento de grande intensidade
espiritual, cujo fruto foi uma intensa oração que, tornado cardeal, quis tornar
conhecida, afirmando que estaria disposto a assiná-la novamente: “Desejo crer em
Deus Pai, que me ama como um filho, e em Jesus, o Senhor, que infundiu o seu
Espírito na minha vida para fazer-me sorrir e conduzir-me assim ao reino eterno de
vida. Creio na minha história, que foi penetrada pelo olhar de amor de Deus, o qual,
no dia da primavera, 21 de setembro, veio ao meu encontro para convidar-me a segui-
lo. Creio na minha dor, estéril por causa do egoísmo, no qual me refugio. Creio na
mesquinhez da minha alma, que procura sugar sem dar... sem dar. Creio na vida
religiosa. Creio que quero amar muito. Creio na morte cotidiana, ardente, da qual
fujo, mas que me sorri convidando-me a aceitá-la. Creio na paciência de Deus,
acolhedora, boa como uma noite de verão. Creio que papai está no céu junto do
Senhor. Creio que também padre Duarte está lá e intercede pelo meu sacerdócio.
Creio em Maria, minha mãe, que me ama e nunca me deixará sozinho. E espero a
surpresa de cada dia, na qual se manifestará o amor, a força, a traição e o pecado, que
me acompanharão até o encontro definitivo com esse semblante maravilhoso que não
sei como seja, do qual continuamente fujo, mas que quero conhecer e amar. Amém”.
No dia 13 de dezembro de 1969 chegou o momento da ordenação sacerdotal.
Finalmente também a mãe se convenceu definitivamente da bondade da sua vocação
e, no fim da cerimônia, se pôs de joelhos diante dele para pedir-lhe a bênção e beijar-
lhe a mão. “Sou Jorge Bergoglio, padre. Gosto de ser sacerdote”, responderá em
2010, no livro entrevista El Jesuita, à pergunta acerca de como se apresentaria diante
de um grupo de desconhecidos.
Naquele dia a avó lhe entregou uma carta que papa Francisco guarda no breviário,
com os augúrios que ela desejara reservar a todos os seus netos: “Tenham vida longa
e feliz. Para se em algum dia a dor, a doença ou a perda de uma pessoa amada os
preencherem de desconforto, lembrem-se que um suspiro diante do Tabernáculo,
onde se encontra o mártir maior e augusto, e uma olhada a Maria que se encontra aos
pés da cruz, poderá fazer cair uma gota de bálsamo sobre as feridas mais profundas e
dolorosas”.
Nos anos da ditadura
No biênio 1970-71 padre Jorge Mario é enviado para a Espanha, a Alcalá de
Henares, para o período conclusivo de probandato. Sucessivamente foi mestre dos
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noviços jesuítas em Villa Barilari, professor na Faculdade de teologia de San José,
consultor da Província e reitor do colégio Massimo em San Miguel. Padre José María
Sang, aluno de Bergoglio e atualmente trabalhando no mesmo colégio, o descreveu
como “um professor sério e muito preparado, com forte orientação espiritual” e
sublinhou que “todos aqueles que procuram enquadrar o novo Papa em categorias
como conservador ou progressista perdem de vista o ponto focal, pois esses termos
são políticos, não religiosos. Ao contrário, é melhor considerar aquilo que Bergoglio
fez desde que se tornou bispo: a atenção que mostrou pelos pobres e sem moradia
fixa. Esta é a aproximação dos Jesuítas”.
No dia 22 de abril de 1973 fez a profissão perpétua e no dia 31 de julho de 1973
foi eleito por seis anos provincial dos Jesuítas da Argentina. Uma calúnia que o
perseguiu periodicamente relaciona-se justamente ao tempo em que era provincial, no
período inicial da ditadura militar na Argentina (que durou de 1976 a 1983). A
acusação mais grave era de estar moralmente envolvido na detenção de dois coirmãos
seus, além de haver impedido a ação dos membros mais progressistas da Companhia
de Jesus. No dia da sua eleição ao pontificado, foi necessária a intervenção do prêmio
Nobel da paz Alfonso Pérez Esquivel – que foi dirigente na Argentina da organização
Serpaj (Servicio paz y justicia) – para desmentir: “Há bispos que foram cúmplices da
ditadura, mas Bergoglio não”, disse à televisão inglesa BBC. E continuou: “De
Bergoglio se diz que não agiu adequadamente para tirar da prisão dois Jesuítas. Mas
eu sei com certeza que muitos bispos pediam à junta militar a libertação de
prisioneiros e de sacerdotes, e não era concedida”.
Com uma declaração pública, padre Francisco Jálics – o jesuíta que, junto com
padre Orlando Yorio (falecido no ano 2000), foi sequestrado por cinco meses pelos
militares argentinos – expressou a sua posição: “Estou reconciliado com aqueles
eventos e para mim aquele acontecimento está encerrado. Depois da nossa libertação
deixei a Argentina. Somente anos após tivemos a possibilidade de falar daqueles
acontecimentos com o padre Bergoglio, que nesse ínterim havia sido nomeado
arcebispo de Buenos Aires. Depois daquele colóquiocelebramos juntos uma missa
pública e nos abraçamos solenemente”.
Numa recente entrevista, o cardeal Bergoglio, porém, sublinhou que “o golpe de
1976 foi aprovado por quase todos, inclusive a imensa maioria dos partidos políticos.
Se não estou enganado, creio que o único a não fazê-lo foi o partido comunista
revolucionário, mesmo se, além disso, é verdade que ninguém, ou muito poucos,
suspeitavam aquilo que sobreviria. Em tudo isso é preciso ser realistas, ninguém deve
lavar-se as mãos. Eu estou esperando que os partidos políticos e as demais
corporações peçam perdão como fez a Igreja: o episcopado difundiu em 1996 um
exame de consciência e, em 2000, pronunciou um mea culpa por ocasião do Jubileu”.
Em alto e bom som, nesta última circunstância, os bispos argentinos afirmaram
unanimemente: “Visto que em diversos momentos da nossa história fomos
indulgentes em relação às posições totalitárias, violando as liberdades democráticas
que brotam da dignidade humana. Visto que mediante ações ou omissões
discriminamos muitos dos nossos irmãos, sem empenhar-nos suficientemente na
defesa dos seus direitos. Suplicamos a Deus, Senhor da história, que aceite o nosso
arrependimento e cure as feridas do nosso povo. Ó Pai, temos o dever de recordar
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diante de ti aquelas ações dramáticas e cruéis. Pedimos-te perdão pelo silêncio dos
responsáveis e pela participação efetiva de muitos dos teus filhos em tal confronto
político, na violência contra a liberdade, na tortura e na delação, na perseguição
política e na intransigência ideológica, nos choques e nas guerras, na morte absurda
que ensanguentou o nosso país. Pai bom e cheio de amor, perdoa-nos e concede-nos a
graça de refundar os vínculos sociais e curar as feridas ainda abertas na tua
comunidade”.
Em 1986 padre Bergoglio foi à Alemanha para acabar a tese de doutorado,
centrada no pensamento do filósofo católico Romano Guardini, aquele mesmo autor
que Bento XVI quis citar no seu último discurso como Pontífice, quando no dia 28 de
fevereiro passado se despediu do Colégio cardinalício: “A Igreja não é uma
instituição excogitada e construída num escritório, mas uma realidade vivente. Ela
vive ao longo do curso do tempo, em devir, como qualquer ser vivente,
transformando-se. No entanto, na sua natureza permanece sempre a mesma: o seu
coração é Cristo. [...] A Igreja se desperta nas almas”. Mais um dentre os muitos sutis
e misteriosos laços ideais que unem os últimos dois Papas.
No seu brasão Jesus e Maria
No dia 20 de maio de 1992, quando se tornou conhecido que João Paulo II havia
assinado a sua nomeação como bispo auxiliar de Buenos Aires, padre Bergoglio não
era certamente uma figura elevada em nível eclesiástico. Naquele momento, tinha
completado 55 anos e alguns meses e, depois de ter sido por algum tempo
responsável pelo colégio do Salvador, desempenhava a função de diretor espiritual e
confessor na paróquia confiada aos Jesuítas no centro de Córdoba, a segunda cidade
argentina em número de habitantes. “Deixou uma marca de simplicidade e de
humildade”, diz padre Angel Rossi, atual superior da comunidade, “e todos os nossos
paroquianos o conheceram como homem de profunda pobreza, de muitíssima oração,
culturalmente preparado e com uma inteligência intuitiva”. Como todos os Jesuítas,
no momento da profissão solene também Jorge Mario havia pronunciado – junto com
os habituais votos de pobreza, castidade e obediência – um quarto voto de especial
obediência ao Papa, junto com as promessas de não buscar posições de autoridade,
tanto na Companhia quanto mais em geral na Igreja, e de escutar os conselhos dos
superiores Jesuítas no caso de elevação ao episcopado.
Mas o então arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Antonio Quarracino, não se
deixou condicionar por essas prescrições, redutíveis à própria vontade do fundador da
Ordem, santo Inácio de Loyola. Já anteriormente havia apreciado as qualidades de
Jorge Mario e quis a todo custo colocá-lo ao lado dos seus outros dois auxiliares,
Héctor Rubén Aguer e Rubén Oscar Frassia.
O jesuíta veio a sabê-lo de modo decisivamente incomum. O núncio apostólico na
Argentina, o arcebispo Ubaldo Calabresi, lhe havia pedido um encontro a fim de ter
alguma opinião acerca de alguns sacerdotes a respeito dos quais estava instruindo a
prática para o eventual episcopado. No dia 13 de maio de 1992 haviam-se visto na
sala de espera do aeroporto de Córdoba, numa etapa intermédia do voo que dom
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Calabresi estava fazendo de Mendoza a Buenos Aires. No fim da conversa sobre
alguns temas delicados da Igreja, justamente uma frase atirada aí: “Ah, uma última
coisa, o senhor foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires!”
A ordenação episcopal foi celebrada no dia 27 de junho do mesmo ano, numa
catedral repleta de muitos amigos que padre Bergoglio conquistara em toda a
Argentina, sobretudo nas camadas mais pobres da população. Juntamente com o
arcebispo Quarracino, impuseram-lhe as mãos o núncio Calabresi e o bispo de
Mercedes-Luján Emilio Ogñénovich. Como auxiliar foi-lhe designada, segundo a
tradição, uma sede titular: Auca, na província espanhola de Burgos. No seu brasão, de
fundo azul, domina o símbolo da Companhia de Jesus: o sol circundado por raios, e
no seu interior impressa a sigla IHS (o trigrama de são Bernardino de Sena: Iesus
Hominum Salvator, Jesus salvador dos homens) e os três pregos da paixão. Na parte
de baixo relevam-se uma estrela à esquerda e uma flor de nardo à direita,
respectivamente uma remitência a Maria e a são José. O lema é “Miserando atque
eligendo” (Teve piedade dele e o elegeu). O teólogo Inos Biffi, no Osservatore
Romano de 15 de março de 2013, remontou à citação, que procede de uma homilia na
qual o monge inglês são Beda, o Venerável (672-735), comenta o nono capítulo do
Evangelho de Mateus, quando Jesus vê esse exator das taxas e o chama para ser seu
discípulo.
Dom Biffi explicou: “Beda se detém em explicar o sentido daquele seguimento.
Ele significa: ‘Não ambicionar as coisas terrenas, não buscar ganhos efêmeros; fugir
das honras mesquinhas; abraçar de boa vontade todo o desprezo do mundo para a
glória celeste; ser proveitoso para todos; amar as injúrias e não injuriar ninguém;
suportar com paciência as recebidas; buscar sempre a glória do Criador e jamais a
própria. Praticar essas coisas e outras semelhantes significa seguir as pegadas de
Cristo’. É o programa de são Francisco de Assis: inscrito no brasão de papa
Francisco, intuímos que será o programa de seu ministério, como bispo de Roma e
pastor da Igreja universal”.
Com efeito, o cardeal Quarracino tivera boa intuição. Apreciou de tal modo o
empenho de Bergoglio a ponto de nomeá-lo, apenas um ano depois, seu vigário geral
para a diocese de Buenos Aires. E ao mesmo tempo, começando a perceber uma piora
nas próprias condições de saúde, encaminhou a prática para fazê-lo promover a
coadjutor com direito de sucessão, de modo a tornar automática no futuro a sua
elevação ao comando da diocese. A nomeação a coadjutor deu-se aos 3 de junho de
1997; também nesse caso a notícia lhe foi dada por dom Calabresi de modo
totalmente informal, no final de um almoço de trabalho, com um brinde e uma fatia
de bolo. Menos de nove meses depois, no dia 28 de fevereiro de 1998, Quarracino
morreu de enfarto e, segundo aquilo que fora estabelecido precedentemente, dom
Bergoglio assumiu imediatamente o posto.
Um cardeal no meio do povo
Seu estilo episcopal foi desde o começo marcado pela humildade e
disponibilidade. Os sacerdotes diocesanos conheciam o número do seu telefone direto
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e sabiam que podiam chamá-lo a qualquer hora do dia e da noite. Se ficava a par de
algum problema ou doença deles, preocupava-se a fim de resolver do melhor modo
possível a situação. Conta-se que às vezes tenha passado a noite à cabeceira de algum
pároco gravemente doente, a fim de assisti-lo pessoalmente. E eram constantes as
visitas às igrejas postas sob sua jurisdição, a fim de encorajar os sacerdotes e fazê-los
sentir a proximidade do bispo.
No Consistório de 21 de fevereiro de2001, o arcebispo Bergoglio foi feito cardeal
por João Paulo II e, como todo purpurado, teve o título de uma igreja romana, a de
são Roberto Bellarmino. Nessa ocasião, causou impacto o seu pedido aos muitos
conacionais que lhe haviam expresso a intenção de ir ao Vaticano a fim de
homenageá-lo. Era o momento culminante da terrível crise econômica que levou a
Argentina à falência financeira, e Bergoglio pediu-lhes que não gastassem dinheiro
com a passagem aérea para Roma, mas, antes, o dessem aos pobres.
É o mesmo pedido que propôs por ocasião da cerimônia de início do pontificado.
Como escreveu aos argentinos o núncio do Vaticano Emil Paul Tscherrig: “O Santo
Padre Francisco me pediu para transmitir a todos os bispos, sacerdotes, religiosos,
religiosas e a todo o povo de Deus a sua profunda gratidão pelas orações e expressões
de afeto, de amizade e de caridade que recebeu. Ao mesmo tempo deseja que em vez
de ir a Roma para o início do seu pontificado no próximo dia 19 de março, continuem
com essa proximidade espiritual tão apreciada, acompanhando-a com algum gesto de
caridade para com os mais necessitados”.
Também como cardeal, nenhuma concessão à mundanidade ou aos privilégios que
normalmente acompanham tal dignidade. Em vez de transferir-se para a residência
arquiepiscopal, preferira ficar no apartamento de dois cômodos onde usava um
pequeno aquecedor para aquecer-se, preparando o próprio jantar. E, em lugar do carro
oficial com motorista, os ônibus de transporte público e o metrô, onde qualquer um
podia dirigir-lhe a palavra (“Tomo quase sempre o metrô por causa da rapidez, mas
prefiro o ônibus, pois gosto de observar a estrada”, contou). Também as roupas eram
as mesmas de antes: um clergyman normal como bom padre de cidade. A veste
cardinalícia para cerimônias ele a fizera adaptar por sua irmã, utilizando a veste do
seu antecessor.
O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 contra as Torres gêmeas teve
repercussão também na décima assembleia do Sínodo dos bispos, celebrada no
Vaticano entre 30 de setembro e 27 de outubro daquele ano. O cardeal Edward
Michael Egan, arcebispo de Nova York, devia propor aos coirmãos a palestra geral
sobre o tema “O bispo: servidor do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança no
mundo”. Mas uma cerimônia de homenagem às vítimas daquele massacre organizada
a um mês de distância do trágico evento, obrigou-o a voltar à diocese.
No seu lugar foi nomeado como relator adjunto justamente o cardeal Bergoglio,
que em poucos dias preparou um texto de síntese muito eficaz, decididamente
apreciado pelos padres sinodais e que o levou em certo sentido à exposição
internacional. A documentá-lo prestou-se também a sua plebiscitária eleição como
representante do continente americano no Conselho pós-sinodal, uma função em
seguida confirmada na décima primeira assembleia de 2005. No Vaticano chegou-se
a pensar em chamá-lo para guiar uma importante Congregação: “Pelo amor de Deus,
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na Cúria eu acabo morrendo”, foi o que replicou secamente.
Na relação que propusera aos padres sinodais estava fotografada a imagem do
bispo do qual a Igreja necessita para cumprir a sua missão no início do terceiro
milênio: “Homem de Deus a caminho com o seu povo, homem de comunhão e
missionaridade, homem de esperança, servidor do Evangelho para a esperança do
mundo. Sabemos que o mundo inteiro anseia por essa ‘esperança que não
decepciona’ (Romanos 5,5), por isso o bispo não pode ser senão pregador de
esperança que nasce da cruz de Cristo”.
Uma pastoral atenta ao homem
Regressando a Buenos Aires, mais de uma vez viu-se obrigado a levantar a voz
contra as autoridades civis, nacionais e locais, nos meses quentes das revoltas
populares contra a crise econômica. Inclusive, no dia 21 de dezembro de 2001, da
janela do seu escritório assistiu aos choques na Praça de Maio e viu como a polícia
batia em inermes cidadãos que protestavam contra o bloqueio dos seus depósitos
bancários por causa da falência financeira. Tirou imediatamente o telefone do gancho
e chamou o ministro do Interior e o responsável pela Segurança Nacional para
protestar contra a atitude deles, que confundia agitadores e terroristas com simples
poupadores que manifestavam atemorizados. E desse modo conseguiu pelo menos
que cessassem os golpes indiscriminados dos agentes repressores da manifestação.
Logo em seguida, mediante a Caritas diocesana, iniciou refeições populares e
centros de acolhida para os sem-teto, distribuindo todas as ajudas que podia e indo
pessoalmente por todos os lugares levando o conforto e a proximidade da Igreja. Ao
mesmo tempo, no plano pastoral demonstrou a máxima atenção pela emergência
educacional que em Buenos Aires era percebida com clareza. Instituiu um vicariato
episcopal para a educação e explicou que “o drama da nossa época é que o
adolescente vive num mundo que por sua vez não saiu da adolescência. Os jovens
crescem numa sociedade que não lhes pede coisa alguma, não os educa ao sacrifício e
ao trabalho, não sabem mais o que é a beleza e a verdade das coisas. Por isso o
adolescente despreza a história passada e está apavorado diante do futuro. Cabe à
Igreja reabrir os caminhos da esperança”.
Por isso pediu aos seus párocos que arregaçassem as mangas e abrissem alas à
fantasia. Numa entrevista à revista mensal 30giorni partiu da observação sociológica
que a influência de uma paróquia se limita ao raio de seiscentos metros e portanto
contou, com humorístico desencanto: “Em Buenos Aires há aproximadamente dois
mil metros entre uma paróquia e outra. Então eu disse aos sacerdotes: ‘Se vocês
puderem, aluguem uma garagem e, se encontrarem algum leigo disposto, que vá!
Fique um pouco com aquela gente, faça um pouco de catequese e dê inclusive a
comunhão se lha pedirem’. Um pároco me disse: ‘Mas padre, se fizermos isso, o
povo depois não vem mais à igreja’. ‘Mas por quê?’, lhe perguntei, ‘agora eles vêm à
missa?’ ‘Não’, respondeu. E então...!’ ”
Às vezes, porém, teve de dar um puxão de orelha em seus sacerdotes. Por
exemplo, a certo pároco que recusava o batismo às crianças nascidas de casais
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irregulares, replicou: “A criança não tem qualquer responsabilidade pela situação do
matrimônio dos seus pais. E, além disso, muitas vezes o batismo das crianças se torna
também para os pais um novo início. Normalmente se faz uma breve catequese antes
do batismo, de aproximadamente uma hora; em seguida, uma catequese durante a
liturgia. Depois disso, os sacerdotes e os leigos vão fazer visitas a essas famílias, a
fim de continuar com eles a catequese pós-batismal. E muitas vezes acontece que os
pais, que não eram casados na igreja, talvez peçam para vir diante do altar a fim de
celebrar o sacramento do matrimônio”.
Repensando num seu antigo desejo, o desejo de ser missionário no Japão seguindo
os passos dos primeiros heroicos jesuítas, numa homilia sublinhou: “Os sacramentos
são gestos do Senhor. Não são prestações ou territórios de conquista de padres ou
bispos. Em nossa nação, tão vasta, há muitos pequenos povoados ou vilas difíceis de
serem alcançados, nos quais o padre chega uma ou duas vezes ao ano. Mas a piedade
popular sente que as crianças devem ser batizadas mais cedo possível, e então nesses
lugares há sempre um leigo ou uma leiga conhecidos por todos como bautizadores,
que batizam as crianças quando nascem. Quando vem o padre levam a ele as crianças
para que as marque com o óleo santo, concluindo a cerimônia. Quando penso nisso,
me surpreende sempre a história daquelas comunidades cristãs do Japão que haviam
ficado sem sacerdotes por mais de duzentos anos. Quando voltaram os missionários,
os encontraram todos batizados, todos validamente casados pela Igreja e todos os
mortos haviam sido sepultados de modo cristão. Aqueles leigos tinham recebido
somente o batismo, e em virtude do seu batismo tinham vivido também a sua missão
apostólica”.
O seu claro magistério e o empenho cotidiano na pastoral tornaram sempre mais
autorizada a sua figura entre os bispos argentinos, que, depois de lhe terem
inutilmentepedido uma primeira disponibilidade em 2002, em 2005 o elegeram ao
topo da Conferência Episcopal Argentina e o reconfirmaram como presidente até
novembro de 2011.
Em 2007, no final da quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano
realizada em Aparecida de 13 a 31 de maio, o arcebispo Bergoglio foi também eleito
por grande maioria como presidente da Comissão encarregada de preparar o
documento final dos trabalhos. No âmbito eclesial se trata sempre de um encargo de
enorme responsabilidade, pois lá é preciso ser dotado ao mesmo tempo de perspicácia
na individuação dos pontos-chave do debate, paciência para aparar as arestas que
sempre se manifestam, coragem para não deixar de lado os aspectos mais
problemáticos e provocadores.
Reagindo a algumas contestações acerca do conteúdo daquele texto, o cardeal
Bergoglio precisou com força: “O documento final, que é um ato do magistério da
Igreja Latino-Americana, não sofreu nenhuma manipulação. Nem da nossa parte,
nem por parte da Santa Sé. Houve alguns pequenos retoques de estilo, de forma, e
algumas coisas que foram tiradas de uma parte foram reinseridas em outro lugar;
portanto, a substância permaneceu idêntica, absolutamente não mudou. Isto porque o
clima que levou à redação do documento foi um clima de autêntica e fraterna
colaboração, de respeito recíproco, que caracterizou o trabalho, partiu de baixo para
cima, não vice-versa”.
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De ônibus na favela
Em todos os casos, suas intervenções não se limitaram ao âmbito religioso que,
obviamente, tem sido sempre o principal campo de ação, como documentam as
muitas homilias e os autorizados documentos pastorais que balizam os anos do
episcopado. Também em âmbito social jamais poupou palavras fortes, especialmente
durante o Te Deum do dia 25 de maio de cada ano, por ocasião da festa nacional
argentina, que comemora a revolução de 1810 que deu início ao processo de
independência do País. O arcebispo tornou-se desta forma a iniludível voz da
comunidade argentina, tanto eclesial quanto civil, e aquelas suas homilias, encontro
marcado de cada ano, foram consideradas pelos observadores uma espécie de
“cátedra cívica” para defender a dignidade humana do seu povo.
O primeiro apelo, em 1999, foi dirigido ao mesmo tempo ao coração e à razão: “O
apelo à memória histórica nos pede peneirar as nossas realizações mais profundas,
aquelas que não aparecem num olhar rápido e superficial. Nada além do esforço
desses últimos tempos para afirmar o sistema democrático superando as divisões
políticas, que pareciam uma laceração social quase inalcançável: hoje se procura
respeitar as regras e se aceita o diálogo como caminho de convivência cívica”.
Aos ouvidos de muitos argentinos ecoam ainda as palavras profundamente
dolorosas dirigidas em 2000 ao então presidente Fernando de la Rúa: “Devemos
reconhecer, com humildade, que o sistema caiu sob imensa sombra, a sombra da
desconfiança”; e as palavras de estímulo ao novo presidente Néstor Kirchner em
2003, quando pediu a todos a retomada do caminho “carregando a pátria aos
ombros”. No Te Deum sucessivo, no dia 25 de maio de 2004, as duras palavras do
arcebispo não agradaram a Kirchner e, a partir daquele momento, o presidente evitou
cuidadosamente encontrar o arcebispo. Após a sua morte, também a esposa Cristina
Fernández, que assumiu seu lugar na Casa Rosada, não foi poupada pelas críticas do
arcebispo, sobretudo em 2010, a respeito da lei para o reconhecimento jurídico das
uniões homossexuais, que Bergoglio definiu “uma tentativa de destruir os planos
divinos”.
Entre os 45.000 pobres das villas miserias, as favelas de Buenos Aires definidas
simplesmente com os números de 21 a 24, o cardeal Bergoglio sempre se sentiu em
casa. Em pelo menos a metade dessas casas de sorte está exposta uma foto em sua
companhia. O arcebispo para lá se dirigia tomando o ônibus 70, vestido como simples
padre, para celebrar a missa na improvisada capela da Virgem de Caacupé. Batizava,
dava comunhão e em seguida transcorria umas horas na simplicidade, escutando os
problemas e procurando uma forma de poder ajudar.
No início de 2009, após algumas ameaças de morte contra padre José María
“Pepe” Di Paola (o sacerdote empenhado na favela villa 21), numa homilia o
arcebispo denunciou “los mercaderes de las tinieblas”, os mercadores das trevas.
Logo em seguida, mais de quatrocentos padres de Buenos Aires tomaram a iniciativa
de assinar uma declaração a favor do seu coirmão e a apresentaram numa entrevista
coletiva à imprensa. E, como demonstração de que as ameaças não fazem outra coisa
senão reforçar o empenho, o cardeal decidiu instituir um vicariato episcopal para a
pastoral das favelas na capital da Argentina.
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Numa recente entrevista ao jornal italiano La Stampa, Bergoglio se expressou com
clareza: “Toda a atividade ordinária da Igreja está concentrada em vista da missão.
Isto implica uma tensão muito forte entre centro e periferia, entre a paróquia e o
quarteirão. Deve-se sair de si mesmo, ir em direção da periferia. Deve-se evitar a
doença espiritual da Igreja autorreferencial: quando a Igreja se torna isso, ela adoece.
É verdade que saindo pelos caminhos, como acontece com todo homem e com toda
mulher, podem surgir incidentes. Porém, se a Igreja permanece fechada em si mesma,
autorreferencial, envelhece. E entre uma Igreja acidentada que sai pelos caminhos, e
uma Igreja doente de autorreferencialidade, não tenho dúvidas em preferir a
primeira”.
Não obstante os muitos compromissos, o cardeal todavia jamais descuidou certa
atenção para com o mundo artístico-cultural. Em seu favor está também o fato que
lhe são suficientes cinco horas de sono por noite (“levanto-me todas as manhãs às 4h
sem necessidade de acionar o despertador”, revelou), além de uns quarenta minutos
de siesta depois do almoço.
O elenco das coisas que lhe agradam ele o entregou aos autores do livro entrevista
El jesuita: seu quadro preferido é La Crocifissione bianca de Marc Chagall
(conservado no Art Institute de Chicago); para a música, seu maior prazer está na
ouverture Leonora n.3 e nas sinfonias de Ludwig van Beethoven (mas, esclareceu,
nas versões dirigidas por Wilhelm Furtwängler), juntamente com as obras de Wagner;
quanto aos livros, privilegia a poesia de Friedrich Hölderlin, I promessi sposi de
Alexandre Manzoni, a Divina Comédia de Dante Alighieri, as obras de Fëdor
Dostoevskij e do argentino Leopoldo Marechal; raramente vai ao cinema, mesmo
assim gostou de O banquete de Babette de Gabriel Axel, Los Isleros de Lucas
Demare, Esperando la carroza de Alejandro Doria, o neorrealismo italiano, as
interpretações de Anna Magnani, de Aldo Fabrizi e da argentina Tita Merello.
13 de março de 2013: a fumaça branca
A catedral de Buenos Aires estava apinhada, durante a celebração da quarta-feira
de cinzas de 2013. Era o dia 13 de fevereiro, e fazia dois dias que Bento XVI
comunicara a própria renúncia. No fim da homilia do seu arcebispo, os fiéis presentes
tiveram um calafrio de premonição. Como de costume, o cardeal Bergoglio havia
pronunciado palavras de esperança e de renúncia. A seguir, após haver desejado “uma
santa Quaresma, penitencial e profunda”, deixou escapar com voz ligeiramente
hesitante um apelo pessoal: “Por favor, peço-lhes que rezem por mim”.
Já havia comprado a passagem para Roma e, como data de regresso, indicara o
sábado, 23 de março, de modo a poder estar na diocese para a missa do Domingo de
Ramos. Mas, retomando uma frase escrita por Angelo Roncalli antes do Conclave de
1958, também ele começava a perceber “um grande movimento de borboletas em
volta da minha pobre pessoa”.
No diário de um cardeal eleitor se lê, a respeito de Jorge Mario Bergoglio: “Eu o
olhava enquanto vai depor o seu voto na urna, sobre o altar da Sistina: tem o olhar
fixo na imagem de Jesus que julga as almas no final dos tempos. O rosto sofrido,
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como se implorasse: Deus, não me faças isto”. Contrariamente a quanto poderia
parecer, essas palavras, porém, não foram escritas nos dias passados, e sim há oito
anos, duranteo Conclave de abril de 2005.
Já naquela ocasião, o arcebispo argentino havia sido a única alternativa real a
Joseph Ratzinger. As quatro votações viram focalizar-se nessas duas personalidades a
atenção de todo o Colégio cardinalício. Após a largada com 47 votos para Ratzinger e
10 para Bergoglio, no segundo turno passaram respectivamente a 65 e a 35
preferências. Inclusive a terceira votação viu 112 cardeais dentre os 115 votando num
dos dois (72 para Ratzinger e 40 para Bergoglio). No intervalo do almoço, o cardeal
de Buenos Aires pediu a todos os que o apoiavam que fizessem convergir seus votos
para o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. E assim aconteceu: com 84
votos foi eleito Bento XVI, ao passo que para Bergoglio convergiram ainda 26
preferências.
Os cardeais têm memória longa. Reunidos num inédito Conclave, com o
predecessor ainda vivo, as muitas hipóteses jornalísticas tiveram de fazer as contas
com a realidade, que havia sido bem sintetizada pelo cardeal decano Angelo Sodano
na homilia da missa pro eligendo Pontifice. A oração elevada ao Senhor para que
concedesse “um Bom Pastor”, dotado do “amor que impele os Pastores da Igreja a
desempenhar a sua missão de serviço aos homens de todos os tempos, desde o serviço
caridoso mais imediato até o serviço mais elevado, o serviço de oferecer aos homens
a luz do Evangelho e a força da graça”, tinha levado mais de um a dirigir o olhar para
o cardeal Bergoglio.
Quatro votações sem resultado positivo. Depois, às 19h06 do dia 13 de março, a
fumaça branca da chaminé sobre a Sistina anunciou a eleição do novo Papa, Jorge
Mario Bergoglio: primeiro jesuíta na Cátedra de Pedro, primeiro Pontífice do
continente americano, primeiro extraeuropeu após quase doze séculos (o último havia
sido o sírio Gregório III, em 731). “Que risco que nada, foi uma grande maioria,
extremamente grande”, respondeu o cardeal Giovanni Battista Re a um jornalista que
o interrogava acerca da quantidade das preferências atribuídas a Bergoglio.
Não me parece tenha sido adequadamente notado, mas a sequência de eleições de
2005-2013 e das do agosto-outubro de 1978 têm significativo traço em comum. Em
ambas as circunstâncias, no segundo Conclave, quem entrou Papa saiu cardeal, como
diz um velho ditado popular que, segundo o competente historiador Ambrogio
Pizzoni, mostrou-se verdadeiro em 90% dos casos. Em 1968 o confronto sem
resultado positivo entre os candidatos italianos Giuseppe Siri e Giovanni Benelli
levou à “surpresa Wojtyla”, que no entanto desde o precedente turno havia sido
focalizado como alguém que possivelmente corria por fora. Em 2013 os cotadíssimos
Angelo Scola e Marc Ouellet tiveram de dar passagem a quem, no Conclave que
elegeu Ratzinger, quase se igualara a ele na pole position.
Poucos minutos antes da “fumaça branca”, o mesmo cardeal Re tivera a tarefa de
dirigir ao neo-eleito a pergunta acerca de qual nome teria escolhido e ouviu
responder: “Francisco”. Deixando de lado o caso de João Paulo I, faz exatamente
1.100 anos que não havia o novo nome na sequência dos Pontífices: é preciso
remontar ao sabino Landão, eleito em 913. E jamais alguém assumira até o momento
o nome do patrono da Itália nos quase oitocentos anos passados da sua morte, não
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obstante tenha havido quatro Pontífices franciscanos. É curioso também notar que o
último Papa procedente dessa Ordem, Clemente XIV, aboliu em 1773 a Companhia
de Jesus (a Ordem de pertença de papa Francisco), cedendo às pressões das grandes
potências europeias.
Acerca das motivações dessa escolha (“Isso reforça a minha relação espiritual com
esta terra onde se encontram as origens da minha família”, enfatizará no primeiro
Angelus de 17 de março), a resposta veio do direto interessado que, encontrando os
jornalistas no dia 16 de março, contou: “Alguns pensavam em Francisco Xavier, em
Francisco de Sales, também em Francisco de Assis. Eu lhes contarei a história. Na
eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo e também prefeito
emérito da Congregação para o Clero, o cardeal Cláudio Hummes: um grande amigo,
um grande amigo! Quando a coisa se tornava um tanto perigosa, ele me confortava. E
quando os votos chegaram a dois terços, vem o costumeiro aplauso, porque foi eleito
o Papa. E ele me abraçou, me beijou e me disse: “Não te esqueças dos pobres!’ ”
Papa Francisco prosseguiu: “E aquela palavra entrou aqui: os pobres, os pobres.
Depois, logo, em relação aos pobres, pensei em Francisco de Assis. Depois, pensei
nas guerras, enquanto o escrutínio prosseguia, até se esgotarem os votos. E Francisco
é o homem da paz, o homem que ama e cuida da criação; neste momento também nós
temos com a criação uma relação não muito boa, não é? É o homem que nos dá esse
espírito de paz, o homem pobre”.
Os primeiros passos do pontificado
Aos cardeais que acabavam de elegê-lo ele se dirigiu sorrindo com um sonoro:
“Deus lhes perdoe aquilo que fizeram”. Em seguida, vestiu-se com a veste branca e
mudou alguns hábitos: recusou a mozeta vermelha que o cerimoniário lhe
apresentara, não quis mudar a própria cruz episcopal de ferro por uma de ouro, e
recebeu de pé o ato de homenagem dos coirmãos. Para ele é a substância que conta e
não a exterioridade: “O problema não é se você veste a batina ou não, mas se você
arregaça as mangas para trabalhar pelos outros”, declarou a um neo-sacerdote seu.
Portanto, às 20h22, apareceu no balcão central da basílica de são Pedro para o
primeiro encontro com os fiéis, aos quais às 20h12 o cardeal protodiácono Jean-Louis
Tauran já havia anunciado o nome do eleito.
Múltiplos os gestos que tocaram o coração das dezenas de milhares de pessoas que
nesse ínterim encheram a praça são Pedro e os milhões que seguiam o evento pela
televisão. Para começar, uma saudação “normal”: “Irmãos, irmãs, boa noite!”, quase
como pendant àquela “Boa noite” com a qual Joseph Ratzinger se despedira dos fiéis
antes de fechar-se no escondimento.
Imediatamente após, uma referência a seu predecessor: “Vocês sabem que o dever
do Conclave era dar a Roma um Bispo. Parece que meus irmãos cardeais foram
buscá-lo quase no fim do mundo, mas estamos aqui... Agradeço-lhes a acolhida. A
comunidade diocesana de Roma tem o seu Bispo: muito obrigado! E, antes de tudo,
desejo fazer uma oração pelo nosso Bispo emérito Bento XVI. Vamos todos juntos
rezar por ele, para que o Senhor o abençoe e Nossa Senhora o proteja”. Da praça, uma
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resposta em uníssono, que demonstrou a gratidão do povo de Deus por ter podido
contar, por oito anos, com a segura guia magisterial de papa Ratzinger.
Depois, um vigoroso pedido: “E agora, comecemos essa caminhada: bispo e povo.
Essa caminhada da Igreja de Roma, que é aquela que preside na caridade a todas as
Igrejas. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos
sempre por nós: um pelo outro. Rezemos por todo o mundo, para que haja uma
grande fraternidade. Auguro-lhes que essa caminhada de Igreja, que hoje iniciamos e
na qual me ajudará o meu cardeal vigário, aqui presente, seja frutuosa para a
evangelização desta cidade tão bela!”
Mas, antes de dar a solene bênção Urbi et Orbi (à cidade de Roma e ao mundo
inteiro), papa Francisco fez um pedido inédito: “Peço-lhes um favor: antes que o
Bispo abençoe o povo, peço-lhes que rezem ao Senhor a fim de que me abençoe: a
oração do povo, pedindo a bênção para o seu Bispo. Vamos fazer em silêncio esta
oração de vocês sobre mim”. O rumoroso vozerio de repente acalmou e na praça
sentiu-se como uma sensação de paz e a certeza da assistência divina.
As primeiras saídas públicas, para venerar o ícone de Nossa Senhora Salus populi
romani em Santa Maria Maior e para visitar no hospital o cardeal Jorge María Mejía,
e os primeiros discursos do pontificado, aos cardeais e aos jornalistas, assinalam o
início de um itinerário luminoso para a Igreja.
Os traços do seu projeto pastoral que espalhou nessas intervenções são claros.
“Caminhar sempre, à luz do Senhor; edificar a Igreja; confessar a Jesus Cristo” é a
tríade que indicou aoscardeais, usando imediatamente depois palavras fortes:
“Quando não se confessa a Cristo vem-me à mente a frase de Léon Bloy: ‘Quem não
reza ao Senhor, reza ao diabo’. Quando não se confessa a Jesus Cristo, se confessa a
mundalidade do demônio”. E aos jornalistas recordou que “a Igreja existe para
comunicar a Verdade, a Bondade e a Beleza ‘in persona’ ”.
Mas confidenciou desejar também “uma Igreja pobre e para os pobres”. E, no
primeiro Angelus, convidou a não esquecer nunca que “o rosto de Deus é o rosto de
um Pai misericordioso, que sempre tem paciência. Deus jamais se cansa de nos
perdoar: o problema é que nós nos cansamos de pedir-lhe perdão. E, dele, também
nós aprendemos a ser misericordiosos para com todos”.
Na saudação à multidão que acorreu, no entardecer de 13 de março, à praça São
Pedro para escutar a viva voz o anúncio do novo Pontífice, Francisco brincou com o
fato que os coirmãos cardeais foram buscá-lo “quase no fim do mundo”. Uma
expressão que fez voltar à mente as palavras de João Paulo II quando, em semelhante
circunstância, em 16 de outubro de 1978, disse que o haviam chamado “de um país
distante”.
No fundo, não é outra coisa senão o cumprimento do convite de Jesus para que os
apóstolos fossem suas testemunhas “até os confins da terra”. E agora, desses confins,
voltam a Roma, no coração da cristandade regada com o sangue dos mártires Pedro e
Paulo, para fazer reflorescer a “boa notícia” do Evangelho no coração do mundo.
21
E
O PENSAMENTO
ULTRAPASSAR O UMBRAL DA FÉ
ntre os pontos firmes do pensamento teológico e do empenho pastoral do
cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje papa Francisco, há dois temas:
encontro e unidade. Se quem afirma isso é o rabino Abraham Skorka,
reitor do Seminário rabínico Latino-americano de Buenos Aires, merece
credibilidade. Porém com a especificação que não se trata de
entendimento abstrato, mas de “um estado de harmonia entre os homens no qual cada
um, com a própria peculiaridade, colabora para o crescimento material e espiritual do
outro, inspirado por um sentimento de amor”.
E é sintomático que essa declaração se encontre na introdução de um livro do
cardeal escrita justamente pelo professor Skorka, que com tom divertido anota:
“Daquilo que sei, esta deveria ser a primeira vez, em dois mil anos de história, que
um rabino apresenta as reflexões de um sacerdote católico. Mais ainda se ele for o
arcebispo de Buenos Aires, primaz da Argentina e cardeal criado por João Paulo II”.
Ao mesmo tempo papa Francisco tem bem claro qual é a opção basilar da Igreja
no seu compromisso de evangelização: “Não é diminuir ou suprimir prescrições ou
tornar mais fácil esta ou aquela coisa, mas sobretudo sair a caminho para procurar as
pessoas, conhecer as pessoas pelo nome. E não somente porque esta é a sua missão,
sair para anunciar o Evangelho, mas também porque não fazê-lo produz nela um
dano. A uma Igreja que se limita a administrar o trabalho paroquial, que vive fechada
na sua comunidade, acontece a mesma coisa que acontece com uma pessoa
segregada: ela se atrofia física e mentalmente. Ou se deteriora como um apartamento
amuralhado, onde se espalham mofo e umidade”.
Para dar início ao Ano da fé na sua diocese de Buenos Aires, o cardeal Bergoglio
propôs aos seus fiéis uma carta, não casualmente datada 1º de outubro de 2012, festa
de santa Teresinha do Menino Jesus, padroeira das missões. Partindo do título do
documento de instauração Porta Fidei (Porta da fé), o arcebispo iniciou de forma
singular, falando da porta fechada “símbolo do nosso tempo, uma realidade
existencial que caracteriza um estilo de vida, um modo de definir-se frente à
realidade, frente aos outros, diante do futuro”. Ao contrário, “a imagem da porta
aberta sempre foi o símbolo da luz, da amizade, da alegria”.
Portanto, é preciso “ultrapassar o umbral, dar um passo que é sinal de uma decisão
íntima e livre, para convencermo-nos a entrar numa vida nova”. E “se atravessa a
porta da fé, ultrapassa-se o umbral quando o Verbo de Deus é anunciado e o coração
se deixa plasmar pela Graça que o transforma. Uma graça que traz um nome
concreto: Jesus. Jesus é a porta (João 10,9). Ele, e somente ele é e será sempre a
porta. Sem Cristo não existe caminho que conduza a Deus. Como porta nos abre o
caminho para chegar a Deus, e como bom pastor é o único que cuida de nós à custa
da própria vida”.
Ultrapassar o umbral da fé significa então “descobrir que, se hoje temos a
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impressão que reine a morte em suas várias formas, [...] nós estamos absolutamente
convictos de que essa triste realidade pode e deve mudar”, “não envergonhar-se de ter
um coração como o da criança que, visto que crê ainda nas coisas impossíveis, pode
viver com a esperança”, “acompanhar o movimento constante da vida e da história
sem cair no paralisante derrotismo”, “aceitar a novidade da vida do Ressuscitado na
nossa pobre carne, a fim de imprimir nela o sinal da vida nova”.
Na homilia para o início da Quaresma de 2013, na passada quarta-feira de cinzas,
o cardeal fez um realista retrato da atualidade, feita de violência e de ódio, do
sofrimento dos inocentes e do império do dinheiro. E não se retraiu na denúncia de
que “os nossos erros e pecados como Igreja não estão fora desse grande panorama.
Os egoísmos pessoais justificados, e nem por isso menores, a falta de valores éticos
no seio da sociedade que destrói as famílias, a convivência entre as pessoas dos
bairros, dos povos e das cidades nos falam dos nossos limites, da nossa fraqueza e da
nossa incapacidade para poder transformar esse elenco imenso de realidades
destruidoras”.
À óbvia pergunta: “Tem sentido procurar mudar tudo isso? Podemos fazer algo
frente a essa situação?”, a sua clara resposta foi em todos os casos: “Sim, é possível
que tudo seja novo e diferente porque Deus continua sendo rico de bondade e
misericórdia, sempre disposto a perdoar e nos encoraja a recomeçar uma e mais
vezes”. E o Ano da fé é “a oportunidade que Deus nos presenteia para amadurecer no
encontro com o Senhor, que se torna visível no rosto sofredor de tantas crianças sem
futuro, nas mãos trêmulas dos anciãos esquecidos e nos joelhos vacilantes de tantas
famílias que continuam enfrentando a vida sem encontrar apoio em alguém”.
AS IDEIAS DO CARDEAL EM DEZ PALAVRAS
Ateísmo
“Quando me encontro com pessoas ateias, partilho as questões humanas, mas não
lhes apresento em primeiro lugar o problema de Deus, a não ser que sejam elas
mesmas a apresentá-lo a mim. Se é necessário eu lhes digo por que creio. O humano é
tão rico para ser partilhado, a ponto de tranquilamente podermos pôr em comum
reciprocamente as nossas riquezas. A partir do momento que eu sou crente, sei que
aquelas riquezas são um dom de Deus.”
Catolicismo
“Se olharmos a história, as formas religiosas do catolicismo mudaram
consideravelmente. Pensemos, por exemplo, no Estado Pontifício, no qual o poder
temporal estava unido ao poder espiritual. Era uma deformação do cristianismo que
não correspondia àquilo que Jesus queria e àquilo que Deus quer. Se, no curso da
história, a religião evoluiu tanto, por que não pensar que também no futuro ela se
adequará à cultura do seu tempo? O diálogo entre cultura e religião é fundamental, e
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está bem presente no concílio Vaticano II. Pede-se à Igreja uma conversão contínua –
Ecclesia semper reformanda (A Igreja está sempre em reforma) – e essa
transformação acontece em diversas formas no decorrer do tempo, sem alterar o
dogma. No futuro haverá formas distintas de adequar-se às novas épocas, como hoje
há modos distintos em relação aos anos de absolutismo.”
Mulheres
No catolicismo muitas mulheres guiam a liturgia da palavra, mas não podem
exercer o sacerdócio porque no cristianismo o sumo sacerdote é Jesus, um homem. E
a tradição fundada teologicamente é que aquilo que é sacerdotal passa pelo homem. A
mulher tem outra função no cristianismo, refletida na figura de Maria. É aquela que
hospeda a sociedade, aquela que acolhe, a mãe da comunidade. A mulher tem o dom
da maternidade, da ternura;se todas essas riquezas não se integram, uma comunidade
religiosa não somente se transforma numa sociedade machista, mas também numa
sociedade austera, dura e mal sacralizada. O fato que a mulher não possa exercer o
sacerdócio não significa que seja menos que o homem.”
Laicidade
“O risco que devemos evitar, párocos e bispos, é cair no clericalismo, que é uma
postura viciada do religioso. A Igreja Católica é todo o povo fiel de Deus, inclusive
os sacerdotes. [...] Quando um pároco conduz uma diocese ou uma paróquia, deve
escutar a sua comunidade, para amadurecer as decisões e conduzi-la nesse caminho.
Mas quando se impõe e de alguma forma diz ‘Aqui mando eu’, cai no clericalismo.
[...] A Igreja defende a autonomia das questões humanas. Uma sadia autonomia é
uma sadia laicidade, na qual são respeitadas as diferentes competências. Aquilo que
não é bom é o laicismo militante, que assume posição antitranscendente ou exige que
o religioso não saia da sacristia. A Igreja dá valores, e deixa que estes façam o resto.”
Oração
“Rezar é um ato de liberdade. Porém às vezes há como que uma intenção de
querer controlar a oração, que é o mesmo que querer controlar a Deus. Isso tem a ver
com uma deformação, com um excessivo ritualismo e com muitas outras atitudes de
controle. A oração é falar e escutar. Existem momentos de profundo silêncio, de
adoração, nos quais se espera ver aquilo que acontece. Na oração convivem esse
silêncio reverente e uma espécie de contratação, como quando Abraão negocia com
Deus o castigo de Sodoma e Gomorra. Da mesma forma Moisés contrata
intercedendo pelo seu povo, deseja convencer o Senhor a não castigar o seu povo.
Esta é uma atitude de coragem que, unida à humildade e à adoração, é imprescindível
para rezar.”
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Sacerdócio
“Nós aceitamos no seminário somente cerca de 40% daqueles que no-lo pedem.
Existe por exemplo um fenômeno psicológico: patologias ou neuroses de pessoas que
buscam seguranças externas. Alguns, que não conseguem realizar-se na existência,
procuram corporações que os protejam. Uma dessas corporações é o clero. Fiquemos,
pois, de olhos abertos, procuremos conhecer bem as pessoas que demonstram
interesse pelo sacerdócio. Depois, por um ano inteiro, a convivência de todo fim de
semana permite discernir entre quem tem a vocação e quem simplesmente procura
um refúgio ou se engana na percepção do chamado de Deus.”
Ciência
“A ciência tem sua própria autonomia, que deve ser respeitada e encorajada. Não
se deve interferir na autonomia dos cientistas. A ciência é fundamentalmente um
instrumento da ordem de Deus que diz: ‘Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra’.
No âmbito da sua autonomia a ciência vai transformando a ignorância em cultura.
Porém, atenção, quando a autonomia da ciência não se coloca limites e vai além, a
criação pode fugir de suas mãos. É o mito de Frankenstein. [...] Um exemplo muito
claro desses limites é o domínio da energia atômica, que pode chegar a destruir a
humanidade. Quando o homem se ensoberbece, cria um monstro que lhe escapa das
mãos. É importante que a ciência ponha limites para si.”
Serviço
“O serviço não é simples compromisso ético, nem um voluntariado do tempo livre
restante, nem um princípio utópico. Dado que a nossa vida é um dom, servir equivale
a ser fiéis àquilo que somos: trata-se da íntima capacidade de dar aquilo que somos,
de amar até o ponto extremo dos próprios limites. As palavras do Evangelho não se
dirigem somente ao crente e ao praticante. Atingem todas as autoridades, tanto
eclesiais quanto políticas, visto que trazem à luz o verdadeiro significado do poder.
Trata-se de uma revolução baseada no novo vínculo social do serviço. O poder é
serviço. O poder tem sentido somente se é posto a serviço do bem comum.”
Humildade
“Os grandes chefes do povo de Deus foram homens que deixaram espaço à
dúvida. Moisés era o homem mais humilde que existia sobre a terra. Diante de Deus
conta somente a humildade, e isso requer que os chefes religiosos deem espaço para
Deus, que façam as contas com a experiência interior da escuridão, do não saber o
que fazer. Uma das características de um mau chefe é ser excessivamente autoritário
por causa da segurança que deposita em si mesmo.”
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Vaticano
“Fala-se sempre da riqueza do Vaticano. Uma religião necessita do dinheiro para
manter as suas obras, e se ele passa por instituições bancárias, isso não é ilícito. O
dinheiro que entra nos caixas do Vaticano vai frequentemente para os leprosários,
para as escolas, para as comunidades africanas, asiáticas, americanas.”
O futuro da Igreja e do mundo
A grande preparação teológica no âmbito mariano de papa Francisco se associa a
uma intensa devoção desde a infância, como documentou a sua constante entrega a
Nossa Senhora nos primeiros passos do seu pontificado. A primeira saída pública,
com ramalhete de flores nas mãos, o viu na Capela Paulina em Santa Maria Maior,
em oração diante da milagrosa imagem da Virgem, e logo depois diante do altar do
Presépio na mesma basílica, onde santo Inácio de Loyola celebrou a sua primeira
missa no Natal de 1538.
Nesses momentos, o seu pensamento certamente correu a Nossa Senhora de
Luján, a padroeira da Argentina, e a Morenita, a Virgem de Guadalupe, que
representa o farol mariano de toda a América Latina. Doutra parte, também a
remitência a Fátima, com a ocorrência do dia 13, é constante na sua vida: 13 de
dezembro de 1969 foi ordenado sacerdote, aos 13 de maio de 1992 recebeu a notícia
da promoção a bispo, no dia 13 de março passado foi eleito Papa. E no próximo dia
13 de outubro, exatamente na presença da estátua de Nossa Senhora de Fátima,
celebrará na praça São Pedro a jornada mariana do Ano da fé, depositando uma vez
mais nas suas mãos a comunidade eclesial.
No livro entrevista El jesuita, o cardeal Bergoglio assim respondeu à pergunta de
como imagina o futuro da Igreja católica: “A Igreja deve acompanhar o
desenvolvimento existencial, moral, humano dos povos. Deve fazê-lo crescer em
humanidade pois, no fundo, o homem é o destinatário da Revelação de Deus, é
imagem de Deus. Como cristãos, não podemos renegar essa concepção nem
mercantilizá-la. Para o resto, creio que o século XXI será religioso. Mas será preciso
ver de que forma. Às vezes a religiosidade vem acompanhada de uma espécie de
vago teísmo que entrelaça o psicológico com o parapsicológico, não sempre
destinado a um verdadeiro e profundo encontro pessoal com Deus, como nós cristãos
estamos convictos de que deva ser.”
E a seguir indicou os três critérios-chave que definem a identidade pessoal e que
permitem um significativo encontro com os outros: a transcendência, a diversidade, a
projetualidade. “Três horizontes que, expressos negativamente, equivalem a um não
ao ateísmo, isto é, à falta de transcendência; não à supremacia dos poderosos, que
geram o pensamento único ou hegemônico, negador da diversidade; não aos
progressismos a-históricos.”
Ao mesmo tempo é preciso evitar, como precisou numa entrevista à revista mensal
30giorni em novembro de 2007, a pior coisa que possa acontecer na Igreja: “Aquela
que De Lubac chama ‘mundanidade espiritual’. É o perigo maior para a Igreja, para
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nós, que estamos na Igreja. ‘É pior’, diz De Lubac, ‘mais desastrosa que aquela lepra
infame que tinha desfigurado a Esposa amada no tempo dos papas libertinos’. A
mundanidade espiritual é colocar a si próprios no centro. É aquilo que Jesus vê
concretizado entre os fariseus: ‘Vós que glorificais a vós mesmos. Que dais glória a
vós mesmos, uns aos outros’.”
Agora que se tornou Francisco, essas palavras se tornam uma explícita declaração
de intenções. O encontro espiritual com Deus está no coração do anúncio proposto
pelo novo Pontífice em suas primeiras intervenções públicas. E o diálogo com os
outros é possível unicamente a partir da clareza acerca das respectivas identidades,
como ele próprio sublinhou na homilia da missa pro ecclesia do dia 14 de março:
“Podemos edificar muitas coisas, mas, se não confessamos Jesus Cristo, a coisa não
funciona. Tornar-nos-emosuma ONG assistencial, mas não a Igreja, Esposa do
Senhor”.
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N
OS DESAFIOS
OS DEZ NÓS PARA O FUTURO
o comentário em cima da hora em Famiglia Cristiana, escrevemos que
a renúncia de Bento XVI “relança a Igreja no caminho da purificação,
do pedido de perdão e da renovação. Para uma Igreja que esteja a
serviço da humanidade, no espírito de abertura e de diálogo do concílio
Vaticano II. E para oferecer palavras de verdade e de esperança aos
homens de hoje”.
Essas palavras representam muito mais que um desejo. São o pedido que em alta
voz se levantou não somente da comunidade eclesial, mas também das mais
gabaritadas vozes de uma sociedade que olha para a Igreja como para um farol de
valores e de certezas, capaz de iluminar ainda os difíceis dias que o mundo está
atravessando.
De alguma forma essa consciência foi explicitada também pelo cardeal decano
Angelo Sodano, percorrendo a missão que Cristo confiou a Pedro e aos seus
sucessores, na homilia da missa pro eligendo Pontifice. Em primeiro lugar, apontou
como raiz profunda a mensagem evangélica do amor “que impele os Pastores da
Igreja a desempenhar a sua missão de serviço aos homens de todos os tempos, desde
o serviço caridoso mais imediato até o serviço mais elevado, o serviço de oferecer aos
homens a luz do Evangelho e a força da graça”. E logo a seguir, sublinhando as
palavras de são Paulo sobre a diversidade de dons que estão em função da edificação
do único corpo de Cristo, enfatizou aos coirmãos cardeais a mensagem da unidade:
“Todos nós somos chamados a cooperar com o Sucessor de Pedro, fundamento
visível dessa unidade eclesial”. Uma exata indicação e um premente apelo que não
podem ser descurados.
Certamente o novo Pontífice tem agora sobre os ombros, juntamente com o apoio
de toda a comunidade eclesial e a assistência do Espírito Santo, também o ônus de
enfrentar e solucionar alguns desafios estreitamente associados ao gesto do Pontífice
emérito. Mas pode ao mesmo tempo confiar na riqueza do extraordinário magistério
de Joseph Ratzinger e nas sementes que ele plantou para a regeneração da Igreja, que
em grande parte já começaram a florescer. A obra de limpeza está encaminhada,
trata-se agora de remover todo o pó.
O Ano da fé e a encíclica não publicada
O principal legado espiritual de Bento XVI ao papa Francisco é sem dúvida
alguma o Ano da fé, iniciado aos 11 de outubro de 2012 e em andamento até 24 de
novembro de 2013. O motivo dessa iniciativa é assim explicado pelo então Pontífice
na homilia da missa de inauguração: “Nestas décadas avançou uma ‘desertificação’
espiritual. O que significasse uma vida, um mundo sem Deus, no tempo do Concílio
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já se podia saber a partir de algumas páginas trágicas da história, porém agora
infelizmente o vemos todos os dias ao nosso redor. É o vazio que se difundiu. Mas é
justamente a partir da experiência desse deserto, desse vazio, que podemos
novamente descobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós homens e
mulheres”.
Um desafio, o desafio da assim chamada “nova evangelização” e do “reforçar a
nossa fé em Deus num contexto que parece colocá-lo sempre mais em segundo
plano”, que cabe agora ao novo Papa levar à realização. Assim resumiu suas
coordenadas o Pontífice emérito na última Audiência geral de 27 de fevereiro:
“Desejo convidar a todos a renovar a firme confiança no Senhor, a confiar-nos como
crianças nos braços de Deus, certos de que aqueles braços nos sustentam sempre e
são aquilo que nos permite caminhar cada dia, também na fadiga. Desejo que cada
um se sinta amado por aquele Deus que doou o seu Filho por nós e que nos mostrou o
seu amor sem confins. Desejo que cada um sinta a alegria de ser cristão”.
Como ajuda concreta, papa Francisco encontra já à sua disposição o esboço da
encíclica sobre a fé que Bento XVI havia preparado para completar a trilogia sobre as
virtudes teologais, depois da Deus caritas est de 2005 e da Spe salvi de 2007. Um
primeiro anúncio sobre a publicação da nova encíclica havia sido feito em dezembro
passado pelo padre Federico Lombardi, mas, após a renúncia de Bento XVI, o porta-
voz do Vaticano havia precisado que o texto não seria promulgado.
A chave interpretativa que o Pontífice emérito quis dar a esse documento está
totalmente mergulhada na dinâmica da nova evangelização. Ele próprio o explicitou
quando integrou o título do Sínodo dos bispos de 2012, que deveria ter sido
simplesmente “A transmissão da fé cristã”, com o acréscimo inicial “A nova
evangelização para a transmissão da fé cristã”. E para trabalhar na preparação do
esboço foram com efeito chamados principalmente os peritos do recém-nascido
Pontifício Conselho para a promoção da nova evangelização presidido pelo arcebispo
Rino Fisichella.
De qualquer modo, se ao contrário papa Francisco preferisse dar nova impostação
à encíclica, o texto originário poderia ser publicado como autoria de Joseph
Ratzinger. Quem levantou essa hipótese foi o diretor da Sala de imprensa vaticana,
padre Federico Lombardi. Nesse caso, obviamente não pertenceria ao magistério
pontifício, mas representaria de qualquer forma uma contribuição qualificada para
este Ano da fé e para o seu prosseguimento na vida ordinária do povo de Deus.
A reforma da Cúria vaticana
A reorganização da Cúria Romana, o aparato de governo da Santa Sé, foi um dos
mais comuns pedidos nas mais de 160 intervenções dos cardeais durante as dez
Congregações gerais que precederam o Conclave, onde foram colocadas sobre a mesa
as temáticas mais urgentes para o empenho do novo Pontífice.
Na base das suas solicitações não havia com certeza a preocupação com uma
reestruturação unicamente organizacional desses ofícios, como se se tratasse de
melhorar a sua capacidade na gestão da burocracia eclesiástica, mas sobretudo a
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preocupação para que os organismos centrais que auxiliam o Papa no governo geral
da Igreja Católica estejam sempre mais alinhados com a sua essência.
Com efeito, assim a descreve a constituição Pastor Bonus, emanada por João
Paulo II em 1983: auxiliar “o Romano Pontífice no exercício do seu supremo ofício
pastoral para o bem e o serviço da Igreja universal e das Igrejas particulares, exercício
com o qual se reforçam a unidade da fé e a comunhão do povo de Deus e se promove
a missão própria da Igreja no mundo”.
É provavelmente também a essas palavras que Bento XVI se referiu quando aos
27 de fevereiro, na Audiência final do seu pontificado, enfatizou com força que a
Igreja não é “uma organização, uma associação para fins religiosos ou humanitários,
mas um corpo vivo, uma comunhão de irmãos e irmãs no Corpo de Jesus Cristo”. E
ainda mais na saudação aos cardeais de 28 de fevereiro, citando uma frase do grande
pensador Romano Guardini, recordou: “A Igreja não é uma instituição excogitada e
construída no escritório, mas uma realidade vivente”.
Portanto, não se trata de reconstruir a frio a governance, como já é costume dizer à
moda americana, mas de retomar um empenho colegial para oferecer ao Pontífice
toda possível ajuda em compreender as necessidades da Igreja e em atuar as respostas
adequadas. Uma das modalidades mais sublinhadas pelos chefes de dicastério é uma
relação mais direta com o Papa, sem a mediação da secretaria de Estado vaticana que
às vezes resultou excessivamente invasiva. Um primeiro gesto poderia ser a retomada
das assim chamadas “audiências de tabela” que permitem a cada prefeito de cada
Congregação e presidente de Pontifício conselho encontrar pessoalmente o Papa em
encontros constantes e prefixados.
O próprio Bento XVI não se subtraiu de lançar um desejo nessa direção, quando,
ainda no encontro de 28 de fevereiro com os cardeais, solicitou-os “a crescer nessa
unidade profunda, de modo que o Colégio dos cardeais seja como uma orquestra,
onde as diversidades – expressões da Igreja universal – concorram sempre para a
superior e concorde harmonia”.
O escândalo Vatileaks
No último dia do pontificado, Bento XVI assim sintetizou, com doçura levemente
velada de amargura, as pedras de tropeço

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