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-AQUISICAO FONOL6GfCA DO PORTUGUE:S PERFIL DE DESENVOLVIMENTO ~ E SUBSIDIOS PARA TERAPIA REGINA RITTER LAMPRECHT GIOVANA FERREIRA GONyALVES BONILHA GABRIELA CASTRO MENEZES DE FREITAS CARMEN LUCIA BARRETO MATZENAUER CAROLINA LISBOA MEZZOMO CAROLINA CARDOSO OLIVEIRA LETICIA PACHECO RIBAS 2004 Autoras Regina Ritter Lamprecht Licenciada em Letras; Doutora em Letras, area de Lingiiistica, pela Pontificia Uni- versidade Cat6lica do Rio Grande do Sui (PUCRS); docente do Programa de P6s- Graduac;;ao em Letras da PUCRS; Coordenadora do Centro de Estudos sobre Aquisi- c;;ao e Aprendizagem da Linguagem (CEAAL); organizadora dos Encontros Nacio- nais sobre Aquisic;;ao da Linguagem; orientadora de pesquisas na area da Aquisic;;ao da Linguagem; pesquisadora do CNPq. Co-au tara de Avaliw;:iio Fonol6gica da Crian- ~a (Yavas, Hemandorena e Lamprecht, 1991). Giovana Ferreira Gonc;alves Bonilha Licenciada em Letras; Mestre em Letras, area de Lingiiistica, pela Universidade Cat6lica de Pelotas (UCPEL); Doutoranda em Letras, area de Lingiiistica, no Pro- gram a de P6s-Graduac;;ao em Letras da PUCRS, sob orientac;;ao da Prof". Dr". Leda Bisol: docente da Faculdade de Letras da UCPEL. Gabriela Castro Menezes de Freitas Licenciada em Letras; Mestre em Letras, area de Lingiiistica, pela PUCRS; Douto- randa em Letras, area de Lingi.iistica, no Program a de P6s-Graduac;ao em Letras da FUCRS. sob orientac;ao da Prof". Dr". Regina Ritter Lamprecht. Carmen Lucia Barreto Matzenauer Licenciada em Letras; Doutora em Letras, area de Lingiiistica, pela PUCRS; docen- te do Mestrado em Letras da UCPEL; Coordenadora do Mestrado em Letras da UCPEL; orientadora de pesquisas na area da Aquisic;ao da Linguagem; pesquisado- ra do CNPq. Co-autora de Avalia~iio Fonol6gica da Crian~a (Yavas, Hemandorena e Lamprecht, 1991) Carolina Lisboa Mezzomo Fonoaudi6loga; Especialista em Motricidade Oral; Especialista em Linguagem; Mestre em Letras, area de Lingi.iistica, pela PUCRS; Doutoranda em Letras, area de Lingi.iistica, no Programa de P6s-Graduac;ao em Letras da PUCRS, sob orienta- c;;ao da Prof". Dr' Regina Ritter Lamprecht. VI Autoras Carolina Cardoso Oliveira Licenciada em Letras; Mestre em Letras, area de Lingi.iistica, pela PUCRS; Douto- randa em Letras, area de Lingi.iistica, no Programa de P6s-Gradua<;ao em Letras da PUCRS, sob orienta<;ao da Profa. Dra. Regina Ritter Lamprecht. Leticia Pacheco Ribas Fonoaudi6loga; Especialista em Motricidade Oral; Mestre em Letras, area de Lin- gi.iistica, pela PUCRS; Doutoranda em Letras, area de Lingiiistica, no Programa de P6s-Gradua<;ao em Letras da PUCRS, sob orienta<;ao da Profa. Dra. Regina Ritter Lamprecht; docente da Faculdade de Fonoaudiologia do Centro Universitario FEEVALE. Agradecim entos Expressamos nossos agradecimentos as universidades que abrigam e apoiam essas pesquisas: a Pontiflcia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul, a cujo Programa de P6s-Graduac;ao em Letras pertence o Centro de Estu- dos sobre Aquisic;fw e Aprendizagem da Linguagem (CEAAL), e a Universida- de Catolica de Pelotas. Agradecemos ao CNPq, a CAPES e a FAPERGS, 6rgaos que apoiaram as pesquisas realizadas ao longo de 20 anos nas quais se baseia este livro. 0 apoio deu-se sob a forma de bolsas de Iniciac;ao Cientifica, de Mestrado, de Doutorado e de Produtividade em Pesquisa; de auxilios para a organizac;ao de eventos, muito especificamente os Encontros Nacionais sobre Aquisic;ao da Linguagem; de auxilios para publicac;oes e de auxilios para participac;oes em eventos nacionais e internacionais. Nossos agradecimentos a Prof'. Dr". Ester Scarpa (UNICAMP) pela leitu- ra cuidadosa do original, e pelos comentarios. Pretacio Regina Ritter Lamprecht Este livro, embora escrito em pouco mais de urn ano, na verdade levou 20 anos para ser consolidado. Essa longa matura<;:ao deve-se ao fato de o fundamento do Aquisi~Cio Fonol6gica do Portugues- J\FP- consistir, essencial- mente, do conjunto da produ<;:ao cientffica gerada na Pontiffcia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul (PUCRS), cesde 1983, no ambito do Centro de Estudos sabre Aquisi<;:ao e Aprendizagem da Linguagem (CEAAL), e na Uni- versidade Cat6lica de Pelot as (UCPEL), desde 1994, no Mestrado em Letras. Sao pesquisas que resultaram em disserta<;:6es de mestrado, teses de doutora- do, trabalhos apresentados em congressos no Brasil e no Exterior, artigos e capftulos de livros. E desse material numeroso e abrangente que nos valemos para chegar ao conteudo aqui publicado: reunimos os trabalhos que existem sabre cada t6pico, comparamos os resultados, resumimos conclusoes parciais, para podermos apre- sentar resultados concludentes e claros. Escrito a partir de uma perspectiva lingt.ifstica, o AFP visa disseminar conhecimentos amplos e detalhados que, ate agora, estao em disserta<;:6es e teses, e pretende proporcionar a possibilidade de aplica<;:ao dos resultados dessas pesquisas a pratica clfnica e pedag6gica. Ao colocarmos ao alcance do publico o resultado dos estudos de tantas pessoas ao Iongo de duas decadas, estamos estabelecendo a ponte essencial entre pesquisa e aplica<;:ao, entre universidade e pratica. Temos pelo menos dois objetivos ao publicarmos este livro: que esta seja uma obra de referencia confiavel e util para os que, por diversos motivos, se interessam pelo panorama da aquisi<;:ao fonol6gica, ou seja, por conhecer o que sabemos sabre padroes de aquisi<;:ao e sobre o desenvolvimento atfpico; e, por outro !ado, que este livro sirva como base e ponto de partida para novas estudos sobre aquisi<;:ao fonol6gica e sabre a fonologia do portugues brasileiro. 0 ptiblico-alvo que temos em mente sao fonoaudi6logos, psicopedagogos, professores das series iniciais, bern como alunos de gradua<;:ao dos cursos de Fonoaudiologia, Letras, Pedagogia e Psicologia, e alunos de cursos de p6s- gradua<;:ao dessas mesmas areas. Pensamos, igualmente, nos professores e X Prefacio pesquisadores nas areas da Aquisi<;:ao da Linguagem e da Fonologia. Nossos leitores incluem tambem, com certeza, OS psicologos, medicos e professores que, investindo em seu aprimoramento profissional, estudam e pesquisam iso- ladamente. ,h A estrutura do AFP abrange cinco partes. A primeira traz dais capitulos que sao, de certa maneira, preparat6rios para o restante do livro. No primeiro deles, Regina Lamprecht trata de aspectos gerais referentes ao conjunto dos trabalhos abordados e apresenta informa<;:oes sabre aquisi<;:ao fonol6gica, cujo conhecimento precisa preceder OS capftulos em que sera descrito 0 percurso da aquisi<;:ao. No segundo, Carmen Matzenauer faz considera<;:oes sabre o pro- cesso de aquisi<;:ao fonol6gica, descreve o sistema do portugues - cujo domi- nio e 0 alva a ser atingido pela crian<;:a - e fornece pressupostos das teorias fonol6gicas que servem como instrumentos de analise nas pesquisas. Na segunda parte, em quatro capitulos, tra<;:a-se o perfil da aquisi<;:ao das diferentes classes de segmentos, partindo da mais inicial para a mais tardia. Giovana Bonilha descreve a aquisi<;:ao das vogais, Gabriela Freitas a das clas- ses das plosivas e nasais, Carolina Oliveira a das fricativas e Carolina Mezzomo e Leticia Ribas a aquisi<;:ao das liquidas. Na terceira parte, composta de tres capitulos, e apresentada a aquisi<;:ao das diferentes estruturas silabicas do portugues brasileiro, novamente partin- do da mais simples para a mais complexa e, par isso, mais tardia. Giovana Bonilha escreve sabre a aquisi<;:ao do nticleo complexo, Carolina Mezzomo sabre ada coda e Leticia Ribas sabre a do onset complexo. A quarta parte e constituida par uma sintese do desenvolvimento crono- 16gico da aquisi<;:ao fonol6gica, organizando em quadros os dados estabeleci- dos nos capitulos anteriores. Elaborada par Carolina Mezzomo, Carolina Oli- veira, Gabriela Freitas e Regina Lamprecht, essa parte traz, tambem, amostras de fala de crian<;:as em diferentes momentosdo desenvolvimento fonol6gico para ilustrar a cronologia. A quinta parte compoe-se de dais capitulos com assuntos complementa- res. No primeiro, Gabriela Freitas trata da consciencia fonol6gica e, no outro, Regina Lamprecht aborda os desvios fonol6gicos, ou seja, a aquisi<;:ao cuja evolu<;:ao diverge dos perfis tra<;:ados anteriormente. Par fim, o leitor encontra o glossario, elaborado par Regina Lamprecht, Carolina Mezzomo, Carolina Oliveira, Gabriela Freitas e Giovana Bonilha, o qual serve como possibilidade de referencia rapida, com defini<;:oes de termos que devem ser interpretadas em conjunto com o texto do livro. As referencias bibliograficas e o indice remissivo foram organizados par Carolina Oliveira. Prefacio XI Como mostra o organograma a seguir, algumas partes do AFP podem ser lidas independentemente, se o leitor assim o desejar, enquanto que outras sao interligadas. Como ler o AFP Capitulo 1 -Antes de mais nada Capftulos 3, 4, 5, 6 Segmentos Capitulo 10 Cronologia 1 Capitulos 11 e 12 Consciencia fono16gica Desvios fonol6gicos Capitulo 2- Bases Capitulos 7, 8, 9 Sflabas a e s 0 J u .1 (y) w p b t d k g f v s z J(s) 3 (zl m n ]1(11) I !.. r ( r) X tJ(s) d3Gl lista de Sfmoolos foneticos Alfabeto internacional de fonetica -IPA (revisado em 1993, atualizado em 1996) EXEMPLO ORTOGMFICO TRANSCRI~AO FONETICA as a ['aza] me do ['medu] regua ['xe;gwa] fit a ['fita] torrada [to'xada] rosa ['x;,za] fuma<;:a [fu'masa] feijao [fej'3:'lw] aula ['awla] pat a ['pata] bala ['bala] tapa ['tapa] data ['data] cap a ['kapa] gat a ['gata] faca ['faka] vaca ['vaka] sapo ['sapu] cas a ['kaza] chapeu [Ja'psw] ia ['3a] maca co [ma'kaku] nada ['nada] banha ['baJla] lata ['lata] alho ['a.Au] barata [ba'rata] rato ['xatu] tia ['tJia] dia ['d3ia] ( ) Os simbolos entre parenteses sao do sistema de transcrigao americana Sumario Prefacio ............................................................................................................. ix Regina Ritter Lamprecht L. d ' b 1 f ' . .. lSta e SliD 0 OS onetlCOS ............................................................................... Xll PARTE I Para falar em aquisi~ao fonol6gica 1. Antes de mais nada ................................................................................. 17 Regina Ritter Lamprecht 2. Bases para o entendimento da aquisic;ao fonol6gica ............................... 33 Carmen LLicia Barreto Matzenauer PARTE II 0 percurso da aquisi~ao dos segmentos 3. Sobre a aquisic;ao das vogais .................................................................. 61 Giovana Ferreira Gonr;alves Bonilha 4. Sobre a aquisic;ao das plosivas e nasais ................................................... 73 Gabriela Castro Menezes de Freitas 5. Sobre a aquisic;ao das fricativas .............................................................. 83 Carolina Cardoso Oliveira 6. Sobre a aquisic;ao das liquidas ................................................................ 95 Carolina Lisb6a Mezzomo e Let{cia Pacheco Ribas PARTE Ill 0 percurso da aquisi~ao das estruturas silabicas 7. Sobre a aquisic;ao do nucleo complexo ................................................. 113 Giovana Ferreira Gonr;alves Bonilha 14 Sumario 8. Sabre a aquisic;ao da coda .................................................................... 129 Carolina Lis boa Mezzomo 9. Sabre a aquisic;ao do onset complexo ................................................... 151 Leticia Pacheco Ribas PARTE IV Para ilustrar a aquisi~ao fono16gica 10. Cronologia da aquisic;ao dos segmentos e das estruturas silabicas ........ 167 Carolina Cardoso Oliveira, Carolina LisbOa Mezzomo, 11' 12. Gabriela Castro Menezes de Freitas e Regina Ritter Lamprecht PARTE V Algo mais sabre aquisi~ao fono16gica Sabre a consci€mcia fonologica ............................................................. 177 Gabriela Castro Menezes de Freitas Sabre os desvios fonologicos ................................................................ 193 Regina Ritter Lamprecht Glossario ......................................................................................................... 213 Regina Ritter Lamprecht, Carolina Lis bOa Mezzomo, Carolina Cardoso Oliveira, Gabriela Castro Menezes de Freitas e Giovana Ferreira Gonj:alves Bonilha Referencias bibliograticas ............................................................................... 220 In dice remiss iva .............................................................................................. 229 PARTE I N T PARA FALAR EM AQUISI~AO FONOLOGICA 1 Antes de Mais Nada Regina Ritter Lamprecht Como foi dito no Prefacio, o conteudo deste livro resulta de informac;oes obtidas nas descric;oes dos dados e nas analises de resultados de urn grande numero de pesquisas sobre aquisic;ao fonologica ja realizadas no Rio Grande do Sul. Por isso, para melhor entendimento dos capftulos em que sera descrito 0 percurso da aquisic;ao das diferentes classes de sons e estruturas silabicas, e conveniente dar aos leitores algumas informac;oes, falando de aspectos gerais referentes ao conjunto dos trabalhos em que se fundamentam os demais ca- pftulos. UM PEQUENO HISTORICO DAS PESQUISAS A primeira disciplina sobre Aquisic;ao da Linguagem na PUCRS e, por conseguinte, no Rio Grande do Sul, iniciou-se em marc;o de 1983 por iniciati- va dos professores Feryal Yavas, Ph.D., e Mehmet Yavas, Ph.D., investindo em uma area de pesquisas relativamente nova no Brasil e no mundo todo. A epo- ca, eram pouco numerosos os pesquisadores brasileiros que estudavam esse assunto, devendo ser destacados os nomes de Claudia de Lemos, Leonor ScHar- Cabral, Eleonora Albano, Ester Scarpa, Rosa Figueira, Maria Cedlia Perroni, Leticia Correa, Maria Fausta de Castro Campos, Maria Francisca Lier-de Vitto. 1 As primeiras caletas de dados sobre aquisic;ao fonologica feitas na PUCRS, ainda em 1983, constaram de gravac;oes de entrevistas com crianc;as que apresentavam alterac;oes de fala. Mais adiante, em 1987, Mehmet Yavas teve a percepc;ao de que, para estudarmos o sistema fonologico de crianc;as com desvios fonologicos, seria fundamental e imprescindfvel que se conhecesse em profundidade e em detalhes a aquisic;ao fonologica de crianc;as com de- 18 Regina Ritter Lamprecht (Org.) senvolvimento considerado normal. Essa populac;ao passou a ser, entao, ou- tro foco de pesquisas e das duas primeiras teses de doutorado defendidas na area: Lamprecht (1990) e Hernandorena (1990). Ate hoje, nossas pesquisas continuam voltadas para esta necessidade - a analise da fala de crian~as com desenvolvimento normal- para podermos, entre outros aspectos, esta- belecer o perfil da aquisic;ao segmental e silabica do portugues brasileiro, descrever diferenc;as individuais entre os sujeitos e verificar possiveis regres- soes no desenvolvimento. Quanta mais pesquisamos, mais os dados nos apre- sentam questoes novas, e questoes ja estudadas sao reenfocadas na visao de novas teorias. 2 E importante ressaltar essa constante evoluc;ao, ao longo dos anos, no posicionamento teorico que e adotado. Nossas pesquisas sabre a aquisic;ao do componente fonologico seguem uma trajetoria que percorre diferentes mode- los teoricos para a fundamentac;ao da analise dos dados. Iniciada com a Fonologia Natural, a analise passou pela Fonologia Gerativa e desta para a Fonologia Autossegmental, adotada desde 1994 em estudos baseados na Fonologia Metrica, na Geometria de Trac;os e na Teoria da Silaba. Desde 1999 sao feitos estudos com base na Teoria da Otimidade. 3 Mudou, tambem, o posicionamento em relac;ao a natureza dos desvios fonologicos: considerados sistemas fonologicos de natureza essencialmente diferente dos sistemas de crianc;as consideradas normais, os desvios passarama ser vistos como basicamente semelhantes, em bora certamente nao identicos (Lamprecht, 1999). A experiencia obtida no contato com os dados levou a ampliac;ao das faixas etarias que sao observadas, descritas e analisadas. Se em 1990 as pri- meiras teses sabre a aquisic;ao fonologica normal, ja referidas anteriormente, iniciavam a observac;ao das crianc;as aos 2:4 (anos:meses) ou aos 2:9, desde 1999 a idade inicial de observac;ao tern sido a de 1:0. Ao lado das diferentes teorias fonologicas, diversas pesquisas tern utiliza- do dois valiosos instrumentos: a analise estatistica, como auxilio do pacote de programas VARBRUL, numa adaptac;ao, para os estudos em Aquisic;ao, da metodologia usada em estudos variacionistas; e a analise acustica, utilizada para a confirmac;ao da analise perceptual e para a comprovac;ao de fatos e etapas do desenvolvimento. ALGUMAS INFORMA<;OES NECESSARIAS PARA LER 0 AFP Nesta sec;ao encontram-se informac;oes sabre os bancos de dados nos quais muitas das pesquisas buscaram suas evidencias, assim como sobre caracterfs- ticas dialetais da regiao em que foram realizadas as caletas das amostras de fala. Tam berne explicado, em grandes linhas, o pacote de programas VARBRUL, utilizado para o tratamento estatistico dos dados, por ele ser referido em di- versos dos capitulos seguintes. Sao, igualmente, apresentados criterios adotados Aquisic;:ao Fonol6gica do Portugues 19 para considerar adquirido urn segmento ou uma estrutura silabica e explicitados criterios para a definic;:ao de normalidade. Por ultimo, fala-se em diferenc;:as entre o portugues brasileiro e o portugues europeu. Descric;ao dos bancos de dados Por terem sido utilizados em muitas das pesquisas que serao aqui relata- das, e necessario descrever OS dois bancos de dados que reunem amostras da fala de crianc;:as cujo desenvolvimento e considerado normal - AQUIFONO e INIFONO -, e aquele em que estao amostras de fala de crianc;:as com desvios fonol6gicos- DESFONO. No inicio de 1991, Carmen Matzenauer e Regina Lamprecht, inseridas, respectivamente, nos cursos de P6s-Graduac;:ao em Letras da UCPEL e da PUCRS, decidiram realizar, em iniciativa conjunta, uma ampla coleta de dados de fala de crianc;:as monolingties adquirindo o portugues como lingua materna, com desenvolvimento considerado normal quanto aos aspectos lingtifstico, cognitivo e emocional. As pesquisadoras tiveram como objetivo disponibilizar para a comunida- de academica amostras de fala propicias a realizac;:ao de estudos fonol6gicos, por serem resultantes de entrevistas dirigidas para a eliciac;:ao de dados de fonologia, e confiaveis, por serem registradas em transcric;:ao fonetica ampla feita por pessoas treinadas, com conferencia por pelo menos urn, mas, em caso de duvida, por outro transcritor. Ter essas amostras prontas e a mao facilita em muito a tarefa do pesquisador, porque sao eliminadas diversas eta- pas demoradas e complexas, como a procura e a triagem de sujeitos, as entre- vistas para a coleta e a transcric;:ao fonetica. Os pesquisadores ficam liberados para a descric;:ao e a analise, para o estudo dos fatos sem mais demora. 0 primeiro desses Bancos foi o AQUIFONO, em que estao registradas entrevistas com 310 crianc;:as das cidades de Pelotas (RS) e Porto Alegre (RS), com idade entre 2:0 e 7:1, pertencentes a urn grupo sociolingtiisticamente homogeneizado pela escolaridade dos pais, identificada por formac;:ao mfnima correspondente ao primeiro grau/ensino fundamental completo. Os informantes foram divididos em 31 faixas etarias, cada uma contando com dez crianc;:as: cinco do sexo feminino e cinco do sexo masculino. As faixas etarias englobam urn periodo de dois meses, como seve em (1), a seguir. (1) Faixa etaria FE 1 FE 2 I dade 2:0;0- 2:1;29 2:2;0- 2:3;29 (2 anos ate 2 anos, 1 mes e 29 dias) (2 anos e 2 meses ate 2 anos, 3 meses e 29 dias) 20 Regina Ritter Lamprecht (Org.) FE 3 2:4;0- 2:5;29 e assim por diante, ate: FE 31 7:0;0- 7:1;29 (2 anos e 4 meses ate 2 anos, 5 meses e 29 dias) (7 anos ate 7 anos, 1 mes e 29 dias). Para direcionar a coleta, foi utilizado o instrumento proposto na Avalia- ~ao Fonol6gica da Crian~a (Yavas, Hernandorena e Lamprecht, 1991), que consta de 125 palavras representadas em cinco desenhos tematicos, complementado por urn instrumento adicional, elaborado especificamente para essa coleta e contendo palavras com as consoantes liquidas nas diferentes posi~oes na sila- ba e na palavra. A decisao de acrescentar essa nova lista foi motivada por se saber que essa e a classe de sons de aquisi~ao mais tardia no desenvolvimento normal, assim como aquela que mais dificuldades oferece as crian~as com desvios fonol6gicos. Os metodos utilizados para a elicia~ao das palavras do instrumento constituem-se de nomea~ao, narra~ao e fala espontanea. Em 1998, sempre com o auxilio de mestrandas e de bolsistas de inicia~ao cientffica, foram iniciadas as grava~oes de entrevistas com crian~as entre 1:0 e 2:0, visando a obten~ao de amostras de fala que complementassem e ampli- assem, em termos de faixa etaria, o AQUIFONO. Constituiu-se, assim, o Banco de Dados INIFONO, que reline entrevistas com 100 crian~as, sendo que as amostras de fala de 96 delas constituem urn corpus de dados transversais; quatro crian~as, porem, foram entrevistadas mensalmente e constituem urn corpus de dados longitudinais. Os 96 informantes da coleta transversal estao divididos em 12 faixas etarias, cada uma contando com oito crian~as: quatro do sexo feminino e quatro do sexo masculino. As faixas etarias englobam urn perfodo de urn mes, como se ve em (2), a seguir. (2) Faixa etaria FE 1 FE 2 FE 3 I dade 1:0;0- 1:0;29 1:1;0- 1:1;29 1:2;0- 1:2;29 (1 ano ate 1 ano e 29 dias) (1 ana e 1 mes ate 1 ano 1 mes e 29 dias) (1 ano e 2 meses ate 1 ano 2 meses e 29 dias) e assim par diante, ate: FE 12 1:11;0 -1:11;29 (1 ano e 11 meses ate 1 ano, 11 meses e 29 dias). 0 grupo longitudinal do INIFONO e constitufdo par duas meninas e dois meninos, com idade inicial de 1:0. Cada crian~a pertencente a esse segundo Aquisi<;:ao Fonol6gica do Portugues 21 grupo foi entrevistada em intervalos de 25 a 30 dias, pelo menos ate compte- tar 2:0. As entrevistas com as duas meninas foram continuadas ate os quatro anos. Utilizando o mesmo instrumento proposto por Yavas, Hernandorena e Lamprecht (1991), foi idealizada urn a maneira espedfica para contornar a dificuldade de obter amostras de fala de crianc;as tao pequenas. A coleta foi facilitada pela utilizac;ao dos "Sacos de Brinquedos", a saber, duas sacolas coloridas con tendo brinquedos, miniaturas e objetos que representam os itens lexicais cuja produc;ao se deseja conseguir, e bern adequados a pouca idade dos informantes do INIFONO. Com o mesmo objetivo, porem contemplando outra populac;ao, Regina Lamprecht, mais uma vez auxiliada por mestrandas e bolsistas de iniciac;ao cientffica, havia iniciado, em 1995, a coleta e a consolidac;ao de amostras de fala de crianc;as com desvios fonol6gicos evolutivos. Resultou daf o Banco de Dados DESFONO, que reline entrevistas de 80 crianc;as com idade entre 2:7 e 10:0 cujo desenvolvimento fonol6gico e atfpico. Esse numero de sujeitos e muito significativo, tendo em vista que as crianc;as com desvios fonol6gicos constituem uma subpopulac;ao das crianc;as com aquisic;ao fonol6gica normal. 0 instrumento de coleta e os criterios de transcric;ao foram os mesmos estabe- lecidos para o AQUIFONO. Esses bancos estao arquivados no Centro de Estudos sabre Aquisirao e Aprendizagem da Linguagem - CEAAL I PUCRS e no Mestrado em Letras da UCPEL. Caracteristicas dialetais E importante descrever as caracterfsticas da variante falada em Porto Alegre (RS) e Pelotas (RS), porque e nessas duas cidades que vivem as crian- c;as cujas amostras de fala estao registradas nos tres bancos de dados acima descritos, base de muitas das pesquisas que serao aqui enfocadas.Alem disso, todos os exemplos que ilustram o texto do AFP referem-se a produc;oes dessa regiao. Os leitores de outras regioes do pafs em cuja fala existam caracterfsti- cas diversas dessas devem fazer as necessarias adequac;oes. A fala dessa regiao apresenta as caracterfsticas a seguir relacionadas. • Palatalizac;ao de It/ e ldl diante de Iii Ex: 'tia' -7 [tJia] 'dinheiro' -7 [d3i'_peru] • Elevac;ao das vogais medias lei para [i] elol para [u], em determina- dos contextos Ex: 'menino' -7 [mi'ninu] 'coruja' -7 [ku'ru3a] • Semivocalizac;ao ou velarizac;ao da lateral quando em posic;ao de coda Ex: 'sal' -7 [saw] - [sai] 'alto' -7 ['awtu] - ['aitu] 22 Regina Ritter Lamprecht (Org.) • Monotonga<;ao de ditongos foneticos Ex: 'madeira' -7 [ma'dera] 'pouco' -7 ['poku] • Produ<;ao da fricativa em coda como fricativa alveolar (sem a palataliza<;ao caracteristica de outras variantes, como, por exemplo, a carioca) Ex: 'casca' -7 ['kaska] 'lapis' -7 ['lapis] • Produ<;ao do r-fraco como tap, e do r-forte como fricativa velar Ex: 'arara' -7 [a'rara] 'rato' -7 ['xatu] 'carro' ['kaxu] • Nao-produ<;ao, quase categ6rica, do /r/ do morfema do infinitivo e do /s/ do morfema do plural Ex: 'lavar' -7 [la'va] 'dois livros' -7 [dojs 'livru] 0 pacote de programas VARBRUL A partir de 1995, passou-se a utilizar o pacote de programas VARBRUL em muitas das pesquisas sobre a aquisi<;ao fonol6gica. 4 Sao representativos os trabalhos de Miranda (1996), Hernandorena e Lamprecht (1997), Mezzomo (1999), Vidor (2000), Savio (2001), Oliveira (2002) e Ribas (2002). A op<;iio pelo uso do VARBRUL nesse tipo de trabalho deve-se ao fato de o programa ser capaz de fornecer freqii.encias e probabilidades sobre os fen6menos estu- dados, alem de selecionar variaveis relevantes no processo da aquisi<;iio fonol6gica. Nao menos importante eo fato de o VARBRUL ser de uso relativa- mente facil para os pesquisadores, apos urn treinamento adequado. 0 pacote de programas computacionais VARBRUL permite o tratamento estatistico de dados variaveis, realizado atraves de modelos matematicos. 0 conjunto de programas e largamente utilizado em analises lingii.isticas variacionistas (Scherre, 1993) e, apesar da especificidade para a area da vari- a<;iio, tambem e utilizado com sucesso no tratamento de dados da aquisi<;ao fonol6gica. Esse pacote de programas possibilita a observa<;ao do papel de variaveis lingii.isticas (como, por exemplo: contexto fonol6gico precedente e seguinte; tonicidade; modo e ponto de articula<;iio ou sonoridade da consoante prece- dente e seguinte; qualidade da vogal) e de variaveis nao-lingii.isticas (como, por exemplo: idade, sexo, etnia, escolaridade, classe social). Diferentes roda- das permitem o cruzamento de variaveis para verificar a possivel intera<;iio de fatores, o seu papel no funcionamento dos dados observados e a sua probabi- lidade. Criterios de aquisi<;ao Para afirmar que urn determinado segmento ou uma certa estrutura silabicaja estao ou ainda nao estao adquiridos por alguma crian<;a ou em uma Aquisic;:iio Fonologica do Portugues 23 determinada faixa etaria, e necessaria ter-se urn criteria de proporc;:ao de acer- tos de produc;:ao a partir do qual essa afirmac;:ao possa ser feita. Os pesquisado- res da area da aquisic;:ao fonol6gica nao consideram necessaria que urn pata- mar de 100% de acertos seja atingido pelas crianc;:as, porque uma certa pro- porc;:ao de produc;:oes inadequadas restantes representa resqukios de etapas ja superadas ou, ate mesmo, simples lapsos de lingua. As pesquisas recentes que procuram estabelecer o perfil da aquisic;:ao fonol6gica consultadas para a elaborac;:ao dos capftulos do AFP trabalham, todas, com percentagens de produc;:ao correta para definir etapas de aquisi- c;:ao. Urn levantamento dos criterios utilizados nos trabalhos que serao listados a seguir mostra que, entre os treze trabalhos listados, oito definem 85 ou 86% de produc;:ao correta como criteria para considerar que urn segmento ou sfla- ba esta adquirido, e outros tres utilizam 80% de produc;:ao correta como crite- ria. Portanto, onze dessas treze pesquisas adotam a faixa entre 80 a 86% de produc;:ao adequada para considerar que determinado elemento fonol6gico esta adquirido. Somente dois trabalhos utilizam parametros diferentes - 90 e 75%, respectivamente, como se ve na lista seguinte. Hernandorena e Lamprecht ( 1997) 90% Azam buja ( 1998) 86% Fronza ( 1999) 86% Savio (2001) 86% Ribas (2002) 85% Oliveira (2002) 85% Hernandorena ( 1990) 85% Miranda (1996) 85% Rangel ( 1998) 85% Rizzotto ( 1997) 80% Mezzomo (1999) 80% Bonilha (2000) 80% Lamprecht (1990) 75% Portanto, quando houver menc;:ao ao fato de urn segmento ou estrutura sih\.bica estarem adquiridos, isso significa que uma propon;ao de 80 a 86%, ou mais, das crianc;:as de uma faixa etaria dominam tal segmento ou estrutura silabica em 80 a 86%, ou mais, das possibilidades de ocorrencia. Criterios para a definic;ao de normalidade Com excec;:ao do Capitulo 12, que versa sobre os desvios fonol6gicos, os demais capftulos do AFP referem-se a fala de crianc;:as cujo desenvolvimento e considerado normal nos aspectos linguistico, cognitivo e emocional. Com essa definic;:ao estamos referindo-nos a crianc;:as cujas caracteristicas orofaciais, auditivas, cognitivas, neurol6gicas e emocionais encontram-se dentro de pa- 24 Regina Ritter Lamprecht (Org.) droes que nfto interferem no desenvolvimento da fala. Sao crian<;as com de- senvolvimento linguistico adequado a idade cronol6gica em termos de com- preensao e produ<;ao de linguagem nos niveis sintatico, semantico, morfologico e pragmatico. 0 emprego das palavras "normal" e "anormal" e substituido, por mui- tos pesquisadores de quaisquer linguas, pelo uso de "tipico" e "atipico", ou "adequado" e "inadequado", em razao de as duas primeiras serem, frequen- temente, consideradas pejorativas ou politicamente incorretas. Por esse motivo e muito importante esclarecer que faremos uso de todos esses ter- mos ao Iongo deste livro, sem com isso estarmos sinalizando qualquer tipo de preconceito ou julgamento. Fica convencionado que expressoes como "aquisi<;ao normal" e "aquisi<;ao tipica" serao empregadas como sinonimas, assim como o serao expressoes como "desenvolvimento anormal" e "desen- volvimento atipico". Portugues brasileiro e portugues europeu 0 portugues brasileiro e o portugues europeu, falado em Portugal, sao variantes que tern algumas caracteristicas diferentes, fato que se reflete no processo de aquisi<;ao fonol6gica. Mezzomo e Menezes (2001) comparam a aquisi<;ao das estruturas sila- bicas nessas duas variantes e concluem por semelhan<;as, mas tam bern apon- tam diferen<;as. Para trazer exemplos de diferen<;as apontadas pelas auto- ras, temos que " ... as crian<;as brasileiras nao percorrem todos OS quatro estagios encontrados na aquisi<;ao do ataque maximo [onset complexo] no portugues europeu, excluindo parte do est agio 1 e o estagio 2" (p. 697). Alem disso, segundo as autoras, a explana<;ao da aquisi<;ao da rima do por- tugues europeu encontrada por Freitas (1997) nao e eficaz para o portugues brasileiro. 5 Deve ser destacado que as pesquisas nas quais os diferentes capitulos do AFP se ap6iam estao todas voltadas exclusivamente para o portugues brasilei- ro. Portanto, sempre que fizermos referencia ao portugues, nos pr6ximos capi- tulos, e ao portugues brasileiro que estaremos nos referindo. PRELIMINARES SOBRE AQUISI<;AO FONOLOGICA Nas se<;oes seguintes, serao abordados quatro t6picos basicos para se falar em aquisi<;ao fonol6gica. Esses assuntos sao colocados como prelimina- res, precedendo os capitulos sobre a aquisi<;ao das diversas classes de sons e dos diferentes tipos de silabas, para que os leitores possam familiarizar-se com conhecimentos importantes, fundamentais mesmo, tais como as varia- <;6es evolutivas que existem entre crian<;as e as regressoes no desenvolvimen- Aquisi<;:iioFonol6gica do Portugues 25 to. Com esses subsfdios, poderao relativizar os resultados de estudos feitos com dados de grande numero de crian<;:as, porque ja foram informados sabre a possibilidade de ampla variabilidade individual, e terao em mente que o desenvolvimento nao se da numa progressao linear. E explicada, tambem, a no<;:ao e a motiva<;:ao das estrategias de reparo, e sao apresentadas manifesta- <;:oes de conhecimento fonol6gico implfcito, com discussao de suas implica<;:6es. Varia~6es individuais A constru<;:ao do sistema fonol6gico da-se, em linhas gerais, de maneira muito semelhante para todas as crian<;:as, e em etapas que podem ser conside- radas iguais. Mas, ao mesmo tempo, verifica-se a existencia de varia<;:6es indi- viduais entre elas, constatando-se, inclusive, que a possibilidade e a abran- gencia dessas varia<;:6es e bastante ampla. Portanto, dentro das etapas e carac- terfsticas gerais do desenvolvimento fonol6gico - aquelas que podem ser en- contradas em todas as crian<;:as - ha a possibilidade de varia<;:ao individual quanta ao domfnio segmental e pros6dico. Essa variabilidade pode ser bastan- te acentuada, dependendo de cada sujeito, individualmente. A varia<;:ao da-se tanto em termos de idade de aquisi<;:ao como tambem quanta aos caminhos percorridos - as estrategias de reparo6 utilizadas - para atingir a produ<;:ao adequada. Para mostrar como e acentuada a varia<;:ao individual dentro do desen- volvimento normal, Lamprecht (2001) ap6ia-se em dados de Rangel (1998), que realiza urn estudo longitudinal de tres crian<;:as com idade entre 1:6 e 3:0. Nessa pesquisa, para considerar que urn segmento esta adquirido, Rangel adota os seguintes criterios: para afirmar que existe domfnio fonetico (simplesmen- te saber produzir o som), deve haver pelo menos duas produ<;:6es adequadas em tres entrevistas seguidas de urn mesmo informante; para afirmar que exis- te domfnio fonol6gico (saber usar esse som dentro do sistema da lingua), deve haver a produ<;:ao adequada em pelo menos 85% das possibilidades de ocorrencia do som em duas entrevistas seguidas. A Tabela 1.1, abaixo, mostra as diferen~as de idade, encontradas entre essas tres crian~as, no domfnio fo- netico de alguns sons. TABELA 1.1 Diferen9as na idade de domfnio fonetico de alguns sons, em tres crian9as (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998) Fane Tatiana Rafael Joao Diferenqas bd 1 :7 1:6 1:9 Ate 3 meses k 1 :7 1:9 1:10 Ate 3 meses g 1 :7 2:6 2:0 Ate 11 meses fvsz 1 :7 2:0 2:1 Ate 6 meses 26 Regina Ritter Lamprecht (Org.) Nas Tabelas 1.2 e 1.3, e poss{vel ver as diferen<;as na idade de aquisi<;ao das lfquidas nao-laterais- OS "sons de r", que SaO OS ultimos segmentos adqui- ridos pelas crian<;as falantes de portugues. TABELA 1.2 Diferen~as na idade de domfnio fonetico das lfquidas nao-laterais em onset simples, em tres crian~as (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998) Fane R-forte [x] r-fraco [ f] Tatiana 1:10 2:4 Rafael 2:7 2:9 Jofw 2:4 2:10 Diferenqas Ate 9 meses Ate 6 meses TABELA 1.3 Diferen~as na idade de domfnio fonol6gico das lfquidas nao-laterais, em tres crian~as (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998) Fonema R-forte /R/ r-fraco If/ Tatiana 2:0 2:4 Rafael 2:8 2:10 * 3:0 e a idade maxima encontrada nos dados de Rangel Jofw 2:9 Ap6s os 3:0* Diferenqas Ate 9 meses Mais de 8 meses Esses dados mostram uma diferen<;a de ate 11 meses entre as crian<;as, seja no dominio da realiza<;ao fonetica, seja no do papel fonologico dos sons da lingua, o que representa uma extensao de tempo muito significativa para crian<;as de menos de tres anos, faixa etaria maxima da pesquisa em questao. Portanto, quando se compara o sistema fonetico e/ou fonologico de uma crian<;a com urn padrao de normalidade estabelecido pelas pesquisas, deve-se sempre ter em mente a possibilidade de consideraveis diferen<;as individuais sem que isso represente urn desvio ou urn atraso. Regressoes no desenvolvimento fonologico Os trabalhos recentes mostram que, ao contrario do que se poderia su- por, o desenvolvimento fonol6gico nao se da numa progressao constante. A evolu<;ao - tanto no domfnio dos segmentos como no das estruturas silabicas - desde o estado inicial da aquisi<;ao em dire<;ao ao estado final, quando o sistema esra compatfvel com 0 alvo-adulto, nao e constante, num movimento linear, mas sim com descontinuidades. A variabilidade individual determina se essas regressoes no desenvolvimento de uma certa crian<;a sao desprez{veis, passando despercebidas, ou se sao importantes, com picos de baixas percen- tagens de produ<;ao correta interferindo ao longo da linha evolutiva. Aquisic;:iio Fonol6gica do Portugues 27 Urn decrescimo no desempenho em certos momentos do desenvolvimen- to, seguido de novo crescimento ate a estabiliza<;ao, constitui o que e referido na literatura como "Curva em U" (Strauss, 1982). Esse tipo de varia<;ao intra- sujeito possivelmente e decorrente de haver, em dado momento, urn desen- volvimento mais acentuado de urn nivellingiiistico em detrimento de outro. Por exemplo, a entrada de urn novo aspecto sintatico, semantico ou morfologico no sistema da crian<;a pode acarretar urn decrescimo momentaneo no nivel fonologico (Crystal, 1987). 7 Algumas pesquisas sobre a aquisi<;ao do portugues apontam regressoes importantes em certas faixas etarias, como os trabalhos de Miranda (1996), Zitzke (1998), Azambuja (1998), Mezzomo (1999) e Ribas (2002), entre ou- tros. Para exemplificar, toma-se o trabalho de Miranda, que pesquisa a aquisi- <;ao das liquidas nao-laterais, no qual a "Curva em U" fica bern evidente em momentos diferentes para as duas consoantes nao-laterais: para o R-forte na faixa etaria 6, que compreende crian<;as dos 2:6 aos 2:8, e para o r-fraco na faixa etaria 9, que compreende criant;as dos 3:4 aos 3:6. Veja-se a Figura 1.1. 120 100 80 ,,///·'" (···., · ••. /' (· ••..•...•.•..•.. , 1, .. //···· r·~-~//~ ,/ l .. /·~·· ,. • .. ., ... / // /// v 1\ I / / \ v / ---. r 60 40 20 0 fx1 fx2 fx3 fx4 fx5 fx6 fx7 fx8 fx9 fx10 fx11 R- forte r - fraco Figura 1.1 Regressoes na produc;:iio de 'r-fraco' e 'R-forte' conforme Miranda ( 1996, p. 95) 28 Regina Ritter Lamprecht (Org.) Estrategias de reparo A expressao estrategia de reparo, que e amplamente empregada neste livro, refere-se a estrategias adotadas pelas crian<;:as para adequar a realiza<;:ao do sistema-alva - a lingua falada pelos adultos do seu grupo social - ao seu sistema fonol6gico, ou seja, refere-se aquila que as crian<;as realizam em lu- gar do segmento e/ou da estrutura silabica que ainda nao conhecem ou cuja produ<;ao nao dominam. Veja-se exemplos8 das mais produtivas em (3). (3) No nivel segmental: • a dessonoriza<;ao de obstruintes (ex.: 'abre' -7 ['api]) • a anterioriza<;ao (ex.: 'queijo' -7 ['kezu]) • a posterioriza<;ao (ex.: 'balsa' -7 ['boJa]) • a semivocaliza<;ao de liquidas (ex.: 'cenoura' -7 ['noja], 'colo' -7 ['k:Jwu], 'folha' -7 ['foja]) • a substitui<;ao de liquida, geralmente de nao-lateral par lateral (ex.: 'passarinho' -7 [pasa'liJ1u], 'barraca' -7 [ba'laka]) • a nao-realiza<;ao do segmento em onset simples9 (ex.: 'sabonete' -7 ['eti], 'rua' -7 ['ua]) No nivel silabico: • a nao-realiza<;ao do segundo membra de urn onset complexo (ou re- du<;ao de encontro consonantal) (ex.: 'bra<;o' -7 ['basu]) • a nao-realiza<;ao da coda (ex.: 'carninha' -7 [ka'ni]1a]) • a metatese (ex.: 'verde' -7 ['vred3i] 'dragao' -7 [da'graw]) • a epentese (ex.: 'brabo' -7 [ba'rabu]) • a nao-realiza<;ao de urn a ou mais sflabas (ex.: 'dormindo' -7 ['mindu], 'dinossauro' -7 ['sawo]). Para tentar compreender essas estrategias, temos que pensar na expe- riencia que a crian<;a acumula, desde muito pequena, sabre os niveis fonetico e fonol6gico da sua lingua materna. Sabemos que o bebe percebe a pauta ritmica e entonacional da fala desde a vida intra-uterina;o feto ouve a voz da sua mae e de outros falantes presentes no ambiente, do mesmo modo como tambem ouve musica. Experimentos como OS de Mehler, Jusczyk, Lambertz, Halsted, Bertoncini e Amiel-Tison (1988) comprovam que, alguns dias ap6s 0 nascimento, 0 bebe reconhece a voz da mae e da preferencia a entona<;ao da lingua falada no seu ambiente se comparada com uma que lhe e estra- nha, igualmente par reconhecer essa lingua. Essa percep<;ao e fonetica: o be be com poucos dias de idade distingue urn [b], que e [+sonora], de urn [p], que e [-son oro], mas nao ha, ainda, atribui<;ao de valor distintivo a essas diferen<;as. Aquisic;:ao Fonol6gica do Portugues 29 No entanto, a categoriza~ao dos sons que o bebe percebe em urn sistema fonol6gico inicia-se cedo. Hayes (2001) comenta que, em torno dos 8 meses de vida, os bebes come~am a compreender palavras, e esse momenta coincide com urn extraordinario crescimento da capacidade fonol6gica, documentada por pes- quisas. Experimentos mostram que, nessa idade, a capacidade de discrimina~ao fonetica come~a a diminuir; no entanto, essa perda fonetica representa, na verda- de, urn ganho fonol6gico, porque o bebe esta aprendendo a prestar aten~ao nas distin~oes que sao "uteis", no sentido de serem capazes de distinguir palavras, de fazerem parte - ou nao - do sistema fonol6gico do seu ambiente. Outro experi- mento (Jusczyk e Hohne, 1997) comprova que bebes de 8 meses sao capazes de lembrar palavras de historinhas, gravadas em fitas, em testes de laborat6rio rea- lizados duas semanas mais tarde. Citando Hayes (2001, p. 5), a idade de 8 a 10 meses " ... representa o nascimento da verdadeira fonologia." No inicio da produ~ao de fala- precedida por vocaliza~oes e pelo balbu- cio -, por volta de 1:0 ou urn pouco mais tarde, a crian~a pequena depara-se com urn conflito entre o sistema fonol6gico empregado em seu ambiente, o qual ouve na fala dos outros e que e o alvo a ser atingido, e as limita~oes na sua capacidade de categoriza~ao, de articula~ao, de planejamento motor, de memoria fonol6gica e de processamento auditivo. Para atender a essas dificul- dades, ou seja, para ficar dentro da realidade das limita~oes inerentes ao seu momenta de desenvolvimento, a crian~a simplifica suas produ~oes num movi- mento natural de adapta~ao do output as suas capacidades. Isso significa sim- plificar estruturas silabicas, valer-se de urn inventario fonetico e fonol6gico incompleto e reduzir movimentos articulat6rios atraves de assimila~oes que tornam os segmentos mais parecidos. Essas adequa~oes do sistema fonol6gico da lingua as possibilidades de produ~ao da crian~a pequena constituem as estrategias de reparo, ou seja, estrategias destinadas a resolver o conflito da melhor maneira possivel para o estagio de desenvolvimento em que a crian~a pequena se encontra. Como a crian~a evolui e amadurece dia a dia- o que pode ser verificado com facilidade atraves do crescimento fisico e do aumento das capacidades cognitivas e motoras - as estrategias tambem mudam, na medida em que as necessidades de adequa~ao ao sistema-alva diminuem. Conhecimento fonol6gico Como foi visto na se~ao anterior, ha, desde muito cedo, a constru~ao gradativa do conhecimento que a crian~a tern do sistema fonol6gico em aqui- si~ao. Essa constru~ao da-se a partir das evidencias que a crian~a encontra na lingua do seu ambiente, que e a ela dirigida pelo grupo social em que esta inserida. No caso da ampla maioria das crian~as, o amadurecimento do co- nhecimento fonol6gico resulta no estabelecimento de urn sistema condizente com esse input. 10 30 Regina Ritter Lamprecht (Org.) Nem sempre, porem, a crian<;:a pequena manifesta todo o conhecimento, toda a sua capacidade na prodw;ao da fala. Em outras palavras, e possivel que a crian<;:a saiba mais do que os interlocutores - os adultos e outras crian<;:as com que interage - podem perceber. Numa observa<;:ao minuciosa, encontra- remos, as vezes, evidencias que apontam para a representa<;:ao subjacente exis- tente na mente da crian<;:a, porem nao-evidenciada na fala. A produ<;:ao pro- porciona indicios valiosos do conhecimento fonol6gico que uma crian<;:a tern e que, embora ainda nao utilizado, fornece pistas indicativas da potencialida- de, do crescimento da crian<;:a. Tres exemplos dessa situa<;:ao em que o conhe- cimento e mais avan<;:ado, mais maduro, do que a produ<;:ao sao trazidos a segmr. Exemplo 1 - uma crian<;:a que, ao que tudo indica, ainda nao adquiriu o onset complexo e, portanto, nao produz encontros consonantais, tera produ- <;:oes como as em (4). (4) 'bra<;:o' ~ ['basu] 'trator' ~ [ ta'tor] 'trico' ~ [ti'ko] Mas, se na regiao em que essa crian<;:a vive ocorre a palataliza<;:ao do It/ diante do /i/ 11 , e sea crian<;:a efetivamente realiza essa palataliza<;:ao dizendo, por exemplo, [tJ'ia] para /tia/, en tao para 'trico' a produ<;:ao deveria ser [tJi'ko] e nao [ti'ko]. A produ<;:ao sem a palataliza<;:ao, nesse contexto espedfico, signi- fica que, na representa<;:ao mental da palavra que a crian<;:a possui, o [t] nao esta diante do [i], haven do algo (neste caso o /r/) que impede a palataliza<;:ao, ou seja, a realiza<;:ao de [t.fi'ko]. Conseqiientemente, pode-se inferir que ela tern conhecimento do onset complexo, que ela sabe da existencia da sequen- cia /tr/ em bora nao a produzaY Exemplo 2 - uma crian<;:a que nao produz o /s/ ou o /r/ em coda, tera realiza<;:oes como as em (5). (5) 'borboleta' -7 [bobo'leta] 'pesco<;:o' -7 [pe'kosu] No entanto, nesses casos, as vezes, e possivel constatar perceptualmente- e, com maior grau de certeza, por meio de analise acustica13 - que ha urn alon- gamento da vogal, como em (6): (6) 'bolsa' -7 [bo :sa] Aquisi~ao Fonologica do Portugues 31 Esse alongamento, chamado compensatorio, constitui a comprovac:;ao de que a crianc;:a tern conhecimento da sflaba eve- com coda- embora ainda nao produza essa estrutura na fala. Exemplo 3- no nivel segmental tambem podem ser encontradas eviden- cias de conhecimento nao realizado. Lamprecht (comunicac:;ao pessoal) traz amostra de Isabela, de 2:3, que nao produz o lr/ em coda absoluta eo substi- tui por [1], do que resulta a produc:;ao mostrada em (7). (7) 'forte' -7 ['hltJi] Na fala dessa menina temos, no mesmo momenta, realizac:;oes esperadas de /1! em coda como [w], como seve em (8). (8) 'sol'- [s:Jw] 'azul' -7 [a'zuw] A partir dessas produc:;oes, podemos inferir que a menina sabe que existe o lrl em coda e tambem sabe que esse segmento e diferente do Ill; nao po- dendo produzi-lo, por motivos ja explicitados na sec:;ao Estrategias de Reparo deste capitulo, recorre a estrategia de substituic;:ao da nao-lateral pela lateral. 0 importante e que, ao nao semivocalizar essa lateral em coda, sinaliza a diferenc;:a entre lrl e Ill e demonstra seu conhecimento fonologico. A constatac:;ao da existencia de conhecimento fonologico, mesmo que nao concretizado, traz informac;:oes valiosas para os terapeutas, porque informa sobre a potencialidade do paciente: aquele que evidenciar conhecimento fonologico subjacente de urn segmento ou de uma estrutura silabica tera me- lhor prognostico de tratamento do que outro que nao demonstrar esse conhe- cimento. NOT AS 1. Na area espedfica da aquisi<;ao fonol6gica, destacam-se as pesquisadoras Eleonora Albano (UNICAMP), Ester Scarpa (UNICAMP) e Leonor Schar-Cabral (UFSC). 2. Com o decorrer do tempo, os estudos sobre aquisi<;ao fonol6gica foram levados para outras universidades do Estado por pesquisadores titulados na PUCRS. Atual- mente, estendem-se a Universidade Cat6lica de Pelot as (UCPEL), Universidade Fe- deral de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Universi- dade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Rede Metodista de Educa<;ao-IPA (anteriormente IMEC) e ao Centro Universitario FEEVALE. 32 Regina Ritter Lamprecht (Org.) 3. Para detalhes sobre essa evolU<;ao, vejalistagem de pesquisas apresentada por Lamprecht (2003) em mimero especial de Letras de Hoje comemorativo aos 20 anos de pesquisas sobre Aquisi<;ao da Linguagem na PUCRS. 4. Especificamente aquelas realizadas na PUCRS e UCPEL. 5. Para o estudo da aquisi<;ao do portugues europeu indica-sea tese de doutorado de Freitas (1997). 6. Veja-se a se<;ao Estrategias de Reparo neste capitulo. 7. Aqui estao sendo referidas, exclusivamente, possiveis raz6es de ordem lingiiistica. Isso nao significa que se desconhecem ou descartam outros fatores, de natureza nao- lingiiistica, como, por exemplo, os emocionais. 8. Os exemplos de substitui<;ao de liquida sao retirados do corpus de Vicente, aos 2:8; OS de metatese sao de Jose, aos 4:0; 0 de epentese e de Debora, aos 3:11. Todos OS demais sao de Isabela, aos 1:10. 9. Em bora seja urn processo que ocorre no nivel segmental, a nao-realiza<;ao de seg- mento em onset simples afeta tambem o nivel silabico pelo fa to de eliminar o onset da silaba. 10. 0 input das crian<;as pode variar exatamente por ser determinado pelo grupo social em que cada uma vive: os familiares, vizinhos, pessoas do bairro, da creche/escolinha. 11. Veja-se a se<;ao Caracteristicas Dialetais neste capitulo. 12. Esse exemplo, com suas implica<;6es, e referido, pela primeira vez, em Hernandorena (1990). Posteriormente, encontramos essa descri<;ao em Ramos (1996), Magalhaes (2000) e Mota (2001). 13. 0 alongamento compensat6rio da vogal que precede uma coda nao-realizada e discu- tido no Capitulo 8, nas diferentes se<;6es sobre estrategias de reparo utilizadas na aquisi<;ao da coda. 2 Bases para o fntendim ento da Aquisicao fonologica Carmen Lucia Barreto Matzenauer 0 PROCESSO DE AQUISI<;Ao DA FONOLOGIA: CONSIDERA<;OES GERAIS A aquisi<;:ao da linguagem e tarefa complexa em virtude da natureza das linguas naturais. Toda lingua e urn sistema constituido de diferentes unidades - fonemas, silabas, morfemas, palavras, frases - cujo funciona- mento e go verna do por regras e/ ou restri<;:oes. E exatamente para ten tar des- crever e explicar o funcionamento das linguas e dos subsistemas que as inte- gram que tern sido formuladas diferentes teorias. Cada novo modelo te6rico pretende alcan<;:ar maior poder explicativo em rela<;:ao a propostas anteriores. Em se referindo ao componente fonol6gico das linguas, muitas tern sido as teorias propostas, visando a mais detalhada descri<;:ao da fonologia e ao seu mais completo entendimento. Ao explicarem o funcionamento da fonologia dos sistemas linguisticos, as teorias tern tambem ajudado a elucidar o processo de aquisi<;:ao de sons e fonemas pela crian<;:a. Para que se compreenda com maior profundidade o processo de aquisi<;:ao da fonologia, e importante, portanto, que se conhe<;:am conceitos fundamentais relativos a fonologia e aos modelos te6ricos a ela relativos. No periodo do empirismo classico, achava-se que a aquisi<;:ao de uma lingua ocorria por imita<;:ao, por analogia, por generaliza<;:ao de estimulo (e 34 Regina Ritter Lamprecht (Org.) outros mecanismos de aprendizagem), a partir dos padroes e das estruturas mais frequentes e mais salientes. Mas, se realmente o processo de aquisic;ao seguisse esse caminho, como se explicaria o fato de a crianc;a formar frases ou palavras que nunca ouviu? Figueira (1995), estudando a aquisi<;ao da morfo- logia do portugues, mostra varios exemplos de palavras criadas por crian<;as, que jamais foram ditas por adultos e que nunca pertenceram ao sistema da lingua. Em (1) estao ilustrados alguns desses ex em plos. 1 (1) a. Mae: Menina: 0 leite ta quente. Entao diquenta. (3:11) b. (a mae fecha a caixa de brinquedos; decepcionada, a menina diz) Menina: Diabriu! ( 4: 1) c. (pedindo para a mae tirar o la<;o do vestido) Menina: Desla~a, mae. ( 4:6) A observac;ao das produc;oes linguisticas apresentadas em (1) evidencia que a crian<;a aqui referida ja adquiriu o prefixo de- ~ des- ~ dis- da lingua portuguesa e seu uso para expressar a~iio contreiria, como em desfazer, dissociar e decrescer, por exemplo. Com esse conhecimento da morfologia da lingua, a menina cria palavras, utilizando o prefixo adequado, com o sentido em que efetivamente e utilizado na lingua. No entanto, as palavras utilizadas nao poderiam ter sido antes ouvidas, pois nao pertencem ao sistema lingu{stico em uso. Embora apresentando itens lexicais nao pertencentes ao portugues, esse uso constitui-se em uma prova de que a crian<;a vai adquirindo gradual- mente o sistema lingu{stico e vai desenvolvendo urn conhecimento internalizado das unidades da lingua e das regras de seu funcionamento para construir significados e para estabelecer comunicac;ao. Uma teoria da lingua tern de poder explicar o complexo processo de aqui- sic;ao da linguagem e o funcionamento das linguas naturais. Particularmente sabre aquisi<;ao, e preciso explicar por que, embora haja diferenc;as indivi- duais em uma mesma comunidade linguistica, crianc;as muito diferentes, com experiencias diversas ao extrema, chegam a possuir gramaticas comparaveis e ate praticamente identicas, a nao ser que apresentem desvios que afetem a linguagem. Para Chomsky (1965, 1986), e a faculdade da linguagem- urn mecanis- mo inato- que possibilita a aquisi<;ao de uma lingua em periodo relativamen- te pequeno de tempo, por qualquer crianc;a considerada normal, a partir da simples exposic;ao a dados lingu{sticos. Essa faculdade da linguagem da aces- so a Gramatica Universal (GU), que se constitui, segundo a Teo ria de Prindpios e Parametros (Chomsky; 1981), em urn con junto de prindpios que caracteriza as gramaticas possiveis, preconizando as form as, ou parametros, como as gra- Aquisi~ao Fonol6gica do Portugues 35 maticas particulares podem ser organizadas. A GU, portanto, e a essencia co- mum existente em todos os sistemas, a partir da qual cada lfngua estrutura a sua gramatica particular, ou seja, cada lfngua estabelece parametros a partir de prindpios universais. Se urn principia da GU estabelece que a estrutura da silaba pode canter tres elementos- onset, nucleo e coda-, uma lfngua pod era determinar que, em sua gramatica, por exemplo, 0 onset e 0 nucleo sao obri- gatorios e a coda e opcional, enquanto na gramatica de outra lfngua, por exemplo, somente o nucleo podera ser obrigatorio, ficando o onset e a coda :::omo unidades opcionais. De acordo com esse modelo teorico, a tarefa da crian<;a- que tern acesso a GU -, ao aprender uma lfngua, consiste unicamente em escolher, entre as gramaticas compativeis com os prindpios da GU, aquela que e conciliavel com .:Js dados com que se defronta na comunidade linguistica em que esta inserida, OU seja, cabe a crian<;a estabelecer OS valores dos parametros adequados a lingua que esta sendo adquirida. 2 Essa e uma tarefa de grande complexidade, que exige 'calculos mentais', exercicios de aml.lise e de sintese, com relac;ao a todos os niveis, desde a fonologia, a morfologia e a sintaxe, ate os outros componentes que constituem a gramatica de uma lfngua. 3 Outra proposta teorica que tern implica<;oes relativas a aquisi<;ao da lin- guagem e 0 Conexionismo, que se estabeleceu como uma Corrente da psicolo- gia, causando impacto nas ciencias cognitivas. 0 Conexionismo pressupoe es- tar a base, tanto do funcionamento das lfnguas, como do processo de sua aquisi<;ao, na forma<;ao de conexoes neuroniais, ou seja, na constitui<;ao de redes de associa<;ao ou teias de unidades neuroniais de processamento interconectadas. Urn importante aspecto das redes conexionistas e sua habili- dade para aprender; em virtude disso, enfatiza Plunkett (2000) que, se o com- portamento da rede, durante o treinamento de aprendizagem, imitar o com- portamento da crian<;a em seu processo de aquisi<;;ao, pode trazer evidencias sabre seus diferentes estagios desenvolvimentais. E relevante salientar que os modelos conexionistas pressupoem que 0 processamento e distribuido e em paralelo: edistribufdo, porque muitos SaO OS neuronios e as conexoes que, em uma rede, participam da representa<;ao da informa<;ao; e em paralelo, porque integra informa<;oes advindas simultaneamente de fontes multiplas (Plunkett, 2000; Poersch, 1998). Para essa proposta teo rica, portanto, adquirir conheci- mento implica o estabelecimento de novas conexoes neuroniais. Pesquisas atuais estao investigando as capacidades potenciais de aprendizagem dos sistemas conexionistas relativamente a diferentes componentes das lfnguas naturais, particularmente a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semantica. As analises apresentadas nos capitulos subsequentes fundamentam-se em modelos teoricos gerativos que tern raizes nas propostas de Chomsky e apre- sentam o inatismo como pressuposto basico. Essa perspectiva teorica preve que a crianc;a, como todo ser humano, detenha urn conjunto de informa<;oes linguisticas como parte de urn programa genetico. Segundo essa linha teorica, a informa<;ao linguistica geneticamente armazenada e responsavel pela criati- 36 Regina Ritter Lamprecht (Org.) vidade, ou seja, pela capacidade da crian<;a de produzir formas lingufsticas nunca antes ouvidas, e pela reconstru~ao da estrutura da lingua, ou seja, pela capacidade da crian<;a de, a partir de urn input lingufstico constitufdo mesmo de dados fragmentados, reconstituir a estrutura da lfngua e construir o conhe- cimento do sistema que esta sendo adquirido. 0 NlVEL FONOLOGICO DA LiNGUA Para entendermos o funcionamento e o processo de aquisi<;ao do nfvel fonol6gico da lingua, e preciso conhecermos algumas no<;oes fundamentais relativas a essa area. Urn primeiro aspecto diz respeito a diferen<;a entre som e fonema e, consequentemente, entre fonetica e fonologia. Consideram-se sons da fala aqueles emitidos pelo aparelho vocal huma- no e que ocorrem nas linguas do mundo. A descri<;ao desses sons, do ponto de vista articulat6rio, acustico e auditivo, e objeto da fonetica. Interessa, pais, a fonetica a realidade ffsica dos sons da lingua, ou seja, o que as pessoas fazem quando falam (a realidade dos sons que efetivamente produzem) e o que ouvem quando alguem lhes fala. Consideram-sefonemas de uma lingua aqueles sons que sao pertinentes para a Veicula<;ao de significado, isto e, OS Sons que distinguem significados entre palavras da lingua. Ao observarmos, par exemplo, os pares pata/bata, Jala/vala e cinco/zinco, podemos afirmar que /p/, /b/, /f/, /v/, /s/, /z/ sao fonemas do portugues, porque distinguem palavras da lingua. Diferentemen- te, os sons [ t] e [ t.fJ, nas d uas form as divers as de realiza<;ao da palavra 'tia', por exemplo, nao distinguem significado em portugues e, portanto, funcio- nam como alofones ou variantes de urn mesmo fonema. A descri<;ao dos fonemas, de sua distribui<;ao e organiza<;ao em cada sistema lingufstico e ob- jeto da fonologia. A fonologia, portanto, importam os sons usados distintiva- mente em uma lingua e seus padroes de funcionamento. Para os estudos de aquisi<;ao da linguagem, as distin<;oes acima referidas sao de extrema relevancia, uma vez que adquirir uma lingua implica empre- gar adequadamente os fonemas que integram o seu sistema fonol6gico, bern como realizar os sons que caracterizam o inventario fonetico do dialeto da comunidade em que o aprendiz esta inserido - a crian<;a precisa aprender a reconhecer os sons que sao distintivos (fonemas) e os sons que sao redundan- tes (variantes ou alofones) em sua lingua. Todo falante possui uma representa~ao fonol6gica, mais abstrata, que con- tern os fonemas que identificam a lfngua, e uma representa~ao Jonetica, cons- titufda pelos sons, de acordo com suas propriedades articulat6rias e acusticas, indicando como a palavra e realizada. A primeira aproxima-se da representa- <;ao mental que os falantes tern dos itens lexicais, constituindo o que Chomsky (1968) chamou de estrutura subjacente; a segunda aproxima-se da chamada representa<;ao de superffcie, da forma fonetica efetivamente realizada. Se- Aquisic;ao Fonol6gica do Portugues 37 gundo a Fonologia Gerativa Classica (Chomsky e Halle, 1968) - que e urn modelo te6rico derivacional -, a rela<;ao entre esses dois tipos de representa- <;ao e estabelecida por meio de regras. Em (2a) e (2b), vemos exemplos do mapeamento estabelecido entre a representa<;ao fonol6gica (representada entre barras) e a representa<;ao fonetica (representada entre colchetes): a partir da representa<;ao fonol6gica, por meio de regras, e derivado 0 output fonetico. (2a) (2b) /bolo/ 'bolo 'bolu ['bolu] /time/ 'time 'tJime 'tJimi ['tJimi] REPRESENTA<::AO SUBJACENTE Regra de acentua<;ao Regra de neutraliza<;ao da vogal atona final FORMA FONETICA REP RES ENTA<::AO S UBJACENTE Regra de acentua<;ao Regra de palataliza<;ao Regra de neutraliza<;ao da vogal atona final FORMA FONETICA No exemplo (2b), em dialetos em que nao ha a palataliza<;ao, a forma fonetica realiza-se como ['timi]' pois nao e aplicada a regra que transforma a plosiva /t/ na africada [tJ] antes da vogal [i], ou seja, o funcionamento da fonologia desses dialetos nao contem esse nivel derivacional. Dentre os modelos fonol6gicos derivacionais mais recentes destacam-se a Teoria Autossegmental, a Teoria da Silaba, a Teoria Metrica, a Teoria Lexical e a Teoria Pros6dica. Os estudos sobre o processo de aquisi<;ao da fonologia das linguas tern fundamentado, nessas teorias, suas investiga<;oes e analises na t!ltima decada. Outro recente modelo te6rico que merece ser destacado e a Teoria da Otimidade (Optimality Theory - OT), que se caracteriza por ser nao- derivacional. Na OT ha o pressuposto de que o processamento lingiiistico nao se da de forma serial, como defendiam os modelos derivacionais, cujo funcio- namento esta exemplificado em (2): nesse novo modelo, ha o entendimento de que a representa~Cio Jonol6gica - chamada de input - se relaciona com o output fonetico por urn processamento lingiiistico que ocorre em paralelo. Para a OT, o mapeamento entre input e output nao se da por meio da aplica<;ao de regras, mas pela avalia<;ao de candidatos a output com base em uma hierar- quia de restrir;oes. Segundo a OT, integra a GU urn conjunto de restri<;oes, que sao universais e violaveis, as quais sao hierarquizadas diferentemente em cada sistema lingiiistico. Portanto, a OT concebe o funcionamento de toda gramati- ca com base no ranqueamento de restrir;oes, sendo que cada lingua tern sua especificidade determinada por uma hierarquia particular de restrir;oes uni- versais.4 Nos ttltimos anos comer;aram a ser realizados estudos sobre a aquisi- r;ao da fonologia, inclusive sobre a aquisi<;ao do portugues brasileiro, com base na OT. 38 Regina Ritter Lamprecht (Org.) Merece destaque o fato de que as raizes da OT estao no Conexionismo, cujos fundamentos foram sucintamente apresentados na se~ao 0 processo de aquisi~ao da fonologia: considera~oes gerais deste capitulo. Dentre esses modelos te6ricos, a Teoria Autossegmental, a Teoria da Silaba e a Teoria Metrica serao discutidas na se~ao Aquisi~ao da fonologia e teorias fonol6gicas do presente capitulo, em virtude de terem subsidiado analises sabre 0 processo de aquisi~ao da fonologia do portugues apresenta- das neste livro. ASPECTOS DA FONOLOGIA DO PORTUGUES 0 sistema fonol6gico do portugues apresenta sete fonemas vocalicos e dezenove fonemas consonantais. 0 sistema vocalico As sete vogais do portugues aparecem em silaba tonica. Em (3) estao exemplos de sua ocorrencia. 5 (3) /a/ 'sa co ' /e/ ' seco' (e) /£/ ' seco' (e) Iii ' . ' SlCO /o/ 'soco' (o) hi 'soco' (6) /u/ ' ' suco Semivogais As vogais altas Iii e /u/, quando formam ditongo com outras vogais da lingua, realizam-se foneticamente como semivogais (ou glides) [j] e [w], res- pectivamente. Os it ens lexicais em ( 4) sao exemplos dessa ocorrencia. 6 (4) Represen ta~ao ' ., pm 'jeito' 'hist6ria' 'degrau' 'fugiu' Fonol6gica /pail /3eito/ /istJria//degrau/ /fu3iu/ Forma l'onetica ['paj] ['3ejtu] [is't::1rja] [de'graw] [fu'3iw] Aquisi<fiiO Fonol6gica do Portugues 39 0 sistema consonantal Todos os dezenove fonemas consonantais do portugues manifestam-se em onset de silaba dentro das palavras da lingua. Em (5) essas consoantes aparecem ex em plificadas. 7 (5) /p/ 'cap a , /kapa/ ['kapa] /m/ 'lima ' /lima/ ['lima] /b/ 'cabelo' /kabelo/ [ka'belu] /n/ 'anel' /an£1/ [a' nEw] It/ 'carta' /kaf ta/ ['kaf ta] 1]1/ 'rainha' /Raijla/ [xa'ijla] !d! '!ado' /lado/ ['ladu] IV 'bala' /bala/ ['bala] !k! 'bloco' /bbko/ ['bbku] /A./ 'espelho' /eSpeA.o/ [is'peA.u] /g/ '!ago ' /lago/ ['lagu] /R/ 'arroz ' /aRoS/ [a'xos] If! 'girafa' /3ifafa/ [3i'fafa] /f/ 'parede' /pafede/ [pa'fed3i] /V/ 'avo) jovo/ ['ovu] /s/ 'classe /klase/ ['klasi] /z/ 'cas a /kaza/ ['kaza] /[/ 'caixa ' /kaiJa; ['kajJaJ - ['ka.\a] 131 'igreJa ' /igfe3a/ [i'gfe3a] Encontros consonantais A fonologia do portugues permite que as silabas sejam iniciadas por seqiiencias de consoantes, constitnndo encontros consonantais. Em nosso sistema lingiiistico, os encontros c:msonantais podem ser constituidos ape- nas de: 8 a) consoante plosiva + conso mte liquida (I r I ou 11!); b)consoante fricativa labial t- consoante liquida (lr/ ou /1/). Em (6) aparecem os encomros consonantais que funcionam no portu- gues. 9 (6) /pr/ 'pra to' /prato/ l'pratu] /kr/ 'cravo ' /kravo/ ['kravu] /pi! 'pluma , /plmna/ ['pluma] /ki! 'clube' /klube/ ['klubi] /hr/ 'bra~o· /bra so/ l'hrasu I /gf! 'grupo' I grupo/ [grupu] /hi/ 'blusa /hluza/ l'hluza I !gil 'globo' /globo/ ['globu] /tf/ 'trator /trator/ I tra'tor] /fr/ 'fruta' /fruta/ ['fruta] /ti! 'atlas /atlaS/ !'atlas] ;n; 'Ooresta' ;noresta/ 1 no' resta] /dr/ 'dragao ' /cifagao/ Jdra'gaw] /Vf/ 'livro ' /livro/ ['livru] /vi! 'Vladimir' /vladimir/ jvlad3i'mir] 40 Regina Ritter Lamprecht (Org.) A estrutura silabica Para formar os itens lexicais da lingua, os fonemas organizam-se em se- qiiencias que formam sflabas. Em portugues, uma silaba pode ser constituida de tres elementos: ONSET, 10 NUCLEO e CODA, sendo o nticleo o tinico ele- mento obrigat6rio nessa estrutura. 11 A silaba (representada pelo simbolo s) apresenta uma estrutura interna, a qual, segundo a abordagem metrica, (Teoria autossegmental deste capitulo) pode ser representada conforme aparece em (7). (7) s (Onset) Rima ~ Nucleo (Coda) I I p a r Sendo o nticleo da silaba do portugues sempre ocupado por uma vogal, as consoantes ficam nas mar gens silabicas, nas posi<;oes de onset e/ ou coda. As consoantes do portugues podem aparecer em quatro posi<;oes, consideran- do-se a estrutura da silaba e da palavra: onset absoluto, onset medial, coda medial e coda final. Na palavra 'cartas' ['lartas], por exemplo, as consoantes ocupam as seguintes posi<;oes: [k] -7 onse absoluto, [t]-7onset medial, [r] -7 coda medial e [s] -7 coda final. Conforme ja foi referido (Aspectos d 1 fonologia do portugues), o total das dezenove consoantes da lingua tern sua manifesta<;ao apenas na posi<;ao de onset medial, uma vez que /r/, I!../ e lrl nao ocupam a posi<;ao de onset absoluto. 12 A posi<;ao de coda de silaba somente pode ser ocupada, no portu- gues, por quatro consoantes da lingua: /1/, /r/, /S/ e /N/Y A estrutura silabica predominante no portugues e CV (consoante + vo- gal)' que e considerada nao-marcada por estar presente em todas as linguas do mundo e por ser de emergencia mais precoce no processo de aquisi<;ao dos diferentes sistemas lingiiisticos. AOUISI<;AO DA FONOLOGIA E TEORIAS FONOLOGICAS Dentre as numerosas questoes relativas ao processo de aqms1<;ao da fonologia de uma lingua que tern sido propostas, nas tiltimas decadas, por Aquisil!ao Fonol6gica do Portugues 41 estudiosos de diferentes areas do conhecimento, algumas tern recebido res- pastas com base em pressupostos de diferentes teorias fonol6gicas. No fim dos anos 70, a partir da publica<;:ao de A Dissertation on Natural Phonology (Stampe, 1973) e de Phonological Disability in Children (Ingram, 1976), e, nos anos 80, seguindo particularmente os passos de pesquisadores c:omo Ingram (1981, 1989), Grunwell (1981, 1982, 1985) e Stoel-Gammon e 0unn (1985), entre muitos outros, a base te6rica que fundamentou a maior parte dos estudos sabre a aquisi<;:ao da fonologia- tanto do processo conside- :·ado "normal", como do processo considerado "com desvios"- foi a Teoria da ?onologia Natural. Com fundamento nesse modelo te6rico, a aquisi<;:ao da ionologia era vista como o processo gradual de elimina<;:ao de processos men- tais, naturais, universais e inatos, ate que a crian<;:a chegasse ao sistema lingiifstico alvo. E basica, para esse modelo, a concep<;:ao de "processo fonol6gico" como operw;:iio mental que se aplica a-fala para substituir, em lugar de uma classe de sons ou seqilencias de sons que apresentam uma dificuldade especifica comum :Jara a capacidade de fala do individuo, uma classe alternativa identica em todos os OLltros sentidos, porem desprovida da propriedade dificil (Stampe, 1973, p.1). Com fundamento nesse modelo te6rico, o emprego, por uma crian<;:a, do segmento [s] em lugar de I .\Ina palavra 'chave', por exemplo (Javel -7 ['savi]) e identificado como decorrente do "processo de anterioriza<;:ao"- que implica a substitui<;:ao de segmentos que tern articula<;:ao em regiao mais posteriorizada na cavidade bucal por segmentos cuja articula<;:ao se da na regiao anterior da boca. Nesse caso, o "processo de anterioriza<;:ao", considerado, pela teoria, natural e inato a crian<;:a, ainda nao foi eliminado de seu sistema fonol6gico. Outro processo, entre os previstos por essa proposta te6rica, que tam bern implica substitui<;:ao de segmento e 0 "processo de assimila<;:ao", pelo qual urn segmento, vocalico ou consonantal, assimila caracterfsticas de segmento vi- zinho. E o que ocorre, por exemplo, na produ<;:ao da forma [pe'kdza] para 'peteca'. Pesquisas sabre a aquisi<;:ao do portugues com base na Fonologia Natural, como a de Lamprecht (1990), apontam, entre outros, os seguintes processos fonol6gicos como operantes no processo de aquisi<;:ao da fonologia por crian<;:as brasileiras: redU<;:2w de encontro ccnsnnantai. anterioriza<;:ao, posterioriza<;:ao, dessonoriza<;:ao de obstruinte, substitui<;:ao de liquida, assimila<;:ao. 14 Tambem durante os anos 80, o processo de aquisi<;:ao da fonologia foi analisado com base na proposta te6rica de Chomsky e Halle (1968), sen do entendido como o desenvolvimento gradual das regras que identificam cada sistema lingiifstico a partir da opera<;:ao mental estabelecida entre unidades menores que o segmento, ou seja, a partir de "tra<;:os distintivos". Tra<;:os dis- tintivos sao unidades mfnimas, de carater acustico ou articulat6rio, que en- tram na composi<;:ao de urn som, como "sonoridade", "continuidade" e "nasa- lidade", por exemplo. 15 Administrador Teoria da Fonologia Natural 42 Regina Ritter Lamprecht (Org.) Com base nesse modelo te6rico, o segmento /s/, por exemplo, deveria ser representado por urn conjunto, ou por uma matriz de tra~os, conforme e mostrado em (8), a qual nao apresenta qualquer hierarquia entre os tra<;os que a constituem. (8) /s/ +consonantal -soante +continuo +coronal +anterior -nasal -sonoro A representa<;ao da sequencia de segmentos que formam uma palavra, com essa base te6rica, e feita por uma sequencia linear de matrizes de tra<;os, como a matriz exemplificada em (8). Para a Teo ria da Fonologia Gerativa Classic a (Chomsky e Halle, 1968), os tra<;os distintivos, ao cumprirem sua fun<;ao fonol6gica, tern representa- <;ao binaria, indic .. xlo a presen<;a ([+nasal], por exemplo) ou a ausencia ([-nasal], por exemplo) da propriedade. Sao os tra<;os distintivos que res- pondem pelo funcionamento da fonologia de cada lingua, definindo as rela- <;6es de contraste contidas em cada sistema e estabelecendo o inventario de fonemas.Com base nesse modelo te6rico, urn dos casos de substitui<;ao referidos acima - o emprego, por uma crian<;a, do segmento [s] em Iugar de /J/ na palavra 'chave', por exemplo (!Javel -7 ['savi]) - e identificado como decor- rente da troca de tra<;os distintivos: nesse caso, dizemos que houve troca dos valores do tra<;o [anterior] ([-anterior] -7 [+anterior]), o que acarretou a substitui<;ao de urn segmento por outro. 16 Quanta a assimila<;ao, exemplificada acima com a produ<;ao de [pe'kEka] para a palavra 'peteca', e vista, por esse modelo te6rico, como a c6pia de tra<;os de urn segmento por outro. Considerando-se, portanto, a matriz de tra<;os que representa o segmento /t/ em (9), ha o entendimento, a partir dessa base te6rica, de que /t/ copia os tra<;os de /k/, tornando-se igual a ele. 17 Aquisi~ao Fonol6gica do Portugues 43 (9) -so ante -so ante -continuo -continuo -coronal -coronal v -coronal -anterior +anterior -anterior -son oro -son oro No exemplo citado, ha a formalizac;ao de uma regra fonol6gica que re- presenta o fenomeno de que /t/ se to rna [k] porque copia os trac;os [-coronal, anterior] da consoante que e onset da sflaba subsequente; /t/ realiza-se, pois, como [k]. A partir daqui, vao ser explicitados fundamentos dos modelos te6ricos que embasam as analises apresentadas neste livro; esses modelos tern servi- do de suporte, na atualidade, para estudos sobre a aquisic;ao de diferentes linguas. Teoria Autossegmental Considerando-se que as unidades basicas da representac;ao fonol6gica SaO trac;os distintivos, e nao segmentos, que OS trac;os sac atributos dos seg- mentos (sonoridade, nasalidade, etc.) que estao na base do.funcionamento de processos fonologicos, podemos avaliar a relevancia da noc;ao de "trac;o" para o avanc;o das teorias fonologicas. A Teoria da Fonologia Autossegmental representou urn acrescimo parti- cular aos modelos fonol6gicos anteriores ao defender a existencia de uma hierarquia entre os trac;os que integram a estrutura interna dos segmentos. Essa h!erarquia e representada por uma estrutura arb6rea, conforme e mos- trado no exemplo, em (10). Deve ser salientado o fato de que a noc;ao de hierarquia veio acompanhada do entendimento de que cada trac;o pode fun- cionar isoladamente- por isso, deve ocupar urn tier (uma camada) indepen- dente -, ou pode funcionar como urn conjunto solidario - por isso, os trac;os que podem atuar em con junto em regras fonol6gicas devem estar vinculados a urn mesmo no na representac;ao arb6rea. Assim, todos os segmentos das diferentes linguas, sejam consoantes ou vogais, podem ter sua estrutura interna representada por urn diagrama de arvore. Clements e Hume (1995, p.292) propuseram uma forma de distribui- c;ao de trac;os em nos de classe para expressar a organizac;ao de consoantes e vogais, a qual se pode ver nas figuras mostradas em (1 0) .18 44 Regina Ritter Lamprecht (Org.) (10) (a) Consoantes RAIZ LAR!NGEO [ ± soante ~ ± apr~~imante - VOCOide (b) Vogais RAIZ [ + soante ~ + apr~~imante + VOCOide LAR!NGEO CAVIDADE ORAL [continuo] constrita] [gl.constrita] CAVIDADE ORAL [sonoro] [continuo] PONTO DEC [labial] [dorsal] [coronal] [anter~ [distribuido] [sonoro] PONTO DEC I VOCALICO ABERTURA PONTO DE V I [aberto] [coronal] ./'\. [dorsal] [-ant~rior] "\ [ distribuido] Na proposta de Clements e Hume (1995), alguns tra<;os sao bimirios (re- presentam a presen<;a ( +) ou a ausencia ( -) da propriedade)' e outros sao monovalentes (indicam apenas a presen<;a da propriedade). Nas figuras em Aquisi~ao Fonologica do Portugues 45 ) 0), os n6s de classe, representados em letras maiusculas (n6 Laringeo, n6 Cavidade Oral, por exemplo), congregam trar;os que podem funcionar isola- damente ou em conjunto. Essa representar;ao hierarquica proposta pelos au- tares implica que qualquer regra que envolva urn n6 declasse necessariamen- te envolvera os trar;os dele dependentes. Para exemplificarmos a estrutura interna de segmentos que integram a fonologia do portugues, apresentamos em (11) a representar;ao da sequencia si/, de acordo com essa proposta te6rica. (11) Is/ RAIZ ~ soante J - apro;amante - VOCOide LAR[NGEO CAVIDADE ORAL [-nasal] ~ PONTO DEc [+continuo] [-sonoro] [coronal] [+anterior] RAIZ LARfNGEO [-nasal] [ +sonoro] Iii [ + soante j + apro;imante + VOCOide [+continuo] PONTO DEC VOCALICO PONTO DE V [coronal] ABERTURA [-abl]/f\ [-ab2t \ [-ab3] 46 Regina Ritter Lamprecht (Org.) No modelo autossegmental, o processo de assimila<;:ao- que era visto, na fonologia gerativa classica, como copia de tra<;:o(s) - e caracterizado como uma associa<;:ao ou espraiamento de tra<;:o ou no de classe de urn segmento A para urn segmento B. 0 exemplo, ja acima referido, de realiza<;:ao da palavra 'peteca' como [pe'kt:ka] e representado, no modelo autossegmental, confor- me aparece em (12). (12) /p e t k a/ - soante - soante - aproximante - aproximante RAIZ - voc6ide RAIZ - voc6ide LAR[NGEO LARfNGEO CAVIDADE ORAL CAVIDADE ORAL ~ ~ PONTO DE C [-continuo] [-sonora] +· .......... . T .......... . [-sonora] [-continuo] PONTO DEC [coronal] .. [dorsal] [+anterior] Em (12) temos o espraiamento (representado pela linha pontilhada) do tra<;:o de ponto de articula<;:ao [dorsal] do segmento /k/ para 0 no de classe imediatamente superior a ele (Ponto de C) no segmento It/ e, tambem, o desligamento dos tra<;:os de ponto de /t/. Com esse espraiamento e o subse- qtiente desligamento do no de Ponto de C original de /t/, o segmento /t/ Aquisic;:ao Fonologica do Portugues 47 passa a compartilhar o mesmo Ponto de C do segmento /k/. Como todos os outros trac;os que integram a estrutura dos dois segmentos sao iguais, na for- ma de output, It/ passa a realizar-se como [k], conforme e mostrado em (13). (13) /p e k k a/ ['oeote -so ante - aproximante - aproximante RAIZ - voc6ide RAIZ - voc6ide LAR[NGEO LAR[NGEO CAVIDADE ORAL CAVIDADE ORAL [-son oro] [-continuo] [-sonora] ~"tiooo] PONTO DEC PONTO DEC [dorsal] Os outros trac;os compartilhados pelos segmentos envolvidos nesse pro- cesso de assimilac;ao nao podem ser reunidos (como ocorreu com o trac;o [dorsal]) porque nao sao adjacentes, uma vez que ha, entre eles (embora nao esteja representada nos diagram as em (12) e em (13)), a estrutura interna do segmento [EJ, que lhes e interveniente. E importante salientar que urn dos prindpios da Fonologia Autossegmental eo chamado "Principia do nao-cruzamento de linhas", o qual proibe o esprai- amento de trac;os ou de nos de classe que implique cruzamento de linhas de associac;ao. No exemplo em (12), o espraiamento e permitido porque nao im- plica cruzamento de linhas, ou seja, como a vagal /E/ interveniente nao pas- sui especificac;ao de trac;o imediatamente dominado pelo n6 Ponto de C, o 48 Regina Ritter Lamprecht (Org.) espraiamento do tra\;O [dorsal] do segmento /k/ para o Ponto de C do seg- mento /t/ nao acarretou cruzamento de linhas de associa\;ao. 0 espraiamento de quaisquer outros tra\;OS de estruturas das consoantes aqui envolvidas no processo violaria o "Prindpio do nao-cruzamento de linhas". A representa\;ao, na teoria autossegmental, da assimila\;ao como esprai- amento de nos e/OU tra\;OS e capaz de explicitar COlli clareza 0 efeito de coarti- cula\;aO que decorre desse processo fonologico. E importante ressaltar que em (13) ha o exemplo de uma representa\;ao nao-linear, uma vez que urn mesmo tra\;O e associado a dois segmentos. Exem- plos de rela\;oes nao-lineares aparecem em (14). (14) (a) (b) (c) (d) X X X X 0 v 1\ r r r 0 r [a:] [tSJ Como X representa uma unidade de tempo, temos em (14) as seguintes rela\;oes: a) duas unidades de tempo estao ligadas a urn no de raiz - essa e a representa\;ao de vogais longas e de consoantes geminadas; b) uma unidade de tempo esta ligada a dois nos de raiz- essa e a repre-