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Universidade Federal do Rio de Janeiro A ESTETIZAÇÃO DA HISTÓRIA O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente Marcos Roma Santa 2010 A ESTETIZAÇÃO DA HISTÓRIA O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente Marcos Roma Santa Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura – Poética. Orientador: Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho Rio de Janeiro Março de 2010 A Estetização da História O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente Marcos Roma Santa Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura – Poética. Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – PPG - Ciência da Literatura –UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho – PPG- Ciência da Literatura – UFRJ _________________________________________________ Prof.ª Doutora Maria Isabella Bottino – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – IBMEC/RJ _________________________________________________ Prof. Doutor Latuf Isaias Mucci – PPG – Ciência da Arte – UFF _________________________________________________ Profª. Doutora Martha Alkimin – PPG - Ciência da Literatura-UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes – PPG - Ciência da Literatura – UFRJ – Suplente _________________________________________________ Prof.ª Doutora Geysa Silva – UNINCOR – Suplente Rio de Janeiro Março de 2010 Roma Santa, Marcos A Estetização da História. O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente/ Marcos Roma Santa. Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010. xi, 173 f.: 31 cm. Orientador: Luiz Edmundo Bouças Coutinho Tese (doutorado) – UFRJ/FL/ Programa de Pós-Graduação em Letras, 2010. Referências Bibliográficas: f. 161-173. 1. Arte. 2. Estética. 3. História. 4. Filosofia. I. Bouças Coutinho, Luiz Edmundo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título. Para Vitor e Harum. AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu Orientador, Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho, por, ao me haver aceitado como seu orientando, tratar-me sempre com a mais afetuosa generosidade, sem jamais me negar suas precisas e preciosas observações, durante a elaboração deste trabalho. Agradeço, também, à minha fraterna amiga, Maria Isabella Bottino, por estar sempre ao meu lado, nos momentos importantes de minha vida. Se não fosse por seu entusiasmado apoio, eu não teria cursado o Doutorado. À minha grande amiga, Eliane Bandeira de Mello Fiuza, agradeço pelo carinho ilimitado e a delicada atenção a todas as minhas necessidades, inclusive materiais. Se não fosse por Fiuzinha, eu teria escrito esta tese à mão. Agradeço, ainda, à Maria José de Souza, amiga recente, mas nem por isso menos querida e presente, por haver aceitado, com a graça que lhe é peculiar, a maçante tarefa de ajudar Fiuzinha na correção e formatação dos originais deste trabalho. Sou imensamente grato à Sra. Maria Inês Maia Oliveto e a todos os funcionários da excelente Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ, porque, sem eles, esta tese não seria possível. Não posso, outrossim, deixar de expressar minha sincera gratidão aos funcionários da Pós-Graduação da Faculdade de Letras, por me auxiliarem sempre, com prontidão e obsequiosamente, no cumprimento de minhas obrigações institucionais. Aos meus amigos, presentes ou ausentes, por partilharem comigo o pão da esperança, mesmo quando dele nos restam apenas algumas côdeas, registro, aqui, o meu mais profundo e sentido reconhecimento. E entre estes bravos e amorosos amigos, não posso deixar de citar o Darío de Jesus, a Brenda Jacy, a Marli Moreira, a Dilene Raimundo do Nascimento, a Jutta Ebeling, o Eduardo Biaia, o João Luiz. Finalmente, mas nunca por último, agradeço, no mais fundo de minha alma, aos meus Orixás e ao meu Pai e Senhor, Sangò, o grande Obá Kossô, o Absoluto em minha vida, por velarem minhas noites de trabalho e me fortalecerem para enfrentar os desafios dos dias. RESUMO ROMA SANTA, Marcos. A estetização da História. O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente. Rio de Janeiro, 2010. Tese de doutorado (Doutorado em Ciência da Literatura). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Esta tese tem por objetivo buscar as origens do conceito de arte, distinguindo os liames sociais, culturais e mentais que favoreceram a emergência de um novo modo de percepção das produções simbólicas, a partir do alvorecer do que se convencionou chamar de modernidade, com sua consolidação, e paradoxal crise, no século XIX. Claro está que a contextualização desse processo implica observar que o capitalismo em expansão na Europa, ao mesmo tempo em que aniquilou progressiva e lentamente as práticas artesanais, ensejou a valorização de determinadas linguagens artísticas que, embora nascidas da tradição popular, romperam com ela, em favor de uma sofisticada especialização, caracterizada, principalmente, pelo exercício de uma sensibilidade refinada, associada a um elevado padrão intelectual. Palavras-chave: Arte; Estética; História; Filosofia. Rio de Janeiro Março de 2010 ABSTRACT ROMA SANTA, Marcos. A aestheticization of the History. The birth of the Idea of Art in the West. Rio de Janeiro, 2010. Doctoral thesis (Doctorate in Literature Science). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. The objective of this thesis is to study the origins of the concept of art; distinguishing the social, cultural and mental bonds that favors the rise of a new way of perception of symbolic productions, starting from the dawn of the so called modernity, with its consolidation and paradoxical crisis, in the 19th century. Certainly, the contextualization of this process implies the observation that the expansion of capitalism in Europe, with the slow and progressive annihilation of crafty practices, increased the value of some artistic languages, which, although born from popular tradition, broke away from this tradition in favour of a sophisticated specialization mainly characterized by the exercise of refined sensibility, associated to a high intellectual pattern. Key-words: Art, Aesthetic, History, Philosophy. Rio de Janeiro Março de 2010 Sumário: Introdução .................................................................................................... 11 1. A τέχνη e o ποιητής no Livro X d’A República ........................................ 32 2. Artes liberales e Artes mechanicae ........................................................ 50 2.1. Antiguidade e Idade Média – entre o artista e o artesão ............. 51 2.2. Plotino esteta? ............................................................................. 57 2.3. As artes ........................................................................................ 60 3. O tempo intelectual – as origens da arte e do artista ............................. 72 3.1. Os studia humanitatis ..................................................................73 3.2. O humanista, a arte e o artista no Renascimento ....................... 77 3.3. O século da decantação ............................................................. 88 4. No limiar da Idéia de Arte ...................................................................... 100 4.1. Giambattista Vico ........................................................................ 103 4.2. O nascimento da Idéia de Arte .................................................... 111 Conclusão .................................................................................................... 145 Bibliografia ................................................................................................... 161 “E desde a véspera, Francisca, feliz por se entregar àquela arte da cozinha para a qual possuía certamente um dom, estimulada, aliás, pela notícia de um conviva novo, e sabendo que teria de preparar, segundo métodos só por ela sabidos, carne com gelatina, vivia na efervescência da criação; como ligava extrema importância à qualidade intrínseca dos materiais que deviam entrar na fabricação da sua obra, ia em pessoa ao mercado conseguir os mais belos pedaços de rumsteck, jarrete de vaca e mocotós de vitela, como Miguel Ângelo quando passava oito meses nas montanhas de Carrara a escolher os blocos de mármore mais perfeitos para o monumento de Júlio II. (...) Naquele dia, se Francisca tinha a ardente certeza dos grandes criadores, a mim me cabia a cruel inquietação do pesquisador.”* *PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. 5ª Edição. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Editora Globo, 1981, p. 12. Introdução Houve uma época em que acreditei que, dentre todas as atividades humanas, somente a arte distinguiria metafisicamente os homens dos outros animais ou, mais exatamente, o elevaria acima da natureza. O homem se me aparecia como um animal cujo processo de humanização implicaria necessariamente o ato de recriação do mundo pela linguagem da arte, isto é: para integrar-se à paisagem circundante e dominá-la, o homem precisaria refazê-la, reconstruí-la, reinventá-la, enfim, conferir-lhe sentido. Mas recordo-me que fui surpreendido, nos fins dos anos 70, por um acontecimento que deu origem a um rio subterrâneo de dúvidas, quanto àquela assertiva sobre o valor moral da arte. Esse rio veio fluindo, silencioso, por todo esse tempo, em minha alma. Agora ele vem à tona. Sob a forma de algumas questões, que não mais posso deixar de enfrentar, ele me atrai com a força de suas águas para testar minha capacidade de atravessá-lo... ou me afogar. Não foram as guerras, o encantamento pelas grandes civilizações ou mesmo o fascínio pelos personagens ditos ilustres da História, que motivaram meu interesse por essa ciência. Minha paixão pela História devia-se ao fato de concebê-la como uma imensa narrativa, na qual ocupava lugar de destaque a luta dos homens contra a irracionalidade e pelo domínio de suas paixões. Esta visão sublime dos processos históricos originava-se, principalmente, das leituras de obras que, para mim, tinham um verdadeiro valor de documentos comprobatórios daquilo que Hegel, ao tratar da natureza da arte, nas suas lições de estética,1 1HEGEL, G. W. F. Lecciones de Estética. Edición de 1832-1838, Berlín, preparada por H. G. Hotho. Traducción de Alfredo Llanos. Buenos Aires, Editorial La Pléyade, 1977. chamou de objetivo “moderador da barbárie”. Impressionava-me muito que as ações humanas pudessem dar 12 origem a vários modos de atribuição de sentido às coisas; e, dentre todos esses modos, a arte fosse aquele que levasse mais longe a busca do que seria primordial na existência do homem; e justamente pela transformação de suas ações humanas em formas belas, por que objetivadas, isto é, representadas, como o esforço humano em vencer seu primitivismo e conquistar a plenitude da liberdade espiritual. Em uma outra passagem de suas Lições de Estética, sobre a “Função moralizadora da Arte”, Hegel trata de uma oposição ontológica, que definiria a condição humana e que, embora conciliada unicamente pela filosofia, seria um objeto privilegiado para a criação artística, a ponto de garantir-lhe um lugar importante em seu sistema: Sólo en el hombre y en el espíritu humano esta oposición toma la forma de un mundo desdoblado, de dos mundos separados: por uma parte, el mundo verdadero y eterno de las determinaciones autónomas; por la outra, la naturaleza, las inclinaciones naturales, el mundo de los sentimientos, de los instintos, de los interesses subjetivos personales.2 Naquela época, o marxismo ensinado, na academia, como uma espécie de idealismo invertido, reduzia os fenômenos humanos à ossatura O que me atraía para a História, enfim, era justamente a vontade de saber como, em cada época, podia ler, pela arte, a manifestação desse conflito que, do ponto de vista hegeliano, estaria na base do próprio processo humanizador. Mas as ilusões juvenis, carentes de maior vivência intelectual, logo, logo começariam a se dissolver no ar quando fui estudar história na universidade. 2“Somente no homem e no espírito humano esta oposição toma a forma de um mundo desdobrado, de dois mundos separados: de um lado, o mundo verdadeiro e eterno das determinações autônomas; de outro, a natureza, as inclinações naturais, o mundo dos sentimentos, dos instintos, dos interesses subjetivos, pessoais.” (Tradução minha.) HEGEL. Lecciones de Estética, p. 54. 13 de modelos teóricos, nos quais não havia lugar para qualquer reflexão voltada para a arte e seu possível significado na vida dos homens. Ou melhor, havia. Mas a estética marxista dominante concebia a arte como um elemento ancilar, no jogo das relações de produção. Como fenômeno de superestrutura, a criação artística refletia, ou deveria refletir, as transformações sociais induzidas pela evolução das relações de produção. Nessa medida, seu estatuto definia- se em função de sua relação com as classes sociais em confronto, no processo histórico. Dito de outro modo, a arte seria considerada relevante, desde que refletisse, ideologicamente, os traços revolucionários de determinada classe em ascensão, em certo período da história. Escusado lembrar, neste caso, que as manifestações artísticas identificadas como expressão espiritual de uma classe considerada reacionária, num determinado contexto histórico, eram tidas como manifestações ideológicas de classe e, portanto, avaliadas unicamente sob esse ponto de vista. Ao artista caberia expressar os ideais e interesses das classes sociais. No caso daqueles exemplos de arte associada aos ideais revolucionários de determinada classe, teríamos a realização de uma estética revolucionária. No caso desse tipo de leitura marxista da arte, dominante até meados dos anos 70, é particularmente significativo destacar sua predileção pelo realismo como o ideal estético, em função de sua aparente correspondência à perfeita representação das relações de produção. Superestrutura ou ideologia, a arte e, conseqüentemente, o artista estavam reduzidos a um papel secundário, e nem sempre honroso, na gênese e funcionamento dos diferentes modos de produção da vida material. Como observou muito bem Marcuse3 3MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1981, p. 11. , a interpretação da qualidade e verdade de uma obra de arte estava condicionada pela totalidade das relações de produção14 existentes. A reflexão estética de base marxista, ao ver a arte no contexto das relações sociais dominantes, avaliava-a tão-somente como instrumento político, em sentido restrito, de superação de um determinado modo de produção por um outro, que representasse um efetivo avanço das forças produtivas. Ainda não se imaginava, pelo menos entre os cientistas sociais que eventualmente discutissem arte, que seu potencial político estivesse em si mesma, na própria forma estética4. A vantagem desse tipo de concepção marxista da arte residia, precisamente, na facilidade com que se observava a precariedade de sua explicação do processo de criação artística.5 Por outro lado, a crítica de Marcuse, ao que ele próprio chamou de “reificação da estética marxista” 6, isto é, seu desprezo pela “função cognitiva da arte como ideologia”7 4Idem. 5A severidade quase caricatural com que trato o pensamento marxista, nesta passagem, não deve ser entendida como uma crítica à atualíssima filosofia de Marx, mas, sim, àqueles teóricos marxistas que, por diversos motivos, não puderam ou não souberam pensar plasticamente a produção simbólica, na perspectiva do materialismo histórico. 6Ibidem, p. 25. 7Ibidem, p. 25. , parece impor a necessidade de se matizar a idéia de uma possível unidade quanto à estratégia teórica adotada pelos intelectuais da chamada Escola de Frankfurt, pelo menos no que diz respeito à visão do que seja a arte. Se é bem verdade que todos, inclusive Marcuse, tenham pretendido depurar o marxismo de simplificações ortodoxas, que retirariam do materialismo histórico seu poder de refletir dialeticamente a dinâmica dos processos sociais, como processos antes de tudo humanos; se tentaram devolver ao marxismo seu caráter humanista, pela leitura das manifestações espirituais – e entre elas a arte –, como algo mais do que meros reflexos mecânicos das estruturas econômicas; e se esta relativa autonomia do espírito resultaria na contrapartida de seu poder de ação sobre os fundamentos 15 materiais da sociedade, isto é, sobre as relações de produção de um determinado modo de produção; se todo o esforço teórico desses pensadores teve como objetivo salvar o marxismo de se tornar um simples método sociológico, para uma análise empobrecida das sociedades – tudo isso se deu pelo retorno à filosofia. E não a qualquer filosofia. O retorno à filosofia não poderia dar-se em outra direção que não no sentido do idealismo e, mais exatamente, do idealismo hegeliano. O imperativo de se identificar uma unidade espiritual, ainda que de valor negativo, na crítica às formas assumidas pelas diferentes manifestações artísticas típicas do capitalismo denuncia, em pensadores como Adorno, por exemplo, a concepção idealista, de base hegeliana, de identidade entre o espírito e as condições históricas para sua realização. Daí o sufocante pessimismo do autor de Minima Moralia, que não enxerga, nas condições históricas de sua época, outra possibilidade de manifestação espiritual que não a ditada pelas formas da massificação. Está claro que a massificação não corresponde mecanicamente às relações de produção, mas é, antes, a modalidade negativa de manifestação espiritual, num mundo caracterizado pela falência de qualquer valor que não seja o de troca. E reside, muito provavelmente, nos fundamentos teóricos da crítica da cultura, e especificamente da literatura, como expressão artística, a diferença entre Marcuse e Adorno. Sem negar a existência de um projeto comum – o de revitalização da dialética marxista, pelo foco no seu dinamismo e plasticidade, livre das determinações mecanicistas da infra-estrutura sobre a superestrutura, que implicaria examinar as formas de expressão espiritual, mais do que em sua 16 relativa autonomia, do ponto de vista de seu poder de atuação concreta sobre os processos sociais – dos três mais importantes representantes da Escola de Frankfurt, Adorno, Marcuse e Benjamin, o fato é que cada um deles privilegiou, para a realização desse projeto, um caminho diferente, embora não necessariamente conflitantes. Adorno investe na retomada da filosofia crítica alemã, mais especificamente, do sistema hegeliano, como eixo a partir do qual elabora suas reflexões em torno dos fenômenos espirituais contemporâneos, dentre os quais a arte em geral e, especialmente, a literatura.8 Já Benjamin opta pela História, como solo no qual semeia sua abordagem dos diferentes momentos e das diferentes formas assumidas pela práxis. Seus dezoito aforismos em “Sobre o conceito da História”9 Por muito correctamente que se tenha analisado um poema, uma peça ou um romance em termos de seu mostram claramente sua preocupação em escapar de uma metafísica do espírito, pela construção de uma concepção de História na qual passado e presente resultem de uma tensão dialética entre essas mesmas dimensões temporais, sob o impulso das tarefas do agora. História sem continuidade, sem sucessão temporal, seu primeiro motor continua sendo a luta de classes, só que, agora, não mais vista como processo que se constrói ao longo do tempo, mas como síntese provisória do jogo antitético entre o presente e o passado. Finalmente, Marcuse recorre a elementos da teoria psicanalítica para tentar, assim, resolver as dificuldades impostas pela concepção marxista de arte como mero apêndice ideológico das relações de produção: 8“Na sua discussão com Adorno, Lucian Goldmann rejeita a afirmação daquele de que, para compreender uma obra literária, ‘há que a transcender em direção à filosofia, à cultura filosófica e ao conhecimento crítico’.” Apud MARCUSE. Op. cit., p.25. 9Walter Benjamin. “Sobre o conceito da História”. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume 1. Tradução: Sergio Paulo Rouanet; Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1985. Além dos 18 aforismos, “Sobre o conceito da História” apresenta mais dois como apêndices. 17 conteúdo social, as questões sobre se determinada obra é boa, bela e verdadeira, ficam ainda por responder. (...) A universalidade da arte não pode radicar no mundo e na imagem do mundo de determinada classe. (...) O tecido inexorável de alegria e de tristeza, celebração e desespero, Eros e Thanatos, não podem dissolver-se em problemas de luta de classe. A história também radica na natureza.10 Não se trata, aqui, de uma exegese primária e superficial das premissas teóricas desses três pensadores críticos de filiação marxista. Trata-se, antes, tão-somente de, demarcadas ainda que provisoriamente suas diferenças, chamar a atenção para o que há de comum entre eles. E o que há de comum entre eles é a preocupação de atualizar o pensamento marxista, num campo em que tanto Marx quanto Engels se ausentaram: o da criação estética. Ora, a questão que aqui se coloca é a de que, para além de suas distintas estratégias de abordagem, os três pensadores tiveram, forçosamente, de voltar à filosofia crítica alemã para se municionar teoricamente, para tratar do difícil problema de qualificação do estatuto da arte entre os fenômenos da práxis. No que, aliás, os três tinham razão. Afinal, a idéia de arte nasceu ali. Foi exatamente com a filosofia crítica, inaugurada por Kant, que pela primeira vez, no Ocidente, construiu-se plenamente uma estética, como ramo da filosofia, cujo objetivo era pensar o que hoje chamamos de arte, quer como forma de expressão de um conhecimento mais profundo das coisas, quer como meio pelo qual se realiza o processo de humanização. É claro que encontramos, ao longo da história da cultura ocidental,inúmeros momentos em que as diferentes formas de arte foram objeto de variadas opiniões, reflexões, comparações, enfim, visões quanto à sua importância e o seu sentido para o 10MARCUSE. Op. cit., pp. 27-28. 18 mundo do saber. E o objetivo desta tese é, efetivamente, encenar, ainda que de modo fractal, alguns desses momentos. Mas esta tese também tem como seu objetivo mostrar que, mesmo naqueles momentos, não era sobre arte que se discutia, e pelo simples motivo de tal idéia só haver adquirido forma e conteúdo a partir das especulações metafísicas de quatro grandes pensadores alemães: Kant, Fichte, Schelling e Hegel.11 Entre os historiadores da arte, muitas vezes fortemente influenciados pelas concepções estéticas do idealismo alemão, é extremamente comum encontrarmos, a par de uma cronologização da criação artística, a idéia de que uma nova forma de produzir arte implica a superação São a esses quatro titãs do pensamento que a Idéia de Arte deve seu nascimento. Por outro lado, não é a proposta deste ensaio produzir uma profunda exegese crítica sobre os quatro maiores pensadores da filosofia alemã, no final do século XVIII e início do XIX. Não há aqui a pretensão, natural e apropriada aos estudos de filosofia, de exibir o pensamento daqueles mestres em suas nuanças, sutilezas e abissais profundidades. Não. Esta tese se ocupa exclusivamente com a narração ensaística de um percurso, qual seja: o percurso de determinadas formas simbólicas de expressão que, vivenciadas e concebidas sob os mais variados ângulos possíveis, em diferentes períodos da história européia, unificam-se pouco a pouco num sistema singular de formas de conhecimento, formas que passarão a ser vistas como modos privilegiados de manifestação do espírito humano. E aqueles pensadores serão tratados tão-somente como personagens protagonistas desta longa narrativa. 11Perfilar esses quatro pensadores não implica pressupor uma seriação, que teria início em Kant e culminaria em Hegel; muito menos significa defender, equivocadamente, a existência de uma estrita identidade entre os quatro. Longe desses erros elementares, o alinhamento desses quatro grandes nomes aponta para a inegável constatação de haverem, cada um a seu modo, contribuído para a construção de uma metafísica da arte, denominada nesta tese de Idéia de Arte. 19 das precedentes. Talvez a única exceção seja Ernst Gombrich12, que, em seu longo ensaio, Para uma história cultural13, além de fazer uma leitura das origens da história cultural, identificando seu primeiro momento de emergência no século XVIII, com as discussões iluministas em torno de termos como cultura e civilização, “por contraposição a barbarismo, selvageria ou primitivismo”,14 que já se construíam baseadas na idéia de progresso15, mostra como o sistema hegeliano de pensamento, especialmente formalizado na sua estética, não só condicionou as abordagens históricas e teoréticas da arte, como fenômeno cultural, mas também a visão que muitos temos, até hoje, da arte como expressão de uma identidade espiritual de povos ou de coletividades.16 Por outro lado, tanto a crítica de Gombrich a uma história cultural alimentada pela filosofia da história hegeliana, quanto a sua crença na possibilidade de uma história cultural, cuja atenção se fixe também no ser humano individual, pois que, à diferença “do que sucede com os períodos, os movimentos são iniciados por pessoas”,17 12Para Gombrich “a história da arte, em seu todo, não é uma história de progresso na proficiência técnica, mas uma história das idéias, concepções e necessidades em permanente evolução.” GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16ª edição. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos S. A., p. 44. 13Esse ensaio tem sua origem na palestra proferida no Lady Margareth Hall, em 19 de novembro de 1967, e constitui-se, também, de aditamentos feitos pelo autor ao texto apresentado na ocasião. GOMBRICH, E.H. Para uma história cultural. 1ª edição. Lisboa: Gradiva, 1994. 14GOMBRICH. Op. cit., p. 14. 15“A história da civilização, ou da cultura, era a história da ascensão do homem, de um estádio quase animal à sociedade educada, ao cultivo das artes, à adoção de valores civilizados e ao livre exercício da razão. Por isso a cultura podia progredir, mas podia também declinar e perder-se, e a história estava legitimamente envolvida em qualquer desses processos.” Idem, p. 14. 16“É esta crença num espírito coletivo independente e supra-individual que me parece ter bloqueado o aparecimento de uma verdadeira história cultural.” Idem, p. 78. 17Idem, p. 79. não esgotam a discussão sobre a História, quer como um campo do saber, enformado por um sistema filosófico, quer como narrativa dos fazeres humanos no tempo. E talvez sua tentativa de uma história da cultura, ou mais exatamente, pois no fundo é para isso que sua vindicação aponta, uma história da arte, sem pressupostos metafísicos, algumas vezes corra o risco de contradizer-se metodologicamente, ao abordar 20 diferentes momentos da história da arte ora pelo viés técnico, ora pelo significado simbólico de seus artefatos, ora pela mistura dos dois critérios, e mesmo pelo uso da metáfora dos dois grandes músicos que podem “interpretar a mesma peça de modos muito diferentes”,18 como que para provar sua ilógica máxima da existência do agente de uma prática inexistente19 O tema que aqui buscamos desenvolver – o nascimento da Idéia de Arte no Ocidente – coloca-nos frente à frente com a questão do surgimento, no século XVIII europeu . 20, do princípio do “mútuo esclarecimento das artes”21, que tantos – talvez equívocos – problemas trouxeram sobre o que seja o fazer artístico e seu significado para o conhecimento das sociedades ocidentais. Segundo Curtius, a prevalência da Filosofia, da Sociologia, da Psicanálise e, obviamente, da História da Arte nos estudos literários, com a ambição de torná-los uma espécie de “história do espírito” acabou por produzir “uma confusão de circunstâncias em que prevalece o diletantismo”:22 Temos assim os estilos literários romântico, gótico, renascentista, barroco, etc., até ao impressionismo e expressionismo. Cada período de estilo, pela “Visão da essência” (Wesenschau), é dotado de uma “essência” e comporta um tipo especial de “homem”. O “homem 18GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16ª edição. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos S. A., p. 163. 19“Nada existe realmente a que se possa dar o nome de arte.” Sobre arte e artistas. In: GOMBRICH. Op. cit., p. 15. 20Some scholars have rightly noticed that only the eighteenth century produced a type of literature in which the various arts were compared with each other and discussed on the basis of common principles, whereas up to that period treatises on poetics and rhetoric, on painting and architecture, and on music had represented quite distinct branches of writing and were primarily concerned with technical precepts rather than with general ideas. (“Alguns estudiosos observaram corretamente que somente o século XVIII produziu um tipo de literatura na qual as diferentes artes eram comparadas e tratadas sobre a base de princípios comuns, considerando que, daquele período em diante, os tratados sobre poética e retórica, sobre pintura e arquitetura, bem como sobre música passaram a representar ramos bem distintos da produção escrita e a tratar principalmente de questões técnicas, do que de idéias gerais.” KRISTELLER, Paul Oskar. The Modern System of the Arts: A Study in the History of Aesthetics. In: Journal ofHistory of Ideas. Columbia University Press, Volume XII, Number 4, October, 1951/Volume XIII, Number 5, January, 1952, 497. (Tradução minha.) 21Apud CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Tradução do original alemão por Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, 12. 22CURTIUS. Op. cit., p.12 21 gótico” (ao qual Huizinga acrescentou um comparsa “pré- gótico”) tornou-se muito popular, mas não lhe ficou nada a dever o “homem barroco”. Sobre a “essência” do gótico, do barroco, etc., há opiniões profundas que, naturalmente, são em parte contraditórias. Shakespeare é renascentista ou barroco? Baudelaire é impressionista? George é expressionista? Emprega-se, nesse problema, muita energia mental. Aos períodos de estilo ajuntam-se os “conceitos fundamentais” de Wölfflin. Há forma “aberta” e forma “fechada”. Afinal, o Fausto de Goethe é aberto, o de Valéry é fechado?23 Hoje, quando vivemos nas ruínas de nossa civilização, aspiramos o ar cada vez mais rarefeito de uma cultura que hesitamos em reconhecer como nossa criação. 24 23Idem, p. 12. 24“Receio que esta indústria [acadêmica] ameace tornar-se inimiga da cultura e da história cultural.” GOMBRICH, E. H. Para uma história cultural, p. 99. Cultuamos, ainda, mas sem muita fé, uma divindade, a arte, de cuja teogonia não nos lembramos mais. Quando dela tratamos, usamos conceitos cristalizados, cujas origens, ao que ao parece, o tempo baralhou. Tornamo-nos, ao longo do século XX, iconoclastas e revolucionários, brandindo contra o passado o mais sofisticado arsenal de conhecimentos que a inteligência e a sensibilidade humanas poderiam conceber. Nossos artistas e intelectuais sempre se orgulharam de seu poder transformador, tanto no âmbito da criação estética, quanto no da pesquisa e crítica de arte. Sempre acreditamos no progresso que representaram nossas experimentações e reflexões, ao mesmo tempo em que olhávamos o passado como um inventário de tentativas e erros, necessário sim, mas carente de qualquer outro sentido que não fosse o de servir de matéria-prima para nossas novas e brilhantes descobertas ou invenções. Nós, os orgulhosos homens do século XX, também fomos capazes de ouvir, mesmo que com indisfarçável 22 impaciência, as lições do passado. Mas as ouvimos tão-somente para concluirmos que éramos superiores a nossos mestres – afinal, éramos os melhores discípulos que qualquer mestre poderia ter. Na verdade, eles é que foram melhores do que nós. De qualquer modo, teremos sido, mesmo, os melhores discípulos? Tivemos, realmente, a capacidade de entendê-los. Terá sido nossa propensão superior à nossa pretensão? Construímos e desconstruímos saberes – mas sobre que bases fundamos nossos conhecimentos? A que nível de entendimento dos princípios e idéias recebidos do passado fomos capazes de chegar, para podermos, tão sistemática e meticulosamente, contradizê-los? Sabemos realmente quem são os deuses contra os quais nos voltamos? Intuímos verdadeiramente o profundo significado das lições recebidas, a ponto de nos sentirmos tão à vontade para formular exegeses heréticas e críticas audaciosas a elas, sem que, ao fim e ao cabo, não nos tornássemos as principais vítimas dos abismos teóricos e vazios criativos, por nós mesmos engendrados?25 Seja como for, penso ser o momento de recuperarmos a consciência de que a noção de criação artística e tudo o que ela implica, constituem uma invenção do século XVIII, e, como invenção, somente a partir daí o que compreendemos por arte tornou-se objeto a ser discutido dentro de um contexto gnosiológico 26 25Quero deixar claro nesta passagem, embora não vá desenvolver este tema neste ensaio, que boa parte das “errâncias” teóricas, que suscitaram as grandes crises estéticas do século XX, está relacionada a uma curiosa mistura da plena aceitação, da parte dos artistas, da idéia de gênio criador, inventada pelos idealistas alemães, como traço de identidade da categoria artista, com a simultânea recusa de seu correspondente ideal de belo artístico. E isto por dois motivos básicos: primeiramente, os “artista- criadores” não dominavam os princípios filosóficos que freqüentemente afetaram conhecer; e o mais importante: o oportunismo da grande maioria dos artistas, especialmente os ditos vanguardistas, que questionavam tudo, menos sua condição especial de “gênio”, pois tal condição poderia ser a garantia do reconhecimento público e, o mais importante, da ascensão econômica e social. Talvez o grande modelo desse tipo de artista, no século XX, tenha sido Salvador Dalí. e, portanto, filosófico: 26Para Benedetto Croce, o tema das origens da estética levanta muitas controvérsias, pois trata-se de uma questão que no es sólo de hechos, sino de critérios, e que se resolve quando se toma uma decisão sobre que conceito adotar quanto ao que seja esta ciência. CROCE, B. Estética como ciencia de la 23 It is known that the very term “Aesthetics” was coined at that time, and, at least, in the opinion of some historians, the subject matter itself, the “philosophy of art,” was invented in that comparatively recent period and can be applied to earlier phases of Western thought only with reservation. It is also generally agreed that such dominating concepts of modern aesthetics as taste and sentiment, genius, originality and creative imagination did not assume their definitve moderrn meaning before the eighteenth century.27 Ora, se a arte, ao representar o homem, seja em sociedade, seja individualmente, o representa como objeto de conhecimento, assim o faz, por ser de sua natureza representar seu objeto como objeto de conhecimento? Eis uma tese a ser discutida; embora pareça não haver dúvida quanto ao fato de a arte haver sido construída como um objeto de conhecimento, em dois graus: como conteúdo, ou discurso, isto é, quanto àquilo que podemos ler por seu intermédio, e como forma, ou seja, como linguagem para aquele mesmo conteúdo. O problema é que hoje vivemos na crença de que a da arte é uma forma de conhecimento, com objeto, método e uma finalidade transcendental próprios, nascida com o próprio homem. 28 E no interior dessa discussão, sou levado a admitir que Curtius tem razão, quando afirma que a literatura “é portadora de pensamentos, e a arte não.”29 A literatura30 expresión y lingüística general. Teoría e historia de la estética. Segunda edición española corregida y aumentada, conforme a la quinta edición italiana, por Angel Vegue y Goldoni. Prólogo de Miguel de Unamuno. Madrid: Francisco Beltrán Librería Española y Extranjera, 1926, p. 190. 27“É sabido que próprio termo ‘Estética’ foi cunhado àquela época e que, pelo menos na opinião de alguns historiadores, seu objeto propriamente dito, a ‘filosofia da arte’, foi inventado naquele período relativamente recente, e tem sido aplicado, com alguma reserva, às fases mais antigas do pensamento ocidental. Admite-se também que os conceitos dominantes da estética moderna, tais como gosto e sentimento, gênio, originalidade e imaginação criativa, não assumiram seus modernos e definitivos significados antes do século XVIII.” KRISTELLER, Paul Oskar. Op. cit., pp. 496-497. (Tradução minha.) 28Croce defende magistralmente a tese, a meu ver problemática, de ser a arte uma forma de conhecimento intuitivo. CROCE. Op. cit. p. 58 e seguintes. é, efetivamente, uma 29CURTIUS. Op. cit., p.15. Vale a pena reproduzir aqui, em função dos objetivos desta tese, a últimanota do primeiro capítulo do livro de Curtius, a propósito de sua distinção entre literatura e arte: “O presente artigo apareceu, como impressão prévia, em 1947, na revista Merkur. Houve protesto de parte dos historiadores da Arte. Causou estranheza a tese de que a Literatura seja portadora de pensamento e a Arte não. Explico assim: se se perdessem os escritos de Platão, não seria possível reconstruí-los com o 24 forma de conhecimento que tem, em si mesma, seu próprio objeto: a linguagem. Mas o modo sob o qual se faz sua abordagem; a definição de seu estatuto – pensado em função do das diferentes linguagens ditas artísticas31 Portanto, trata-se aqui de buscar as origens do conceito de arte, distinguindo os liames sociais, culturais e mentais que favoreceram a emergência de um novo modo de percepção das produções simbólicas, a partir do alvorecer do que se convencionou chamar de modernidade, com sua consolidação, e paradoxal crise, no século XIX. –, sua condição e qualidade de manifestação espiritual distinta e altamente valorizada em relação a outras, enfim, seu próprio conceito – tudo isso foi sendo construído, desde meados do século XVIII e inícios do século do XIX, sob a tutela de pensadores que tinham de se defrontar com o fim de concepções de mundo baseadas na tradição, e a emergência de um novo mundo que, a par de não mais ser o lugar para a tradição, necessitava de novas metafísicas para sua sustentação. 32 auxílio da plástica dos gregos. O Logos só pode expressar-se em palavras. – A posição da História da Arte, dentro das ciências filosóficas, parece-me carecer de uma revisão. Já em 1893 falava Jacob Burckhardt de ‘centenas de empanturrados historiadores da arte... gente che non ha posto nè in cielo nè in terra’. (Carl Neumann. Jacob Burckhardt, 1927, 30) Dos estetas e arqueólogos não pensava ele melhor. “Derramou a sua ironia sobre a crítica dos arqueólogos, que não prestavam nem para assar, nem para cozinhar. As opiniões dessa gente, disse ele, sobem e descem como os títulos da Bolsa.”(Ib.) CURTIUS. Op. cit., nota 18, p. 17. 30Idem, pp. 14-15. 31Although the terms “Art”, “Fine Arts” or “Beaux Arts” are often identified with the visual arts alone, they are also quite commonly understood in a broader sense. In this broader meaning, the term “Art” comprises above all the five major arts of painting, sculpture, architecture, music and poetry. These five constitute the irreducible nucleus of the modern system of the arts, on which all writers and thinkers seem to agree. On the other hand, certain additional arts are sometimes added to the scheme, but with less regularity, depending on the different views and interests of the authors concerned: gardening, engraving and the decorative arts, the dance and the theatre, sometimes the opera, and finally eloquence and prose literature. (“Embora os termos ‘Artes’, ‘Belas-artes’ ou ‘Beaux Arts’ sejam freqüentemente identificados apenas com as artes visuais, são eles, também, muito comumente entendidos num sentido mais amplo. Com este significado mais amplo, o termo ‘Arte’ compreende primeiro que tudo as cinco artes maiores: a pintura, a escultura, a arquitetura, a música e a poesia. Estas cinco constituem o núcleo irredutível do moderno sistema das artes, em relação ao qual todos os escritores e pensadores parecem estar de acordo. Por outro lado, certas artes adicionais são às vezes incluídas no esquema, embora com menos regularidade e dependendo dos diferentes pontos de vista e dos interesses dos autores envolvidos: jardinagem, gravura e as artes decorativas, a dança e o teatro, às vezes a ópera e, finalmente, a eloqüência e a literatura em prosa.” KRISTELLER, Paul Oskar. Op. cit., p. 497. (Tradução minha.) 32O tema da crise, apenas esboçado na conclusão desta tese, enfocará tão-somente a figura do artista escritor, especialmente, na França do século XIX. Claro está que a 25 contextualização desse processo implica observar que o capitalismo em expansão na Europa, ao mesmo tempo em que aniquilou, progressiva e lentamente, as práticas artesanais, ensejou a valorização de determinadas artes33 Se este ensaio apóia-se na História, dou-me conta, ao mesmo tempo, que a mesma história, antes de alimentar-se de filosofias, tem, qual o mítico Cronos, como seu alimento os homens e seus feitos; e nesse caso, o que me cabe fazer é, num gesto de astúcia, tentar compor uma cena no interior da qual possa recuperar os modos de nascimento dessa entidade que chamamos arte. E este gesto astucioso implica um caminho, uma maneira que, embora nascidas da tradição popular, romperam com ela, em favor de uma sofisticada especialização, caracterizada principalmente pelo exercício de uma sensibilidade refinada associada a um elevado padrão intelectual. Tais atividades, rompidos seus laços com a tradição, resultaram nas diferentes formas de manifestação artística, que assumiram, assim, por sua sofisticação, dificuldade e excepcionalidade, a condição de apanágio distintivo das elites sociais – algo como um traço de enobrecimento e autovalorização das classes dominantes, frente à grande maioria da população pobre e “inculta”. Nascida das condições estabelecidas pela afirmação progressiva da cosmovisão burguesa, a idéia da arte, simultaneamente um saber metafísico e um processo dsitintivo de humanização, não se cristalizou de imediato; ao contrário, como todo processo de longa duração, conheceu marchas e contramarchas, aclimatações, adaptações, enfim, linhagens de formulação específicas, consoante lugares e momentos de sua expansão e crise. 33O que a tradição ocidental designava pela palavra “arte”, antes do nascimento da estética, no século XVIII, será apresentado no segundo capítulo desta tese. 26 de narrar essa história, mas numa perspectiva que se recuse a julgar o passado ou atribuir-lhe um sentido teleológico, porque: ... wie brauchen die Historie, aber wir brauchen sie anders, als sie der verwöhnte Müssiggänger im Garten des Wissens braucht, mag derselbe auch vornehm auf unsere derben und anmuthlosen Bedürfnisse und Nöthe herabsehen. Das heisst, wir brauchen sie zum Leben und zur That, nicht zur bequemen Abkehr vom Leben und von der That oder gar zur Beschönigung des selbstsüchtigen Lebens und der feigen und schlechten That. Nur soweit die Historie dem Leben dient, wollen wir ihr dienen (...).34 Servir-me-ei, portanto, deste caminho para tratar do surgimento dessa criação metafísica – a arte –, nascida ao crepúsculo das tradições artesanais, caracterizadas, em sua prática, por uma espécie de materialidade isenta de qualquer vontade de auto-justificativa idealizada. Nessas tradições, que precedem o aparecimento da arte, o ofício de criar o belo, seja lá como este belo se mostrasse, nada tinha de transcendente, embora muitas vezes obedecesse a ditames transcendentais, mas, antes, sua realização acontecia fundamentalmente pela transmissão corporativa de técnicas, a que podiam associar-se o talento e a habilidade individuais; e o resultado do trabalho artístico era freqüentemente colocado à disposição de uma elite orgulhosa de suas realizações e vaidosa em sua vontade de auto- representação. É deste processo de transformações, ocorrido nas sociedades 34“... precisamos da história, mas precisamos dela de um modo diferente ao do mimado ocioso no jardim do saber, que dela precisa para que ele mesmo possa aristocraticamente olhar do alto nossas duras e desgraciosas carências e necessidades. Isto é, precisamos dela para a vida e para a ação, nãopara o confortável abandono da vida e da ação ou mesmo para a coonestação da vida egoísta e da ação covarde e má. Apenas na medida em que a história serve à vida, queremos nós servir-lhe (...). NIETZSCHE, Friedrich. Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben.” In: Friedrich Nietzsche: Sämtliche Werke, Band 1 der “Kritischen Studienausgabe” (KSA) in 15 Einzelbänden, die erstmals 1980 als Taschenbuchausgabe erschien und für die vorliegende durchgesehen wurde. Sie enthält sämtliche Werke und unveröffentlichten Texte Friedrich Nietzsches nach dem Originaldrucken und –manuskripten auf der Grundlage der “Kritischen Gesamtausgabe”, herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. 2. durchgesehene Auflage. München, Deutscher Taschenbuch Verlag GmbH & Co. KG, Berlin/New York, Walter de Gruyter & Co., 1988, p. 245. (Tradução minha.) 27 ocidentais, do que foram e como eram percebidas determinadas práticas simbólicas, que hoje denominamos artísticas, que trata esta tese. Em seu belo livro, Platón y el Platonismo35, Walter Pater distingue três formas literárias diferentes para a exposição do pensamento filosófico. A essas três formas corresponderiam três métodos de pensamento, dominantes na tradição da reflexão filosófica ocidental. A primeira seria a forma poética, consentânea com o que se denominaria de método intuitivo, imaginativo, freqüentemente apaixonado e, por vezes, obscuro de pensamento. Exemplos clássicos dessa primeira forma seriam os grandes poemas de Parmênides, Empédocles e Lucrécio. A essa escrita poética do pensamento seguir-se-ia o tratado filosófico – forma oposta à primeira e caracterizada pela cristalização das intuições originárias em sistemas dogmáticos. Seus representantes modelares são Aristóteles, Tomás de Aquino e Spinoza. Finalmente, e pondo em evidência “la actitud filosofica perfecta”36, por seguir “una línea eqüidistante entre esos dos extremos”37 (...) tipo literário característico de nuestra época tan rica y varia en aprehensiones particulares de la verdad, tan incierta em cuanto al sentido de su ensemble y de sus resultados. Forma estrictamente adecuada de nuestra literatura filosófica moderna, el ensayo comenzó a usarse en lo que fue realmente la creación del espírito relativista “moderno”, en el Renacimiento del siglo XVI. , temos o ensaio: 38 35Plato and Platonism, de Walter Pater, é de 1893. Neste ensaio, utilizo-me da tradução castelhana de Vicente P. Quintero, intitulada Platón y el Platonismo. PATER, Walter. Platón y el Platonismo. Buenos Aires: Emecé Editores, S. A., 1946. 36PATER. Op. cit., p. 195. 37Idem. 38“(...) tipo literário característico de nossa época tão rica e matizada nas apreensões particulares da verdade, tão incerta quanto ao sentido de seu conjunto e de seus resultados. Forma estritamente adequada de nossa literatura filosófica moderna, o ensaio começou a ser usado no momento em que se deu realmente a criação do espírito relativista ‘moderno’, no Renascimento do século XVI.” PATER, Walter, op. cit., p. 193. (Tradução minha.) 28 Ao conceber o ensaio como a forma literária tipicamente moderna de escritura da reflexão filosófica, em torno dos temas que constituem o universo das experiências humanas, Pater sublinha o que qualifica de “filosofia autêntica”, que nada mais é do que a expressão do “sentimiento refinado de nuestra ignorância”.39 Utilizo-me do termo ensaio, para esta tese, para designar um tecido, cuja trama deve dar forma histórica ao meu objeto de estudo. Ora, toda trama histórica realiza-se, por excelência, numa narrativa. Mas, à diferença dos estudos de história convencionais, esta narrativa ensaística não tem a pretensão à verdade histórica, almejada pelos métodos utilizados pelos historiadores – ou, pelo menos, não àquilo que os historiadores acreditam estabelecer como verdade. Por outro lado, o fato de esta tese tramar-se como um estudo em literatura coloca-me à vontade para, ao narrar historicamente, refletir sobre o narrado à luz de autores que, como pontos da trama, dão vida, forma e sentido a esta mesma narrativa. Trata-se, portanto, de uma tessitura ensaística que é, simultaneamente, uma leitura. Como um estudo literário, este ensaio narrativo, que é uma possibilidade de leitura, será bem-sucedido ou não consoante sua capacidade de chamar a atenção para pontos narrativos ou O intelectual moderno, como a imagem perfeita da “Melancolia” de Dürer, enfastiado de si mesmo e desconfiado de saberes acumulados, por ele suportados como um fardo, recolhe-se à penumbra do ensaio para refletir sobre veredas que levam a lugar nenhum. E é com esse espírito que, antes de dar continuidade a esta tese, creio ser necessário predicar com maior precisão, ainda que esquematicamente, tanto seu objeto quanto sua metodologia. 39PATER, Walter. Op. cit., p. 196. 29 sugestões para outros ensaios que, a serviço da vida, ajudem-nos a superar a melancolia que, freqüentemente, o conhecimento nos causa. Como já assinalei anteriormente, o caminho histórico que trilharei não se confunde com o do “mimado ocioso no jardim do saber”; ao contrário, o próprio título deste ensaio já denuncia meu compromisso com a idéia de que conhecer só faz sentido se for para abrir uma nova perspectiva de afirmação da vida. E nisso Nietzsche, mais uma vez, oferece fundamentação, quando argumenta a favor de uma história estetizada, mas não idealizada: Deshalb aber ganze Völker incommodieren und mühsame Arbeitsjahre darauf wenden hiesse doch nichts Anderes, als in den Naturwissenschaften Experiment auf Experiment häufen, nachdem aus dem vorhandenen Schatze der Experimente längst das Gesetz abgeleitet werden kann: an welchem sinnlosen Uebermaass des Experimentirens übrigens nach Zöllner die gegenwärtige Naturwissenschaft leiden soll. Wenn der Werth eines Dramas nur in dem Schluss- und Hauptgedanken liegen sollte, so würde das Drama selbst ein möglichst weiter, ungerader und mühsamer Weg zum Ziele sein; und so hoffe ich, dass die Geschichte ihre Bedeutung nicht in den allgemeinen Gedanken, als einer Art von Blüthe und Frucht, erkennen dürfe: sondern dass ihr Werth gerade der ist, ein bekanntes, vielleicht gewöhnliches Thema, eine Alltags-Melodie geistreich zu umschreiben, zu erheben, zum umfassenden Symbol zu steigern und so in dem Original eine ganze Welt von Tiefsinn, Macht und Schönheit ahnen zu lassen.40 40“Mas prejudicar povos inteiros e gastar nisso anos de trabalho árduo não significa outra coisa, salvo acumular experimento sobre experimento em ciências naturais, após o quê pode-se extrair a lei do tesouro de experimentos, há muito tempo existente: aliás, Zöllner* diz que as ciências da natureza contemporâneas padecem de tal excesso absurdo de experimentação. Se o valor de um drama residisse tão-somente em sua conclusão ou em sua idéia principal, o próprio drama seria um caminho mais longo, tortuoso e penoso em direção ao seu fim; de modo que espero que a história não venha a reconhecer seu significado em pensamentos generalizantes, como na relação da flor com o fruto: mas que seu valor esteja justamente em realçar e parafrasear com engenho um tema conhecido e talvez comum, uma melodia corriqueira, elevá-lo à condição de um vasto símbolo e deixar pressentir no tema original todo um 30 O intento deste ensaio, portanto, não é o de pensar a idéia de arte a partir de leis gerais, nem o de tratar a História segundo o antigo princípio aristotélico, herdado pelo idealismo hegeliano e, dele, pelo própriomarxismo, de que as ações humanas trazem em potência, como a flor traz o fruto, conseqüências necessárias, ou a marca genética de uma finalidade última que torna previsível toda ação. O que pretendo é tão-somente compor um quadro, o mais rico possível em cores e matizes, do longo processo de construção, no ocidente, de uma idéia: a Idéia de Arte. Mas, e o acontecimento ao qual aludi, no início de toda esta digressão, e que me marcou desde então as muitas noites futuras, diferentes daquelas outras, perdidas, nos finais dos anos 70, pensando na arte e no artista como as únicas entidades capazes de garantir, mais do que corpo, alma à história, pois que, para mim, eles se constituíam como vetores de sentido para a existência dos homens sobre a Terra? O que foi feito da arte e do artista como únicas instâncias de verdade possível, num mundo sujeito às mentiras e falsidades da má consciência? Devo dizer que foram postos em xeque por um quadro cusquenho? De fato, era um belo quadro, representando, talvez, uma Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América. A santa aparecia no meio da tela, hierática, com um rico manto colorido. Seus traços mostravam a inequívoca intenção de seu autor de sintetizar, numa composição tipicamente religiosa, caracteres europeus e ameríndios – aliás, um dos elementos característicos da chamada Escola Cusquenha de pintura. O quadro era propriedade da irmã de um amigo que estudava história comigo. Meu interesse mundo de meditação, poder e beleza.” NIETZSCHE, F. “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben 6”. Op. cit., p. 292. ( Tradução minha. ) *Johann Karl Friedrich Zöllner (1834-1882) foi astrônomo e físico. 31 pela tela devia-se ao fato de estar cursando uma disciplina de História da América Espanhola, na qual nada se falava sobre as manifestações espirituais na América colonial. Minha curiosidade pela tela advinha de minha costumeira necessidade de um testemunho vivo sobre uma época e lugar, cuja história, nesse caso, era estudada tão-somente pela ótica de sua posição, subalterna, no grande ciclo da cumulação primitiva de capital, da qual se originaria o modo de produção capitalista. O quadro ocupava posição destaque na sala de jantar, iluminado por um foco de luz. Todo ambiente parecia magicamente transformado pela presença daquela santa que representava, a um só tempo, a cruel exploração colonial e o poder de transformar as mais terríveis realidades, que só uma obra de arte pode evocar. O quadro seria vendido e esperávamos um marchand que viria avaliá-lo. Enquanto aguardávamos, devaneávamos por entre o panejamento de Nossa Senhora, deixando-nos arrastar pelo sonho de uma América Colonial brutal e bela. Finalmente o marchand chegou. Cumprimentou a todos. Fez as perguntas de praxe – onde e quando a tela fora comprada –, sem olhá-la. Dirigiu-se não para a frente do quadro, mas para a parte detrás da tela. Arrancou-lhe um mínimo fiapo e disse: “É falso.” 1. A τέχνη e o ποιητής no Livro X d’A República O que costumamos chamar de arte nem sempre existiu.41 Sabemos que os homens sempre se ocuparam em construir suas casas e santuários, em pintar com os motivos mais variados suas cavernas ou as paredes de suas habitações ou templos42 Em 1907 interpreta ele (L’Évolution Créatrice) o curioso processo no quadro de um élan vital. A Natureza procura realizar a vida, que se eleva à consciência. A vida sobe por diferentes caminhos (muitos dos quais verdadeiros becos sem saída) para formas cada vez mais altas. (...) A função fabuladora (fonction fabulatrice) foi necessária à vida. Alimenta-se com o resíduo do instinto, que, como uma aura, circunda a inteligência. O instinto não pode intervir imediatamente para proteger a vida. Como a inteligência só reage a imagens de percepção, cria percepções “imaginárias”, que podem aparecer depois como consciência indefinida de um “presente eficaz” (o numen dos romanos), em seguida como espíritos e, só muito mais tarde, como deuses. A mitologia é um produto ; sabemos, também, que, em épocas muito remotas, grupos primitivos, num misto de espanto e prazer, ouviam, ao redor da fogueira tribal, cantos fabulosos sobre seres ou fenômenos que se lhes apareciam como expressão literal de um ambiente em tudo misterioso e sagrado. Segundo Curtius, a prática de criar mitos, histórias, poemas, que caracteriza o homem desde seus primórdios, seria explicada, cientificamente, pela “função de fabular”, descoberta por Bergson: 41O historiador Ernst Gombrich, em “Sobre arte e artistas”, diz, muito apropriadamente, que: “Nada existe a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram homens que apanhavam um punhado de terra colorida e com ela modelavam toscamente as formas de um bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham cartazes para tapumes; eles faziam e fazem muitas coisas. (...) tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como um bicho- papão, como um fetiche.” GOMBRICH, E. H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral. 16ª ed. Rio de Janeiro, LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999, p.15. 42GOMBRICH, E. H. A história da arte, p. 39. 33 tardio, e o caminho para o politeísmo é um progresso cultural. A fantasia, fonte de ficção e mitos, tem o sentido de “fabricar” espíritos e deuses. (...) A função de fabular elevou-se da produção de ficções com fins biológicos à criação de deuses e mitos e, finalmente, desligou-se do mundo religioso para libertar-se. É “a faculdade de criar pessoas, cujas histórias nós próprios contamos”. (...) Ela formou a epopéia de Gilgamesh e o mito da serpente do paraíso, a Ilíada e a lenda de Édipo, a Divina Comédia de Dante e a Comédia Humana de Balzac. É a raiz e a fonte inesgotável de toda grande poesia. 43 A Antigüidade greco-romana desconhecia o que entendemos por arte Mas tais manifestações, que nós, hoje, tendemos a considerar como artísticas, eram percebidas e vivenciadas tão-somente a partir de sua função ritualístico-religiosa. E esta função levava em consideração apenas o fato de os objetos e as práticas simbólicas produzirem os efeitos mágicos desejados. Já seus produtores ou agentes – os artistas, como nós os chamaríamos –, plenamente identificados com os padrões e crenças de suas tribos, punham toda a sua habilidade e saber na execução de seu trabalho. 44; para os gregos e os romanos, τέχνη e ars designavam todas as atividades humanas, que podiam ser ensinadas e aprendidas45 43CURTIUS. Op. cit., pp. 8-10. 44Nesta tese defendo a idéia de que, para haver arte, tem de haver uma ciência que determine o que seja este objeto – Arte. E a ciência para este objeto é a estética. A proposta desta tese é justamente mostrar que a Ciência da Arte só se constitui como tal a partir do século XVIII. Sendo assim, defendo, concomitantemente, que toda produção “artística”, anterior à invenção da Ciência da Arte, não pode, a rigor, ser considerada arte. 45KRISTELLER. Op. cit., p. 498. . Em sua Estética, B. Croce define a estética como a ciência da atividade expressiva (representativa, fantástica). Para Croce a estética nasce quando ocorre a determinação precisa da natureza da fantasia, da representação, da expressão, como atitudes do espíritono ato de produzir conhecimentos 34 individuais e não universais46. Fora deste conceito de estética não se poderia falar em teoria da arte. Assim, para Croce, apesar de podermos encontrar na Antigüidade alguns elementos que nos conduziriam a uma teoria da expressão ou da fantasia, tais elementos nada mais são do que “caminhos e tentativas”47 Desviación por defecto será la que niegue uma especial actividad estética y fantástica o, lo que es lo mismo, la que nieguesu autonomía, mutilando así la realidad del espíritu. Desviación por excesso será la que sustituye o sobrepone a aquela actividad outra que no se encuentre en la experiencia de la vida interna, una actividad misteriosa y efectivamente inexistente. (...) La desviación por defecto puede ser: a) hedonística pura en cuanto considera y acepta el arte como simple hecho de placer sensual; b) hedonística rigorista em cuanto considerándole del mismo modo le declara inconciliable con la más alta vida del hombre; c) hedonística moralista o pedagógica, em cuanto transige, pues a pesar de considerar el arte como cosa sensual, declara que puede, lejos de ser nocivo, prestar algún servicio a la moral, siempre que esté sometido a ella y la obedezca. Las formas de la segunda desviación (que diremos “mística”) son indeterminables a priori, porque pertenecen al sentimiento y a la fantasía en sus infinitas variedades y vaguedades. e, desse modo, negam a existência de uma estética naquela época. Examinando a questão, conduzidos ainda pela mão de Croce, observemos que, no lugar de uma teoria estética, o que encontramos na Antigüidade seriam desvios por imperfeição ou desvios por excesso. Curiosas classificações para os diferentes tipos de reflexão sobre as atividades “artísticas” àquela época: 48 46CROCE. Op. cit., p. 189. 47CROCE. Op. cit., p. 190. 48“Desvio por imperfeição será aquele que negue uma atividade estética e imaginativa especial ou, no que dá no mesmo, negue sua autonomia, mutilando, assim, a realidade do espírito. Desvio por excesso será aquele que substitui ou sobrepõe àquela atividade outra que não se encontra na experiência da vida 35 Nenhuma dessas concepções produziu realmente uma reflexão filosófica sobre a natureza da arte. E dentre todas, sobressai aquela que Croce considera “a mais solene e célebre das negações rigoristas da arte jamais realizada”: a de Platão. É lugar comum acusar o maior dentre todos os filósofos de intolerante, em relação ao artista e à arte. Há quem seja mais condescendente. Realmente, a leitura do famoso Livro X de A República49 coloca-nos já a obrigação de enfrentar as afirmações do filósofo sobre, de acordo com boa parte dos estudiosos em estética, o que venham a ser a arte, o artista e o poeta. É de conhecimento de todos os que se interessam pela história e cultura gregas que os termos τέχνη, δημιουργός, ποιητής, traduzidos freqüentemente por arte, demiurgo ou artesão50 interna, uma atividade misteriosa e efetivamente inexistente. (...) O desvio por imperfeição pode ser: a) hedonístico puro, na medida em que considera e aceita a arte como fator de prazer sensual; b) hedonístico rigorista, que por considerar a arte do mesmo modo, declara-a inconciliável com a vida mais elevada do homem; c) hedonística moralista ou pedagógica, a que transige; pois, apesar de considerar a arte como coisa sensual, declara que ela pode, distante de ser nociva, prestar algum serviço à moral, desde que se submeta e obedeça a ela. As formas do segundo desvio (que chamaremos ‘místico’) são indetermináveis a priori, porque pertencem ao sentimento e à fantasia, em suas infinitas variedades e vaguezas.” Idem. (Tradução minha.) 49PLATÃO. A República. Diálogos. Vol. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1976. 50“O que se lê de fato através de Platão é o drama do artesão na civilização grega. (...) Dos poemas épicos cantados pelos aedos, esses ‘demiurgos’ dos quais fala a Odisséia, às criações da escultura, quase não existem grandes obras da cultura grega que não sejam, por uma de suas dimensões, demiúrgicas. Os médicos são demiurgos. Demiurgos também são os construtores do Erectéion, cidadãos, metecos e escravos conhecidos por uma série de inscrições. É antes de mais nada isso que exprime Platão quando faz do criador do mundo um artesão com meios gigantescos.” VIDAL-NAQUET, Pierre. “Estudo de uma ambigüidade: os artesão na cidade platônica.” In: VERNANT, Jean-Pierre/VIDAL- NAQUET, Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1989, pp. 169-170 e poeta, guardam, em língua grega, significados muito mais amplos, em relação ao sentido contemporaneamente adotado para eles. Tais palavras cobriam um espectro semântico muito rico, pois designavam diferentes atividades, que vão desde a fabricação de sapatos até a habilidade de enunciar oráculos. Seja como for, os três vocábulos referem-se ao ato humano, e às vezes até divino, de fazer, de praticar, de realizar, de criar algo; e, no grego antigo, este ato é hierarquizado ou valorado, de acordo com seu contexto e o modo como este contexto é 36 socialmente percebido. Todos os atos designados por tais vocábulos implicam uma habilidade e um conhecimento específicos para cada tipo de ofício a ser exercido.51 Não faz parte do que foi dito antes, que cada um só pode sair-se bem em uma única profissão, não em muitas, e que se experimentar as forças em várias a um só tempo, fracassará totalmente e não se distinguirá em nenhuma? Quero dizer com isso que, no contexto da sociedade grega antiga (o que vale também para a antiga sociedade romana) e no texto de Platão, todas as atividades que se realizam num fazer, criar, produzir, inventar, representar, arquitetar, elaborar, bem como seus agentes, têm sua legitimidade reconhecida ou não consoante o grau de perfeição alcançado em um ofício praticado com exclusividade: 52 Ora, se levarmos em consideração o modo como a sociedade grega antiga via as práticas de criação, invenção, produção etc., isto é, como necessariamente fundadas em conhecimentos e habilidades específicos ao seu exercício, fica bastante claro o porquê de Platão poder comparar a atividade do carpinteiro à do pintor. Ambas pretendem ser a expressão prática de um conhecimento seguro sobre aquilo a que se dedicam. Nesse ponto devemos lembrar que nada é mais festejado, entre os estudiosos da cultura e do pensamento gregos, do que o nascimento do pensamento racional. O pensamento racional grego é considerado, com justa razão, a origem de todas as conquistas civilizacionais do ocidente; e Platão, como referência máxima desse pensamento, foi quem estabeleceu o princípio do que seja pensamento racional e do que seja pensar racionalmente: formular o 51“A tradição grega em seu conjunto insiste na qualidade e não na quantidade dos produtos (...).” Apud VIDAL-NAQUET, Pierre. “Estudo de uma ambigüidade: os artesão na cidade platônica.” In: VERNANT, Jean-Pierre/VIDAL-NAQUET, Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga. Campinas: Papirus,1989, p. 150. 52PLATÃO. Livro III de A República, p. 134. VIDAL-NAQUET, Pierre. Op. cit., pp. 150-151. 37 conceito de cada coisa, isto é, a forma pensada mais próxima da Idéia de cada ente, de modo a poder organizar, pelo pensamento, o caos aparente do mundo. Platão sabe que a Idéia é um segredo da divindade, mas sabe também que é pelo conceito que o homem pode dela se aproximar. Na filosofia platônica, é pelo método dialético, cuja forma literáriasão seus diálogos, que se pode tentar uma aproximação da Idéia. Mas como será isso possível no âmbito das τέχναι? Das práticas humanas, que não trabalham com os conceitos, entendidos como representações das Idéias de tudo o que existe, mas que os imitam, apenas e tão-somente como modelos de objetos e situações determinados, reais, espera-se um perfeito conhecimento daquilo que imitam, no sentido de sua perfeita adequação à cidade platônica53 A respeito de muitas questões, não chamaremos Homero a juízo, nem qualquer outro poeta, para perguntar, por exemplo, se algum deles foi médico, ou apenas imitador da linguagem dos médicos; qual a cura que possa ser atribuída a algum dos poetas antigos ou modernos, como de Asclépio se conhece, ou que discípulo médico nos deixou, como fez o outro com seus descendentes. Acerca das demais artes não os interroguemos; demos-lhe tudo isso de barato. Porém no que concerne aos mais belos e importantes temas a que Homero se abalança: guerra, tática militar, administração de cidades, educação do homem, temos o direito, sem dúvida nenhuma, de procurá-lo para dizer-lhe: Meu caro Homero, se no que respeita à virtude não te encontras, realmente, três graus afastado da verdade e não passas de um mero criador de imagens, o que definimos como imitador, e, se, pelo : 53Aqui, tomo de empréstimo a Vidal-Naquet a expressão “cidade platônica”, que passarei a utilizar sempre que me referir à cidade idealizada por Platão n’A República. Estou consciente de que o historiador francês usa a expressão num estudo, cujo objeto é bastante diferente do meu, mas que nem por isso deixa de oferecer preciosos subsídios à minha leitura do filósofo. 38 contrário, te achas no segundo degrau e és capaz de conhecer que atividades deixam os homens melhores ou piores, tanto na vida pública como na particular, declara- nos que cidade ganhou por teu intermédio uma constituição melhor, como é o caso da Lacedemônia com relação a Licurgo e de muitas outras cidades, grandes ou pequenas, com seus legisladores? Onde está o burgo que se orgulha da ótima legislação que lhe deixaste? Que lucraram contigo seus moradores? A Itália e a Sicília tiveram o seu Carondas; nós outros, Solão. E tu, que cidade te elogia? Achas que ele poderia indicar-nos alguma? (...) Sendo assim, firmemos desde logo este ponto: todos os poetas, a começar por Homero, não passam de imitadores de simulacros da virtude e de tudo o mais que constitui o objeto de suas composições, sem nunca atingirem a verdade, o que também se dá com o pintor, a que já nos referimos, o qual, sem nada entender da arte de fazer sapatos, é capaz de pintar um sapateiro que lhe pareça bom e a quantos desconheçam essa profissão e só percebem as cores e o desenho.54 O tema da μίμησις, da imitação 55, tanto em Platão quanto, mais tarde, em Aristóteles, realmente proporcionou aos teóricos da estética fundamentação filosófica para a construção de um conceito de arte que englobasse a poesia, a música e as belas-artes. Mas a leitura dos diálogos não autoriza a idéia de que Platão tenha realizado uma abordagem ou, pelo menos, tenha tratado de todas as cinco artes como todo e separadamente do conjunto comum das atividades humanas.56 54PLATÃO. Op. cit., pp. 392-393, 394. 55Croce chama a atenção para uma oscilação no significado do termo μίμησις, ora como “imitação” ora como “representação”. CROCE. Op. cit., p. 191. 56KRISTELLER. Op. cit., p. 504. Ao contrário, Platão não discute arquitetura; e quando aborda a música e a dança, o faz como se estas artes fizessem parte 39 da poesia. Mas o mais importante é que, pelo menos em Platão, o termo imitação, quando aplicado às artes, assume uma conotação apenas elogiosa, que, para o filósofo, nada tem a ver com a imitação como um conceito metafísico, usado rigorosamente para descrever a relação entre as coisas e as Idéias57. Curiosamente, quando Platão, e também Aristóteles, falam em artes imitativas como parte de um grupo mais amplo de artes, isto implica a inclusão, ao lado das “artes maiores”, de outras atividades “menores”, como a sofística, o uso de espelhos, os truques dos mágicos e a imitação das vozes dos animais58. Finalmente, quando Aristóteles distingue as artes da necessidade das artes prazerosas, e estas últimas são identificadas incidentalmente com as “belas-artes”, isto é, as artes da imitação, como a música e o desenho, na verdade, ele as está colocando no mesmo nível da gramática e da aritmética59. Portanto, quando Platão toma as diferentes formas de imitação e as discute e as define como simulacros, ele o faz tão-somente para mostrar como uma imagem, que se pretende verdadeira, pode ser totalmente vazia, do ponto de vista da teoria das Idéias, de conteúdo. E é esta mesma imagem, invenção grega, que Gombrich, em sua A história da arte, valoriza como uma revolução em relação à forma de representação das coisas, especialmente o corpo humano60, conforme praticada pelos egípcios, mestres dos gregos, e com objetivos puramente religiosos.61 57Idem. 58Idem. 59Idem. 60“... a arte egípcia não se baseou no que o artista podia ver num dado momento, e sim no que ele sabia fazer parte de uma pessoa ou de uma cena. Era a partir dessas formas por ele aprendidas, e dele conhecidas, que construía as sua representações, tal como o artista tribal constrói as figuras a partir de formas que pode dominar. Não é apenas o seu conhecimento de formas e contornos que o artista consubstancia na pintura, mas também o conhecimento que ele possui do significado dessas formas. Chamamos às vezes a um homem ‘chefão’. Os egípcios desenhavam o chefão maior do que os seus criados ou até do que a sua esposa.” GOMBRICH. Op. cit., p. 62. Claro está que o rompimento progressivo, 61“Os egípcios acreditavam que apenas preservar o corpo não era o bastante, mas que, se uma fiel imagem do rei fosse preservada, não havia dúvida de que ele continuaria vivendo para sempre. (...) Um 40 efetuado pelos gregos, com modelo egípcio de representação, só foi possível quando: ... o povo das cidades gregas começou a contestar as antigas tradições e lendas sobre os deuses, e a investigar sem preconceitos a natureza das coisas. É o período em que a ciência, tal como hoje entendemos o termo, e a filosofia despertam pela primeira vez entre os homens, e desenvolvendo-se o teatro a partir das cerimônias em honra a Dioniso.62 Ora, toda essa revolução no âmbito da representação religiosa, praticada pelos gregos, 63 é sintoma daquilo que, do ponto de vista de Platão , deve ser expurgado de sua cidade: o desequilíbrio, a quebra da unidade, a desarmonia, trazida pela riqueza excessiva, junto com “o luxo, as artes e os vícios”64. A cidade platônica, organizada cósmica e socialmente, a partir de seu modelo celestial65 The greek term καλόν and its Latin equivalent (pulchrum) were never neatly or consistently distinguished from the moral good. When Plato discusses beauty in the Symposium and the Phaedrus, he is speaking not merely of the physical beauty of human persons, but also of beautiful habits of the soul and of beautiful cognitions, , por seus reis-filósofos, deve ser governada por guardiães especialmente educados, de modo a impedir que os desequilíbrios da cidade real nela se reproduzam. E é por isso que, para o filósofo, a educação é tão importante; pois é por seu intermédio que se incute na juventude o conhecimento seguro do que seja a justiça e o belo:
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