Buscar

Prévia do material em texto

Direitos humanos: por que e para quem? 
Um dos fenômenos ativos atualmente envolvendo os dois lados do dilema são os direitos humanos e as lógicas de punição com respeito aos deslocamentos forçados de população. As diferentes formas de desrespeito aos direitos humanos, por causa da impossibilidade de vida no próprio local ou país de origem, provocam esses deslocamentos. Mas, a tendência dos Estados tem sido tratar essas pessoas como potenciais criminosos, e tem uma lógica criminal para governar esses fluxos de pessoas, com técnicas de vigilância e controle nas fronteiras e dentro dos próprios países. Durante a ditadura, o Brasil foi um produtor de refugiados. Naquele momento, os brasileiros foram reconhecidos como refugiados, e tiveram seus direitos humanos respeitados em diversos países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Portugal e outros. Hoje, segundo dados do Comitê Nacional Para Refugiados (CONARE, 2018), nós recebemos solicitantes de refúgio de mais de 80 países, em particular haitianos, senegaleses, venezuelanos, sírios e angolanos.
O Iluminismo:
Movimento cultural nascido na Europa do século XVIII, no processo de transição da sociedade feudal à capitalista. Representou um marco histórico na forma de conceber o mundo, refletia nas mais diversas áreas do pensamento: filosofia, literatura, artes, física, matemática, direito. Esse período é chamado de “século das luzes” por defender como valor central o conhecimento, a razão e o progresso da ciência e da cultura. Colocava como o antídoto ao que se considerava um atraso e um entrave ao desenvolvimento dos sujeitos e das sociedades: a ignorância, superstição, o fanatismo religioso, intolerância e os abusos da Igreja e do Estado. A razão passa a ser entendida como necessária para iluminar uma nova visão de mundo. Muitos de seus valores exerceram um papel importante para efetivar mudanças no plano jurídico, político e econômico-social daquela época e ainda são fundamentais para pensarmos as sociedades hoje. 
Acreditar na razão e na sua capacidade libertadora acompanhava um ideal de sociedade que devia se progredir, caminhando em
direção às luzes propiciadas pelo conhecimento científico, baseado na observação e na demonstração empírica. O liberalismo guiava os princípios econômicos, e o jusnaturalismo com base na doutrina que considera todos os indivíduos portadores de direitos inatos naturais. A igualdade e a liberdade formais são norteadoras da concepção jusnaturalista moderna. Há quatro ensinamentos iluministas que são fundamentais para a reflexão sobre os direitos humanos: 
1)  a autonomia do indivíduo, considerado capaz de tomar decisões autonomamente, de ter liberdade para pensar, questionar, criticar; daí vem o reconhecimento do direito natural, que o considera sujeito de direitos; 
2)  o humanismo: o ser humano é colocado no centro para pensarmos a finalidade dos nossos atos e qualquer outro aspecto da vida social, considerando, portanto, a vida humana também um direito inviolável; 
3)  o universalismo: o pertencimento ao gênero humano é considerado mais importante do que o pertencimento a um grupo em particular, ou seja, todos os seres humanos são portadores de direito; 
4)  o respeito à diversidade: pensar universalmente, em defesa da humanidade, significa reconhecer as diferenças, sejam elas religiosas, de pensamento ou políticas. 
Textos de iluministas como Jean Jacques Rousseau, Immanuel Kant e os artigos da Carta de Direitos Americana e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, são marcos jurídicos fundadores dos direitos humanos na modernidade. Por isso que esses textos e legislações não envelheceram! A evolução dos direitos humanos até os séculos XX e XXI se espelhou nesses ideais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, é o maior exemplo de como esses ideais continuaram sendo de enorme importância para poder dar uma nova direção para a sociedade que estava saindo de duas grandes guerras mundiais. Elas são exemplos muito fortes de catástrofes humanas. Por isso, nesse momento, as sociedades europeias tomaram a tarefa de lidar com os crimes contra a humanidade que não poderiam se repetir, como aqueles perpetrados pelo nazismo. 
Foi justamente no Pós-Guerra, em 1945, que houve a operacionalização da punição do crime contra a humanidade, a partir de princípios do direito internacional. O Tribunal de Nuremberg foi uma iniciativa que transformou os ideais de defesa dos direitos humanos em uma prática judicial, com o papel de produzir memória para evitar que momentos tenebrosos da história – que viraram as costas para os direitos humanos – se repitam. Os principais representantes do regime nazista foram julgados nesse Tribunal pelos crimes de guerra, sobretudo pelo extermínio de opositores ao regime, homossexuais, ciganos, dentre outros grupos sociais. Colocava-se, nessa ocasião, o dever de reconhecer e punir as atrocidades que causam grande sofrimento e atingem a integridade física ou mental de indivíduos ou grupos sociais. 
Nessa ocasião foi afirmado um princípio de justiça global, que colocava a primazia do direito internacional em relação ao nacional como instrumento de defesa dos direitos humanos para coibir práticas que são consideradas intoleráveis, porque atentam à humanidade. Na atualidade, a Corte Penal Internacional é o principal órgão responsável por punir crimes contra a humanidade e por denunciar práticas hediondas. É variado o quadro de violação de direitos humanos de indivíduos ou grupos sociais por motivo político, econômico, religioso, racial, compreendendo assassinato, escravidão, deportação, tortura, prisão abusiva, abuso sexual, perseguição em massa, desaparecimento de pessoas, apartheid, genocídio, crime de guerra, prostituição forçada, esterilização forçada, dentre outros.    
Essa forma violenta de tratar grupos sociais específicos da nossa população, antes os “selvagens” e hoje os mais pobres e os negros, não pertence apenas ao passado. Por exemplo, hoje a mídia tem um papel muito importante em difundir a ideia de que “bandido tem que morrer”. Em nenhum momento se esclarece, no entanto, quem é esse bandido, qual é a sua história de vida, de qual sistema de violência (do Estado e da sociedade) ele também foi vítima, que tratamento ele recebe na prisão. Da mesma forma, em nenhum momento se discute como sociedades que já foram marcadas pela violência e caminham para resolver de forma humanizada o problema da criminalidade atacam suas causas, ou seja, como lidam com as desigualdades sociais, o acesso ao trabalho digno, à moradia e à educação, o respeito aos direitos humanos, enfim, o direito à vida. Lamentavelmente a memória latino-americana é atravessada por crimes contra a humanidade. Como o tráfico de escravos e a escravidão, que foram perpetuados por séculos no Brasil para sustentar nossa economia agrário-exportadora. Segundo Abdias Nascimento, o genocídio contra os negros é permanente e ocorre de forma velada no Brasil. As estatísticas sobre os jovens negros que são assassinados e encarcerados no Brasil comprovam que esse autor continua tendo toda a razão. 
Os regimes ditatoriais que se disseminaram em países como Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, são exemplos de crimes contra a humanidade, pela prática da tortura de dissidentes políticos, assassinatos, estupros de mulheres, prisões em massa, desaparecimento de corpos, perseguições. Nesse período, o Brasil expulsou muitas pessoas que resistiam e lutavam contra essas práticas, em defesa dos direitos humanos e da democracia, sobretudo da liberdade de expressão. Essa crítica vale para o nosso passado da sociedade colonial e também vale para o nosso passado do regime ditatorial. A Comissão foi recentemente implementada para agir nessa lacuna e representa uma conquista de pesquisadores, professores, movimentos sociais e das pessoas comprometidas com a produção da memória por meio do exame e do esclarecimento das graves violações aos direitos na ditadura. Um relatório final foi produzido por essa Comissão, que é possível analisaros desafios dessa iniciativa, sobretudo o de comunicar os seus resultados para a população em geral e poder efetivar políticas públicas para a conscientização dessa memória. Várias mulheres tiveram seus filhos desaparecidos durante a ditadura argentina e que marcham semanalmente em frente à Casa Rosada com os lenços brancos em suas cabeças – por representarem simbolicamente as fraldas de seus bebês – protestando contra a ditadura, para que isso não se repita mais. A mídia constrói uma visão única para olhar o problema da violência – silenciando outras violências em nível macro, como a do sistema econômico ou da ação do próprio Estado –, é impossível entender essa questão. Michel Foucault nos ajuda a refletir sobre esse dilema antigo e atual ao explicar que o punitivismo é também uma forma de governar do poder, que passa pela incorporação da lógica de punição pelos sujeitos. O autor é uma referência para reconhecermos o caráter brutal da repressão e nas sociedades modernas que, colocaram no centro de sua organização “a vontade de punir”. O simples fato de supostamente estar sob vigilância faz com que o detento internalize essa norma e obedeça às regras de bom comportamento. No contato com essa disciplina, reproduzida por instituições como as prisões, escolas, hospitais, nascem os “corpos dóceis”, “obedientes” e também “produtivos”: “uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para nada.
A relação “poder-saber”, expressa em discursos científicos e no senso comum sobre a punição, tem um papel importante para a construção da verdade sobre o crime e para a legitimação de sua punição pelas práticas disciplinares, que incluem a vigilância contínua. Esse saber construído é também uma forma de controle político e social que se transforma em práticas generalizadas, atingindo determinados grupos sociais, em particular os classificados como “anormais”. Exemplo: o discurso científico da psiquiatria para classificar os “normais” e os “loucos”, estabelecendo práticas específicas, não apenas para separar esses últimos da sociedade, mas também para puni-los quando infringiam as regras de conduta nas instituições psiquiátricas. Lembremos que os hospitais psiquiátricos, até pouco tempo atrás, utilizavam-se de práticas como a cadeira de choque, o açoite, as alas de isolamento total, entre outras. Essas práticas eram consideradas pelo discurso psiquiátrico como a única forma de curar as pessoas com problema psíquico. 
A questão é que essas pessoas não eram curadas de forma humanizada e integrada com os familiares e a sociedade, e sim, viviam e morriam nesses hospitais. Como estavam isoladas, a sociedade simplesmente não via o que ocorria dentro dessas instituições e como o discurso científico da psiquiatria não correspondia aos fins de, de fato, “curar” esses pacientes.   O campo do saber está ligado ao exercício do poder se baseando em discursos científicos para legitimar as suas práticas. Essa relação poder-saber também expressa relações de desequilíbrios entre os sexos. O estudo de Da Silva (1985) mostra como o saber da legislação penal (que regulamenta a sexualidade da mulher), a doutrina penal (que garante a aplicação dessas normas) e a jurisprudência presente em toda a dogmática penal conseguem adaptar definições de normalidade da conduta da mulher estabelecidas pelas estruturas de poder dominantes ao corpo da mulher. Com base nessas definições de normalidade da conduta da mulher construídas pelo poder patriarcal – que considera a mulher inferior e submissa ao homem – muitas sentenças proferidas pelos tribunais penais absolvem os homens que cometeram crimes de violência e abuso sexual contra as mulheres. De Carvalho (2010) explica que, desde as últimas décadas, o Brasil pode ser considerado, para todos os efeitos, um país que segue a mesma tendência punitivista presente no cenário internacional, em detrimento do direito à vida. O encarceramento em massa é prova disso. Em um contexto de crise, incerteza, insegurança, as lógicas punitivistas, fazem parte do imaginário das pessoas e, sobretudo, da forma de governar dos Estados. A mídia é um vetor de enorme importância dessa “racionalidade”. Não há uma reflexão que evite o despertar de um sentimento de insegurança, de impunidade, que acompanha, portanto, a ideia da punição, da vingança e da privação de liberdade. 
O maior problema sobre essa questão, é que o “clamor punitivista” caminha ao lado da violação de garantias e direitos e do abuso de poder. O que se está produzindo são sociedades mais violentas. Loïc Wacquant mostra como os países que mais possuem encarcerados no mundo, como os EUA, não são aqueles que têm menores índices de criminalidade. Conforme ele explica, o aprisionamento em massa revela o funcionamento da “tolerância zero” contra os grupos vulneráveis da sociedade. 
O Brasil ainda é um país que recebe refugiados. Antigamente, recebeu europeus que fugiam das duas grandes guerras e, nas últimas décadas, refugiados de diferentes nacionalidades, sobretudo sírios, venezuelanos, haitianos, angolanos, palestinos. O refugiado é salvo por tratados internacionais como a Convenção de Genebra, a Declaração de Cartagena e os princípios dos direitos humanos e, no Brasil, pela Lei Nacional de Refúgio nº 9474 e pela Constituição Federal. Tais deslocamentos forçados espelham o desrespeito aos direitos humanos e situações de desastre ambiental nos países de origem dessas populações, além de casos mais típicos de refúgio, provocados por várias perseguições e ameaça à vida. Sobre a necessidade de ampliação desse estatuto para abranger uma concepção mais ampla de desrespeito aos direitos humanos e situações de desastre ambiental: maior parte desses deslocamentos contemporâneos é provocada por conflitos e guerras. Mas, a atuação de governos que desrespeitam as liberdades políticas mais elementares (como o direito de resistência à opressão),  princípios  que  foram afirmados  há muito tempo,  no Iluminismo, coloca um alarme para as nossas sociedades e suas conquistas democráticas, que carregam anos de lutas e muitos sacrifícios, até de mortes, torturas, perseguições, prisões, para combater governos tiranos e genocidas – no passado remoto e no mais próximo, como demonstra o caso dos regimes totalitários na Europa e das ditaduras no Brasil e no restante da América Latina. Muitos estudos acadêmicos comprovam que o Brasil expulsou inúmeras pessoas que resistiam contra o governo militar, em defesa dos direitos humanos e da democracia, da liberdade de expressão que foi reconhecido há muitos séculos atrás. Esses refugiados eram: jovens, estudantes, professores, intelectuais, artistas, escritores, músicos. A liberdade, imaginação, criação, crítica e a participação cidadã na política, quando vistos pelo regime como “ameaças”, não eram tolerados. Embora não possamos defender que as “luzes da razão” podem resolver todos os problemas da humanidade, da emancipação humana, é válido retomar os princípios que motivaram o Iluminismo. Esses valores são fundamentais como parâmetros para pensarmos a vida coletiva e continuam válidos para se evitar o obscurantismo da razão. A negação desses valores e a interdição antidemocrática da participação cidadã são sinais de um retrocesso que remonta a séculos atrás.  O acolhimento, no Brasil, dos refugiados passa pelo reconhecimento da sua condição humana e de proteção da democracia na nossa sociedade para que nosso país não se transforme em um país produtor de refugiados em massa de novo. A defesa de um refugiado ser acolhido em nosso país está conectada com a defesa de que os próprios brasileiros tenham seus direitos respeitados, não precisando fugir para outros países. A Constituição Federal guarda tais valores e os tratados internacionais mencionados. Há uma legitimidade jurídica para a proteção dos cidadãos brasileiros e não nacionais que tenham ameaçada a sua liberdade de expressão, de fé religiosa, de posicionamento político, de escolha de identidade sexual, etc.

Mais conteúdos dessa disciplina