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O COMBATE À CORRUPÇÃO COM FINS POLÍTICOS LE MONDE BRASILdiplomatique 9 77 19 81 75 20 04 00 14 6 2 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019 POPULISTAS E LIBERAIS Quem elegeu Ursula von der Leyen? POR SERGE HALIMI* A providencial a onda de calor de julho de 2019! Ela ofuscou um caso igualmente revelador de distúrbios atuais, mas demo- cráticos. Cegos pelo suor, poucos eu- ropeus realmente notaram que o dis- curso político que lhes vinha sendo servido havia pelo menos três anos acabara de ser dinamitado. E a im- prensa, ocupada com outras “inves- tigações”, não se deu ao trabalho de lhes sinalizar isso. Centenas de milhões de eleitores europeus eram, até então, embala- dos por um grande discurso mani- queísta. A política da União Europeia e as eleições de 26 de maio se resu- miam ao enfrentamento entre dois campos: liberais contra populistas.1 No entanto, em 2 de julho, uma vez concluída a eleição dos deputados, uma cúpula dos chefes de Estado e de governo da União Europeia reco- mendou que a ministra democrata cristã alemã Ursula von der Leyen se tornasse presidenta da Comissão Eu- ropeia. A ideia teria vindo de Emma- nuel Macron. Sua sugestão foi natu- ralmente retomada pela chanceler alemã Angela Merkel, mas também pelo... primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. Desde sua eleição, no entanto, o presidente francês não deixara de ju- rar que se mostraria inflexível diante dos nacionalistas e dos “populistas”, portadores de “paixões tristes”, “de ideias que, tantas vezes, acenderam os braseiros em que a Europa pode- ria ter perecido”. Eles “mentem para o povo” e lhe “prometem o ódio”, ele tinha dito.2 Macron até se afastou de sua modéstia irrepreensível para de- safiar dois desses incendiários, o mi- nistro italiano do Interior, Matteo Salvini, e Orbán: “Se eles quiseram ver na minha pessoa seu principal adversário, eles estão certos”. No dia 16 de julho, quando os de- putados confirmaram a escolha dos chefes de Estado e de governo, as proclamações de campanha – “pro- gressistas” contra nacionalistas – no- vamente cederam lugar a uma confi- guração política completamente diferente. Os parlamentares socialis- tas votaram ora contra a deputada Von der Leyen (franceses e alemães, em particular), ora a favor (espa- nhóis e portugueses). E, no último caso, eles se uniram aos nacionalis- tas poloneses e aos companheiros de Orbán. Ou seja, os mesmos que Ma- rine Le Pen estava cortejando alguns dias antes para formar com eles um grupo comum em Estrasburgo... No final, a candidata de Macron deve sua eleição à presidência da Comis- são Europeia – obtida graças a uma maioria de apenas nove votos – a uma coalizão heteróclita composta dos treze parlamentares húngaros leais a Orbán, bem como dos catorze eurodeputados “populistas” do Mo- vimento 5 Estrelas, na época aliados de Salvini. Vamos apostar, no entanto, que, mesmo quando as temperaturas ti- verem voltado ao normal no Velho Continente, a maioria dos jornalistas continuará a se debruçar sobre as ca- tegorias artificiais com que Macron os paparicou. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Ler Serge Halimi e Pierre Rimbert, “Populistes contre libéraux, un clivage trompeur” [Populis- tas versus liberais, uma divisão enganosa], Le Monde Diplomatique, set. 2018. 2 Discurso da Sorbonne, Paris, 26 set. 2017.N A TO N or th A tla nt ic T re at y O rg an iz at io n 3SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIAL © C la ud iu s Google, Facebook e a extrema direita POR SILVIO CACCIA BAVA E stá cada vez mais evidente a im- portância das redes sociais nas comunicações, mas continua havendo um mito de que essas redes são o espaço da liberdade, da livre expressão de qualquer um. Google e Facebook estão aí para di- zer que não. Vejamos. YOUTUBE O YouTube surgiu em 2005 e foi comprado pelo Google em 2006. Re- centemente instalou um poderoso sistema de inteligência artificial que aprende com o comportamento do usuário e apresenta vídeos com reco- mendação para outros. Num esforço para reter o usuário na rede, o siste- ma de recomendação apela para no- vos vídeos com conteúdos cada vez mais extremos. Visto mais que a maioria das redes de TV aberta, utilizando-se de algo- ritmos e difundindo fake news e conspirações, o YouTube teve um pa- pel decisivo na vitória de Bolsonaro. Isso aconteceu por ter reunido e im- pulsionado não apenas os canais de extrema direita, que até então não ti- nham importância, eram periféricos na internet, mas também seus usuá- rios mais radicais, que chegaram a ameaçar de morte seus “inimigos”. Nos meses que se seguiram à mu- dança em seus algoritmos, explodi- ram as menções positivas a Bolsona- ro, retirando esse então anônimo parlamentar do ostracismo, assim como ganharam grande visibilidade as mensagens que denunciavam conspirações, como a infiltração do comunismo nas escolas, as vacinas que geram doenças, o marxismo cul- tural, a Terra plana. Os algoritmos do YouTube não são neutros. Eles reuniram canais marginais e construíram para eles uma audiência. A extrema direita viu sua audiência explodir no YouTube, atingindo um grande número de brasileiros. Importantes membros da extre- ma direita declararam que o YouTu- be se transformou em sua mídia so- cial, e pesquisadores identificaram que essa plataforma direcionou sis- tematicamente seus usuários para canais de extrema direita e de cons- piração.1 As emoções que esses ví- deos suscitam – medo, dúvida, raiva – são elementos centrais das teorias de conspiração e, em particular, do radicalismo da extrema direita. Não há como defender a neutrali- dade do YouTube, pois depoimentos de usuários demonstram sua condu- ção para sites de extrema direita. “Al- gumas vezes, quando estou assistin- do a um vídeo sobre jogos, surge, de repente, um vídeo sobre Bolsonaro”, declara Inzaghi, um estudante de Ni- terói, 17 anos. Mauricio Martins, vice-presiden- te do PSL em Niterói, declara que a maior parte dos afiliados foi recruta- da graças ao YouTube. É importante observar que os jovens e os estudan- tes têm no YouTube sua principal fon- te de informação. WHATSAPP Surgido em 2009, o WhatsApp tem hoje 1,5 bilhão de usuários no mun- do. Em 2014, foi comprado pelo Face- book. No Brasil, essa plataforma tem 120 milhões de usuários e 48% o con- sideram fonte de notícias. O WhatsApp é apresentado como um programa de comunicação inter- pessoal seguro, criptografado, que só permite o acesso do emissor e do re- ceptor. Ninguém mais ficaria saben- do dos conteúdos das mensagens. Acontece que essa virtude do sigilo passou a ser também a arma dos ma- nipuladores de opinião. Com o uso da inteligência artificial foram desenvolvidos programas ca- pazes de coletar os números de telefo- ne de milhares de brasileiros no Face- book, segmentá-los de acordo com seus interesses específicos, gênero, cidade onde moram etc., criar auto- maticamente grupos que até há pou- co podiam abrigar até 256 pessoas ca- da e enviar milhões de mensagens específicas, produzidas especialmen- te para cada grupo de interesses. A manipulação política dos cida- dãos pela mídia digital parece ter ad- quirido escala a partir dos estudos e pesquisas da consultoria Cambridge Analytica, empresa que declarou possuir algo como 5 mil informações de cada cidadão, coletadas nas redes sociais (ver no Netflix o vídeo “Priva- cidade hackeada”). A Cambridge Analytica empregou seus métodos e conhecimentos nas últimas eleições brasileiras. Lançan- do mão das redes sociais, eles foram levando a opinião pública majorita- riamente para a direita. Segundo o jornal Folha de S.Paulo de 18 de outu- bro de 2018, empresários que apoia- ram Bolsonaro utilizaram de caixa- -dois para pagar o envio, por meio de robôs, de milhões de mensagens no WhatsApp contra o PT. Esses robôs, denominados bots, apresentam-se como usuários reais e são programados para disseminarboatos e notícias falsas, interagindo com os demais usuários e colocan- do seus temas em maior evidência que outros. Estudo da FGV/Dapp identifica que 20% das discussões envolvendo política nas redes sociais são de res- ponsabilidade dos bots. Na campa- nha de Jair Bolsonaro, 33% de seus apoiadores nas redes sociais eram perfis falsos que faziam circular me- mes escandalosos, vídeos mentirosos e áudios altamente virais. A agência de checagem Aos Fatos identificou que, apenas no dia 7 de outubro, dia das eleições, 1,7 milhão de notícias falsas foram compartilha- das no Facebook. Essas campanhas de notícias falsas se abrigaram no WhatsApp e no Facebook Messenger. Para observar a dimensão inter- nacional dessas mudanças no campo das comunicações, basta dizer que a Cambridge Analytica já esteve traba- lhando em campanhas eleitorais em vários países antes que se envolvesse com a eleição de Trump, o Brexit e o Brasil. Apenas como referência, na Índia, nas eleições legislativas deste ano, os dois principais partidos de- claravam ter mais de 20 mil grupos de WhatsApp que chegavam a cada distrito ou vilarejo de certas regiões. YOUTUBE-WHATSAPP O que até agora não estava tão evi- dente e passa a ser um novo elemento de explicação para a ascensão da ex- trema direita no Brasil é a atuação ar- ticulada YouTube-WhatsApp. Pesquisas identificaram que o YouTube estimula a difusão dos con- teúdos das campanhas da extrema direita por meio de seus vídeos junto ao seu público. Mas o grande disse- minador desses vídeos para o povão, muitas vezes reduzidos e editados, e com o auxílio de robôs, é o WhatsA- pp, mais barato e de mais ampla pe- netração, com seus 120 milhões de usuários no Brasil.2 1 “Episode 9: The Rabbit Hole”, New York Times, ago. 2019. 2 Amanda Taub e Max Fisher, “How YouTube Misin- formation Resolved a WhatsApp Mystery in Bra- zil”, The New York Times, 15 ago. 2019. Este arti- go é a base de argumentação sobre o Youtube. 4 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019 CAPA – OS FINS POLÍTICOS DO COMBATE À CORRUPÇÃO Dar um sermão para o mundo ou transformá-lo? POR BENOÎT BRÉVILLE E RENAUD LAMBERT* E m 2017, na França, François Fil- lon, candidato dos Republica- nos, viu se desvanecerem suas chances de chegar ao Eliseu quando uma investigação foi aberta contra sua esposa, que se beneficiara de um emprego fictício. Em 2018, a justiça brasileira suspeitou que o ex- -presidente Luiz Inácio Lula da Silva tivesse recebido propinas e o proibiu de participar da eleição presidencial. Em 2019, o ex-presidente da Assem- bleia Nacional francesa, François de Rugy, renunciou ao cargo de ministro da Ecologia quando a imprensa reve- lou que ele servira lagostas e vinhos finos a parentes à custa do Estado... De Paris a Brasília, de Londres a Seul, a vida política parece ser pontuada pelos “negócios”. O flagelo – que o pa- pa Francisco recentemente descre- veu como um “câncer” que gangrena as sociedades modernas1 – preocupa tanto que, todo dia 9 de dezembro, sob o impulso das Nações Unidas, o planeta celebra o Dia Internacional de Luta contra a Corrupção, dois dias depois do Dia da Aviação Civil e dois dias antes do Dia da Montanha. Se a condenação do fenômeno é unânime, o termo choca por sua ne- bulosidade. A pesquisadora Anastas- siya Zagainova ressalta que ele de- signa tanto “delitos penais, definindo uma conduta específica e sua sanção (corrupção ativa e passiva, ingerên- cia, concussão, afrontamento à igualdade de oportunidades nas compras públicas)” quanto “com- portamentos socialmente questio- náveis, mas cujo modo de sanção permanece impreciso (lobby, evasão fiscal, criação de empresas de facha- da offshore, casos de deslocamento do profissional do serviço público para a empresa privada etc.)”.2 Nos Estados Unidos, por exemplo, uma empresa que quer influenciar as escolhas de um representante eleito não precisa recorrer a negócios por baixo do pano. Desde janeiro de 2010 e do julgamento “Citizens United v. Federal Election Commission” [Cida- dãos Unidos vs. Comissão Eleitoral Federal], feito pela Suprema Corte, basta subvencionar associações rela- cionadas ao seu escolhido, da forma mais legal do mundo e sem limite dos valores. Em muitos países, tal prática seria proibida; na América, estamos falando de... liberdade de expressão. De acordo com um relatório da Sun- light Foundation, entre 2007 e 2012, as duzentas empresas norte-ameri- canas mais ativas politicamente dis- penderam US$ 5,8 bilhões em gastos desse tipo. Durante o mesmo perío- do, elas receberam o equivalente a US$ 4,4 trilhões em presentes diver- sos: subsídios, isenções, cortes de impostos.3 Alterar a lei em vez de modificar esses comportamentos: o método se- duz. As multinacionais norte-ameri- canas que desejam se estabelecer em países pobres são assim autorizadas a realizar “pagamentos de facilita- ção” (facilitating payments) para ace- lerar um procedimento, obter uma autorização, fazer uma pasta subir para o topo da pilha. Por seu lado, os envolvidos em processos que tenham dinheiro suficiente podem pôr fim à acusação de que são objeto pagando à parte contrária. Flutuante, a fron- teira entre a corrupção e as práticas legais está, portanto, desde então su- jeita aos caprichos da lei e da lógica que muitas vezes subjaz à elabora- ção: trazer as práticas dominantes para a legalidade, garantindo ao mesmo tempo maior severidade aos crimes das classes populares. Variável de acordo com os pontos do globo e as hierarquias sociais, a atenção dada ao fenômeno também A corrupção é uma das formas mais brutais de expres- são do poder dos poderosos. Entretanto, será que os ob- jetivos dos que combatem tal flagelo são tão nobres quanto alegam? No Brasil, as acusações abundantemen- te repetidas pela imprensa permitiram a prisão, sem pro- vas, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (ler págs. 6-11). Na Rússia e na Índia, as operações “mãos limpas” permitem sobretudo ao poder se livrar de opositores in- convenientes (ler págs. 14-17). Quais são as motivações de uma imprensa em geral menos desinteressada do que parece (ler págs. 12-13)? Afinal, a moral basta para guiar a ação política. © P au lo It o 5SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil mudou ao longo do tempo. Entre 1981 e 1990, os jornais Figaro, Le Monde e Libération publicaram 2.630 artigos que tratavam de uma maneira ou de outra de corrupção. Uma década de- pois, a cifra tinha quadriplicado.4 Uma epidemia de prevaricação se abateu sobre o mundo? Em um estu- do publicado em 2004, os pesquisa- dores Catherine Fieschi e Paul Hey- wood sugerem outra explicação: a mudança do debate político após o colapso do sistema comunista no iní- cio dos anos 1990. “Os partidos cujas batalhas eleitorais foram organiza- das ontem em torno de questões ideológicas, mas que tinham as mes- mas práticas em matéria de corrup- ção, tiveram de mudar de tática. Os programas da esquerda e da direita começaram a ficar parecidos, en- quanto a urgência de demonstrar sua competência uma vez no poder se tornava decisiva. [...] A competição política tem, portanto, levado a negli- genciar os debates substantivos para preferir as acusações de corrupção, destinadas a manchar o crédito do adversário.”5 Essa evolução tem sido uma bênção para os grandes meios de comunicação. Desafiados por sua disposição de endossar as preferên- cias das elites, eles encontram nos “negócios” os meios para dourar no- vamente seu brasão: se revelam os aspectos torpes dos poderosos, é por- que são livres (ler o artigo de Pierre Péan, pág.12). Mas a ênfase no tema da corrup- ção nos anos 1990 procede igualmen- te de um movimento ideológico mais profundo. Com o desaparecimento do modelo político alternativo repre- sentado pelo bloco oriental, o modelo ocidental tornou-se, segundo seus promotores, o único possível, a en- carnação da razão. Nos corredores do FMI e do Banco Mundial surgiuen- tão o tema da “governança”: a ideia de um governo técnico, liderado por especialistas que trabalham para o bem comum. Assim, para os países do Sul, como para os do antigo bloco comunista, converter-se ao livre-co- mércio ou ao capitalismo não decor- re mais de uma escolha política, mas de um imperativo de boa gestão. Prejudicial às empresas que dese- jam se estabelecer em países em de- senvolvimento, a corrupção concen- tra o fogo das instituições neoliberais, que rapidamente identificam nela a raiz principal: a falta de livre-comér- cio. “Ao inflar o preço das mercado- rias acima daquele do mercado”, ex- plica o pesquisador Strom C. Thacker, “as barreiras comerciais podem levar os empresários a pagar subornos pa- ra obter uma isenção ou um trata- mento preferencial.”6 Liberalizar e lutar contra a prevaricação: as orga- nizações internacionais condiciona- rão em breve sua ajuda financeira a esses dois imperativos. Onipresente quando se trata de medir o fenômeno da corrupção, a ONG Transparência Internacional – fundada dois anos após o colapso da União Soviética por um ex-membro do Banco Mun- dial (ver boxe) – considera que as prá- ticas ilícitas dizem respeito apenas ao setor público. Por definição, as empresas estariam protegidas dela. Argumentar-se-á que o México da década de 1980 e a Rússia da década seguinte ofereceram a demonstração de que o reino do mercado – e as pri- vatizações que ele requer – não igno- rava as conivências dos acordos por baixo do pano e da corrupção. Mas isso pouco importa para aqueles que, com Francis Fukuyama, acreditam que o colapso do bloco soviético anunciou o “fim da história”. No rela- to que eles moldam, as bússolas não são mais políticas, mas morais. Cer- tamente, as elites mantêm suas prefe- rências ideológicas, mas as formulam recorrendo ao registro da virtude. Fa- lava-se ontem de capitalismo? Agora será sobre liberdade econômica. Houve intervenção em Granada para lutar contra a ameaça comunista?7 Agora serão enviadas tropas para o resgate dos direitos humanos. Assim, no Brasil, a esquerda não aparece mais como um adversário eleitoral, mas como um inimigo cujas opções políticas ameaçam a probida- de. Dois acadêmicos calcularam que 95% dos artigos que tratavam de cor- rupção às vésperas das eleições presi- denciais de 2010 e 2014 diziam respei- to ao PT, e 5% ao PSDB8 (ler o artigo de Perry Anderson na página seguinte). Tal cobertura gradualmente leva pouco a pouco a não mais se associar práticas erradas a personalidades po- líticas, mas à corrente que elas encar- nam. Ela convida a amalgamar so- mas subutilizadas por líderes desonestos e aquelas dedicadas a ele- var o padrão de vida dos mais pobres, acusados de indolência. Não é, num caso como no outro, uma punção in- devida – e, portanto, “imoral” – na ri- queza nacional? O novo presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, pode então se comprometer a combater a corrupção “purgando o Brasil dos ví- cios morais e ideológicos”9 que ele as- socia com o PT. A multiplicação de escândalos pa- rece ter conseguido convencer uma parte da esquerda de que no final o mundo não funcionaria tão mal se a fraude, a trapaça e a corrupção pu- dessem ser erradicadas. Trocando sua bússola política por outra, moral, esses militantes se metamorfoseiam. Ontem eles lutavam; agora ficam in- dignados. Eles fundavam organiza- ções para tomar o poder; ei-los agora assinando petições, incitando o mundo a se mostrar mais doce, mais tolerante, menos racista, mais verde, mais igualitário. Rugy não os preocu- pa porque ele foi ministro do Meio Ambiente de um governo que agrava a crise climática ao promover o livre- -comércio, mas porque ele também teria comprado um secador de cabelo muito caro. E como a moralidade de- termina que se aplique a si mesmo o que se espera dos outros, o mais im- portante não é mais alcançar os pró- prios fins, mas se mostrar direito, jus- to, equitativo e gentil. Com algumas consequências na organização dos embates políticos, como ilustrado por uma sessão de treinamento dada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT) para repre- sentantes de pessoal eleitos dentro de suas fileiras, em 2014. Uma jovem, militante recente e funcionária de um grande hotel, foi convidada a to- mar a palavra para explicar sua con- cepção da luta sindical: “Para mim, o mais importante não é escolher siste- maticamente seu lado, é se mostrar imparcial”. “Você não sabe o que está dizendo”, respondeu-lhe o treinador da CGT. “Você acha que, em caso de conflito, sua diretora de recursos hu- manos se perguntará o que é justo e imparcial? A política é um lado con- tra o outro: o seu, como sindicalista, é o lado dos empregados.” Os sans-culottes, os partidários da Comuna de Paris ou os manifestan- tes de 1936 não lutaram contra a cor- rupção, mas contra o poder do di- nheiro. Eles não eram movidos pelo desejo de se mostrar exemplares, mas pela determinação de obter ganho de causa. A esquerda não nasceu para passar um sermão no mundo, mas para mudá-lo. *Benoît Bréville e Renaud Lambert são jornalistas do Le Monde Diplomatique Brasil. 1 Carol Glatz, “Corruption is a devastating cancer harming society, pope says” [A corrupção é um câncer devastador que prejudica a sociedade, diz o papa], National Catholic Reporter, 18 mar. 2019. Disponível em: <www.ncronline.org>. 2 Anastassiya Zagainova, “La corruption institu- tionnalisée: un nouveau concept issu de l’analyse du monde émergent” [A corrupção institucionalizada: um novo conceito oriundo da análise do mundo emergente], tese de dou- torado em Economia, defendida em 27 de no- vembro de 2012 na Universidade de Grenoble. 3 “‘Fixed Fortunes’: corporate donors spent $5.8B on political influence, received $4.4T in financial benefits” [“Fortunas Fixadas”: corpo- rações doam US$ 5,8 bilhões para influenciar políticos e recebem US$ 4,4 trilhões em bene- fícios financeiros], Sunlight Foundation, Washington, DC, 17 nov. 2014. 4 Cálculos feitos por Chloé Bonafoux, a quem os autores agradecem. 5 Catherine Fieschi e Paul Heywood, “Trust, cy- nicism and populist anti-politics” [Confiança, cinismo e antipolítica populista], Journal of Po- litical Ideologies, v.9, n.3, Abingdon-on-Tha- mes (Reino Unido), out. 2004. 6 Strom C. Thacker, “Democracy, economic poli- cy, and political corruption in comparative pers- pective” [Democracia, política econômica e corrupção política em perspectiva compara- da]. In: Charles H. Blake e Stephen D. Morris (orgs.), Corruption & Democracy in Latin Ame- rica [Corrupção e democracia na América Lati- na], University of Pittsburgh Press, 2009. 7 Intervenção militar norte-americana para derru- bar o poder entre 25 de outubro e 2 de novem- bro de 1983. 8 João Feres Júnior e Luna de Oliveira Sassara, “Corrupção, escândalos e cobertura midiática da política”, Novos Estudos, São Paulo, jul. 2016. 9 Vinicius Torres Freire, “A revolução moral de Bolsonaro”, Folha de S.Paulo, 2 jan. 2019.. QUEM INVESTIGA OS INVESTIGADORES? A maioria dos artigos que lidam com corrupção é extraída da mesma fonte: as investigações da Transparência Internacional. Essa ONG foi fundada em 1993 por Peter Eigen, ex-diretor regional do Banco Mundial, juntamente com Michael J. Hershman, ex-membro do Serviço de Inteligência do Exército dos Estados Uni- dos, Frank Vogl, assessor de comunicação para o mundo das finanças, também egresso do Banco Mundial, e o falecido George Moody Stuart, que fez fortuna na indústria açucareira. Em suas principais investigações, a Transparência Internacional não mede o peso da corrupção em termos econômicos para cada país. Ela desenvolve um “índice de percepção de corrupção” (IPC) com base em investigações conduzidas por estruturas privadas ou por outras ONGs: a Economist Intelligence Unit, apoia- da pelo semanário liberal britânico The Economist, a Freedom House, organiza- ção norte-americana fundada em 1941 e cujo conselho de administração abrigouos neoconservadores Samuel Huntington, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz e Jeane Kirkpatrick, o Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em Davos, Suíça, e ainda grandes empresas. O IPC ignora os casos de corrupção que afetam o mundo dos negócios. Como resultado, o colapso do Lehman Brothers (2008) e a manipulação da taxa de referência dos mercados monetários (Libor) pelos principais bancos britânicos (2015) não afetaram as classificações dos Estados Unidos e do Reino Unido. Em 2015, a Transparência Internacional recebeu US$ 3 milhões da Siemens. Sete anos antes, a empresa alemã teve de pagar a maior multa imposta a uma companhia (US$ 1,6 bilhão) por subornar altos funcionários de vários países. 6 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019 A destituição da presidenta Dilma e o processo espetaculoso e a prisão de Lula, favorito nas eleições de 2018, fundaram-se num mesmo motivo: o combate à corrupção. Muitos observadores apoiaram essa vassourada dada em nome da justiça republicana – antes de perceberem que se tratava de um golpe de Estado que, ao final, favoreceu a extrema direita POR PERRY ANDERSON* CAPA - LAVA JATO A Operação Lava Jato, ligada ao mais importante escândalo de corrupção da história brasilei- ra recente, teve início em mar- ço de 2014. Ficou sob a responsabili- dade do juiz Sergio Moro, que tinha mostrado as garras em 2005 quando era assistente em outra questão mui- to midiatizada: o escândalo do Men- salão, concernente ao pagamento, pelo PT, de propinas a deputados em troca de apoio. Moro descrevera seu modo de proceder em um artigo publicado em meados da década de 2000. Consiste em imitar os procedimentos utiliza- dos por ocasião da Operação Mani Pulite [Mãos Limpas], que, no início dos anos 1990, derrubou os partidos de governo italianos, antecipando o fim da Primeira República. Em seu texto, Moro salienta a importância de dois aspectos desse método: o re- curso à prisão preventiva, de modo a incitar a delação, e a divulgação na imprensa, calibrada para suscitar a ira da opinião pública e pressionar suspeitos e instituições. De acordo com ele, a cenografia midiática tem mais importância que a presunção de inocência. Durante a Operação Lava Jato, o juiz brasileiro revelou talentos ocul- tos de produtor artístico. Ataques, prisões com grande espetáculo, con- fissões: apelos na imprensa e nas re- des de televisão garantiram em cada etapa uma grande cobertura das operações que ele orquestrou. Cada uma mais dramática que a outra, elas foram numeradas e dotadas de códi- go emprestado do imaginário cine- matográfico, clássico ou bíblico: Dol- ce Vita, Casablanca, Aletheia (“verdade”, em grego antigo), Julga- mento Final, Omertà, The Abyss [no Brasil, O segredo do abismo] etc. Os italianos se vangloriam de ter um senso inato de espetáculo? Moro os fez passar por amadores. Durante um ano, as acusações miraram antigos diretores da em- presa nacional de petróleo Petro- bras, acusados de ter recebido propi- na, antes de provocar a queda do tesoureiro petista João Vaccari Neto e dos dirigentes das duas maiores empresas de construção civil e obras públicas do país: Odebrecht1 e An- drade Gutierrez. As manifestações de apoio a Moro ganharam força. Exigindo a punição do PT e a saída da presidenta Dilma Rousseff, elas pressionaram o Congresso. Só falta- va ao presidente da Câmara, Eduar- do Cunha, colocar na ordem do dia a destituição da presidenta. JUÍZES, JUSTICEIROS OU POLÍTICOS Isolada e enfraquecida, Dilma pe- diu ajuda ao ex-presidente Luiz Iná- cio Lula da Silva. Ele utilizou sua ha- bilidade de negociador para reparar as relações com o antigo aliado, o PMDB. Cunha, que parecia ter colo- cado vários milhões de dólares em contas secretas na Suíça, propôs um pacto de proteção mútua: ele inter- romperia suas investidas contra a presidenta se o governo lhe fizesse um favor. Lula solicitou a Dilma que aceitasse a mão que lhe era estendi- da; ela se recusou, com o apoio da di- reção nacional do PT, que temia que a cumplicidade fosse descoberta. Por fim, os deputados do PT apoiaram as acusações contra Cunha, que reagiu lançando o processo de destituição. Por sua vez, Moro preparou o tiro fulminante. No início de março de 2016, ele desencadeou a Operação Aletheia. Lula foi interpelado nas pri- meiras horas do dia, diante das obje- tivas das câmeras, tendo a mídia sido avisada antes. Suspeitava-se que o ex-presidente tinha se beneficiado da generosidade da Odebrecht. Segui- ram-se outras investidas. Moro inter- ceptou – e divulgou para a imprensa – uma conversa telefônica entre Dil- ma e Lula, que ele grampeara. Nela, os dois dirigentes se referem à possi- bilidade de este se tornar ministro- -chefe da Casa Civil. Como os funcio- nários de escalão ministerial e os membros do Congresso desfrutam de foro privilegiado, não há a menor dú- vida de que se tratava de um estrata- gema para impedir sua prisão. A pressão da rua em favor da des- tituição chegou a seu paroxismo. Na Câmara, no entanto, nada indicava que a maioria dos dois terços seria obtida. Novas incursões divulgaram anotações da Odebrecht que deta- lhavam as quantias transferidas pa- ra cerca de duzentas personalidades pertencentes a quase todos os parti- dos. Na classe política, todos os si- nais estavam vermelhos: um mem- bro do primeiro escalão do PMDB foi gravado sem que soubesse dizendo a um colega que “é preciso estancar a sangria”. Ora, “os caras do Supremo Tribunal” lhe disseram que isso pa- recia impossível enquanto Dilma es- tivesse no poder, uma vez que a mí- dia estava contra ela. Não havia outra opção, explicou ele, a não ser substituí-la o mais rápido possível pelo então vice-presidente, Michel Temer, e formar um governo de união nacional apoiado pelo Supre- mo Tribunal e pelo Exército. Em me- nos de duas semanas, a Câmara aprovou a destituição da presidenta, deixando o campo livre para Moro se desembaraçar de Cunha, que ti- nha se tornado inútil. Este logo foi expulso da Câmara e acabou na pri- são. O Senado validou a destituição da presidenta e Temer assumiu a di- reção do país. No início de 2017, Lula foi acusado com base em suspeitas de corrupção ligadas à aquisição de um aparta- mento à beira-mar do qual jamais foi o proprietário legal. Julgado em Curi- No Brasil, mistérios de um golpe de Estado judicial 7SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil tiba no verão do ano seguinte, foi condenado a nove anos de prisão. Na apelação, a pena subiu para doze anos. Com o primeiro presidente vin- do do PT atrás das grades e a segunda destituída sob escárnio, o naufrágio do partido parecia total. Duas análises do papel dos juízes surgiram então. A primeira os des- creveu como justiceiros determina- dos a lançar por terra a corrupção; a segunda, como agentes políticos prontos a qualquer coisa para chegar a seus fins. Em sua obra O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018), o cientista político brasileiro André Singer rejeita as duas. Segundo ele, os juízes se mostraram perfeitamente republicanos e, ao mesmo tempo, inegavelmente facciosos. Republica- nos: como descrever de outra manei- ra a prisão dos diretores das empre- sas mais ricas e poderosas do país? Facciosos: que outro sentido dar à perseguição sistemática dos mem- bros do PT enquanto os de outros partidos – exceto Cunha, que se tor- nou extremamente inconveniente – foram poupados? Sem falar das afini- dades políticas dos juízes, dos anátemas que lançaram no Facebook ou das fotografias em que os vemos posar, sorrindo, exibindo os símbolos de partidos conservadores. Uma per- gunta subsiste: esses juízes foram re- publicanos e facciosos em propor- ções equivalentes? PENA REDUZIDA PARA DONO DA ODEBRECHT No sistema judiciário brasileiro, policiais, procuradores e juízes for- mam corpos independentes uns dos outros. A polícia reúne as provas, os procuradores proferem as acusações e os juízes arbitram as penas(no Brasil, os júris populares só inter- vêm em casos de homicídio). Toda- via, na prática, as três funções se fundiram na ocasião da Lava Jato, quando a polícia e os procuradores trabalharam sob a supervisão do juiz que controlou as investigações, determinou as penas a serem cum- pridas e as pronunciou: uma inegá- vel negação dos mecanismos bási- cos da justiça, que preveem a separação da acusação e da conde- nação (sem mencionar o fato de o juiz Moro ter varrido de uma hora para outra o princípio da presunção de inocência). Outra invenção do sistema judi- ciário brasileiro: a “delação premia- da” permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão pesadas, a me- nos que ela contribua para envolver outra condenável – o equivalente ju- diciário a uma chantagem. É possível calcular as derivas para as quais con- tribui um dispositivo como esse no caso de Marcelo Odebrecht, o empre- sário mais rico interpelado na inves- tigação. Condenado a dezenove anos de prisão por corrupção, ele teve sua pena reduzida para dois anos e meio a partir do momento em que se cur- vou ao jogo dissimulado da delação. Nesse contexto, teria de se esforçar para superestimar a pressão subme- tida de modo a fornecer aos magis- trados os elementos suscetíveis de contribuir para avançar as investiga- ções que mais os preocupavam. Mas tudo o que precede pesa fi- nalmente pouco no que diz respeito à introdução do conceito de domínio do fato: a possibilidade de condenar alguém na ausência de prova direta de sua participação em um crime, de acordo com a ideia de que a pessoa pode ser responsável por ele. Esse mecanismo deriva daquele de Ta- therrschaft (“controle do ato”), cria- do pelo jurista alemão Claus Roxin para condenar criminosos de guerra nazistas. Mas Roxin denunciou a uti- lização brasileira do princípio: figu- rar em uma posição ou outra num or- ganograma não é suficiente, diz ele, para estabelecer a responsabilidade por um crime. É preciso, além disso, que a justiça possa provar que o dito crime tenha sido comandado pelo acusado. E o juiz Moro não se preo- cupou com essas sutilezas. Por su- postamente ter recebido um aparta- mento no valor de US$ 600 mil, Lula foi condenado a doze anos de pri- são:2 dois terços da pena de prisão inicial de Odebrecht por menos de 2% da quantia que este último foi acusado de ter desviado. MORO NÃO SOFREU NENHUMA PUNIÇÃO Nesse contexto, a ação do tribu- nal de Curitiba correspondeu, entre- tanto, mais ou menos ao coquetel identificado por Singer: uma dose de zelo republicano e outra de estraté- gia facciosa. Quando se sobe nova- mente na hierarquia judiciária até o STF, as coisas mudam. Nesse caso, nem o rigor ético nem o fervor ideo- lógico. As motivações mostraram-se bem mais sórdidas.3 Ao contrário de seus equivalentes em outros lugares do mundo, o Su- premo brasileiro combina três fun- ções: ele interpreta a Constituição, desempenha o papel de corte de ape- lação de última instância para os processos civis e criminais e, por fim, concentra a faculdade de acusar diri- gentes políticos – membros do Con- gresso e ministros –, que desfrutam, sem ele, de uma imunidade conheci- da como foro privilegiado. Os onze membros do STF são nomeados pelo Poder Executivo. Ao contrário do que se passa nos Estados Unidos, sua aprovação pelo Legislativo é apenas uma formalidade. Nenhuma expe- riência anterior em tribunais de justi- ça é requerida: basta ter atuado como advogado ou procurador. A nomeação dos membros do Su- premo sempre se baseou mais em ló- gicas de redes do que em afinidades ideológicas. Na equipe atual, um dos membros foi advogado de Lula, um segundo deve favores ao ex-presiden- te Fernando Henrique Cardoso e um terceiro é primo do ex-presidente Fer- nando Collor de Mello. Quando a pressão do público exigindo a desti- tuição de Dilma chegou ao auge, oito dos onze membros do STF tinham si- do escolhidos por ela e por seu ante- cessor. Mas, exibindo a cor política do camaleão, os juízes que deviam sua indicação ao PT procuraram precisa- mente salientar sua independência em relação ao partido do poder. Eles se contentaram com os fatos de subs- tituir uma forma de obrigação de fi- delidade e obediência a um soberano por outra: eles se esqueceram dos ca- ciques do PT e obedecem, a partir de então, à mídia dominante. Desde o início da operação, a equipe de Curitiba utilizou as divul- gações e as revelações à imprensa para provocar um curto-circuito nos procedimentos normais. Antecipar a estigmatização pública de um acu- sado antes de seu comparecimento é normalmente proibido, mas Moro se privou dessa proibição, ainda mais porque podia contar com os jornalis- tas para pressionar o Supremo. Quando um dos juízes da instituição o informou de que o princípio do ha- beas corpus exigia que ele libertasse um diretor da Petrobras, Moro pro- curou a imprensa e declarou que, nesse caso, precisaria libertar tam- bém traficantes de drogas. Seu supe- rior voltou atrás. Após ter infringido três normas, incluindo as escutas te- lefônicas e o fato de tornar pública a conversa entre Lula e Dilma, o juiz Moro se justificou afirmando que ti- nha agido por “interesse público”. Celebrado como um herói nacional pela imprensa, não sofreu nenhuma repreensão. Poucos dias depois de sua eleição para presidente, em outubro de 2018, Jair Bolsonaro anunciou que Moro havia aceitado o cargo de ministro da Justiça. Nos anos 1990, os magis- trados italianos responsáveis pela Operação Mani Pulite lamentaram que seus esforços para lutar contra a corrupção tinham favorecido a subi- da de Silvio Berlusconi ao poder. No Brasil, a estrela da Lava Jato se alegra de fazer parte da equipe de um dos raros dirigentes políticos suscetíveis de fazer que Berlusconi seja visto co- mo um personagem simpático. *Perry Anderson é historiador e professor da Universidade da Califórnia em Los Ange- les. Uma versão deste artigo foi publicada pela London Review of Books (7 fev. 2019). 1 Ler Anne Vigna, “Les Brésiliens aussi ont leur Bouygues” [Os brasileiros também têm seus Bouygues], Le Monde Diplomatique, out. 2013. 2 A esta primeira pena se acrescenta uma segun- da, também de doze anos, pronunciada em fe- vereiro de 2019. (Nota da redação.) 3 Desde 9 de junho de 2019, o site norte-ameri- cano de notícias The Intercept revela uma série de mensagens criptografadas do juiz Moro que comprovam que ele manipulou a Operação Lava Jato para fins políticos. (Nota da redação.) Um membro do primei- ro escalão do PMDB foi gravado sem que sou- besse dizendo a um colega que “é preciso estancar a sangria” A “delação premiada” permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão pesadas, a menos que ela contribua para envolver outra condenável © P au lo It o 8 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019 As facetas ocultas da Lava Jato As vestes dos personagens do processo político estão coladas na pele e na mente dos atores que as portam, de tal modo que eles próprios acreditam, no geral, que são aquilo que parecem ser POR ARMANDO BOITO JR.* CAPA – CLASSE MÉDIA SUPOSTAMENTE INDIGNADA COM A CORRUPÇÃO D iversos atores, agindo institu- cionalmente e vinculados, de modos complexos e distintos, a diferentes interesses de classe e de frações de classe, convergiram pa- ra a criação e o apoio à Operação Lava Jato: a burocracia do aparelho de Es- tado, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, os movimentos da alta classe média (Vem pra Rua, MBL, Revoltados Online etc.), a grande im- prensa e outros. Nenhum deles agiu de maneira aberta e transparente no processo político e, entre os próprios aliados congregados na organização e na sustentação da operação, nem sempre os objetivos de cada um esta- vam claros para os demais. A análise política pode revelar muita coisa ain- da sobre a Lava Jato, revelação de na- tureza diferente daquela que consiste em trazer à luz fatos até então desco- nhecidos, como vem sendo feitopelas excelentes reportagens do Intercept. A INTRANSPARÊNCIA DO PROCESSO POLÍTICO Na análise do processo político, processo que é a sequência determi- nada – ou seja, não aleatória – de acontecimentos oriundos de conflitos de interesses e de valores os mais va- riados, o observador deve sempre ter em mente que os atores, no mais das vezes, atuam nas sombras ou masca- rados. Dizemos que os atores atuam “nas sombras” porque parte muito importante do processo decisório tem lugar nos corredores e gabinetes da burocracia de Estado, longe dos olhos do público. Reportagem da re- vista Carta Capital acaba de revelar a ocorrência de reuniões – secretas co- mo geralmente são as reuniões dos organismos burocráticos – da cúpula das Forças Armadas com a presidên- cia do STF para assegurar que Luiz Inácio Lula da Silva não participaria das eleições de 2018. Sabia-se do fa- migerado tuíte do general Eduardo Villas Bôas em abril de 2017 enqua- drando o STF na véspera do julga- mento do habeas corpus do ex-presi- dente. Começa-se a saber agora que a interferência das Forças Armadas no processo eleitoral foi algo muito mais amplo. Dizemos que os atores atuam “mascarados” porque não são o que parecem ser. Estamos nos referindo aos partidos políticos burgueses e seus dirigentes, aos burocratas do Es- tado envolvidos em decisões políti- cas, aos órgãos da grande imprensa que funcionam como representantes políticos de interesses minoritários e às outras organizações que intervêm na política nacional. E não são o que parecem ser por sólidas razões. Numa sociedade como a capitalista, em que, a despeito das enormes desigualda- des de classe, todos os indivíduos são considerados iguais como cidadãos e aptos a algum tipo de participação política, os grupos minoritários, cujos interesses estão em conflito com as necessidades da maioria, necessitam esconder-se e/ou mascarar seus inte- resses, apresentá-los com vestes uni- versalistas – não particularistas e egoístas como realmente são – se qui- serem convertê-los em interesses aparentemente gerais. Os rentistas ja- mais dirão que a taxa de juros deve ser alta para que eles ganhem muito dinheiro, e sim para evitar – é o que sustentam com base em argumentos econômicos contestáveis – o retorno da inflação em prejuízo de toda a “co- letividade”. O processo político na so- ciedade capitalista é intransparente. Nada disso significa que os atores do processo político sejam mentiro- sos contumazes que manipulam os fatos e as versões ao seu bel-prazer para enganar o público. Aqui, não ca- beria a comparação com um folião que se fantasia para o Carnaval, isto é, que escolhe livre e conscientemen- te um personagem e o encarna por uma breve ocasião. Não. As vestes dos personagens do processo político estão coladas na pele e na mente dos atores que as portam, de tal modo que eles próprios acreditam, no geral, que são aquilo que parecem ser. Di- zemos “no geral” porque é verdade que eles podem mentir, manipular e agir hipocritamente. Porém, quando agem assim, fazem-no no “varejo”, não no “atacado”. Existe a hipocrisia. Quando o juiz Sergio Moro enviava mensagens pelo Telegram aos procu- radores coordenando a investigação e instruindo a acusação contra os réus diante dos quais ele deveria se portar como parte terceira e neutra, o magistrado, embora soubesse que es- tava burlando as regras do direito, procurava manter, hipocritamente, a aparência pública de imparcialidade. Contudo, e isso faz diferença, essa hi- pocrisia estava a serviço daquilo que, acreditam juízes e procuradores, se- ria um bem maior: a suposta função do Judiciário e do Ministério Público de “combater a corrupção em defesa do interesse geral do país”. A crença na existência de uma função pública, e não de classe, do Judiciário, bem como a crença na existência de um suposto “interesse geral do país”, que estaria acima dos interesses de clas- se, estão na base da ação dos buro- cratas do Estado. O analista precisa, então, tomar essa crença em conside- ração, não pode supor que ela seja um fingimento para iludir o público, mas deve ir além dela, deve analisar a coerência de tais discursos ou suas eventuais contradições, cotejando- -os com a prática e examinando a coerência dessa prática. Sem lançar mão de imputações arbitrárias, o analista do processo político tem de detectar quais são os verdadeiros, e muitas vezes ocultos, motivos últi- mos da ação dos personagens, os fins que, muitas vezes inconscientemen- te, eles próprios perseguem. O LUGAR DA CORRUPÇÃO PARA A CLASSE MÉDIA Voltemos à Lava Jato. Segundo o que diziam os apoiadores ativos dessa operação, em sua grande maioria per- tencentes à fração superior da classe média, setor social abastado e pre- conceituoso, tal operação visava combater a corrupção. Era o que di- ziam. No entanto, eles lançaram e or- ganizaram, por intermédio de movi- mentos como o MBL, o Vem pra Rua e outros, a campanha pelo impeach- ment de Dilma Rousseff, sabendo que o resultado de tal campanha seria a © P au lo It o 9SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil ascensão à Presidência da República de um notório corrupto como Michel Temer. A prática negava o discurso. Esse discurso seria, então, mero dis- farce, uma máscara de ocasião? Ele era, sim, uma máscara, mas não oca- sional. É possível demonstrar que a classe média, e notadamente sua fra- ção superior, estava muito incomoda- da com a política social dos governos do PT. Muitas e variadas manifesta- ções nos ambientes de trabalho, nos ambientes domésticos e nas redes so- ciais evidenciavam esse incômodo – o inconformismo com o Bolsa Família, as famigeradas mensagens sobre ae- roportos que se pareciam com rodo- viárias, os comentários sobre a pre- sença indesejada de populares em laboratórios de exames clínicos e em hospitais, as referências ofensivas e preconceituosas aos brasileiros da re- gião Nordeste, as críticas à extensão dos direitos trabalhistas às emprega- das domésticas etc. A hipótese que se pode levantar é que esse inegável in- cômodo foi o motivo principal da re- volta da alta classe média contra os governos do PT. A luta contra a cor- rupção foi um motivo de menor im- portância e, se foi colocado em pri- meiro plano no discurso da campanha pelo impeachment, foi porque o moti- vo principal isolaria politicamente o movimento, enquanto a luta contra a corrupção, diferentemente, poderia obter algum apoio popular para a de- posição de Dilma. Apresentar o se- cundário como sendo o principal é uma manobra que os segmentos so- ciais podem fazer instintivamente, sem a necessidade de discussão cons- ciente, para conferir uma aparência universalista às suas demandas. Fato histórico: colocar o discurso contra a corrupção no centro é algo muito característico dos movimen- tos de classe média; o movimento operário e o movimento camponês nunca fizeram desse discurso algo central em suas lutas. Por que essa marca de classe? Essa é uma questão complexa que deve ser tratada em dois níveis. Num primeiro nível, po- demos dizer que os movimentos das classes trabalhadoras, entre os quais se incluem os movimentos de classe média, tendem a se opor à corrupção porque veem nela uma forma de pa- rasitismo. Porém, num segundo ní- vel, a situação particular da classe média faz que ela, primeiro, dê im- portância maior à questão da cor- rupção e, segundo, acrescente à ideia de parasitismo uma ideia específica, de classe média. Vejamos. A ideolo- gia e, portanto, os interesses da clas- se média são feridos de maneira es- pecial pela prática da corrupção ou, mais exatamente, pelo fato de o grande público tomar conhecimento da prática da corrupção. Explico. A classe média depende, para justificar a situação privilegiada que ocupa em relação ao trabalhador manual, da aceitação pela sociedade da imagem do Estado como uma instituição pú- blica acima dos interesses particula- ristas de classe. Tal imagemé o terre- no no qual a ideologia meritocrática, aquela que justifica as vantagens econômicas e sociais dos trabalha- dores de classe média em relação aos trabalhadores manuais, pode vice- jar. As posições e profissões privile- giadas são ocupadas, diz a ideologia meritocrática, por aqueles que têm mais dons e méritos. Venceram os de menor mérito e venceram numa competição justa, pois as regras e as instituições são públicas e iguais pa- ra todos. Dito de outro modo, para que a ideologia meritocrática possa legitimar as vantagens econômicas e sociais usufruídas pela classe média em relação ao trabalhador manual, é preciso que o Estado apareça como o garantidor da neutralidade e da igualdade na disputa. A escola, os concursos públicos, a atuação da justiça, tudo deve parecer público, socialmente neutro, garantindo uma disputa justa entre os cidadãos por educação, emprego e justiça. A cor- rupção fere essa imagem do Estado, e a defesa dessa imagem é a principal motivação da classe média para se indispor com a corrupção. Não se trata apenas de uma revolta de tra- balhadores contra parasitas que ocupam o Estado para obter vanta- gens pessoais. Trata-se também da indignação da classe média contra aqueles que mancham a imagem pú- blica do Estado. Logo, além de apre- sentar o secundário no lugar do prin- cipal, isto é, a luta contra a corrupção no lugar da luta contra a ascensão das classes populares, os persona- gens dessa cruzada contra a corrup- ção mascaravam seus interesses egoístas de classe – defender a ideo- logia meritocrática e os interesses que ela legitima – com um discurso moralista e aparentemente altruísta. O IMPERIALISMO, A BURGUESIA E A BUROCRACIA DE ESTADO A Lava Jato, porém, não foi apenas obra da classe média. O Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, a grande mídia e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos também foram atores importantes dessa ope- ração. E a ação desses outros atores tampouco era transparente. O Departamento de Justiça agiu nas sombras. Apenas algum tempo depois de iniciada a operação é que o jornalismo – ou melhor, o que sobrou do bom jornalismo e que, hoje, muito se assemelha à atividade de espiona- gem – foi revelando o amplo envolvi- mento dessa agência do Estado norte- -americano com a operação. Sociólogos e jornalistas têm mostra- do que o imperialismo de Washing- ton vem fomentando há anos a forma- ção de uma rede de instituições internacionais que se dizem de com- bate à corrupção e com a qual pode acuar governos incômodos ao redor do mundo.1 No caso brasileiro, os convênios entre o Judiciário local e norte-americano, a formação de qua- dros e o fornecimento de informações para a Lava Jato contribuíram decisi- vamente para o sucesso da operação. O resultado foi não apenas a destrui- ção da construção pesada e da enge- nharia brasileira que monopolizavam o mercado de obras públicas no Brasil e concorriam no mercado internacio- nal com as empresas norte-america- nas e europeias, como também a asfi- xia da Petrobras e a abertura da exploração do petróleo da camada do pré-sal às petroleiras internacionais. Assim, os burocratas de Estado – de- sembargadores, juízes, procuradores e delegados – agiram em nome de in- teresses variados. Mantinham rela- ção de representação com a alta clas- se média da qual, de resto, faziam parte e, ao mesmo tempo, representa- vam os interesses do imperialismo norte-americano. No primeiro caso, agiram para bloquear a pequena as- censão social das camadas de baixa renda; no segundo caso, para abrir ainda mais a economia nacional ao capital estrangeiro. Nenhum desses resultados foi ou é apresentado como objetivo dessa operação. As instituições do Estado têm um modo de funcionamento complexo. Elas estão limitadas por regras e va- lores próprios e, ao mesmo tempo, acabam se vinculando ou sendo cap- turadas por diferentes segmentos da classe capitalista, que disputam en- tre si o controle da política de Estado. Desse modo, aquilo que aparece à primeira vista como um simples con- flito institucional, por exemplo, entre o Judiciário e o Legislativo, ou entre este último e o Executivo não é, na verdade, nem sequer um conflito ins- titucional, e sim um conflito entre in- teresses econômicos e sociais que o conflito institucional representa e ao mesmo tempo dissimula. A burguesia é a classe dominante nas sociedades capitalistas, mas ela não é um bloco homogêneo sem fis- suras. Ela pode se dividir, no que diz respeito a seus interesses econômi- cos de curto prazo, em frações, isto é, em partes que se organizam em bus- ca de interesses econômicos específi- cos e em disputa com os interesses específicos de outras frações. Um dos sistemas de fracionamento da classe burguesa é a relação que as empresas capitalistas de um país como o Brasil têm com o capital internacional. Há segmentos burgueses perfeitamente integrados ao capital internacional e outros que apresentam conflitos mo- derados com esse capital. Temos de- nominado o primeiro segmento de burguesia associada e o segundo de burguesia interna. Na luta entre si, essas diferentes frações da burguesia brasileira capturaram diferentes ins- tituições do Estado.2 A grande bur- guesia interna, que pretendia duran- te os governos do PT estabelecer alguns limites, ainda que tímidos, à penetração do capital estrangeiro no Brasil, capturou, por exemplo, gran- des empresas estatais como o BNDES e a Petrobras. Tal captura permitiu- -lhes obter financiamento farto e a juros subsidiados e estabelecer uma reserva de mercado para a constru- ção pesada e a construção naval bra- sileira – a famosa política de conteú- do local. O capital internacional e a grande burguesia associada captura- ram, juntamente com a alta classe média, o sistema de justiça – Judiciá- rio, Ministério Público, Polícia Fede- ral. Essa captura, possível em grande medida por causa do pertencimento de desembargadores, juízes, promo- tores e delegados à alta classe média, permitiu o desmonte de segmentos inteiros da economia controlados pe- la grande burguesia interna e da polí- tica neodesenvolvimentista dos go- vernos do PT, e, passo a passo, poderá levar ao desmonte da própria demo- cracia no Brasil. A Operação Lava Jato teve grande impacto no processo político brasi- leiro e os interesses por ela represen- tados mantiveram-se ocultos para a grande parte da população. Hoje, ten- do ela cumprido o papel de alterar o bloco no poder no Brasil e permitido a constituição da hegemonia do capi- tal internacional e da fração da bur- guesia a ele associada, essa operação encontra-se sob ataque tanto das for- ças progressistas que foram suas principais vítimas quanto dos parti- dos e lideranças do campo conserva- dor, nos quais abunda a corrupção. Seus dirigentes, como Moro e Dallag- nol, outrora tão poderosos, têm hoje um futuro incerto. Podem ser comi- dos pela crise como o foram Aécio Neves, Eduardo Cunha, Michel Te- mer e outros. *Armando Boito Jr. é professor de Ciência Política da Unicamp e autor do livro Refor- ma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT, São Paulo e Campinas, Editora Unesp e Unicamp, 2018. 1 Ver o estudo de Peter Bratsis, “A corrupção política na era do capitalismo transnacional”, Crítica Marxista, n.44, 2017, p.21-42. 2 Desenvolvi essa análise no meu livro Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT, São Paulo e Campinas, Editora Unesp e Unicamp, 2018. 10 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019 As duas faces da corrupção no Brasil Tanto nos grandes jornais quanto nas manifestações dos “juristas políticos” perduram os dois eixos da linguagem lacerdista da corrupção, ora retratada como prática de elites moralmente degeneradas, ora como um mal intrínseco ao Estado, sobretudo quando este se imiscui em terrenos do mercado POR JORGE CHALOUB* CAPA – TRADIÇÃO LACERDISTA U m dicionário da políticabrasi- leira no século XX deve reservar lugar de destaque para o vocá- bulo “corrupção”. Nunca falta- ram vozes numerosas a clamar que, ao lado da pouca saúde e do excesso de saúvas, do famoso dito de Mário de Andrade, a corrupção se destaca entre os males do Brasil. Seja como arma política nos embates mais ime- diatos ou como ideia-chave de gran- des interpretações sobre o país, o conceito sempre ocupou lugar de des- taque em nosso debate público. A aparente continuidade do dis- curso esconde, entretanto, variações importantes. Primeiramente, em ra- zão dos muitos sentidos possíveis do termo “corrupção”, profundamente ligado ao conceito de ordem de quem o mobiliza. Para cada ordenação de- sejável imaginada há mais de um ca- minho corrompido possível. Por ou- tro lado, as narrativas sobre a corrupção variam significativamen- te de intensidade, de modo que a fre- quência e a agressividade da retórica servem como chave interessante pa- ra compreender os movimentos de contestação da ordem política no Brasil. Quando esse tema ocupa o grande centro do debate público é sinal de crise de legitimidade e pos- sível prenúncio de mudanças so- ciais, de modo que o uso do termo diz tanto sobre o presente quanto sobre o futuro. Também é relevante questionar quem são os principais protagonistas do e no discurso sobre a corrupção, ou seja, quem usa a acusação como arma política e quem dela padece. Qualquer observador minima- mente atento da conjuntura brasilei- ra percebe a intensificação dos dis- lítico udenista. Se por um lado ele de- fendia um Estado técnico e gestor e criticava o “aparelhamento” do Esta- do por interesses popularescos, dis- postos a implantar uma “república sindicalista” no Brasil, por outro ain- da reservava um espaço para a deci- são do líder nato, no caso ele próprio, na organização estatal. Lacerda ante- cipava, em muitos aspectos, a ten- dência, claramente concretizada na ditadura militar, de afirmação da economia como linguagem política hegemônica no Brasil. O jornalista também cunhava os novos traços de um discurso demofóbico, ou seja, te- meroso do protagonismo do povo, em tempos de sociedade de massas. Os acenos excessivos ao povo, mes- mo por membros da oligarquia, como Vargas e Goulart, não podiam ser to- lerados e mereciam restrições por parte dos interesses econômicos e mesmo das Forças Armadas. Essa narrativa sobre a corrupção, estruturada em dois eixos que muitas vezes se sobrepunham, não se limi- tou a Lacerda ou se encerrou com sua morte, em 1977. O lacerdismo perdu- rou como marca do mundo público brasileiro, sempre presente, em maior ou menor grau, na imprensa e no Parlamento. A ideia de narrativas sobre a corrupção não indica a imu- tabilidade dos conteúdos, que mes- mo ante algumas continuidades também passam por mudanças, mas uma permanência de estilo e de meios. Nem todos os traços consti- tuem peculiaridades nacionais. A im- prensa norte-americana, por exem- plo, comumente se arroga o papel de guardiã da moralidade pública. Par- ticular talvez seja a forte convicção, bem presente em nosso debate públi- cursos sobre a corrupção nos anos 2000. Como já dito, não se trata de fe- nômeno inédito, mas é importante perceber os eventos e crenças relacio- nados a essa inflexão. Observando as rupturas em meio às continuidades, talvez cheguemos a algumas pistas. Para tanto, façamos um breve retor- no ao passado. Um dos momentos de forte pre- sença do tema da corrupção na are- na política foi nossa primeira expe- riência histórica de democratização com eleições de massa: a República de 1946. A significativa ampliação do eleitorado e a inédita incerteza dos resultados eleitorais nos faziam es- tar mais próximos do que nunca de uma prática política democrática, apesar das restrições aos analfabe- tos. Uma das reações a esse movi- mento foi um evidente crescimento dos discursos em torno da corrup- ção, sobretudo por parte da União Democrática Nacional (UDN), prin- cipal partido de oposição do perío- do. Os udenistas foram protagonis- tas de uma narrativa anticorrupção semelhante à que fora anteriormente brandida por tenentes e opositores da ordem varguista. Entre as lideranças do partido se destacavam em tal padrão retórico os bacharéis que compunham a cha- mada Banda de Música e, sobretudo, aquele cujo nome veio a criar um neologismo relacionado ao discurso de forte histrionismo e densos tons morais: Carlos Lacerda. Homens do Parlamento, os bacharéis também atuavam na imprensa, mas viam nas tribunas do Congresso o terreno mais confortável. Lacerda era dife- rente. O jornalista teve papel de grande destaque como deputado, mas foram sobretudo os jornais, a rá- dio e a nascente televisão os meios responsáveis por torná-lo um grande protagonista. Lacerda foi um modernizador do jornalismo brasileiro não somente pelo estilo mais coloquial e direto, mas também por uma particular for- ma de utilizar o humor e a ironia. O político udenista percebeu como o processo de transformação do país em uma sociedade de massas trazia consequências profundas para a po- lítica e a imprensa. Ele renovou a lon- ga tradição brasileira dos panfletos políticos e consolidou uma narrativa política sobre a corrupção no Brasil.1 Lacerda construiu seu discurso sobre o tema em torno de dois eixos: a ilegi- timidade das lideranças e os excessos do Estado. Ambos os tipos de corrup- ção se fundamentavam, sobretudo, no terreno de uma concepção de mo- ral segundo a qual o mundo se dividi- ria entre opostos absolutos, bem e mal, sem nenhuma possibilidade de composição ou transigência. As lideranças ilegítimas se defi- niam, nessa perspectiva, por sua qualidade moral inferior e adesão a interesses e valores rebaixados. Var- gas, os trabalhistas e os comunistas não ocupavam ilegitimamente seus postos apenas pelo que faziam, mas pelo que eram. Os traços aristocráti- cos, como o reconhecimento de lide- ranças naturais, aqui se somam a um discurso do inimigo típico da Guerra Fria. Contra os que alcançaram sem justiça o poder, surgiam as acusações de corrupção ou de subversão, am- bos contraconceitos de uma ideia de ordem idealizada. A crítica aos exces- sos do Estado encontrava, por sua vez, expressão mais nuançada no po- 11SETEMBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil co, de que há algo de específico na corrupção brasileira, frequentemen- te relacionada à própria essência de nossa nacionalidade. O regime autoritário imposto de 1964, instaurado em nome da aboli- ção da corrupção, foi bem-sucedido em proibir menções a esta. Os inúme- ros casos, alguns bem expostos no trabalho de Pedro Campos,2 mesmo quando descobertos, acabavam rele- gados ao silêncio, seja pela violenta censura ou pelo bom trânsito dos empreiteiros em meio à grande im- prensa. O termo retornaria com a de- mocracia. Durante boa parte da dé- cada de 1980, seu principal representante entre os partidos polí- ticos era – o que soa irônico a olhos contemporâneos – o PT, então apeli- dado por Leonel Brizola de “UDN de macacão”. Foi com Fernando Collor, entretanto, que o tema retornou defi- nitivamente ao centro da arena pú- blica. Com a bizarra alcunha de “ca- çador dos marajás”, um político de pouca expressão nacional ganhou a eleição presidencial com significati- vo apoio da grande mídia. O aprendiz de feiticeiro seria vítima de suas ar- tes, logo alvejado e derrubado, ao me- nos formalmente, por denúncias de corrupção. O tema permanece, toda- via, sempre na ordem do dia. Algo se transformou, contudo, após 2005, ano em que o PT foi atingi- do pela Ação Penal 470, o “Mensalão”. Vimos, por um lado, o sensível cresci- mento do tema da corrupção na grande imprensa. De assunto cons- tante, ele se tornou o centro do deba- te público. Não importavam os inte- resses, as ideias ou os compromissos do candidato, mas sua imagem de inabalável honestidade. A corrupção continua a ser trata- da com base em “casos”, constructo socialbem definido por Marcos Otá- vio Bezerra,3 e a ter sua cura associa- da à terapêutica do direito penal. Os casos, assim como nos idos da Repú- blica de 1946, parecem se suceder in- definidamente, como se nunca ter- minassem, em dinâmica que frequentemente cria a sensação, para mencionar uma clássica expressão udenista, de que vivemos chafurda- dos em um “mar de lama”. A sensa- ção, entretanto, ganha ainda maior intensidade em um mundo onde as redes sociais são responsáveis pela constante circulação e consumo de informação. Nesse cenário, a todo momento ressoam acusações e es- cândalos em telas de celulares e meios midiáticos. Outra mudança passa pelo desta- que e notoriedade dos “salvadores”. Em meio às suas muitas diferenças, Joaquim Barbosa, Sergio Moro, Luís Roberto Barroso e Deltan Dallagnol compartilharam prêmios de “perso- nalidade do ano” e capas com roupa de super-herói em jornais e revistas. Constroem-se, assim, atores capazes de extirpar definitivamente esse mal: o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal. Como escrevi em tex- to ao lado de Pedro Lima,4 emerge a figura do “jurista-político”, persona- gem que retira sua força política de seu papel como intelectual público na grande mídia. Mais importantes que suas manifestações nos autos processuais são seus constantes pro- nunciamentos na imprensa, na qual ele ora assume as vestes de grande in- térprete do país – ou de “vanguarda iluminista”, segundo Luís Roberto Barroso –, ora o papel de salvador da pátria atacada pelos corruptos. Tanto nos grandes jornais quanto nas manifestações dos “juristas polí- ticos” perduram os dois eixos da lin- guagem lacerdista da corrupção, ora retratada como prática de elites mo- ralmente degeneradas, ora como um mal intrínseco ao Estado, sobretudo quando este se imiscui em terrenos do mercado. Em relação ao primeiro eixo, as continuidades se destacam de forma impressionante. Algumas décadas atrás, o ataque contra os “corruptos” e “subversivos” atingia em um primeiro momento trabalhis- tas e comunistas, mas acabava, logo depois, colocando em xeque todo o sistema político. Algo muito seme- lhante ocorre agora contra os “petis- tas” e “esquerdistas”, culpados a priori não tanto pelo que fizeram, mas pelo que são, e cujo ataque ques- tiona toda a ordem da Nova Repúbli- ca. A corrupção não se define pela lei, mas por razões morais superiores. Justamente por isso as ilegalidades denunciadas pela Vaza Jato são ple- namente justificáveis e distantes do terreno da corrupção: contra o mal absoluto, tudo compensa, até mesmo o crime. As transformações se con- centram, sobretudo, em torno do se- gundo eixo. A identidade entre corrupção e Estado ganhou corpo ao longo das úl- timas décadas não apenas no Brasil. Fernando Filgueiras5 aponta como boa parte da literatura da Ciência Po- lítica sobre o tema vincula a corrup- ção à política e ao Estado, ignorando o papel das grandes empresas na construção do direito e do Estado contemporâneo. Mesmo ante a força de tal discurso, impressiona a hege- monia dessa narrativa tanto na im- prensa quanto no Judiciário brasilei- ro.6 É justamente a forte presença desse componente pró-mercado o problema da comparação entre os novos protagonistas do Judiciário e do Ministério Público e o tenentismo, realizada por intelectuais como Luiz Werneck Vianna e Christian Lynch. Entre os fins aptos a justificar os meios autoritários dos tenentes não estava o mercado, mas a demofobia, a corrupção e uma forte concepção de bem público. Há semelhanças, mas também diferenças essenciais. Se há certa resistência na grande mídia às ideias neoconservadoras e reacionárias que ganham crescente força no mundo, o mesmo não se po- de dizer em relação a discursos pró- -mercado, merecedores de versões cada vez mais extremadas. Décadas de narrativas neoliberais e a recente onda de ideários ultraliberais cons- truíram um amplo consenso em tor- no do caráter neutro, técnico e ho- nesto do mundo do mercado, retratado como exato oposto da tor- peza do Estado e da política. Tal crença não se restringe aos editorais ou à escolha dos colunistas, mas também se alastra para as re- portagens, recheadas de “especialis- tas” escolhidos a dedo. Recente ma- téria da Folha de S.Paulo sobre a decisão do STF que considerou in- constitucional a redução de salário de servidores, por exemplo, reuniu uma heterogênea plêiade de “espe- cialistas” – entre os quais está o pre- sidente da célebre Instituição Fiscal Independente, criada com o intuito de combater o excesso de gastos do Estado – para “lamentar” a decisão do tribunal.7 A adesão a uma lógica do mercado segue o mesmo procedimento da crí- tica às lideranças ilegítimas, operan- do por meio de uma radical moraliza- ção do mundo político, dividido em dualismos de qualidades distintas, como bem e mal absolutos. O instru- mento para resolver os problemas se- culares do país, representados em uma das partes do dualismo, é o di- reito penal, em versão profundamen- te moralizada. As pretensões de neu- tralidade, sempre formais e distantes da realidade, mas relevantes para evi- tar que o processo jurídico democrá- tico descambasse em evidente lógica inquisitória, são tratadas como ex- cessos de direitos, favoráveis à manu- tenção de uma sociedade degradada. O diagnóstico de uma infiltração da corrupção em todas as práticas e instituições dispensa maior preocu- pação com a comprovação da culpa. Há um perfil de culpado a priori, para o qual não se exigem tantas formali- dades. O maior rigor não demanda cuidado na seleção dos culpados e aumenta a arbitrariedade dos acusa- dores na definição dos inimigos do país. Caso as evidências apontem pa- ra lados indesejados, vale a menção aos criminosos de sempre, de modo a preservar a “neutralidade” das “equivalências”.8 A análise dos editoriais dos três mais influentes jornais do país – Fo- lha, Estado de S. Paulo e O Globo – às vésperas da derrubada da presidenta Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016, aponta para uma narrativa bem semelhante. Ao lado da preocupação em defender a legalidade e legitimida- de do processo, há o diagnóstico de que, para além das “pedaladas”, o afastamento tem duas grandes justifi- cativas: a má condução da política econômica e, nos exatos termos do Es- tadão, “a corrupção endêmica”. Am- bos os eixos estão, como espero ter demonstrado, mais próximos do que parecem. Também não é por simples coincidência que eles coincidem com duas narrativas centrais do discurso vitorioso de Jair Bolsonaro, represen- tadas pelo “Posto Ipiranga” Paulo Guedes e pelo “justiceiro” Moro. *Jorge Chaloub é professor do Departa- mento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em Ciência Política pelo Iesp-Uerj. 1 Escrevi sobre o lacerdismo em “A banalidade do mal na política”, Insight Inteligência, n.84, jan.-mar. 2019, p.32-41; e “O liberalismo de Carlos Lacerda”, Dados, v.61 n.4, Rio de Janei- ro, out.-dez. 2018. 2 Pedro Henrique Pedreira Campos, Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a dita- dura civil-militar, 1964-1988, Eduf, Niterói, 2014. 3 Marcos Octávio Bezerra, Corrupção: um estu- do sobre poder público e relações pessoais no Brasil, Papéis Selvagens, Rio de Janeiro, 2018. 4 Jorge Chaloub e Pedro Lima, “Os juristas polí- ticos e suas convicções: para uma anatomia do componente jurídico do golpe de 2016 no Bra- sil”, Revista de Ciências Sociais, v.49, n.1, mar.-jun. 2018. 5 Fernando Filgueiras, Corrupção, democracia e legitimidade, UFMG, Belo Horizonte, 2006. 6 Jorge Chaloub e Pedro Lima, op. cit. 7 Eduardo Cucolo, “Especialistas lamentam maioria no STF contra redução de salário de servidores”, Folha de S.Paulo, 23 ago. 2019. 8 Tratei do tema em “O abismo das falsas equiva- lências: divagações sobre a comparação entre as esquerdas e Bolsonaro”, Escuta. Revista de Cultura e Política, set. 2018. © P au lo It o 12Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2019 Nos bastidores da investigação Eles encarnam o contrapoder: jornalistas que pesquisam a corrupção dos poderosos. Esses investigadores provocaram a demissão de ministros, chacoalharam conselhos e, mais raramente, derrubaram empresários. Mas guardam um lado sombrio. O público não sabe nada sobre sua maneira de trabalhar, ao que se opõem e o que os motiva POR PIERRE PÉAN* CAPA – O PAPEL DA MÍDIA D esde meados dos anos 1980, a vida pública francesa parece marcada por um paradoxo. De um lado, o aumento do desem- prego, das desigualdades sociais e geográficas, a globalização econômi- ca e o recuo do Estado de bem-estar tal qual foi concebido após a Segunda Guerra Mundial e seu redireciona- mento em benefício das empresas privadas deram o tom ao nosso tempo. De outro, o mundo midiático alçou ao ponto mais alto de sua hie- rarquia, não a pesquisa social ou a re- portagem econômica, aptas a escla- recer essas transformações, mas um gênero e uma figura que geralmente prosperam quando tudo se esboroa: o escândalo de corrupção político-fi- nanceira e o chamado jornalismo investigativo. Na França, repisamos o nome dos casos como cantarolamos as musi- quinhas-chiclete que imprimem sua melodia nos sulcos da memória cole- tiva: Botton, Schuller-Maréchal, Ur- ba, MNEF, HLM de Paris, HLM dos Hauts-de-Seine, Elf, Pelat, a fita-cas- sette Méry, Crédit Lyonnais, Dumas, Balkany, Takieddine, Woerth-Betten- court, Cahuzac... Cada qual por sua vez, eles são manchete, acabam com carreiras políticas e instalam a ideia de uma sociedade estruturada não mais pelo enfrentamento de forças sociais e políticas, mas pelo combate do bem – um número reduzido de pessoas decididas a purgar nossa be- la democracia das ovelhas negras que a desfiguram – contra o mal – um grupelho de eleitos e altos funcioná- rios corruptos. Esses anjos devotados de corpo e alma à virtude suprema – o direito à informação – formam uma elite no seio de seu ofício. Durante os anos 1970, a relação de forças entre a imprensa e o poder, de- sequilibrada em favor do segundo, atuava marginalmente, pelo menos até uma dupla de investigadores do Washington Post provocar a queda de um presidente dos Estados Unidos. Mito fundador1 transformado em mo- delo, o caso Watergate fixou de uma vez por todas as regras do exercício: o investigador escolhe como adversário o Estado, fonte presumível de todo poder e todo dano, no momento exato em que este empreende a retirada em favor das empresas privadas. Passando das colunas irreveren- tes do Canard Enchaîné, em fins dos anos 1970, às do Le Monde em mea- dos da década de 1990, o jornalismo investigativo especializado em as- suntos político-financeiros modifi- cou profundamente a cena demo- crática. Agora, o observador é ator e às vezes diretor da peça representa- da pelos partidos, os eleitos e os elei- tores. Suas revelações alteraram o panorama das eleições presidenciais francesas de 2017 ao contribuírem para a eliminação de François Fil- lon, tal como provocaram a demis- são do vice-chanceler austríaco Heinz-Christian Strache em 2019. O contrapoder foi içado às fileiras do poder. Mas quem conhece seu fun- cionamento? De que maneira vêm a público essas “revelações”? Quem escolhe sua agenda, seus alvos? Uma característica curiosa dessa atividade, empreendida em nome da moral e do imperativo da transparên- cia, é sua opacidade. Com efeito, um golfo separa a imagem do jornalista investigativo, veiculada pela própria imprensa por meio de retratos de seus agentes (indivíduos de olhar sombrio e talentos supostamente ex- cepcionais, fotografados de costas uns para os outros, como nos carta- zes de filmes de espionagem),2 e a prática cotidiana da profissão. É que existem, no fundo, duas ma- neiras de investigar. Uma, reivindica- da de preferência pelo autor destas linhas, poderia ser definida como um jornalismo lento e banal: o investiga- dor escolhe seu tema e dedica-lhe certo tempo, uma energia que a maior parte das redações não se dis- põe a investir. Ele avança às cegas, aos tropeços, e corre o risco de se en- ganar. Suas pesquisas desembocam quase sempre em casos judicializa- dos, diferentes dos escândalos políti- co-financeiros que inspiram as man- chetes. Com esse material, ele escreve um livro cujo adiantamento cobre, grosso modo, as despesas que fez e cujas vendas ajudarão a dar início à investigação seguinte. O modelo é frágil: alguns fracassos comerciais sucessivos, acompanhados de pro- cessos por difamação, bastam para privar o jornalista da possibilidade (e do desejo) de recomeçar. Para reaver o crédito abalado das mídias, algu- mas redações, inclusive do ramo au- diovisual, procuram casos que per- mitam investigar temas econômicos ou de sociedade, mas o fenômeno continua marginal. E com razão. Embora pretendam, de modo ge- ral, seguir o caminho escarpado, a maioria das atrações principais do jornalismo investigativo funciona de maneira radicalmente diferente. Não se trata de pesquisar, mas de esperar um vazamento – o de um auto pro- cessual ou de uma investigação cri- minal feitos por um juiz, um policial, um advogado. O documento chega, ontem por fax, hoje por mensagem criptografada. O intrépido detetive põe-se então a reescrevê-lo em estilo jornalístico: pormenores, datas pre- cisas, nomes conhecidos ou que logo o serão. Essa tarefa de transposição é entremeada por alguns telefonemas que permitem ouvir desmentidos ou gaguejos embaraçados das pessoas envolvidas, prova inequívoca de um trabalho de primeira ordem. “O caso HLM permitiu a descober- ta de uma categoria especial da cor- poração dos homens de imprensa: os jornalistas investigativos. Quando eu ainda era ingênuo, pensava que sua função era... investigar”, escreveu o juiz Éric Halphen. “Engano! [...] Com pouquíssimas exceções, e penso aqui principalmente no Canard Enchaîné [...], os jornalistas investigativos não investigam...”3 O magistrado confi- dencia então, em off, que recebeu uma proposta de dois grandes jornalistas investigativos da época para “uma mão lavar a outra”, que ele recusou. “NÃO TOMAMOS A INICIATIVA DA INVESTIGAÇÃO” A ascensão desse jornalismo que está no centro das atenções se deve, assim, a uma aliança de ocasião entre uma pequena parte do mundo judi- ciário e alguns elementos do mundo midiático.4 Essa coalizão marginal, de efeitos contundentes, apresenta diversas características. Em primeiro lugar, e de modo geral, não é o jorna- lista investigativo que toma a iniciati- va do caso: este lhe é enviado já pron- to por um juiz, um policial ou um advogado que têm suas prioridades, seus interesses – por exemplo, destra- var os freios políticos à investigação judicial de um figurão, tornando-a pública. “Nossa regra é seguir as ins- truções”, explicou Ariane Chemin, do Le Monde. “Não tomamos a iniciativa da investigação.”5 O caso do suposto financiamento líbio para a campanha de Nicolas Sarkozy em 2007, noticiado pelo site Mediapart, esclarece bem os bastido- res da investigação. Os principais ato- res da peça são os responsáveis pelo Departamento Central de Luta contra a Corrupção e as Infrações Financei- ras e Fiscais. Esse serviço da polícia judiciária, sediado em Nanterre, in- terrogou os protagonistas líbios e franceses citados na investigação. O chefe responsável pelo dossiê digita- lizou regularmente os novos relató- rios. Um advogado da associação Sherpa, parte civil nesse processo, re- cuperou os últimos CDs que conti- nham os documentos. Nos dias se- guintes, um jornalista do Mediapart publicou outro elemento da “investi- gação”, evidentemente bem docu- mentado. Tendo em mãos toda a do- cumentação judiciária e na qualidade de maior especialista no caso, Fabrice Arfi completou a tarefa do Departa- mento Central recorrendo aos relató- rios, que continham nomes, lugares e endereços dos envolvidos, bem como das pessoas próximas a eles. Portan-
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