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Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 146 (2019-09)

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O COMBATE 
À CORRUPÇÃO
COM FINS 
POLÍTICOS
LE MONDE
BRASILdiplomatique
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2 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019
POPULISTAS E LIBERAIS
Quem elegeu 
Ursula von der Leyen?
POR SERGE HALIMI*
A 
providencial a onda de calor de 
julho de 2019! Ela ofuscou um 
caso igualmente revelador de 
distúrbios atuais, mas demo-
cráticos. Cegos pelo suor, poucos eu-
ropeus realmente notaram que o dis-
curso político que lhes vinha sendo 
servido havia pelo menos três anos 
acabara de ser dinamitado. E a im-
prensa, ocupada com outras “inves-
tigações”, não se deu ao trabalho de 
lhes sinalizar isso.
Centenas de milhões de eleitores 
europeus eram, até então, embala-
dos por um grande discurso mani-
queísta. A política da União Europeia 
e as eleições de 26 de maio se resu-
miam ao enfrentamento entre dois 
campos: liberais contra populistas.1 
No entanto, em 2 de julho, uma vez 
concluída a eleição dos deputados, 
uma cúpula dos chefes de Estado e 
de governo da União Europeia reco-
mendou que a ministra democrata 
cristã alemã Ursula von der Leyen se 
tornasse presidenta da Comissão Eu-
ropeia. A ideia teria vindo de Emma-
nuel Macron. Sua sugestão foi natu-
ralmente retomada pela chanceler 
alemã Angela Merkel, mas também 
pelo... primeiro-ministro húngaro, 
Viktor Orbán.
Desde sua eleição, no entanto, o 
presidente francês não deixara de ju-
rar que se mostraria inflexível diante 
dos nacionalistas e dos “populistas”, 
portadores de “paixões tristes”, “de 
ideias que, tantas vezes, acenderam 
os braseiros em que a Europa pode-
ria ter perecido”. Eles “mentem para 
o povo” e lhe “prometem o ódio”, ele 
tinha dito.2 Macron até se afastou de 
sua modéstia irrepreensível para de-
safiar dois desses incendiários, o mi-
nistro italiano do Interior, Matteo 
Salvini, e Orbán: “Se eles quiseram 
ver na minha pessoa seu principal 
adversário, eles estão certos”.
No dia 16 de julho, quando os de-
putados confirmaram a escolha dos 
chefes de Estado e de governo, as 
proclamações de campanha – “pro-
gressistas” contra nacionalistas – no-
vamente cederam lugar a uma confi-
guração política completamente 
diferente. Os parlamentares socialis-
tas votaram ora contra a deputada 
Von der Leyen (franceses e alemães, 
em particular), ora a favor (espa-
nhóis e portugueses). E, no último 
caso, eles se uniram aos nacionalis-
tas poloneses e aos companheiros de 
Orbán. Ou seja, os mesmos que Ma-
rine Le Pen estava cortejando alguns 
dias antes para formar com eles um 
grupo comum em Estrasburgo... No 
final, a candidata de Macron deve 
sua eleição à presidência da Comis-
são Europeia – obtida graças a uma 
maioria de apenas nove votos – a 
uma coalizão heteróclita composta 
dos treze parlamentares húngaros 
leais a Orbán, bem como dos catorze 
eurodeputados “populistas” do Mo-
vimento 5 Estrelas, na época aliados 
de Salvini.
Vamos apostar, no entanto, que, 
mesmo quando as temperaturas ti-
verem voltado ao normal no Velho 
Continente, a maioria dos jornalistas 
continuará a se debruçar sobre as ca-
tegorias artificiais com que Macron 
os paparicou. 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
1 Ler Serge Halimi e Pierre Rimbert, “Populistes 
contre libéraux, un clivage trompeur” [Populis-
tas versus liberais, uma divisão enganosa], Le 
Monde Diplomatique, set. 2018.
2 Discurso da Sorbonne, Paris, 26 set. 2017.N
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3SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
EDITORIAL
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Google, Facebook e a extrema direita
POR SILVIO CACCIA BAVA
E
stá cada vez mais evidente a im-
portância das redes sociais nas 
comunicações, mas continua 
havendo um mito de que essas 
redes são o espaço da liberdade, da 
livre expressão de qualquer um. 
Google e Facebook estão aí para di-
zer que não. Vejamos.
YOUTUBE 
O YouTube surgiu em 2005 e foi 
comprado pelo Google em 2006. Re-
centemente instalou um poderoso 
sistema de inteligência artificial que 
aprende com o comportamento do 
usuário e apresenta vídeos com reco-
mendação para outros. Num esforço 
para reter o usuário na rede, o siste-
ma de recomendação apela para no-
vos vídeos com conteúdos cada vez 
mais extremos. 
Visto mais que a maioria das redes 
de TV aberta, utilizando-se de algo-
ritmos e difundindo fake news e 
conspirações, o YouTube teve um pa-
pel decisivo na vitória de Bolsonaro. 
Isso aconteceu por ter reunido e im-
pulsionado não apenas os canais de 
extrema direita, que até então não ti-
nham importância, eram periféricos 
na internet, mas também seus usuá-
rios mais radicais, que chegaram a 
ameaçar de morte seus “inimigos”. 
Nos meses que se seguiram à mu-
dança em seus algoritmos, explodi-
ram as menções positivas a Bolsona-
ro, retirando esse então anônimo 
parlamentar do ostracismo, assim 
como ganharam grande visibilidade 
as mensagens que denunciavam 
conspirações, como a infiltração do 
comunismo nas escolas, as vacinas 
que geram doenças, o marxismo cul-
tural, a Terra plana. 
Os algoritmos do YouTube não 
são neutros. Eles reuniram canais 
marginais e construíram para eles 
uma audiência. A extrema direita viu 
sua audiência explodir no YouTube, 
atingindo um grande número de 
brasileiros. 
Importantes membros da extre-
ma direita declararam que o YouTu-
be se transformou em sua mídia so-
cial, e pesquisadores identificaram 
que essa plataforma direcionou sis-
tematicamente seus usuários para 
canais de extrema direita e de cons-
piração.1 As emoções que esses ví-
deos suscitam – medo, dúvida, raiva 
– são elementos centrais das teorias 
de conspiração e, em particular, do 
radicalismo da extrema direita. 
Não há como defender a neutrali-
dade do YouTube, pois depoimentos 
de usuários demonstram sua condu-
ção para sites de extrema direita. “Al-
gumas vezes, quando estou assistin-
do a um vídeo sobre jogos, surge, de 
repente, um vídeo sobre Bolsonaro”, 
declara Inzaghi, um estudante de Ni-
terói, 17 anos. 
Mauricio Martins, vice-presiden-
te do PSL em Niterói, declara que a 
maior parte dos afiliados foi recruta-
da graças ao YouTube. É importante 
observar que os jovens e os estudan-
tes têm no YouTube sua principal fon-
te de informação. 
WHATSAPP
Surgido em 2009, o WhatsApp tem 
hoje 1,5 bilhão de usuários no mun-
do. Em 2014, foi comprado pelo Face-
book. No Brasil, essa plataforma tem 
120 milhões de usuários e 48% o con-
sideram fonte de notícias. 
O WhatsApp é apresentado como 
um programa de comunicação inter-
pessoal seguro, criptografado, que só 
permite o acesso do emissor e do re-
ceptor. Ninguém mais ficaria saben-
do dos conteúdos das mensagens. 
Acontece que essa virtude do sigilo 
passou a ser também a arma dos ma-
nipuladores de opinião. 
Com o uso da inteligência artificial 
foram desenvolvidos programas ca-
pazes de coletar os números de telefo-
ne de milhares de brasileiros no Face-
book, segmentá-los de acordo com 
seus interesses específicos, gênero, 
cidade onde moram etc., criar auto-
maticamente grupos que até há pou-
co podiam abrigar até 256 pessoas ca-
da e enviar milhões de mensagens 
específicas, produzidas especialmen-
te para cada grupo de interesses.
A manipulação política dos cida-
dãos pela mídia digital parece ter ad-
quirido escala a partir dos estudos e 
pesquisas da consultoria Cambridge 
Analytica, empresa que declarou 
possuir algo como 5 mil informações 
de cada cidadão, coletadas nas redes 
sociais (ver no Netflix o vídeo “Priva-
cidade hackeada”). 
A Cambridge Analytica empregou 
seus métodos e conhecimentos nas 
últimas eleições brasileiras. Lançan-
do mão das redes sociais, eles foram 
levando a opinião pública majorita-
riamente para a direita. Segundo o 
jornal Folha de S.Paulo de 18 de outu-
bro de 2018, empresários que apoia-
ram Bolsonaro utilizaram de caixa-
-dois para pagar o envio, por meio de 
robôs, de milhões de mensagens no 
WhatsApp contra o PT. 
Esses robôs, denominados bots, 
apresentam-se como usuários reais 
e são programados para disseminarboatos e notícias falsas, interagindo 
com os demais usuários e colocan-
do seus temas em maior evidência 
que outros. 
Estudo da FGV/Dapp identifica 
que 20% das discussões envolvendo 
política nas redes sociais são de res-
ponsabilidade dos bots. Na campa-
nha de Jair Bolsonaro, 33% de seus 
apoiadores nas redes sociais eram 
perfis falsos que faziam circular me-
mes escandalosos, vídeos mentirosos 
e áudios altamente virais. 
A agência de checagem Aos Fatos 
identificou que, apenas no dia 7 de 
outubro, dia das eleições, 1,7 milhão 
de notícias falsas foram compartilha-
das no Facebook. Essas campanhas 
de notícias falsas se abrigaram no 
WhatsApp e no Facebook Messenger. 
Para observar a dimensão inter-
nacional dessas mudanças no campo 
das comunicações, basta dizer que a 
Cambridge Analytica já esteve traba-
lhando em campanhas eleitorais em 
vários países antes que se envolvesse 
com a eleição de Trump, o Brexit e o 
Brasil. Apenas como referência, na 
Índia, nas eleições legislativas deste 
ano, os dois principais partidos de-
claravam ter mais de 20 mil grupos 
de WhatsApp que chegavam a cada 
distrito ou vilarejo de certas regiões. 
YOUTUBE-WHATSAPP
O que até agora não estava tão evi-
dente e passa a ser um novo elemento 
de explicação para a ascensão da ex-
trema direita no Brasil é a atuação ar-
ticulada YouTube-WhatsApp. 
Pesquisas identificaram que o 
YouTube estimula a difusão dos con-
teúdos das campanhas da extrema 
direita por meio de seus vídeos junto 
ao seu público. Mas o grande disse-
minador desses vídeos para o povão, 
muitas vezes reduzidos e editados, e 
com o auxílio de robôs, é o WhatsA-
pp, mais barato e de mais ampla pe-
netração, com seus 120 milhões de 
usuários no Brasil.2 
1 “Episode 9: The Rabbit Hole”, New York Times, 
ago. 2019. 
2 Amanda Taub e Max Fisher, “How YouTube Misin-
formation Resolved a WhatsApp Mystery in Bra-
zil”, The New York Times, 15 ago. 2019. Este arti-
go é a base de argumentação sobre o Youtube. 
4 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019
CAPA – OS FINS POLÍTICOS DO COMBATE À CORRUPÇÃO
Dar um sermão para 
o mundo ou transformá-lo?
POR BENOÎT BRÉVILLE E RENAUD LAMBERT*
E
m 2017, na França, François Fil-
lon, candidato dos Republica-
nos, viu se desvanecerem suas 
chances de chegar ao Eliseu 
quando uma investigação foi aberta 
contra sua esposa, que se beneficiara 
de um emprego fictício. Em 2018, a 
justiça brasileira suspeitou que o ex-
-presidente Luiz Inácio Lula da Silva 
tivesse recebido propinas e o proibiu 
de participar da eleição presidencial. 
Em 2019, o ex-presidente da Assem-
bleia Nacional francesa, François de 
Rugy, renunciou ao cargo de ministro 
da Ecologia quando a imprensa reve-
lou que ele servira lagostas e vinhos 
finos a parentes à custa do Estado... 
De Paris a Brasília, de Londres a Seul, 
a vida política parece ser pontuada 
pelos “negócios”. O flagelo – que o pa-
pa Francisco recentemente descre-
veu como um “câncer” que gangrena 
as sociedades modernas1 – preocupa 
tanto que, todo dia 9 de dezembro, 
sob o impulso das Nações Unidas, o 
planeta celebra o Dia Internacional 
de Luta contra a Corrupção, dois dias 
depois do Dia da Aviação Civil e dois 
dias antes do Dia da Montanha.
Se a condenação do fenômeno é 
unânime, o termo choca por sua ne-
bulosidade. A pesquisadora Anastas-
siya Zagainova ressalta que ele de-
signa tanto “delitos penais, definindo 
uma conduta específica e sua sanção 
(corrupção ativa e passiva, ingerên-
cia, concussão, afrontamento à 
igualdade de oportunidades nas 
compras públicas)” quanto “com-
portamentos socialmente questio-
náveis, mas cujo modo de sanção 
permanece impreciso (lobby, evasão 
fiscal, criação de empresas de facha-
da offshore, casos de deslocamento 
do profissional do serviço público 
para a empresa privada etc.)”.2
Nos Estados Unidos, por exemplo, 
uma empresa que quer influenciar as 
escolhas de um representante eleito 
não precisa recorrer a negócios por 
baixo do pano. Desde janeiro de 2010 
e do julgamento “Citizens United v. 
Federal Election Commission” [Cida-
dãos Unidos vs. Comissão Eleitoral 
Federal], feito pela Suprema Corte, 
basta subvencionar associações rela-
cionadas ao seu escolhido, da forma 
mais legal do mundo e sem limite dos 
valores. Em muitos países, tal prática 
seria proibida; na América, estamos 
falando de... liberdade de expressão. 
De acordo com um relatório da Sun-
light Foundation, entre 2007 e 2012, 
as duzentas empresas norte-ameri-
canas mais ativas politicamente dis-
penderam US$ 5,8 bilhões em gastos 
desse tipo. Durante o mesmo perío-
do, elas receberam o equivalente a 
US$ 4,4 trilhões em presentes diver-
sos: subsídios, isenções, cortes de 
impostos.3
Alterar a lei em vez de modificar 
esses comportamentos: o método se-
duz. As multinacionais norte-ameri-
canas que desejam se estabelecer em 
países pobres são assim autorizadas 
a realizar “pagamentos de facilita-
ção” (facilitating payments) para ace-
lerar um procedimento, obter uma 
autorização, fazer uma pasta subir 
para o topo da pilha. Por seu lado, os 
envolvidos em processos que tenham 
dinheiro suficiente podem pôr fim à 
acusação de que são objeto pagando 
à parte contrária. Flutuante, a fron-
teira entre a corrupção e as práticas 
legais está, portanto, desde então su-
jeita aos caprichos da lei e da lógica 
que muitas vezes subjaz à elabora-
ção: trazer as práticas dominantes 
para a legalidade, garantindo ao 
mesmo tempo maior severidade aos 
crimes das classes populares.
Variável de acordo com os pontos 
do globo e as hierarquias sociais, a 
atenção dada ao fenômeno também 
A corrupção é uma das formas mais brutais de expres-
são do poder dos poderosos. Entretanto, será que os ob-
jetivos dos que combatem tal flagelo são tão nobres 
quanto alegam? No Brasil, as acusações abundantemen-
te repetidas pela imprensa permitiram a prisão, sem pro-
vas, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (ler págs. 
6-11). Na Rússia e na Índia, as operações “mãos limpas” 
permitem sobretudo ao poder se livrar de opositores in-
convenientes (ler págs. 14-17). Quais são as motivações 
de uma imprensa em geral menos desinteressada do que 
parece (ler págs. 12-13)? Afinal, a moral basta para guiar 
a ação política.
©
 P
au
lo
 It
o
5SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
mudou ao longo do tempo. Entre 1981 
e 1990, os jornais Figaro, Le Monde e 
Libération publicaram 2.630 artigos 
que tratavam de uma maneira ou de 
outra de corrupção. Uma década de-
pois, a cifra tinha quadriplicado.4 
Uma epidemia de prevaricação se 
abateu sobre o mundo? Em um estu-
do publicado em 2004, os pesquisa-
dores Catherine Fieschi e Paul Hey-
wood sugerem outra explicação: a 
mudança do debate político após o 
colapso do sistema comunista no iní-
cio dos anos 1990. “Os partidos cujas 
batalhas eleitorais foram organiza-
das ontem em torno de questões 
ideológicas, mas que tinham as mes-
mas práticas em matéria de corrup-
ção, tiveram de mudar de tática. Os 
programas da esquerda e da direita 
começaram a ficar parecidos, en-
quanto a urgência de demonstrar sua 
competência uma vez no poder se 
tornava decisiva. [...] A competição 
política tem, portanto, levado a negli-
genciar os debates substantivos para 
preferir as acusações de corrupção, 
destinadas a manchar o crédito do 
adversário.”5 Essa evolução tem sido 
uma bênção para os grandes meios 
de comunicação. Desafiados por sua 
disposição de endossar as preferên-
cias das elites, eles encontram nos 
“negócios” os meios para dourar no-
vamente seu brasão: se revelam os 
aspectos torpes dos poderosos, é por-
que são livres (ler o artigo de Pierre 
Péan, pág.12). 
Mas a ênfase no tema da corrup-
ção nos anos 1990 procede igualmen-
te de um movimento ideológico mais 
profundo. Com o desaparecimento 
do modelo político alternativo repre-
sentado pelo bloco oriental, o modelo 
ocidental tornou-se, segundo seus 
promotores, o único possível, a en-
carnação da razão. Nos corredores do 
FMI e do Banco Mundial surgiuen-
tão o tema da “governança”: a ideia 
de um governo técnico, liderado por 
especialistas que trabalham para o 
bem comum. Assim, para os países 
do Sul, como para os do antigo bloco 
comunista, converter-se ao livre-co-
mércio ou ao capitalismo não decor-
re mais de uma escolha política, mas 
de um imperativo de boa gestão.
Prejudicial às empresas que dese-
jam se estabelecer em países em de-
senvolvimento, a corrupção concen-
tra o fogo das instituições neoliberais, 
que rapidamente identificam nela a 
raiz principal: a falta de livre-comér-
cio. “Ao inflar o preço das mercado-
rias acima daquele do mercado”, ex-
plica o pesquisador Strom C. Thacker, 
“as barreiras comerciais podem levar 
os empresários a pagar subornos pa-
ra obter uma isenção ou um trata-
mento preferencial.”6 Liberalizar e 
lutar contra a prevaricação: as orga-
nizações internacionais condiciona-
rão em breve sua ajuda financeira a 
esses dois imperativos. Onipresente 
quando se trata de medir o fenômeno 
da corrupção, a ONG Transparência 
Internacional – fundada dois anos 
após o colapso da União Soviética 
por um ex-membro do Banco Mun-
dial (ver boxe) – considera que as prá-
ticas ilícitas dizem respeito apenas 
ao setor público. Por definição, as 
empresas estariam protegidas dela.
Argumentar-se-á que o México da 
década de 1980 e a Rússia da década 
seguinte ofereceram a demonstração 
de que o reino do mercado – e as pri-
vatizações que ele requer – não igno-
rava as conivências dos acordos por 
baixo do pano e da corrupção. Mas 
isso pouco importa para aqueles que, 
com Francis Fukuyama, acreditam 
que o colapso do bloco soviético 
anunciou o “fim da história”. No rela-
to que eles moldam, as bússolas não 
são mais políticas, mas morais. Cer-
tamente, as elites mantêm suas prefe-
rências ideológicas, mas as formulam 
recorrendo ao registro da virtude. Fa-
lava-se ontem de capitalismo? Agora 
será sobre liberdade econômica. 
Houve intervenção em Granada para 
lutar contra a ameaça comunista?7 
Agora serão enviadas tropas para o 
resgate dos direitos humanos.
Assim, no Brasil, a esquerda não 
aparece mais como um adversário 
eleitoral, mas como um inimigo cujas 
opções políticas ameaçam a probida-
de. Dois acadêmicos calcularam que 
95% dos artigos que tratavam de cor-
rupção às vésperas das eleições presi-
denciais de 2010 e 2014 diziam respei-
to ao PT, e 5% ao PSDB8 (ler o artigo de 
Perry Anderson na página seguinte). 
Tal cobertura gradualmente leva 
pouco a pouco a não mais se associar 
práticas erradas a personalidades po-
líticas, mas à corrente que elas encar-
nam. Ela convida a amalgamar so-
mas subutilizadas por líderes 
desonestos e aquelas dedicadas a ele-
var o padrão de vida dos mais pobres, 
acusados de indolência. Não é, num 
caso como no outro, uma punção in-
devida – e, portanto, “imoral” – na ri-
queza nacional? O novo presidente de 
extrema direita, Jair Bolsonaro, pode 
então se comprometer a combater a 
corrupção “purgando o Brasil dos ví-
cios morais e ideológicos”9 que ele as-
socia com o PT.
A multiplicação de escândalos pa-
rece ter conseguido convencer uma 
parte da esquerda de que no final o 
mundo não funcionaria tão mal se a 
fraude, a trapaça e a corrupção pu-
dessem ser erradicadas. Trocando 
sua bússola política por outra, moral, 
esses militantes se metamorfoseiam. 
Ontem eles lutavam; agora ficam in-
dignados. Eles fundavam organiza-
ções para tomar o poder; ei-los agora 
assinando petições, incitando o 
mundo a se mostrar mais doce, mais 
tolerante, menos racista, mais verde, 
mais igualitário. Rugy não os preocu-
pa porque ele foi ministro do Meio 
Ambiente de um governo que agrava 
a crise climática ao promover o livre-
-comércio, mas porque ele também 
teria comprado um secador de cabelo 
muito caro. E como a moralidade de-
termina que se aplique a si mesmo o 
que se espera dos outros, o mais im-
portante não é mais alcançar os pró-
prios fins, mas se mostrar direito, jus-
to, equitativo e gentil.
Com algumas consequências na 
organização dos embates políticos, 
como ilustrado por uma sessão de 
treinamento dada pela Confederação 
Geral do Trabalho (CGT) para repre-
sentantes de pessoal eleitos dentro de 
suas fileiras, em 2014. Uma jovem, 
militante recente e funcionária de 
um grande hotel, foi convidada a to-
mar a palavra para explicar sua con-
cepção da luta sindical: “Para mim, o 
mais importante não é escolher siste-
maticamente seu lado, é se mostrar 
imparcial”. “Você não sabe o que está 
dizendo”, respondeu-lhe o treinador 
da CGT. “Você acha que, em caso de 
conflito, sua diretora de recursos hu-
manos se perguntará o que é justo e 
imparcial? A política é um lado con-
tra o outro: o seu, como sindicalista, 
é o lado dos empregados.”
Os sans-culottes, os partidários da 
Comuna de Paris ou os manifestan-
tes de 1936 não lutaram contra a cor-
rupção, mas contra o poder do di-
nheiro. Eles não eram movidos pelo 
desejo de se mostrar exemplares, mas 
pela determinação de obter ganho de 
causa. A esquerda não nasceu para 
passar um sermão no mundo, mas 
para mudá-lo. 
*Benoît Bréville e Renaud Lambert são 
jornalistas do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Carol Glatz, “Corruption is a devastating cancer 
harming society, pope says” [A corrupção é um 
câncer devastador que prejudica a sociedade, 
diz o papa], National Catholic Reporter, 18 mar. 
2019. Disponível em: <www.ncronline.org>.
2 Anastassiya Zagainova, “La corruption institu-
tionnalisée: un nouveau concept issu de 
l’analyse du monde émergent” [A corrupção 
institucionalizada: um novo conceito oriundo 
da análise do mundo emergente], tese de dou-
torado em Economia, defendida em 27 de no-
vembro de 2012 na Universidade de Grenoble.
3 “‘Fixed Fortunes’: corporate donors spent 
$5.8B on political influence, received $4.4T in 
financial benefits” [“Fortunas Fixadas”: corpo-
rações doam US$ 5,8 bilhões para influenciar 
políticos e recebem US$ 4,4 trilhões em bene-
fícios financeiros], Sunlight Foundation, 
Washington, DC, 17 nov. 2014.
4 Cálculos feitos por Chloé Bonafoux, a quem os 
autores agradecem.
5 Catherine Fieschi e Paul Heywood, “Trust, cy-
nicism and populist anti-politics” [Confiança, 
cinismo e antipolítica populista], Journal of Po-
litical Ideologies, v.9, n.3, Abingdon-on-Tha-
mes (Reino Unido), out. 2004.
6 Strom C. Thacker, “Democracy, economic poli-
cy, and political corruption in comparative pers-
pective” [Democracia, política econômica e 
corrupção política em perspectiva compara-
da]. In: Charles H. Blake e Stephen D. Morris 
(orgs.), Corruption & Democracy in Latin Ame-
rica [Corrupção e democracia na América Lati-
na], University of Pittsburgh Press, 2009.
7 Intervenção militar norte-americana para derru-
bar o poder entre 25 de outubro e 2 de novem-
bro de 1983.
8 João Feres Júnior e Luna de Oliveira Sassara, 
“Corrupção, escândalos e cobertura midiática 
da política”, Novos Estudos, São Paulo, jul. 
2016.
9 Vinicius Torres Freire, “A revolução moral de 
Bolsonaro”, Folha de S.Paulo, 2 jan. 2019..
QUEM INVESTIGA OS INVESTIGADORES?
A maioria dos artigos que lidam com corrupção é extraída da mesma fonte: as investigações da Transparência Internacional. Essa ONG foi fundada em 1993 
por Peter Eigen, ex-diretor regional do Banco Mundial, juntamente com Michael 
J. Hershman, ex-membro do Serviço de Inteligência do Exército dos Estados Uni-
dos, Frank Vogl, assessor de comunicação para o mundo das finanças, também 
egresso do Banco Mundial, e o falecido George Moody Stuart, que fez fortuna na 
indústria açucareira.
Em suas principais investigações, a Transparência Internacional não mede o 
peso da corrupção em termos econômicos para cada país. Ela desenvolve um 
“índice de percepção de corrupção” (IPC) com base em investigações conduzidas 
por estruturas privadas ou por outras ONGs: a Economist Intelligence Unit, apoia-
da pelo semanário liberal britânico The Economist, a Freedom House, organiza-
ção norte-americana fundada em 1941 e cujo conselho de administração abrigouos neoconservadores Samuel Huntington, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz e 
Jeane Kirkpatrick, o Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em 
Davos, Suíça, e ainda grandes empresas.
O IPC ignora os casos de corrupção que afetam o mundo dos negócios. Como 
resultado, o colapso do Lehman Brothers (2008) e a manipulação da taxa de 
referência dos mercados monetários (Libor) pelos principais bancos britânicos 
(2015) não afetaram as classificações dos Estados Unidos e do Reino Unido. 
Em 2015, a Transparência Internacional recebeu US$ 3 milhões da Siemens. 
Sete anos antes, a empresa alemã teve de pagar a maior multa imposta a uma 
companhia (US$ 1,6 bilhão) por subornar altos funcionários de vários países.
6 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019
A destituição da presidenta Dilma e o processo espetaculoso e 
a prisão de Lula, favorito nas eleições de 2018, fundaram-se 
num mesmo motivo: o combate à corrupção. Muitos 
observadores apoiaram essa vassourada dada em nome da 
justiça republicana – antes de perceberem que se tratava de 
um golpe de Estado que, ao final, favoreceu a extrema direita 
POR PERRY ANDERSON*
CAPA - LAVA JATO
A 
Operação Lava Jato, ligada ao 
mais importante escândalo de 
corrupção da história brasilei-
ra recente, teve início em mar-
ço de 2014. Ficou sob a responsabili-
dade do juiz Sergio Moro, que tinha 
mostrado as garras em 2005 quando 
era assistente em outra questão mui-
to midiatizada: o escândalo do Men-
salão, concernente ao pagamento, 
pelo PT, de propinas a deputados em 
troca de apoio.
Moro descrevera seu modo de 
proceder em um artigo publicado em 
meados da década de 2000. Consiste 
em imitar os procedimentos utiliza-
dos por ocasião da Operação Mani 
Pulite [Mãos Limpas], que, no início 
dos anos 1990, derrubou os partidos 
de governo italianos, antecipando o 
fim da Primeira República. Em seu 
texto, Moro salienta a importância 
de dois aspectos desse método: o re-
curso à prisão preventiva, de modo a 
incitar a delação, e a divulgação na 
imprensa, calibrada para suscitar a 
ira da opinião pública e pressionar 
suspeitos e instituições. De acordo 
com ele, a cenografia midiática tem 
mais importância que a presunção 
de inocência.
Durante a Operação Lava Jato, o 
juiz brasileiro revelou talentos ocul-
tos de produtor artístico. Ataques, 
prisões com grande espetáculo, con-
fissões: apelos na imprensa e nas re-
des de televisão garantiram em cada 
etapa uma grande cobertura das 
operações que ele orquestrou. Cada 
uma mais dramática que a outra, elas 
foram numeradas e dotadas de códi-
go emprestado do imaginário cine-
matográfico, clássico ou bíblico: Dol-
ce Vita, Casablanca, Aletheia 
(“verdade”, em grego antigo), Julga-
mento Final, Omertà, The Abyss [no 
Brasil, O segredo do abismo] etc. Os 
italianos se vangloriam de ter um 
senso inato de espetáculo? Moro os 
fez passar por amadores.
Durante um ano, as acusações 
miraram antigos diretores da em-
presa nacional de petróleo Petro-
bras, acusados de ter recebido propi-
na, antes de provocar a queda do 
tesoureiro petista João Vaccari Neto 
e dos dirigentes das duas maiores 
empresas de construção civil e obras 
públicas do país: Odebrecht1 e An-
drade Gutierrez. As manifestações 
de apoio a Moro ganharam força. 
Exigindo a punição do PT e a saída 
da presidenta Dilma Rousseff, elas 
pressionaram o Congresso. Só falta-
va ao presidente da Câmara, Eduar-
do Cunha, colocar na ordem do dia a 
destituição da presidenta. 
JUÍZES, JUSTICEIROS OU POLÍTICOS
Isolada e enfraquecida, Dilma pe-
diu ajuda ao ex-presidente Luiz Iná-
cio Lula da Silva. Ele utilizou sua ha-
bilidade de negociador para reparar 
as relações com o antigo aliado, o 
PMDB. Cunha, que parecia ter colo-
cado vários milhões de dólares em 
contas secretas na Suíça, propôs um 
pacto de proteção mútua: ele inter-
romperia suas investidas contra a 
presidenta se o governo lhe fizesse 
um favor. Lula solicitou a Dilma que 
aceitasse a mão que lhe era estendi-
da; ela se recusou, com o apoio da di-
reção nacional do PT, que temia que a 
cumplicidade fosse descoberta. Por 
fim, os deputados do PT apoiaram as 
acusações contra Cunha, que reagiu 
lançando o processo de destituição.
Por sua vez, Moro preparou o tiro 
fulminante. No início de março de 
2016, ele desencadeou a Operação 
Aletheia. Lula foi interpelado nas pri-
meiras horas do dia, diante das obje-
tivas das câmeras, tendo a mídia sido 
avisada antes. Suspeitava-se que o 
ex-presidente tinha se beneficiado da 
generosidade da Odebrecht. Segui-
ram-se outras investidas. Moro inter-
ceptou – e divulgou para a imprensa 
– uma conversa telefônica entre Dil-
ma e Lula, que ele grampeara. Nela, 
os dois dirigentes se referem à possi-
bilidade de este se tornar ministro-
-chefe da Casa Civil. Como os funcio-
nários de escalão ministerial e os 
membros do Congresso desfrutam de 
foro privilegiado, não há a menor dú-
vida de que se tratava de um estrata-
gema para impedir sua prisão.
A pressão da rua em favor da des-
tituição chegou a seu paroxismo. Na 
Câmara, no entanto, nada indicava 
que a maioria dos dois terços seria 
obtida. Novas incursões divulgaram 
anotações da Odebrecht que deta-
lhavam as quantias transferidas pa-
ra cerca de duzentas personalidades 
pertencentes a quase todos os parti-
dos. Na classe política, todos os si-
nais estavam vermelhos: um mem-
bro do primeiro escalão do PMDB foi 
gravado sem que soubesse dizendo a 
um colega que “é preciso estancar a 
sangria”. Ora, “os caras do Supremo 
Tribunal” lhe disseram que isso pa-
recia impossível enquanto Dilma es-
tivesse no poder, uma vez que a mí-
dia estava contra ela. Não havia 
outra opção, explicou ele, a não ser 
substituí-la o mais rápido possível 
pelo então vice-presidente, Michel 
Temer, e formar um governo de 
união nacional apoiado pelo Supre-
mo Tribunal e pelo Exército. Em me-
nos de duas semanas, a Câmara 
aprovou a destituição da presidenta, 
deixando o campo livre para Moro 
se desembaraçar de Cunha, que ti-
nha se tornado inútil. Este logo foi 
expulso da Câmara e acabou na pri-
são. O Senado validou a destituição 
da presidenta e Temer assumiu a di-
reção do país.
No início de 2017, Lula foi acusado 
com base em suspeitas de corrupção 
ligadas à aquisição de um aparta-
mento à beira-mar do qual jamais foi 
o proprietário legal. Julgado em Curi-
No Brasil, mistérios 
de um golpe de 
Estado judicial
7SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
tiba no verão do ano seguinte, foi 
condenado a nove anos de prisão. Na 
apelação, a pena subiu para doze 
anos. Com o primeiro presidente vin-
do do PT atrás das grades e a segunda 
destituída sob escárnio, o naufrágio 
do partido parecia total. 
Duas análises do papel dos juízes 
surgiram então. A primeira os des-
creveu como justiceiros determina-
dos a lançar por terra a corrupção; a 
segunda, como agentes políticos 
prontos a qualquer coisa para chegar 
a seus fins. Em sua obra O lulismo em 
crise (Companhia das Letras, 2018), o 
cientista político brasileiro André 
Singer rejeita as duas. Segundo ele, os 
juízes se mostraram perfeitamente 
republicanos e, ao mesmo tempo, 
inegavelmente facciosos. Republica-
nos: como descrever de outra manei-
ra a prisão dos diretores das empre-
sas mais ricas e poderosas do país? 
Facciosos: que outro sentido dar à 
perseguição sistemática dos mem-
bros do PT enquanto os de outros 
partidos – exceto Cunha, que se tor-
nou extremamente inconveniente – 
foram poupados? Sem falar das afini-
dades políticas dos juízes, dos 
anátemas que lançaram no Facebook 
ou das fotografias em que os vemos 
posar, sorrindo, exibindo os símbolos 
de partidos conservadores. Uma per-
gunta subsiste: esses juízes foram re-
publicanos e facciosos em propor-
ções equivalentes?
PENA REDUZIDA PARA 
DONO DA ODEBRECHT
No sistema judiciário brasileiro, 
policiais, procuradores e juízes for-
mam corpos independentes uns dos 
outros. A polícia reúne as provas, os 
procuradores proferem as acusações 
e os juízes arbitram as penas(no 
Brasil, os júris populares só inter-
vêm em casos de homicídio). Toda-
via, na prática, as três funções se 
fundiram na ocasião da Lava Jato, 
quando a polícia e os procuradores 
trabalharam sob a supervisão do 
juiz que controlou as investigações, 
determinou as penas a serem cum-
pridas e as pronunciou: uma inegá-
vel negação dos mecanismos bási-
cos da justiça, que preveem a 
separação da acusação e da conde-
nação (sem mencionar o fato de o 
juiz Moro ter varrido de uma hora 
para outra o princípio da presunção 
de inocência).
Outra invenção do sistema judi-
ciário brasileiro: a “delação premia-
da” permite ameaçar uma pessoa 
com penas de prisão pesadas, a me-
nos que ela contribua para envolver 
outra condenável – o equivalente ju-
diciário a uma chantagem. É possível 
calcular as derivas para as quais con-
tribui um dispositivo como esse no 
caso de Marcelo Odebrecht, o empre-
sário mais rico interpelado na inves-
tigação. Condenado a dezenove anos 
de prisão por corrupção, ele teve sua 
pena reduzida para dois anos e meio 
a partir do momento em que se cur-
vou ao jogo dissimulado da delação. 
Nesse contexto, teria de se esforçar 
para superestimar a pressão subme-
tida de modo a fornecer aos magis-
trados os elementos suscetíveis de 
contribuir para avançar as investiga-
ções que mais os preocupavam.
Mas tudo o que precede pesa fi-
nalmente pouco no que diz respeito 
à introdução do conceito de domínio 
do fato: a possibilidade de condenar 
alguém na ausência de prova direta 
de sua participação em um crime, de 
acordo com a ideia de que a pessoa 
pode ser responsável por ele. Esse 
mecanismo deriva daquele de Ta-
therrschaft (“controle do ato”), cria-
do pelo jurista alemão Claus Roxin 
para condenar criminosos de guerra 
nazistas. Mas Roxin denunciou a uti-
lização brasileira do princípio: figu-
rar em uma posição ou outra num or-
ganograma não é suficiente, diz ele, 
para estabelecer a responsabilidade 
por um crime. É preciso, além disso, 
que a justiça possa provar que o dito 
crime tenha sido comandado pelo 
acusado. E o juiz Moro não se preo-
cupou com essas sutilezas. Por su-
postamente ter recebido um aparta-
mento no valor de US$ 600 mil, Lula 
foi condenado a doze anos de pri-
são:2 dois terços da pena de prisão 
inicial de Odebrecht por menos de 
2% da quantia que este último foi 
acusado de ter desviado.
MORO NÃO SOFREU 
NENHUMA PUNIÇÃO
Nesse contexto, a ação do tribu-
nal de Curitiba correspondeu, entre-
tanto, mais ou menos ao coquetel 
identificado por Singer: uma dose de 
zelo republicano e outra de estraté-
gia facciosa. Quando se sobe nova-
mente na hierarquia judiciária até o 
STF, as coisas mudam. Nesse caso, 
nem o rigor ético nem o fervor ideo-
lógico. As motivações mostraram-se 
bem mais sórdidas.3
Ao contrário de seus equivalentes 
em outros lugares do mundo, o Su-
premo brasileiro combina três fun-
ções: ele interpreta a Constituição, 
desempenha o papel de corte de ape-
lação de última instância para os 
processos civis e criminais e, por fim, 
concentra a faculdade de acusar diri-
gentes políticos – membros do Con-
gresso e ministros –, que desfrutam, 
sem ele, de uma imunidade conheci-
da como foro privilegiado. Os onze 
membros do STF são nomeados pelo 
Poder Executivo. Ao contrário do que 
se passa nos Estados Unidos, sua 
aprovação pelo Legislativo é apenas 
uma formalidade. Nenhuma expe-
riência anterior em tribunais de justi-
ça é requerida: basta ter atuado como 
advogado ou procurador.
A nomeação dos membros do Su-
premo sempre se baseou mais em ló-
gicas de redes do que em afinidades 
ideológicas. Na equipe atual, um dos 
membros foi advogado de Lula, um 
segundo deve favores ao ex-presiden-
te Fernando Henrique Cardoso e um 
terceiro é primo do ex-presidente Fer-
nando Collor de Mello. Quando a 
pressão do público exigindo a desti-
tuição de Dilma chegou ao auge, oito 
dos onze membros do STF tinham si-
do escolhidos por ela e por seu ante-
cessor. Mas, exibindo a cor política do 
camaleão, os juízes que deviam sua 
indicação ao PT procuraram precisa-
mente salientar sua independência 
em relação ao partido do poder. Eles 
se contentaram com os fatos de subs-
tituir uma forma de obrigação de fi-
delidade e obediência a um soberano 
por outra: eles se esqueceram dos ca-
ciques do PT e obedecem, a partir de 
então, à mídia dominante. 
Desde o início da operação, a 
equipe de Curitiba utilizou as divul-
gações e as revelações à imprensa 
para provocar um curto-circuito nos 
procedimentos normais. Antecipar a 
estigmatização pública de um acu-
sado antes de seu comparecimento é 
normalmente proibido, mas Moro se 
privou dessa proibição, ainda mais 
porque podia contar com os jornalis-
tas para pressionar o Supremo. 
Quando um dos juízes da instituição 
o informou de que o princípio do ha-
beas corpus exigia que ele libertasse 
um diretor da Petrobras, Moro pro-
curou a imprensa e declarou que, 
nesse caso, precisaria libertar tam-
bém traficantes de drogas. Seu supe-
rior voltou atrás. Após ter infringido 
três normas, incluindo as escutas te-
lefônicas e o fato de tornar pública a 
conversa entre Lula e Dilma, o juiz 
Moro se justificou afirmando que ti-
nha agido por “interesse público”. 
Celebrado como um herói nacional 
pela imprensa, não sofreu nenhuma 
repreensão.
Poucos dias depois de sua eleição 
para presidente, em outubro de 2018, 
Jair Bolsonaro anunciou que Moro 
havia aceitado o cargo de ministro 
da Justiça. Nos anos 1990, os magis-
trados italianos responsáveis pela 
Operação Mani Pulite lamentaram 
que seus esforços para lutar contra a 
corrupção tinham favorecido a subi-
da de Silvio Berlusconi ao poder. No 
Brasil, a estrela da Lava Jato se alegra 
de fazer parte da equipe de um dos 
raros dirigentes políticos suscetíveis 
de fazer que Berlusconi seja visto co-
mo um personagem simpático. 
*Perry Anderson é historiador e professor 
da Universidade da Califórnia em Los Ange-
les. Uma versão deste artigo foi publicada 
pela London Review of Books (7 fev. 2019).
1 Ler Anne Vigna, “Les Brésiliens aussi ont leur 
Bouygues” [Os brasileiros também têm seus 
Bouygues], Le Monde Diplomatique, out. 2013.
2 A esta primeira pena se acrescenta uma segun-
da, também de doze anos, pronunciada em fe-
vereiro de 2019. (Nota da redação.)
3 Desde 9 de junho de 2019, o site norte-ameri-
cano de notícias The Intercept revela uma série 
de mensagens criptografadas do juiz Moro que 
comprovam que ele manipulou a Operação 
Lava Jato para fins políticos. (Nota da redação.)
Um membro do primei-
ro escalão do PMDB foi 
gravado sem que sou-
besse dizendo a um 
colega que “é preciso 
estancar a sangria”
A “delação premiada” 
permite ameaçar uma 
pessoa com penas 
de prisão pesadas, 
a menos que ela 
contribua para envolver 
outra condenável
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8 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019
As facetas ocultas 
da Lava Jato
As vestes dos personagens do processo político estão 
coladas na pele e na mente dos atores que as portam, de 
tal modo que eles próprios acreditam, no geral, que são 
aquilo que parecem ser 
POR ARMANDO BOITO JR.*
CAPA – CLASSE MÉDIA SUPOSTAMENTE INDIGNADA COM A CORRUPÇÃO
D
iversos atores, agindo institu-
cionalmente e vinculados, de 
modos complexos e distintos, a 
diferentes interesses de classe e 
de frações de classe, convergiram pa-
ra a criação e o apoio à Operação Lava 
Jato: a burocracia do aparelho de Es-
tado, o Departamento de Justiça dos 
Estados Unidos, os movimentos da 
alta classe média (Vem pra Rua, MBL, 
Revoltados Online etc.), a grande im-
prensa e outros. Nenhum deles agiu 
de maneira aberta e transparente no 
processo político e, entre os próprios 
aliados congregados na organização 
e na sustentação da operação, nem 
sempre os objetivos de cada um esta-
vam claros para os demais. A análise 
política pode revelar muita coisa ain-
da sobre a Lava Jato, revelação de na-
tureza diferente daquela que consiste 
em trazer à luz fatos até então desco-
nhecidos, como vem sendo feitopelas 
excelentes reportagens do Intercept.
A INTRANSPARÊNCIA DO 
PROCESSO POLÍTICO
Na análise do processo político, 
processo que é a sequência determi-
nada – ou seja, não aleatória – de 
acontecimentos oriundos de conflitos 
de interesses e de valores os mais va-
riados, o observador deve sempre ter 
em mente que os atores, no mais das 
vezes, atuam nas sombras ou masca-
rados. Dizemos que os atores atuam 
“nas sombras” porque parte muito 
importante do processo decisório 
tem lugar nos corredores e gabinetes 
da burocracia de Estado, longe dos 
olhos do público. Reportagem da re-
vista Carta Capital acaba de revelar a 
ocorrência de reuniões – secretas co-
mo geralmente são as reuniões dos 
organismos burocráticos – da cúpula 
das Forças Armadas com a presidên-
cia do STF para assegurar que Luiz 
Inácio Lula da Silva não participaria 
das eleições de 2018. Sabia-se do fa-
migerado tuíte do general Eduardo 
Villas Bôas em abril de 2017 enqua-
drando o STF na véspera do julga-
mento do habeas corpus do ex-presi-
dente. Começa-se a saber agora que a 
interferência das Forças Armadas no 
processo eleitoral foi algo muito mais 
amplo. Dizemos que os atores atuam 
“mascarados” porque não são o que 
parecem ser. Estamos nos referindo 
aos partidos políticos burgueses e 
seus dirigentes, aos burocratas do Es-
tado envolvidos em decisões políti-
cas, aos órgãos da grande imprensa 
que funcionam como representantes 
políticos de interesses minoritários e 
às outras organizações que intervêm 
na política nacional. E não são o que 
parecem ser por sólidas razões. Numa 
sociedade como a capitalista, em que, 
a despeito das enormes desigualda-
des de classe, todos os indivíduos são 
considerados iguais como cidadãos e 
aptos a algum tipo de participação 
política, os grupos minoritários, cujos 
interesses estão em conflito com as 
necessidades da maioria, necessitam 
esconder-se e/ou mascarar seus inte-
resses, apresentá-los com vestes uni-
versalistas – não particularistas e 
egoístas como realmente são – se qui-
serem convertê-los em interesses 
aparentemente gerais. Os rentistas ja-
mais dirão que a taxa de juros deve 
ser alta para que eles ganhem muito 
dinheiro, e sim para evitar – é o que 
sustentam com base em argumentos 
econômicos contestáveis – o retorno 
da inflação em prejuízo de toda a “co-
letividade”. O processo político na so-
ciedade capitalista é intransparente.
Nada disso significa que os atores 
do processo político sejam mentiro-
sos contumazes que manipulam os 
fatos e as versões ao seu bel-prazer 
para enganar o público. Aqui, não ca-
beria a comparação com um folião 
que se fantasia para o Carnaval, isto 
é, que escolhe livre e conscientemen-
te um personagem e o encarna por 
uma breve ocasião. Não. As vestes 
dos personagens do processo político 
estão coladas na pele e na mente dos 
atores que as portam, de tal modo 
que eles próprios acreditam, no geral, 
que são aquilo que parecem ser. Di-
zemos “no geral” porque é verdade 
que eles podem mentir, manipular e 
agir hipocritamente. Porém, quando 
agem assim, fazem-no no “varejo”, 
não no “atacado”. Existe a hipocrisia. 
Quando o juiz Sergio Moro enviava 
mensagens pelo Telegram aos procu-
radores coordenando a investigação 
e instruindo a acusação contra os 
réus diante dos quais ele deveria se 
portar como parte terceira e neutra, o 
magistrado, embora soubesse que es-
tava burlando as regras do direito, 
procurava manter, hipocritamente, a 
aparência pública de imparcialidade. 
Contudo, e isso faz diferença, essa hi-
pocrisia estava a serviço daquilo que, 
acreditam juízes e procuradores, se-
ria um bem maior: a suposta função 
do Judiciário e do Ministério Público 
de “combater a corrupção em defesa 
do interesse geral do país”. A crença 
na existência de uma função pública, 
e não de classe, do Judiciário, bem 
como a crença na existência de um 
suposto “interesse geral do país”, que 
estaria acima dos interesses de clas-
se, estão na base da ação dos buro-
cratas do Estado. O analista precisa, 
então, tomar essa crença em conside-
ração, não pode supor que ela seja 
um fingimento para iludir o público, 
mas deve ir além dela, deve analisar a 
coerência de tais discursos ou suas 
eventuais contradições, cotejando-
-os com a prática e examinando a 
coerência dessa prática. Sem lançar 
mão de imputações arbitrárias, o 
analista do processo político tem de 
detectar quais são os verdadeiros, e 
muitas vezes ocultos, motivos últi-
mos da ação dos personagens, os fins 
que, muitas vezes inconscientemen-
te, eles próprios perseguem.
O LUGAR DA CORRUPÇÃO 
PARA A CLASSE MÉDIA
Voltemos à Lava Jato. Segundo o 
que diziam os apoiadores ativos dessa 
operação, em sua grande maioria per-
tencentes à fração superior da classe 
média, setor social abastado e pre-
conceituoso, tal operação visava 
combater a corrupção. Era o que di-
ziam. No entanto, eles lançaram e or-
ganizaram, por intermédio de movi-
mentos como o MBL, o Vem pra Rua e 
outros, a campanha pelo impeach-
ment de Dilma Rousseff, sabendo que 
o resultado de tal campanha seria a 
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9SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
ascensão à Presidência da República 
de um notório corrupto como Michel 
Temer. A prática negava o discurso. 
Esse discurso seria, então, mero dis-
farce, uma máscara de ocasião? Ele 
era, sim, uma máscara, mas não oca-
sional. É possível demonstrar que a 
classe média, e notadamente sua fra-
ção superior, estava muito incomoda-
da com a política social dos governos 
do PT. Muitas e variadas manifesta-
ções nos ambientes de trabalho, nos 
ambientes domésticos e nas redes so-
ciais evidenciavam esse incômodo – o 
inconformismo com o Bolsa Família, 
as famigeradas mensagens sobre ae-
roportos que se pareciam com rodo-
viárias, os comentários sobre a pre-
sença indesejada de populares em 
laboratórios de exames clínicos e em 
hospitais, as referências ofensivas e 
preconceituosas aos brasileiros da re-
gião Nordeste, as críticas à extensão 
dos direitos trabalhistas às emprega-
das domésticas etc. A hipótese que se 
pode levantar é que esse inegável in-
cômodo foi o motivo principal da re-
volta da alta classe média contra os 
governos do PT. A luta contra a cor-
rupção foi um motivo de menor im-
portância e, se foi colocado em pri-
meiro plano no discurso da campanha 
pelo impeachment, foi porque o moti-
vo principal isolaria politicamente o 
movimento, enquanto a luta contra a 
corrupção, diferentemente, poderia 
obter algum apoio popular para a de-
posição de Dilma. Apresentar o se-
cundário como sendo o principal é 
uma manobra que os segmentos so-
ciais podem fazer instintivamente, 
sem a necessidade de discussão cons-
ciente, para conferir uma aparência 
universalista às suas demandas.
Fato histórico: colocar o discurso 
contra a corrupção no centro é algo 
muito característico dos movimen-
tos de classe média; o movimento 
operário e o movimento camponês 
nunca fizeram desse discurso algo 
central em suas lutas. Por que essa 
marca de classe? Essa é uma questão 
complexa que deve ser tratada em 
dois níveis. Num primeiro nível, po-
demos dizer que os movimentos das 
classes trabalhadoras, entre os quais 
se incluem os movimentos de classe 
média, tendem a se opor à corrupção 
porque veem nela uma forma de pa-
rasitismo. Porém, num segundo ní-
vel, a situação particular da classe 
média faz que ela, primeiro, dê im-
portância maior à questão da cor-
rupção e, segundo, acrescente à ideia 
de parasitismo uma ideia específica, 
de classe média. Vejamos. A ideolo-
gia e, portanto, os interesses da clas-
se média são feridos de maneira es-
pecial pela prática da corrupção ou, 
mais exatamente, pelo fato de o 
grande público tomar conhecimento 
da prática da corrupção. Explico. A 
classe média depende, para justificar 
a situação privilegiada que ocupa em 
relação ao trabalhador manual, da 
aceitação pela sociedade da imagem 
do Estado como uma instituição pú-
blica acima dos interesses particula-
ristas de classe. Tal imagemé o terre-
no no qual a ideologia meritocrática, 
aquela que justifica as vantagens 
econômicas e sociais dos trabalha-
dores de classe média em relação aos 
trabalhadores manuais, pode vice-
jar. As posições e profissões privile-
giadas são ocupadas, diz a ideologia 
meritocrática, por aqueles que têm 
mais dons e méritos. Venceram os de 
menor mérito e venceram numa 
competição justa, pois as regras e as 
instituições são públicas e iguais pa-
ra todos. Dito de outro modo, para 
que a ideologia meritocrática possa 
legitimar as vantagens econômicas e 
sociais usufruídas pela classe média 
em relação ao trabalhador manual, é 
preciso que o Estado apareça como o 
garantidor da neutralidade e da 
igualdade na disputa. A escola, os 
concursos públicos, a atuação da 
justiça, tudo deve parecer público, 
socialmente neutro, garantindo uma 
disputa justa entre os cidadãos por 
educação, emprego e justiça. A cor-
rupção fere essa imagem do Estado, e 
a defesa dessa imagem é a principal 
motivação da classe média para se 
indispor com a corrupção. Não se 
trata apenas de uma revolta de tra-
balhadores contra parasitas que 
ocupam o Estado para obter vanta-
gens pessoais. Trata-se também da 
indignação da classe média contra 
aqueles que mancham a imagem pú-
blica do Estado. Logo, além de apre-
sentar o secundário no lugar do prin-
cipal, isto é, a luta contra a corrupção 
no lugar da luta contra a ascensão 
das classes populares, os persona-
gens dessa cruzada contra a corrup-
ção mascaravam seus interesses 
egoístas de classe – defender a ideo-
logia meritocrática e os interesses 
que ela legitima – com um discurso 
moralista e aparentemente altruísta.
O IMPERIALISMO, A BURGUESIA E A 
BUROCRACIA DE ESTADO
A Lava Jato, porém, não foi apenas 
obra da classe média. O Judiciário, o 
Ministério Público, a Polícia Federal, 
a grande mídia e o Departamento de 
Justiça dos Estados Unidos também 
foram atores importantes dessa ope-
ração. E a ação desses outros atores 
tampouco era transparente.
O Departamento de Justiça agiu 
nas sombras. Apenas algum tempo 
depois de iniciada a operação é que o 
jornalismo – ou melhor, o que sobrou 
do bom jornalismo e que, hoje, muito 
se assemelha à atividade de espiona-
gem – foi revelando o amplo envolvi-
mento dessa agência do Estado norte-
-americano com a operação. 
Sociólogos e jornalistas têm mostra-
do que o imperialismo de Washing-
ton vem fomentando há anos a forma-
ção de uma rede de instituições 
internacionais que se dizem de com-
bate à corrupção e com a qual pode 
acuar governos incômodos ao redor 
do mundo.1 No caso brasileiro, os 
convênios entre o Judiciário local e 
norte-americano, a formação de qua-
dros e o fornecimento de informações 
para a Lava Jato contribuíram decisi-
vamente para o sucesso da operação. 
O resultado foi não apenas a destrui-
ção da construção pesada e da enge-
nharia brasileira que monopolizavam 
o mercado de obras públicas no Brasil 
e concorriam no mercado internacio-
nal com as empresas norte-america-
nas e europeias, como também a asfi-
xia da Petrobras e a abertura da 
exploração do petróleo da camada do 
pré-sal às petroleiras internacionais. 
Assim, os burocratas de Estado – de-
sembargadores, juízes, procuradores 
e delegados – agiram em nome de in-
teresses variados. Mantinham rela-
ção de representação com a alta clas-
se média da qual, de resto, faziam 
parte e, ao mesmo tempo, representa-
vam os interesses do imperialismo 
norte-americano. No primeiro caso, 
agiram para bloquear a pequena as-
censão social das camadas de baixa 
renda; no segundo caso, para abrir 
ainda mais a economia nacional ao 
capital estrangeiro. Nenhum desses 
resultados foi ou é apresentado como 
objetivo dessa operação.
As instituições do Estado têm um 
modo de funcionamento complexo. 
Elas estão limitadas por regras e va-
lores próprios e, ao mesmo tempo, 
acabam se vinculando ou sendo cap-
turadas por diferentes segmentos da 
classe capitalista, que disputam en-
tre si o controle da política de Estado. 
Desse modo, aquilo que aparece à 
primeira vista como um simples con-
flito institucional, por exemplo, entre 
o Judiciário e o Legislativo, ou entre 
este último e o Executivo não é, na 
verdade, nem sequer um conflito ins-
titucional, e sim um conflito entre in-
teresses econômicos e sociais que o 
conflito institucional representa e ao 
mesmo tempo dissimula.
A burguesia é a classe dominante 
nas sociedades capitalistas, mas ela 
não é um bloco homogêneo sem fis-
suras. Ela pode se dividir, no que diz 
respeito a seus interesses econômi-
cos de curto prazo, em frações, isto é, 
em partes que se organizam em bus-
ca de interesses econômicos específi-
cos e em disputa com os interesses 
específicos de outras frações. Um dos 
sistemas de fracionamento da classe 
burguesa é a relação que as empresas 
capitalistas de um país como o Brasil 
têm com o capital internacional. Há 
segmentos burgueses perfeitamente 
integrados ao capital internacional e 
outros que apresentam conflitos mo-
derados com esse capital. Temos de-
nominado o primeiro segmento de 
burguesia associada e o segundo de 
burguesia interna. Na luta entre si, 
essas diferentes frações da burguesia 
brasileira capturaram diferentes ins-
tituições do Estado.2 A grande bur-
guesia interna, que pretendia duran-
te os governos do PT estabelecer 
alguns limites, ainda que tímidos, à 
penetração do capital estrangeiro no 
Brasil, capturou, por exemplo, gran-
des empresas estatais como o BNDES 
e a Petrobras. Tal captura permitiu-
-lhes obter financiamento farto e a 
juros subsidiados e estabelecer uma 
reserva de mercado para a constru-
ção pesada e a construção naval bra-
sileira – a famosa política de conteú-
do local. O capital internacional e a 
grande burguesia associada captura-
ram, juntamente com a alta classe 
média, o sistema de justiça – Judiciá-
rio, Ministério Público, Polícia Fede-
ral. Essa captura, possível em grande 
medida por causa do pertencimento 
de desembargadores, juízes, promo-
tores e delegados à alta classe média, 
permitiu o desmonte de segmentos 
inteiros da economia controlados pe-
la grande burguesia interna e da polí-
tica neodesenvolvimentista dos go-
vernos do PT, e, passo a passo, poderá 
levar ao desmonte da própria demo-
cracia no Brasil.
A Operação Lava Jato teve grande 
impacto no processo político brasi-
leiro e os interesses por ela represen-
tados mantiveram-se ocultos para a 
grande parte da população. Hoje, ten-
do ela cumprido o papel de alterar o 
bloco no poder no Brasil e permitido 
a constituição da hegemonia do capi-
tal internacional e da fração da bur-
guesia a ele associada, essa operação 
encontra-se sob ataque tanto das for-
ças progressistas que foram suas 
principais vítimas quanto dos parti-
dos e lideranças do campo conserva-
dor, nos quais abunda a corrupção. 
Seus dirigentes, como Moro e Dallag-
nol, outrora tão poderosos, têm hoje 
um futuro incerto. Podem ser comi-
dos pela crise como o foram Aécio 
Neves, Eduardo Cunha, Michel Te-
mer e outros. 
*Armando Boito Jr. é professor de Ciência 
Política da Unicamp e autor do livro Refor-
ma e crise política no Brasil: os conflitos de 
classe nos governos do PT, São Paulo e 
Campinas, Editora Unesp e Unicamp, 2018.
1 Ver o estudo de Peter Bratsis, “A corrupção 
política na era do capitalismo transnacional”, 
Crítica Marxista, n.44, 2017, p.21-42. 
2 Desenvolvi essa análise no meu livro Reforma e 
crise política no Brasil: os conflitos de classe 
nos governos do PT, São Paulo e Campinas, 
Editora Unesp e Unicamp, 2018.
10 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019
As duas faces 
da corrupção 
no Brasil
Tanto nos grandes jornais quanto nas manifestações dos 
“juristas políticos” perduram os dois eixos da linguagem 
lacerdista da corrupção, ora retratada como prática de 
elites moralmente degeneradas, ora como um mal 
intrínseco ao Estado, sobretudo quando este se 
imiscui em terrenos do mercado 
POR JORGE CHALOUB*
CAPA – TRADIÇÃO LACERDISTA
U
m dicionário da políticabrasi-
leira no século XX deve reservar 
lugar de destaque para o vocá-
bulo “corrupção”. Nunca falta-
ram vozes numerosas a clamar que, 
ao lado da pouca saúde e do excesso 
de saúvas, do famoso dito de Mário 
de Andrade, a corrupção se destaca 
entre os males do Brasil. Seja como 
arma política nos embates mais ime-
diatos ou como ideia-chave de gran-
des interpretações sobre o país, o 
conceito sempre ocupou lugar de des-
taque em nosso debate público.
A aparente continuidade do dis-
curso esconde, entretanto, variações 
importantes. Primeiramente, em ra-
zão dos muitos sentidos possíveis do 
termo “corrupção”, profundamente 
ligado ao conceito de ordem de quem 
o mobiliza. Para cada ordenação de-
sejável imaginada há mais de um ca-
minho corrompido possível. Por ou-
tro lado, as narrativas sobre a 
corrupção variam significativamen-
te de intensidade, de modo que a fre-
quência e a agressividade da retórica 
servem como chave interessante pa-
ra compreender os movimentos de 
contestação da ordem política no 
Brasil. Quando esse tema ocupa o 
grande centro do debate público é 
sinal de crise de legitimidade e pos-
sível prenúncio de mudanças so-
ciais, de modo que o uso do termo 
diz tanto sobre o presente quanto 
sobre o futuro. Também é relevante 
questionar quem são os principais 
protagonistas do e no discurso sobre 
a corrupção, ou seja, quem usa a 
acusação como arma política e quem 
dela padece.
Qualquer observador minima-
mente atento da conjuntura brasilei-
ra percebe a intensificação dos dis-
lítico udenista. Se por um lado ele de-
fendia um Estado técnico e gestor e 
criticava o “aparelhamento” do Esta-
do por interesses popularescos, dis-
postos a implantar uma “república 
sindicalista” no Brasil, por outro ain-
da reservava um espaço para a deci-
são do líder nato, no caso ele próprio, 
na organização estatal. Lacerda ante-
cipava, em muitos aspectos, a ten-
dência, claramente concretizada na 
ditadura militar, de afirmação da 
economia como linguagem política 
hegemônica no Brasil. O jornalista 
também cunhava os novos traços de 
um discurso demofóbico, ou seja, te-
meroso do protagonismo do povo, 
em tempos de sociedade de massas. 
Os acenos excessivos ao povo, mes-
mo por membros da oligarquia, como 
Vargas e Goulart, não podiam ser to-
lerados e mereciam restrições por 
parte dos interesses econômicos e 
mesmo das Forças Armadas.
Essa narrativa sobre a corrupção, 
estruturada em dois eixos que muitas 
vezes se sobrepunham, não se limi-
tou a Lacerda ou se encerrou com sua 
morte, em 1977. O lacerdismo perdu-
rou como marca do mundo público 
brasileiro, sempre presente, em 
maior ou menor grau, na imprensa e 
no Parlamento. A ideia de narrativas 
sobre a corrupção não indica a imu-
tabilidade dos conteúdos, que mes-
mo ante algumas continuidades 
também passam por mudanças, mas 
uma permanência de estilo e de 
meios. Nem todos os traços consti-
tuem peculiaridades nacionais. A im-
prensa norte-americana, por exem-
plo, comumente se arroga o papel de 
guardiã da moralidade pública. Par-
ticular talvez seja a forte convicção, 
bem presente em nosso debate públi-
cursos sobre a corrupção nos anos 
2000. Como já dito, não se trata de fe-
nômeno inédito, mas é importante 
perceber os eventos e crenças relacio-
nados a essa inflexão. Observando as 
rupturas em meio às continuidades, 
talvez cheguemos a algumas pistas. 
Para tanto, façamos um breve retor-
no ao passado. 
Um dos momentos de forte pre-
sença do tema da corrupção na are-
na política foi nossa primeira expe-
riência histórica de democratização 
com eleições de massa: a República 
de 1946. A significativa ampliação do 
eleitorado e a inédita incerteza dos 
resultados eleitorais nos faziam es-
tar mais próximos do que nunca de 
uma prática política democrática, 
apesar das restrições aos analfabe-
tos. Uma das reações a esse movi-
mento foi um evidente crescimento 
dos discursos em torno da corrup-
ção, sobretudo por parte da União 
Democrática Nacional (UDN), prin-
cipal partido de oposição do perío-
do. Os udenistas foram protagonis-
tas de uma narrativa anticorrupção 
semelhante à que fora anteriormente 
brandida por tenentes e opositores 
da ordem varguista.
Entre as lideranças do partido se 
destacavam em tal padrão retórico 
os bacharéis que compunham a cha-
mada Banda de Música e, sobretudo, 
aquele cujo nome veio a criar um 
neologismo relacionado ao discurso 
de forte histrionismo e densos tons 
morais: Carlos Lacerda. Homens do 
Parlamento, os bacharéis também 
atuavam na imprensa, mas viam nas 
tribunas do Congresso o terreno 
mais confortável. Lacerda era dife-
rente. O jornalista teve papel de 
grande destaque como deputado, 
mas foram sobretudo os jornais, a rá-
dio e a nascente televisão os meios 
responsáveis por torná-lo um grande 
protagonista. 
Lacerda foi um modernizador do 
jornalismo brasileiro não somente 
pelo estilo mais coloquial e direto, 
mas também por uma particular for-
ma de utilizar o humor e a ironia. O 
político udenista percebeu como o 
processo de transformação do país 
em uma sociedade de massas trazia 
consequências profundas para a po-
lítica e a imprensa. Ele renovou a lon-
ga tradição brasileira dos panfletos 
políticos e consolidou uma narrativa 
política sobre a corrupção no Brasil.1 
Lacerda construiu seu discurso sobre 
o tema em torno de dois eixos: a ilegi-
timidade das lideranças e os excessos 
do Estado. Ambos os tipos de corrup-
ção se fundamentavam, sobretudo, 
no terreno de uma concepção de mo-
ral segundo a qual o mundo se dividi-
ria entre opostos absolutos, bem e 
mal, sem nenhuma possibilidade de 
composição ou transigência. 
As lideranças ilegítimas se defi-
niam, nessa perspectiva, por sua 
qualidade moral inferior e adesão a 
interesses e valores rebaixados. Var-
gas, os trabalhistas e os comunistas 
não ocupavam ilegitimamente seus 
postos apenas pelo que faziam, mas 
pelo que eram. Os traços aristocráti-
cos, como o reconhecimento de lide-
ranças naturais, aqui se somam a um 
discurso do inimigo típico da Guerra 
Fria. Contra os que alcançaram sem 
justiça o poder, surgiam as acusações 
de corrupção ou de subversão, am-
bos contraconceitos de uma ideia de 
ordem idealizada. A crítica aos exces-
sos do Estado encontrava, por sua 
vez, expressão mais nuançada no po-
11SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
co, de que há algo de específico na 
corrupção brasileira, frequentemen-
te relacionada à própria essência de 
nossa nacionalidade.
O regime autoritário imposto de 
1964, instaurado em nome da aboli-
ção da corrupção, foi bem-sucedido 
em proibir menções a esta. Os inúme-
ros casos, alguns bem expostos no 
trabalho de Pedro Campos,2 mesmo 
quando descobertos, acabavam rele-
gados ao silêncio, seja pela violenta 
censura ou pelo bom trânsito dos 
empreiteiros em meio à grande im-
prensa. O termo retornaria com a de-
mocracia. Durante boa parte da dé-
cada de 1980, seu principal 
representante entre os partidos polí-
ticos era – o que soa irônico a olhos 
contemporâneos – o PT, então apeli-
dado por Leonel Brizola de “UDN de 
macacão”. Foi com Fernando Collor, 
entretanto, que o tema retornou defi-
nitivamente ao centro da arena pú-
blica. Com a bizarra alcunha de “ca-
çador dos marajás”, um político de 
pouca expressão nacional ganhou a 
eleição presidencial com significati-
vo apoio da grande mídia. O aprendiz 
de feiticeiro seria vítima de suas ar-
tes, logo alvejado e derrubado, ao me-
nos formalmente, por denúncias de 
corrupção. O tema permanece, toda-
via, sempre na ordem do dia.
Algo se transformou, contudo, 
após 2005, ano em que o PT foi atingi-
do pela Ação Penal 470, o “Mensalão”. 
Vimos, por um lado, o sensível cresci-
mento do tema da corrupção na 
grande imprensa. De assunto cons-
tante, ele se tornou o centro do deba-
te público. Não importavam os inte-
resses, as ideias ou os compromissos 
do candidato, mas sua imagem de 
inabalável honestidade. 
A corrupção continua a ser trata-
da com base em “casos”, constructo 
socialbem definido por Marcos Otá-
vio Bezerra,3 e a ter sua cura associa-
da à terapêutica do direito penal. Os 
casos, assim como nos idos da Repú-
blica de 1946, parecem se suceder in-
definidamente, como se nunca ter-
minassem, em dinâmica que 
frequentemente cria a sensação, para 
mencionar uma clássica expressão 
udenista, de que vivemos chafurda-
dos em um “mar de lama”. A sensa-
ção, entretanto, ganha ainda maior 
intensidade em um mundo onde as 
redes sociais são responsáveis pela 
constante circulação e consumo de 
informação. Nesse cenário, a todo 
momento ressoam acusações e es-
cândalos em telas de celulares e 
meios midiáticos.
Outra mudança passa pelo desta-
que e notoriedade dos “salvadores”. 
Em meio às suas muitas diferenças, 
Joaquim Barbosa, Sergio Moro, Luís 
Roberto Barroso e Deltan Dallagnol 
compartilharam prêmios de “perso-
nalidade do ano” e capas com roupa 
de super-herói em jornais e revistas. 
Constroem-se, assim, atores capazes 
de extirpar definitivamente esse mal: 
o Judiciário, o Ministério Público e a 
Polícia Federal. Como escrevi em tex-
to ao lado de Pedro Lima,4 emerge a 
figura do “jurista-político”, persona-
gem que retira sua força política de 
seu papel como intelectual público 
na grande mídia. Mais importantes 
que suas manifestações nos autos 
processuais são seus constantes pro-
nunciamentos na imprensa, na qual 
ele ora assume as vestes de grande in-
térprete do país – ou de “vanguarda 
iluminista”, segundo Luís Roberto 
Barroso –, ora o papel de salvador da 
pátria atacada pelos corruptos.
Tanto nos grandes jornais quanto 
nas manifestações dos “juristas polí-
ticos” perduram os dois eixos da lin-
guagem lacerdista da corrupção, ora 
retratada como prática de elites mo-
ralmente degeneradas, ora como um 
mal intrínseco ao Estado, sobretudo 
quando este se imiscui em terrenos 
do mercado. Em relação ao primeiro 
eixo, as continuidades se destacam 
de forma impressionante. Algumas 
décadas atrás, o ataque contra os 
“corruptos” e “subversivos” atingia 
em um primeiro momento trabalhis-
tas e comunistas, mas acabava, logo 
depois, colocando em xeque todo o 
sistema político. Algo muito seme-
lhante ocorre agora contra os “petis-
tas” e “esquerdistas”, culpados a 
priori não tanto pelo que fizeram, 
mas pelo que são, e cujo ataque ques-
tiona toda a ordem da Nova Repúbli-
ca. A corrupção não se define pela lei, 
mas por razões morais superiores. 
Justamente por isso as ilegalidades 
denunciadas pela Vaza Jato são ple-
namente justificáveis e distantes do 
terreno da corrupção: contra o mal 
absoluto, tudo compensa, até mesmo 
o crime. As transformações se con-
centram, sobretudo, em torno do se-
gundo eixo. 
A identidade entre corrupção e 
Estado ganhou corpo ao longo das úl-
timas décadas não apenas no Brasil. 
Fernando Filgueiras5 aponta como 
boa parte da literatura da Ciência Po-
lítica sobre o tema vincula a corrup-
ção à política e ao Estado, ignorando 
o papel das grandes empresas na 
construção do direito e do Estado 
contemporâneo. Mesmo ante a força 
de tal discurso, impressiona a hege-
monia dessa narrativa tanto na im-
prensa quanto no Judiciário brasilei-
ro.6 É justamente a forte presença 
desse componente pró-mercado o 
problema da comparação entre os 
novos protagonistas do Judiciário e 
do Ministério Público e o tenentismo, 
realizada por intelectuais como Luiz 
Werneck Vianna e Christian Lynch. 
Entre os fins aptos a justificar os 
meios autoritários dos tenentes não 
estava o mercado, mas a demofobia, a 
corrupção e uma forte concepção de 
bem público. Há semelhanças, mas 
também diferenças essenciais.
Se há certa resistência na grande 
mídia às ideias neoconservadoras e 
reacionárias que ganham crescente 
força no mundo, o mesmo não se po-
de dizer em relação a discursos pró-
-mercado, merecedores de versões 
cada vez mais extremadas. Décadas 
de narrativas neoliberais e a recente 
onda de ideários ultraliberais cons-
truíram um amplo consenso em tor-
no do caráter neutro, técnico e ho-
nesto do mundo do mercado, 
retratado como exato oposto da tor-
peza do Estado e da política. 
Tal crença não se restringe aos 
editorais ou à escolha dos colunistas, 
mas também se alastra para as re-
portagens, recheadas de “especialis-
tas” escolhidos a dedo. Recente ma-
téria da Folha de S.Paulo sobre a 
decisão do STF que considerou in-
constitucional a redução de salário 
de servidores, por exemplo, reuniu 
uma heterogênea plêiade de “espe-
cialistas” – entre os quais está o pre-
sidente da célebre Instituição Fiscal 
Independente, criada com o intuito 
de combater o excesso de gastos do 
Estado – para “lamentar” a decisão 
do tribunal.7
A adesão a uma lógica do mercado 
segue o mesmo procedimento da crí-
tica às lideranças ilegítimas, operan-
do por meio de uma radical moraliza-
ção do mundo político, dividido em 
dualismos de qualidades distintas, 
como bem e mal absolutos. O instru-
mento para resolver os problemas se-
culares do país, representados em 
uma das partes do dualismo, é o di-
reito penal, em versão profundamen-
te moralizada. As pretensões de neu-
tralidade, sempre formais e distantes 
da realidade, mas relevantes para evi-
tar que o processo jurídico democrá-
tico descambasse em evidente lógica 
inquisitória, são tratadas como ex-
cessos de direitos, favoráveis à manu-
tenção de uma sociedade degradada. 
O diagnóstico de uma infiltração 
da corrupção em todas as práticas e 
instituições dispensa maior preocu-
pação com a comprovação da culpa. 
Há um perfil de culpado a priori, para 
o qual não se exigem tantas formali-
dades. O maior rigor não demanda 
cuidado na seleção dos culpados e 
aumenta a arbitrariedade dos acusa-
dores na definição dos inimigos do 
país. Caso as evidências apontem pa-
ra lados indesejados, vale a menção 
aos criminosos de sempre, de modo a 
preservar a “neutralidade” das 
“equivalências”.8
A análise dos editoriais dos três 
mais influentes jornais do país – Fo-
lha, Estado de S. Paulo e O Globo – às 
vésperas da derrubada da presidenta 
Dilma Rousseff, em 17 de abril de 
2016, aponta para uma narrativa bem 
semelhante. Ao lado da preocupação 
em defender a legalidade e legitimida-
de do processo, há o diagnóstico de 
que, para além das “pedaladas”, o 
afastamento tem duas grandes justifi-
cativas: a má condução da política 
econômica e, nos exatos termos do Es-
tadão, “a corrupção endêmica”. Am-
bos os eixos estão, como espero ter 
demonstrado, mais próximos do que 
parecem. Também não é por simples 
coincidência que eles coincidem com 
duas narrativas centrais do discurso 
vitorioso de Jair Bolsonaro, represen-
tadas pelo “Posto Ipiranga” Paulo 
Guedes e pelo “justiceiro” Moro. 
*Jorge Chaloub é professor do Departa-
mento de Ciências Sociais da Universidade 
Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor 
em Ciência Política pelo Iesp-Uerj.
1 Escrevi sobre o lacerdismo em “A banalidade 
do mal na política”, Insight Inteligência, n.84, 
jan.-mar. 2019, p.32-41; e “O liberalismo de 
Carlos Lacerda”, Dados, v.61 n.4, Rio de Janei-
ro, out.-dez. 2018.
2 Pedro Henrique Pedreira Campos, Estranhas 
catedrais: as empreiteiras brasileiras e a dita-
dura civil-militar, 1964-1988, Eduf, Niterói, 
2014.
3 Marcos Octávio Bezerra, Corrupção: um estu-
do sobre poder público e relações pessoais no 
Brasil, Papéis Selvagens, Rio de Janeiro, 2018. 
4 Jorge Chaloub e Pedro Lima, “Os juristas polí-
ticos e suas convicções: para uma anatomia do 
componente jurídico do golpe de 2016 no Bra-
sil”, Revista de Ciências Sociais, v.49, n.1, 
mar.-jun. 2018.
5 Fernando Filgueiras, Corrupção, democracia e 
legitimidade, UFMG, Belo Horizonte, 2006.
6 Jorge Chaloub e Pedro Lima, op. cit.
7 Eduardo Cucolo, “Especialistas lamentam 
maioria no STF contra redução de salário de 
servidores”, Folha de S.Paulo, 23 ago. 2019.
8 Tratei do tema em “O abismo das falsas equiva-
lências: divagações sobre a comparação entre 
as esquerdas e Bolsonaro”, Escuta. Revista de 
Cultura e Política, set. 2018.
©
 P
au
lo
 It
o
12Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019
Nos bastidores 
da investigação
Eles encarnam o contrapoder: jornalistas que pesquisam a 
corrupção dos poderosos. Esses investigadores provocaram 
a demissão de ministros, chacoalharam conselhos e, mais 
raramente, derrubaram empresários. Mas guardam um lado 
sombrio. O público não sabe nada sobre sua maneira de 
trabalhar, ao que se opõem e o que os motiva 
POR PIERRE PÉAN*
CAPA – O PAPEL DA MÍDIA
D
esde meados dos anos 1980, a 
vida pública francesa parece 
marcada por um paradoxo. De 
um lado, o aumento do desem-
prego, das desigualdades sociais e 
geográficas, a globalização econômi-
ca e o recuo do Estado de bem-estar 
tal qual foi concebido após a Segunda 
Guerra Mundial e seu redireciona-
mento em benefício das empresas 
privadas deram o tom ao nosso 
tempo. De outro, o mundo midiático 
alçou ao ponto mais alto de sua hie-
rarquia, não a pesquisa social ou a re-
portagem econômica, aptas a escla-
recer essas transformações, mas um 
gênero e uma figura que geralmente 
prosperam quando tudo se esboroa: 
o escândalo de corrupção político-fi-
nanceira e o chamado jornalismo 
investigativo.
Na França, repisamos o nome dos 
casos como cantarolamos as musi-
quinhas-chiclete que imprimem sua 
melodia nos sulcos da memória cole-
tiva: Botton, Schuller-Maréchal, Ur-
ba, MNEF, HLM de Paris, HLM dos 
Hauts-de-Seine, Elf, Pelat, a fita-cas-
sette Méry, Crédit Lyonnais, Dumas, 
Balkany, Takieddine, Woerth-Betten-
court, Cahuzac... Cada qual por sua 
vez, eles são manchete, acabam com 
carreiras políticas e instalam a ideia 
de uma sociedade estruturada não 
mais pelo enfrentamento de forças 
sociais e políticas, mas pelo combate 
do bem – um número reduzido de 
pessoas decididas a purgar nossa be-
la democracia das ovelhas negras que 
a desfiguram – contra o mal – um 
grupelho de eleitos e altos funcioná-
rios corruptos. Esses anjos devotados 
de corpo e alma à virtude suprema – 
o direito à informação – formam uma 
elite no seio de seu ofício.
Durante os anos 1970, a relação de 
forças entre a imprensa e o poder, de-
sequilibrada em favor do segundo, 
atuava marginalmente, pelo menos 
até uma dupla de investigadores do 
Washington Post provocar a queda de 
um presidente dos Estados Unidos. 
Mito fundador1 transformado em mo-
delo, o caso Watergate fixou de uma 
vez por todas as regras do exercício: o 
investigador escolhe como adversário 
o Estado, fonte presumível de todo 
poder e todo dano, no momento exato 
em que este empreende a retirada em 
favor das empresas privadas.
Passando das colunas irreveren-
tes do Canard Enchaîné, em fins dos 
anos 1970, às do Le Monde em mea-
dos da década de 1990, o jornalismo 
investigativo especializado em as-
suntos político-financeiros modifi-
cou profundamente a cena demo-
crática. Agora, o observador é ator e 
às vezes diretor da peça representa-
da pelos partidos, os eleitos e os elei-
tores. Suas revelações alteraram o 
panorama das eleições presidenciais 
francesas de 2017 ao contribuírem 
para a eliminação de François Fil-
lon, tal como provocaram a demis-
são do vice-chanceler austríaco 
Heinz-Christian Strache em 2019. O 
contrapoder foi içado às fileiras do 
poder. Mas quem conhece seu fun-
cionamento? De que maneira vêm a 
público essas “revelações”? Quem 
escolhe sua agenda, seus alvos?
Uma característica curiosa dessa 
atividade, empreendida em nome da 
moral e do imperativo da transparên-
cia, é sua opacidade. Com efeito, um 
golfo separa a imagem do jornalista 
investigativo, veiculada pela própria 
imprensa por meio de retratos de 
seus agentes (indivíduos de olhar 
sombrio e talentos supostamente ex-
cepcionais, fotografados de costas 
uns para os outros, como nos carta-
zes de filmes de espionagem),2 e a 
prática cotidiana da profissão.
É que existem, no fundo, duas ma-
neiras de investigar. Uma, reivindica-
da de preferência pelo autor destas 
linhas, poderia ser definida como um 
jornalismo lento e banal: o investiga-
dor escolhe seu tema e dedica-lhe 
certo tempo, uma energia que a 
maior parte das redações não se dis-
põe a investir. Ele avança às cegas, 
aos tropeços, e corre o risco de se en-
ganar. Suas pesquisas desembocam 
quase sempre em casos judicializa-
dos, diferentes dos escândalos políti-
co-financeiros que inspiram as man-
chetes. Com esse material, ele escreve 
um livro cujo adiantamento cobre, 
grosso modo, as despesas que fez e 
cujas vendas ajudarão a dar início à 
investigação seguinte. O modelo é 
frágil: alguns fracassos comerciais 
sucessivos, acompanhados de pro-
cessos por difamação, bastam para 
privar o jornalista da possibilidade (e 
do desejo) de recomeçar. Para reaver 
o crédito abalado das mídias, algu-
mas redações, inclusive do ramo au-
diovisual, procuram casos que per-
mitam investigar temas econômicos 
ou de sociedade, mas o fenômeno 
continua marginal. E com razão. 
Embora pretendam, de modo ge-
ral, seguir o caminho escarpado, a 
maioria das atrações principais do 
jornalismo investigativo funciona de 
maneira radicalmente diferente. Não 
se trata de pesquisar, mas de esperar 
um vazamento – o de um auto pro-
cessual ou de uma investigação cri-
minal feitos por um juiz, um policial, 
um advogado. O documento chega, 
ontem por fax, hoje por mensagem 
criptografada. O intrépido detetive 
põe-se então a reescrevê-lo em estilo 
jornalístico: pormenores, datas pre-
cisas, nomes conhecidos ou que logo 
o serão. Essa tarefa de transposição é 
entremeada por alguns telefonemas 
que permitem ouvir desmentidos ou 
gaguejos embaraçados das pessoas 
envolvidas, prova inequívoca de um 
trabalho de primeira ordem.
“O caso HLM permitiu a descober-
ta de uma categoria especial da cor-
poração dos homens de imprensa: os 
jornalistas investigativos. Quando eu 
ainda era ingênuo, pensava que sua 
função era... investigar”, escreveu o 
juiz Éric Halphen. “Engano! [...] Com 
pouquíssimas exceções, e penso aqui 
principalmente no Canard Enchaîné 
[...], os jornalistas investigativos não 
investigam...”3 O magistrado confi-
dencia então, em off, que recebeu uma 
proposta de dois grandes jornalistas 
investigativos da época para “uma 
mão lavar a outra”, que ele recusou.
“NÃO TOMAMOS A 
INICIATIVA DA INVESTIGAÇÃO”
A ascensão desse jornalismo que 
está no centro das atenções se deve, 
assim, a uma aliança de ocasião entre 
uma pequena parte do mundo judi-
ciário e alguns elementos do mundo 
midiático.4 Essa coalizão marginal, 
de efeitos contundentes, apresenta 
diversas características. Em primeiro 
lugar, e de modo geral, não é o jorna-
lista investigativo que toma a iniciati-
va do caso: este lhe é enviado já pron-
to por um juiz, um policial ou um 
advogado que têm suas prioridades, 
seus interesses – por exemplo, destra-
var os freios políticos à investigação 
judicial de um figurão, tornando-a 
pública. “Nossa regra é seguir as ins-
truções”, explicou Ariane Chemin, do 
Le Monde. “Não tomamos a iniciativa 
da investigação.”5
O caso do suposto financiamento 
líbio para a campanha de Nicolas 
Sarkozy em 2007, noticiado pelo site 
Mediapart, esclarece bem os bastido-
res da investigação. Os principais ato-
res da peça são os responsáveis pelo 
Departamento Central de Luta contra 
a Corrupção e as Infrações Financei-
ras e Fiscais. Esse serviço da polícia 
judiciária, sediado em Nanterre, in-
terrogou os protagonistas líbios e 
franceses citados na investigação. O 
chefe responsável pelo dossiê digita-
lizou regularmente os novos relató-
rios. Um advogado da associação 
Sherpa, parte civil nesse processo, re-
cuperou os últimos CDs que conti-
nham os documentos. Nos dias se-
guintes, um jornalista do Mediapart 
publicou outro elemento da “investi-
gação”, evidentemente bem docu-
mentado. Tendo em mãos toda a do-
cumentação judiciária e na qualidade 
de maior especialista no caso, Fabrice 
Arfi completou a tarefa do Departa-
mento Central recorrendo aos relató-
rios, que continham nomes, lugares e 
endereços dos envolvidos, bem como 
das pessoas próximas a eles. Portan-

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