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Memórias e temporalidades: desafios e perspectivas da pesquisa histórica Danielle Freire da Silva Na década de 70, as temáticas em torno do ofício do historiador, bem como da organização da disciplina histórica surgiram enquanto um dos principais debates mobilizados pelos historiadores. Estes se voltavam finalmente para os fundamentos do fazer historiográfico. É nesse contexto que surgem as discussões teóricas no campo dos estudos históricos acerca do tempo e temporalidades, dos modos de vivenciar o nosso próprio tempo e narrá-lo. Em meados da década de 80, a ascensão do fenômeno memorial no discurso público irá alimentar uma série de questionamentos e desafios na maneira de vivenciar e discorrer sobre o nosso próprio tempo, marcando uma mudança de época, o presentismo nos termos elaborados pelo historiador francês François Hartog. (2017) Um dos primeiros autores a trabalhar com a noção de tempo histórico foi Reinhart Koselleck, em sua obra seminal "Futuro Passado", publicada em 1979. Neste trabalho, ele elabora a noção de tempo histórico como uma complexa construção cultural que determina um modo de relacionamento específico entre o passado e as possibilidades que lançam ao futuro como horizonte de expectativas. Koselleck identifica no século XVIII, a partir do surgimento da história como singular coletivo, uma concepção de tempo progressivista marcada pela experiência da aceleração e pela relação sobredeterminantes dos horizontes de expectativas, ou seja, da categoria futuro. A história como processo, que inaugura a concepção moderna de tempo, atribui a chave explicativa do mundo ao próprio devir histórico, ou seja, o processo inescapável do próprio devir obriga a ação social a assumir horizontes de expectativas futuras que a inscrevem como advindos do próprio processo temporal. (KOSELLECK, 2006) Hartog ao levantar a questão se ainda cremos em história (2017), utiliza Koselleck como um de seus principais referenciais teóricos para entender após a "Era da catástrofe", a fórmula de crise que se impôs nos anos da década de 90 do século XX (HOBSBAWM, 2003) e o lugar do conceito moderno de história nesse processo. Sua produção pode ser colocada num contexto de crescente incerteza em relação ao futuro, de seu "fechamento" - não mais resposta ou razão estruturante - e inserção do presente como horizonte intransponível do nosso contemporâneo, desenhando a partir daí um novo tipo de relacionamento com o tempo, o qual ele caracterizou como presentismo. Hobsbawm em Era dos Extremos atenta para esse fenômeno no que ele chama de uma destruição dos "mecanismos sociais" que vinculam o presente vivido com o já experimentado pelas gerações precedentes numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação com o passado público da época que atravessa. (HOBSBAWM, 2003) Hartog, por outro lado, enxerga nesse processo o surgimento da memória enquanto resposta e expressão da ascensão do presente, que marca a mudança de uma época. "Crer em história", na mesma linha metodológica da semântica dos conceitos de Koselleck, propõe uma análise do contemporâneo a partir dos termas em que ele se articula, mobilizando todo o tipo de narrativas descontínuas articulados ao que ele chama de "palavras mestras", como a memória. O surgimento da memória no discurso público estaria certamente intricado com os debates acerca da temática da reparação que tem seu centro inaugural o Holocausto. Este, que desafiou a forma de pensar a história a partir das vítimas, atribuía-se o objetivo de "reparar" os crimes da história, "curar" o passado e reconciliar-se com o tempo. Nesse contexto se destaca a justiça transicional, cuja competência penal é geralmente esvaziada para dar lugar a "reconciliação nacional", se situando num tempo intermediário que deve construir uma ponte entre passado e futuro. As Comissões da Verdade, concebidas como "momentos de memória", deviam permitir às vítimas o direito à reparação ao serem ouvidas. Ela é esse lugar, ou esse entrelugar do tempo vivido no presente, a partir do reencontro da vítima com o seu algoz, onde podem-se elaborar as condições para o reinício do tempo. (HARTOG, 2017) Outro aspecto que as operam são as filmagens para futura comunicação, como dever de memória. À vista disso, o regime do imprescritível aplicado aos chamados crimes contra a humanidade que sustentam a pertinência e legitimidade das justiças transicionais e os tribunais de exceção - a exemplo do julgamento de Adolf Eichman em 1961 - imprimem um deslizamento do tempo do direito ao tempo social, perpassando também uma nova forma de se relacionar com o tempo. (HARTOG, 2017) Sendo o seu critério a atualidade do sofrimento, ele abole a distância entre passado e presente, tornando-nos contemporâneos dos fatos julgados por crimes contra a humanidade. Henry Rousso em "A última catástrofe" (2017) estabelece uma nuance em relação ao argumento de Hartog ao estabelecer que esta temporalidade do imprescritível é menos dominada pelo presente do que pela persistência do passado, o passado se faz presente. Daí a sua pertinência no campo de disputa no debate público enquanto obrigação política e moral, ou dever de reconstituir a partir do relato da vítima/testemunha a lembrança coletiva dos sofrimentos infligidos a toda uma coletividade dentro da perspectiva universalista dos direitos humanos. Beatriz Sarlo em "Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva" (2007), ao se debruçar no caso específico da transição democrática argentina, analisa a testemunha e seu relato como um ícone de verdade. Importante para a reconstrução do passado, a memória adquire um importante uso público por evocar um mecanismo para a ação inserido no prisma da reparação. Nos termos da autora, o emblema da justiça transicional argentina "Ditadura nunca mais" se torna menos uma cura ou reconciliação com o passado do que uma decisão ou compromisso de evitar a sua repetição. A ascensão da memória é, portanto, parte da resposta e expressão da modificação da nossa relação com o tempo, esse encurtar de distâncias entre o passado e o presente propiciado pelo acontecimento insuperável. (ROUSSO, 2017) Ela se torna uma alternativa a uma história entendida como singular coletivo, cujo objetivo é um futuro civilizatório que, em última instância, falhou em uma série de catástrofes e silenciou o que não era "moderno", uma história tal qual defendida por Walter Benjamin, do ponto de vista dos vencidos. Papel central nesse processo possui o desenvolvimento da história pública em sua modalidade acadêmica a partir da década de 70 ao lado das disputas no campo público em torno da categoria passado, cujos atores eram múltiplos assim como seus campos de atuação. As discussões em torno da memória, das análises descentradas e o caráter suturado de suas temporalidades (HALL, 2003), surgem numa necessidade de dialogar com o público não especializado e "não-acadêmico" orientado pelas demandas do presente, cuja ação do Estado nas políticas de memória possui certa centralidade e o compartilhamento da autoridade é imperioso e proveitoso na construção de significados, nos termos discutidos por Michal Firsch. (MAUAD et al, 2016) Hartog enxerga nesse processo uma ruptura com o moderno conceito de história, como uma crise desses homens na maneira de relacionarem-se entre o "já conhecido e experimentado" como passado e o "horizonte de expectativas". (KOSELLECK, 2006) Ora, para o autor, memória, comemoração, patrimônio e identidade são noções para tempos de incerteza, no qual se insere a perda de referência como já apontado anteriormente por Hobsbawm e o sentido de aceleração do tempo torna mais sensível à desorientação e não o processo inexorável do progresso. (HARTOG, 2017) Stuart Hall em "Quando foi o pós-colonial?' Pensando no limite" identifica nessa conjuntura "uma crise nos modos de compreensão do mundo" (HALL, 2003). A perspectiva teórica proposta pelo sociólogo britânico-jamaicano nos apresenta uma importante leitura sobre a maneira de escrever história contemporânea ao inseriras relações coloniais como um conjunto de relações de poder que não se limita apenas à extração de excedentes econômicos, o chamado "sentido da colonização", mas como forma de conhecimento e representação que emerge das grandes narrativas imperiais coadunadas no conceito moderno de história. Nesse sentido, a partir do recorte da colonização, a narrativa de uma história processo eurocêntrica promove "condensações" e "eclipses" em nome de uma única temporalidade homogênea e ocidental. Nesse sentido, os desafios e perspectivas que se colocam nos estudos históricos passam por entender qual seria o nosso lugar enquanto historiadores nesse mundo que constantemente evoca a categoria passado, mas não a história. Um mundo que lança mão da comemoração, da "museificação da história" (SARLO, 2007), das técnicas de presentificação e patrimonialização empreendida pelas políticas memoriais estatais em detrimento da historicização, das explicações e da análise distanciada. (HARTOG, 2017). Como contribuir para uma compreensão do passado indo além do compromisso de lembrá-lo? Nessa perspectiva, as respostas a esse "tempo de incertezas" propiciadas pela "catástrofe", que mudou a nossa maneira de nos relacionar com o contemporâneo, surgiram também na reflexão do fazer historiográfico. Voltando-se para os fundamentos da historiografia e sua operação, nos interrogamos sobre a relação que estabelecemos com a sociedade presente e os questionamentos que ela enseja. Como bem caracterizou Lucien Febvre ao falar da pesquisa histórica em "Caminhando para uma outra História", é em função de nossas necessidades presentes que olhamos para o passado. (FEBVRE, 1977). O historiador, como sujeito do seu tempo, reconfigurou o seu campo dialogando com as novas perspectivas epistemológicas das outras áreas das ciências sociais, com destaque para as renovações teórico-metodológicas no campo dos estudos culturais e a "virada linguística" dos anos setenta e oitenta. O momento historiográfico marcado pela ascensão das políticas de memória e identidades proporcionou perspectivas historiográficas específicas, bem como o surgimento de novos objetos. A "virada subjetiva" representou o interesse pelos sujeitos e suas agências, esses que não só seguiam itinerários sociais e reproduziam em maior ou menor medida as relações de poder, mas também protagonizavam negociações, transgressões e mudanças. (SARLO, 2007) Nesse contexto, podemos citar o trabalho de Paul Gilroy, "O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência" que se debruça na música negra enquanto objeto para compreender o compartilhamento global/local das formas culturais negras no pós-escravidão. Sua perspectiva parte de uma compreensão das tradições culturais e memórias históricas não como uma transmissão tranquila e orgânica, essencialmente fixa ao longo do tempo, mas construída nas renovações de suas tradições culturais em seus diferentes espaços como respostas às questões contemporâneas. Outros autores se inserem nesse debate, nesse sentido podemos citar a síntese proposta por Ciro Flamarion Cardoso no ensaio "Etnia, Nação e mundo pré-moderno. Um debate", onde o mesmo preconiza a identidade social como conceito da ordem da construção, ainda que real e eficaz, a mesma participa da complexidade historicamente variável das estruturas sociais. (CARDOSO, 2005) Por outro lado, cabe destacar o surgimento da História do Tempo Presente enquanto campo de estudos autônomo nos estudos históricos. Alguns pressupostos epistemológicos norteiam e em certa medida legitimam essa perspectiva enquanto campo de pesquisa histórica. Sua operação é intermediada por uma duração significativa, uma temporalidade enquanto campo disciplinar da história e não no instante fugaz ou na temporalidade do imediato. Tal qual defendido por Henry Rousso (2017), fazer história do tempo presente implica reconhecer que o presente, assim como o passado, possui uma inteligibilidade e profundidade, não se reduz a uma soma de acontecimentos entendidos por si mesmos, repentinamente. Requer, como qualquer operação histórica, inserir o acontecimento numa duração, numa temporalidade e genealogia e propor uma ordem de inteligibilidade ou hipóteses, para usar o termo científico que lhe cabe. Para finalizar, cabe destacar a importância do surgimento da história oral dentro do campo da memória a partir da pertinência do testemunho ou relato. Sua relevância perpassa múltiplas temáticas no estudo do contemporâneo, notável tanto no recorte das ditaduras latino-americanas aqui já levantado, quanto na história do tempo presente e história pública. Seu uso como fonte nas pesquisas históricas não foge, no entanto, da necessária crítica e mediação do historiador. Bibliografia: CARDOSO, Ciro Flamarion. Etnia, Nação e mundo pré-moderno: Um debate. In: Um Historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. São Paulo: Edusc, 2005, p. 182-184. FRISCH, Michael. A história pública não é uma via de mão única ou De A Shared Authority à cozinha digital, e vice versa. In: MAUAD, Ana Maria, ALMEIDA, Juniele Rabêlo e SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. HARTOG, François. Crer em história. Belo Horizonte, Autêntica, 2017. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o Breve Século XX (1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras, 2003. HALL, Stuart. “Quando foi o pós-colonial? Pensando o limite”, In: SOVIK, Liv (org.) Da diáspora: identidades e mediações culturais, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p.101-128. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006. FEBVRE, Lucien. Caminhando para uma outra história. In: Combates pela história. Lisboa, Ed. Presença, 1977. ROUSSO, Henry. A última catástrofe. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2017. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São. Paulo: Companhia das Letras, 2007. Memórias e temporalidades: d es a f ios e perspectivas da pe squisa histór ica D aniell e Freire da Silva Na década de 70, as temáticas em torno do ofício do historiador, bem como da organização da disciplina histórica surgiram enquanto um dos principais debates mobilizados pelos historiadores. Estes se voltavam finalmente para os fundamentos do fazer historio gráfico. É nesse contexto que surgem as discussões teóricas no campo dos estudos históricos acerca do tempo e temporalidades, dos modos de vivenciar o nosso próprio tempo e narrá - lo. Em meados da década de 80, a ascensão do fenômeno memorial no discurso pú blico irá alimentar uma série de questionamentos e desafios na maneira de vivenciar e discorrer sobre o nosso próprio tempo, marcando uma mudança de época, o presentismo nos termos elaborados pelo historiador francês François Hartog. (2017) Um dos pri meiros autores a trabalhar com a noção de tempo histórico foi Reinhart Koselleck, em sua obra seminal "Futuro Passado", publicada em 1979. Neste trabalho, ele elabora a noção de tempo histórico como uma complexa construção cultural que determina um modo de relacionamento específico entre o passado e as possibilidades que lançam ao futuro como horizonte de expectativas. Koselleck identifica no século XVIII, a partir do surgimento da história como singular coletivo, uma concepção de tempo progressivista marca da pela experiência da aceleração e pela relação sobredeterminantes dos horizontes de expectativas, ou seja, da categoria futuro. A história como processo, que inaugura a concepção moderna de tempo, atribui a chave explicativa do mundo ao próprio devir hist órico , ou seja, o processo inescapável do próprio devir obriga a ação social a assumir horizontes de expectativas futuras que a inscrevem como advindos do próprioprocesso temporal. (KOSELLECK, 2006) Hartog ao levantar a questão se ainda cremos em his tória (2017), utiliza Koselleck como um de seus principais referenciais teóricos para entender após a "Era da catástrofe", a fórmula de crise que se impôs nos anos da década de 90 do século XX (HOBSBAWM, 20 0 3) e o lugar do conceito moderno de história ness e processo. Sua produção pode ser colocada num contexto de crescente incerteza em relação ao futuro, de seu "fechamento" - não mais resposta ou razão estruturante - e inserção do presente Memórias e temporalidades: desafios e perspectivas da pesquisa histórica Danielle Freire da Silva Na década de 70, as temáticas em torno do ofício do historiador, bem como da organização da disciplina histórica surgiram enquanto um dos principais debates mobilizados pelos historiadores. Estes se voltavam finalmente para os fundamentos do fazer historiográfico. É nesse contexto que surgem as discussões teóricas no campo dos estudos históricos acerca do tempo e temporalidades, dos modos de vivenciar o nosso próprio tempo e narrá-lo. Em meados da década de 80, a ascensão do fenômeno memorial no discurso público irá alimentar uma série de questionamentos e desafios na maneira de vivenciar e discorrer sobre o nosso próprio tempo, marcando uma mudança de época, o presentismo nos termos elaborados pelo historiador francês François Hartog. (2017) Um dos primeiros autores a trabalhar com a noção de tempo histórico foi Reinhart Koselleck, em sua obra seminal "Futuro Passado", publicada em 1979. Neste trabalho, ele elabora a noção de tempo histórico como uma complexa construção cultural que determina um modo de relacionamento específico entre o passado e as possibilidades que lançam ao futuro como horizonte de expectativas. Koselleck identifica no século XVIII, a partir do surgimento da história como singular coletivo, uma concepção de tempo progressivista marcada pela experiência da aceleração e pela relação sobredeterminantes dos horizontes de expectativas, ou seja, da categoria futuro. A história como processo, que inaugura a concepção moderna de tempo, atribui a chave explicativa do mundo ao próprio devir histórico, ou seja, o processo inescapável do próprio devir obriga a ação social a assumir horizontes de expectativas futuras que a inscrevem como advindos do próprio processo temporal. (KOSELLECK, 2006) Hartog ao levantar a questão se ainda cremos em história (2017), utiliza Koselleck como um de seus principais referenciais teóricos para entender após a "Era da catástrofe", a fórmula de crise que se impôs nos anos da década de 90 do século XX (HOBSBAWM, 2003) e o lugar do conceito moderno de história nesse processo. Sua produção pode ser colocada num contexto de crescente incerteza em relação ao futuro, de seu "fechamento" - não mais resposta ou razão estruturante - e inserção do presente