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Jean-NoAl Fabiani - A fabulosa historia do hospital (oficial)

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Para Jane
Para todos os funcionários da Assistence Publique – Hôpitaux de
Paris, que põem, todos os dias, sua competência e dedicação a
serviço dos pacientes.
Para todos os meus colaboradores do departamento de cirurgia
cardiovascular do Hospital Europeu Georges-Pompidou, que tenho
a honra de chefiar.
��������
“T��� �� ��� �� ��� ��������!”
Era a primeira vez que eu adentrava a fundo em um hospital.
Estava no primeiro ano de medicina e estagiava no Hospital Necker,
no departamento do professor Jean Hamburger, pioneiro nos
transplantes de rim. Sempre grudado no meu chefe de clínica*1,
infiltrei-me, com meus colegas, no estreito corredor que levava à
“sala das mulheres” para ter um primeiro contato com os doentes.
Fomos recebidos aos berros pela auxiliar de enfermagem da
Martinica, que acabara de lavar, com água abundante, os ladrilhos
brancos e verdes do corredor. Ainda segurava a vassoura e o
esfregão por cima do balde de água com sabão. “Ah, sr. André (era
o nome do meu chefe!), faça o favor de não pisar no meu ladrilho
com seus alunos!” E, para enfatizar, nos intimou com um gesto a
andarmos encostados na parede, na ponta dos pés, a começar pelo
chefe de clínica, para respeitar “seu” sacrossanto ladrilho molhado.
*
* *
Depois de mais de 35 anos de trabalho em hospitais parisienses,
eu já perdera a conta das vezes em que, ao aparecer na porta de
um hospital às oito horas da manhã, ouvi o famoso “Não pise no
meu ladrilho!”. Como se aquela hora em que a maioria dos médicos
chegava fosse justamente a hora escolhida para lavar os corredores
e as salas com água abundante. Mas, por outro lado, poderíamos
condenar aquelas que defendiam seu trabalho de maneira tão
incisiva? Claro que não. Sendo assim, dois antagonistas se
enfrentavam. Era preciso encontrar uma solução. Que jamais
surgiu... Essa anedota revela um certo modo de funcionamento que,
infelizmente, não é exclusivo dos hospitais...
Contudo, para os espíritos racionais, algumas soluções seriam
possíveis. Não seria concebível pedir que as supervisoras*
orientassem que a limpeza dos corredores fosse feita às sete e
meia, para que o piso estivesse seco quando a maior parte das
equipes chegasse, meia hora depois? Ou melhor: será que a Terra
pararia de girar se obrigassem os médicos a chegar ao consultório
apenas às oito e meia – e não às oito horas em ponto –, para
permitir que o ladrilho molhado secasse completamente? É claro
que não. Mas aí é que está: a situação perdurava há 35 anos (e
com certeza mais). Esse “não pise no meu ladrilho” me pareceu a
expressão do andamento disfuncional de uma instituição como um
todo, da faxineira ao diretor geral, passando pelo corpo médico.
Todos terrivelmente apegados aos seus argumentos. E ninguém
está disposto a ceder... Em outras palavras, era o hospital que ria da
caridade.2
*
* *
É bem verdade que, quando se é tão miserável quanto um
hospital, não se tem muito motivo para rir da caridade. Essa velha
expressão, hoje empregada sem lembrar precisamente suas
origens, remete aos tempos antigos, quando a maioria dos
estabelecimentos de saúde eram gerenciados por congregações
religiosas, particularmente por irmãos e irmãs de caridade, tanto que
muitos desses hospícios3 foram apelidados de “caridade”. Graças a
essa metonímia, um hôtel-Dieu4 e uma caridade se tornaram, em
certa época, sinônimos. O que significa que não há motivos para
preferir um ou outro, já que, no auge da miséria e às portas da
morte, o nome do estabelecimento não faz qualquer diferença.
E neles poderíamos encontrar todos os clichês que conhecemos
a respeito dos hospitais. Os públicos, em sua maioria velhos e
malcuidados, são sujos e têm persianas quebradas, portas que
rangem e imploram socorro à lata de óleo desde tempos imemoriais,
escadarias majestosamente tristes, com degraus cobertos de
bitucas, elevadores com defeito. E aquele odor indescritível, uma
mistura de éter etílico (que há muito deixou de ser empregado),
produto de limpeza barato e comida fria.
E os funcionários? Uma verdadeira comédia humana. Do auxiliar
de enfermagem, com seu chapeuzinho branco dobrado no bolso do
capote azul*, vagando pelos corredores do hospital levando para o
laboratório uma coleta urgente a passos de lesma, até a enfermeira-
chefe irascível, com o molho de chaves preso à cintura, xingando a
equipe dia e noite. E os médicos, que se gabam diante dos alunos,
tratando os doentes como se fossem um campo de experiências,
incapazes de lhes dizer com clareza de que mal sofrem ou qual será
o tratamento.
Esse hospital foi alvo das mais variadas críticas, que podemos
ouvir saindo de muitas bocas ou ler em reportagens investigativas: a
demora inacreditável para as datas das consultas, as filas de espera
para ser atendido, os quartos sujos com paredes mijadas, os
corredores congestionados por aparelhos improvisados... Seria esse
o “meu” hospital? Esse lugar onde passei toda a minha vida
profissional. Onde experimentei tantas emoções, tristezas,
satisfações e alegrias. Onde pude dar um sentido à minha vida. É
claro que as coisas são mais complicadas do que isso, mas não se
trata de ignorar as imperfeições e as faltas. Elas existem. Contudo,
os hospitais públicos da França não podem ser resumidos a uma
caricatura apressada, de traços grosseiros. São mais do que isso:
são também uma aventura magnífica que muitos países do mundo
invejam. E um lugar que tentamos melhorar ao longo do tempo: com
extrema competência, dedicação ao paciente e tratamento justo. Um
lugar onde homens e mulheres se dedicam, sem cessar, a fazer
funcionar estruturas por vezes morosas e onde compensam, com
humanidade e coragem, as insuficiências de todo um sistema
construído ao longo dos séculos.
Ao longo dos séculos...
Quando dou aula hoje na universidade sobre a história dos
hospitais da França, tento explicar como o hospício da Idade Média,
puramente religioso e de caridade, se transformou ao longo do
tempo em um lugar onde doentes recebem tratamento. Como foram
se separando, gradativamente, os conceitos de doença e de
pobreza. Como os médicos, visitantes ocasionais naquela época,
fizeram do hospital, muito recentemente, o cadinho das suas
experiências. Como a própria arquitetura das instalações seguiu as
concepções que o poder público projetava sobre suas funções. Tudo
isso é muito sério e foi tema de uma porção de livros e de teses
sobre História da medicina, com H maiúsculo.
Essa história merece ser contada. Médicos, cirurgiões, pacientes,
doentes, estudantes ou meros curiosos: essa herança de séculos é
nosso patrimônio comum. Mas, desta vez, deixemos a grande
História (com H maiúsculo) para os historiadores. Voltemos nosso
interesse mais para a pequena história (com h minúsculo), que não
é menos apaixonante.
Amigos leitores, virem a página!
1. Os asteriscos remetem ao glossário no final do livro.
2. Em francês, “c’est l’hôpital qui se moque de la charité”, expressão que equivale ao nosso
“é o sujo falando do mal lavado”. (N.E.)
3. Em português, assim como em francês, a palavra, mais conhecida no sentido de
instituição para doentes mentais, serve para designar também uma instituição que hospeda
pessoas pobres ou doentes. (N.T.)
4. Palavra que designava uma instituição hospitaiar na França medieval. Até hoje, é
utilizada para se referir ao hospital principal em cidades pequenas. (N.T.)
1
A ���� � � ����������...
Estamos no verão de 1189, e o rei Filipe II da França tomará parte
nas Cruzadas. Arrecadou o “dízimo de Saladino” para financiar as
armaduras e os pajens de armas da hoste real.
Mas, antes de partir para guerrear em terras longínquas, o
augusto rei Filipe tentou deixar “sua cidade” em ordem. Antes da
partida, e para melhor assegurar sua defesa, fez construir um muro
com nove metros de altura e três metros de largura, circundando
quase cinco quilômetros. E, para adular os súditos, o soberano
acabara de ampliar o antigo Domus Dei (ancestral do Hôtel-Dieu),
fundado em 651 pelo bispo de Paris, situado no átrio da Notre-
Dame, na margem esquerda da Île de laCité, onde hoje fica a praça
Charlemagne. As novas instalações eram destinadas a acolher os
andarilhos miseráveis que pululavam na ilha e que não hesitavam
em mendigar, roubar e até agredir os burgueses da bela capital.
Naquela época, o Hôtel-Dieu comportava uma grande sala
comum, abobadada em forma de ogiva. A parede dos fundos era
adornada com um crucifixo gigantesco, alto o suficiente para
lembrar a todos os presentes que a saúde só podia vir da religião,
mas também esmagador o bastante para lembrar a todos da miséria
de sua condição de pobres pecadores... Antes de o rei partir para a
Cruzada, os leitos de palha foram completamente refeitos. Ou seja:
antes de sair galopando em direção a Jerusalém, em toda a sua
bondade, o rei doou toda a palha do palácio para o hospício. Os
pobres poderiam dormir melhor... Nas camas de madeira, os
indigentes deitavam de dois em dois, às vezes três, às vezes mais,
de acordo com a procura. Não raro, de ponta-cabeça. O “lugar bom”
no leito era o que tinha vista para o Cristo na cruz.
Mas de onde mais poderia vir a esperança e a saúde?
No Hôtel-Dieu, as damas agostinianas cuidavam das instalações,
e uma boa parte do seu tempo era dedicada a costurar mortalhas.
Porque morria muita gente no Hôtel-Dieu: um quarto dos “pacientes”
não se recuperava. Em cada leito, havia – a escolher – o doente, o
moribundo e o morto. A questão era saber qual seria o destino de
cada um.
Em relação à medicina propriamente dita... não havia médicos,
apenas os clérigos, que tinham um embrião de cultura médica.
Internavam os pacientes e administravam alguns tratamentos. Duas
vezes por semana, passava o barbeiro* com seu bisturi: fazia
curativos, extirpava os abscessos e amputava os membros
gangrenados.
No Hôtel-Dieu do átrio da Notre-Dame, aceitava-se todo mundo,
menos os doentes contagiosos. Ou melhor: aqueles que se
imaginava serem contagiosos, como os pestilentos – que eram
verdadeiramente contagiosos – e os doentes acometidos de
“grandes males”, ou seja, os epiléticos, que não eram. Além disso,
também se recebiam os peregrinos, alguns pedintes e os
trabalhadores da construção da catedral... Essa foi a primeira
vocação do estabelecimento hospitalar.
É preciso compreender que, no século VI da Era Cristã, data
aproximada da criação dos primeiros hôtels-Dieu, eles não tinham
muita coisa a ver com doentes... Etimologicamente, “hospital” (ou,
antes, “hospício”) é o lugar onde se acolhem estrangeiros (hostis,
em latim). O Ocidente cristão oficializou essa missão em 549, no V
Concílio de Orleans. Mas seu papel inicial era, principalmente,
receber peregrinos (pois eles participavam da construção de igrejas
e catedrais como mão de obra voluntária) e indigentes, para alojá-
los, alimentá-los e cuidá-los, falhando em lhes dar um verdadeiro
tratamento. Algo do qual eram incapazes, pelo menos no século VI.
Por falta de médicos, sim. Mas, sobretudo, por falta de medicina.
Um detalhe importante: o V Concílio de Orleans conferiu ao
patrimônio hospitalar um caráter inalienável, a fim de responsabilizá-
lo pelo seu próprio financiamento. Resumindo, o Concílio disse:
“Autorizo sua criação, mas se desdobrem pelo funcionamento, que
ficará a cargo de vocês”.
Foi durante a Idade Média que, progressivamente, foi-se
transformando essa vocação de acolhida dos hospícios religiosos.
Dois elementos tiveram uma influência determinante: primeiro, a
explosão demográfica da época – a população francesa triplicou
entre os anos 1000 e 1300 – que, somada a uma produção agrícola
insuficiente, causou as grandes fomes, acarretando miséria e
mendicância nas grandes cidades. Depois, as grandes epidemias
que assolaram o país do século XII ao XV, como a peste negra e o
cólera, que provocaram uma afluência de doentes em situação
crítica, dos quais foi preciso tomar conta.
Para enfrentar essa corrida em massa aos hospitais, selecionar
os hóspedes foi inevitável, a ponto de os doentes e pedintes se
tornarem, por força da necessidade, os “clientes preferenciais” dos
hospícios. E foram, progressivamente, substituindo os peregrinos
nos únicos estabelecimentos que poderiam acolhê-los. Foi assim
que o forasteiro que era recebido como hóspede durante uma
jornada, em um mundo essencialmente rural, foi substituído pelos
verdadeiros doentes ou pelos pedintes famintos. Ambos, não raro,
eram considerados perigosos, em uma sociedade que começava a
se urbanizar: os primeiros, pelo risco de contágio; e, aos poucos, foi-
se tomando conhecimento dos segundos, por causa da
criminalidade que se suspeitava que poderiam trazer consigo.
Portanto, o hospital precisou evoluir em função dessas novas
condições. Como esses novos “clientes” eram perigosos, era
preciso trancafiá-los. E, se possível, trancafiá-los longe do centro
das cidades. Como os hospícios não recebiam mais peregrinos, não
era mais necessário construí-los perto das catedrais. Foi assim que
os hospitais começaram sua lenta migração “para fora dos muros”.
Uma política que os poderes reais subsequentes se empenharam
em praticar. Ou seja: separar o joio do trigo. Os doentes e os sãos.
Os crentes dos ímpios. Os súditos pacíficos dos assassinos. A
pobreza da vileza, como diz o ditado.
2
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O Hospital Saint-Louis foi construído por Henrique IV, de 1607 a
1612, nos arredores de Paris, para internar os pestilentos rejeitados
pelo Hôtel-Dieu da Île de la Cité. Era bem próximo a Montfaucon,
região que servia de zona de carga e descarga para os parisienses
e, tradicionalmente, era palco de enforcamentos. O nome do santo
rei lhe foi dado porque se pensava (erroneamente) que ele havia
morrido de peste negra em Túnis, a primeira etapa da oitava
Cruzada, que fracassou.
Ao longo dos séculos, se existe uma palavra que causou horror
em toda a França e no Ocidente foi exatamente esta: “peste”, bem
como seu corolário, “pestilento”. A peste negra, uma doença divina
enviada à Terra para punir os homens por seus pecados. Pois
parecia evidente que tamanha carga de horror só poderia ter sido
enviada por um Deus todo-poderoso, confirmando a realidade da
“doença-punição”, como bem escreveu La Fontaine:
Mal que espalha o terror,
E que a ira celeste inventou
Para castigar os pecados do mundo;
A Peste, em suma, a Peste;
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia
Veio entre os animais lavrar;
E, se nem tudo sucumbia,
Certo é que tudo adoecia...5
Era o horror sobre a Terra! Mas, para complicar as coisas, desde
a Antiguidade até a Idade Média, todas as epidemias eram
designadas pelo nome de “peste”. Na verdade, a maioria delas não
o era, mas esse era o único nome adequado para designar o horror
e a impotência dos homens diante da calamidade. Para aqueles que
sempre querem classificar as coisas – os médicos, por exemplo –, é
provável que a varíola mereça o primeiro lugar no pódio das
epidemias do passado.
Mas quando foi que a peste, a verdadeira peste, a peste negra, a
grande peste entrou para a lista dos grandes flagelos da
humanidade?
Essa peste, chamada de peste bubônica, pois se caracteriza pela
presença de gânglios linfáticos inchados e doloridos (bubões) na
virilha e nas axilas, existia de modo endêmico na Ásia central e na
China. Tanto que o Ocidente foi poupado por muito tempo. Até o dia
funesto de 1346, quando os tártaros da Horda Dourada decidiram
sitiar o porto de Caffa, entreposto comercial genovês na Crimeia, às
margens do Mar Negro. O bacilo da peste (ou bacilo de Yersin),
transmitido pelas pulgas dos ratos negros que acompanhavam as
tropas mongóis, logo infectou tanto os sitiantes quanto os sitiados,
pois os sitiantes, já doentes, acharam lógico compartilhar seu mal
com os sitiados e catapultar os cadáveres por cima dos muros para
infectar a cidade. Seja como for, os tártaros acabaram inventando a
primeira guerra biológica! Vamos nos abster de lhes dar os
parabéns.
Contudo, essa guerra longínqua se alastrou. Um navio de
comerciantes genoveses conseguiu escapar antes que o cerco
terminasse... Os negócios eram prioridade para os genoveses,que
foram logo transportando o carregamento para seus clientes. Para
isso, fizeram uma escala em Messina, em setembro de 1347.
Depois em Gênova e, por fim, desembarcaram em Marselha, em
dezembro do mesmo ano. E, a cada parada, a peste negra se
alastrou, no ritmo da descarga das mercadorias, assim como os
ratos que as acompanhavam. Uma espécie de epidemia
experimental bastante involuntária.
Era possível, portanto, seguir a peste conforme se seguem os
ratos. Um pequeno detalhe da história: a ratazana asiática
transmissora da peste tomou rapidamente o lugar do ratinho
europeu. Tanto que, em Marselha, no ano de 1347, não havia mais
gatos para atacar os ratos mongóis!
O leitor que ficou intrigado com esse relato pode, com toda a
razão, se perguntar por que os gatos europeus ficaram apavorados
diante dessa nova espécie de “ameaça amarela”. Porque esse não
é o caso: a história é ainda mais terrível. De modo geral, a Idade
Média não foi uma boa época para os gatos da Europa. Eles, de
fato, tinham a má reputação de, entre outras coisas, serem animais
maléficos, detentores de poderes assustadores. Uma bula papal de
1233 chegara a especificar que os gatos pretos eram servos do
diabo. Até se corria o risco de ser acusado de feitiçaria pelo simples
fato de se ter um... A Inquisição logo se encarregaria de combater
todas as formas de bruxaria e de satanismo, o que incluía
naturalmente a erradicação dos gatos. Tanto que os pobres
bichanos desapareceram das cidades e dos portos, deixando o
terreno livre para os ratos, sua presa ancestral.
Por ironia da história, quando o papa Inocêncio VII exigiu que a
erradicação dos gatos se intensificasse – o que custaria a vida de
milhões de animais –, foi a vez da devota cidade de Avignon, então
cidade papal, ser atacada pela doença. É bem possível que a
presença de gatos tivesse freado a propagação da epidemia, que
acabou causando devastação por toda a Europa. Estima-se que, em
cinco anos, a peste negra fez 25 milhões de vítimas, ou seja, de 30
a 50% da população ocidental!
A moral da história, como diria La Fontaine, por motivos
diferentes mas intimamente ligados, é que não era nada bom ser
homem ou gato em Marselha naquela época...
5. Jean de La Fontaine, “Les animaux malades de la Peste” [“Os animais enfermos da
Peste”, tradução para o português de Machado de Assis]. (N.A.)
3
U�� �������� ��������...
Quando se diz que alguém “pegou varíola”, dificilmente é uma boa
notícia. Como, em francês, também ouve-se falar em “petite vérole”
[pequena varíola], supõe-se que uma grande também exista. E, a
priori, se queremos ser lógicos, que a pequena é menos grave do
que a grande. Como de costume, em medicina como em outros
campos, as coisas não são assim tão simples…
Na linguagem comum do francês, “vérole” designa na verdade a
“grande varíola” (também chamada de “varíola maior”), ou seja, a
sífilis, uma doença venérea comum ao longo dos últimos séculos.
Como disse André Gide em Os moedeiros falsos, dando a entender
que sabia um pouco sobre o assunto: “São raros, em nosso tempo,
aqueles que chegam aos quarenta anos sem varíola e sem
condecoração”.
A “pequena varíola” não é menos grave do que a grande, muito
pelo contrário. Ou seja: as duas varíolas, em francês, não têm nada
a ver uma com a outra. “Pequena varíola” é o nome que deram, na
Idade Média, à varíola propriamente dita. E a varíola – as duas são
igualmente sérias – foi a maior assassina de todos os tempos,
compreendidas todas as categorias, bem antes da Primeira Guerra
Mundial e da bomba atômica. Hoje erradicada (a não ser, talvez, nos
laboratórios de armas biológicas. Mas sonhar não custa nada!), a
doença matou, sem dúvida, um quarto da população humana desde
a criação do mundo. Onipresente, agiu em todos os continentes,
avançando quase tão depressa quanto aqueles que a inoculavam.
Igualitária, acometeu servos e reis, ricos e pobres, sem distinção e
sem preferência. Possessiva, deixou sua marca indelével, por meio
de cicatrizes profundas, em todos que a ela sobreviveram.
*
* *
Mas voltemos à “grande varíola”… O nome sífilis foi utilizado pela
primeira vez por Girolamo Frascatoro, em 1530, em sua obra
Syphilis sive de morbo gallico [Sífilis ou a doença gálica6], que narra
a história de um pastor chamado Syphilus, o primeiro a contrair a
doença por ter despertado a ira dos deuses (eles de novo!).
Devemos a aparição daquilo que ainda chamam de “varíola maior”
na França ao rei Carlos VIII e às suas tropas, que trouxeram a
doença da expedição a Nápoles, em 1495. Chamada, em sua
origem, de “mal francês” pelos italianos e de “mal de Nápoles” pelos
franceses, a praga se propagou como um incêndio, pelos quatro
cantos do mundo, sem que ninguém chegasse a reconhecer sua
embaraçosa paternidade. Desde o início, foi um horror. O mal
atacou por todos os lados, principalmente as prostitutas e os
soldados, mas também os nobres e os burgueses das cidades.
A medicina da época era completamente incapaz de erradicar a
praga, e a doença pôde evoluir à vontade. Cada país por onde ela
se alastrava não deixava de dar ao novo mal o nome do vizinho
suspeito – na maioria das vezes, com razão – de ser o
contaminante. Para dar uma ideia da variedade de apelidos: os
russos falavam de “mal polonês”; os poloneses, de “mal alemão”; os
alemães, de “mal francês” – esse último termo foi ecoado pelos
ingleses, que o batizaram de “french pox”. Por sua vez, os
flamengos, holandeses e norte-africanos a chamavam de “mal
espanhol”; os portugueses, de “mal castelhano”, ao passo que os
japoneses e as populações das Índias Orientais diziam “mal
português”… Deus reconhecerá Seu povo!
E os espanhóis, o que diziam? Não diziam nada, justamente.
Estranho, não? Um silêncio suspeito que, na realidade, seria uma
confissão. Vinte anos depois da aparição do mal, os cronistas
revelaram que, provavelmente, foram os homens de Cristóvão
Colombo que trouxeram o agente da sífilis, o Treponema pallidum,
da América, onde a epidemia grassava entre os indígenas e
também as indígenas. Não podemos esquecer que se trata de uma
doença venérea.
Resta a grande questão: qual é, então, a relação entre a grande
e pequena varíola? Do ponto de vista médico, nenhuma. Mas há
uma do ponto de vista histórico. O episódio é interessante…
Quando os espanhóis conquistaram o império asteca, em 1518, lá
havia 25 milhões de habitantes. Em 1620, apenas 1,5 milhão havia
sobrevivido. O que teria acontecido? Genocídio? Massacre
organizado? Loucura assassina? Nenhum dos três. Ao desembarcar
no Novo Mundo, Hernan Cortez trouxe em sua bagagem um aliado
bem mais poderoso do que seus conquistadores: a varíola, que
causaria uma imensa devastação das populações autóctones, já
que seus organismos eram completamente vulneráveis ao vírus,
totalmente estranho para eles. E foi a tal varíola que teve uma
participação decisiva na derrota dos astecas!
Mas, se muitos ameríndios morreram por causa de vírus
europeus, os indígenas passaram para os espanhóis a sífilis.
Aquela, do Treponema pallidum, que era endêmica na América e
desconhecida do Ocidente. Transmitida para os conquistadores, a
doença desembarcou na Europa, passou por Nápoles – então
propriedade da coroa espanhola –, chegou à França por causa das
guerras italianas e dizimou a Europa nos séculos seguintes. É isso
que significa, na linguagem popular, “é dando que se recebe”...
Prova de que nem sempre se vence a guerra com os exércitos
que se imagina, e que micróbios podem se revelar mais eficientes
do que arcabuzes.
6. Em português, “gálico” é sinônimo tanto de “francês” quanto de “sífilis”. (N.T.)
4
C�������� � ������ �� ���!
Hoje em dia, é bem difícil imaginar que a cirurgia era um trabalho
reservado aos barbeiros. Eles não eram doutores em medicina, não
falavam latim nem tinham estudado Galeno e Aristóteles na
faculdade. Mas possuiam objetos cortantes, o que não era muito
frequente na Idade Média, mas indispensável, sem dúvida, tanto
para cortar ferimentos quanto para cortar a barba.
No hospital, eles participavam dos cuidados cotidianos.Não raro,
tinham um pequeno estabelecimento na cidade, cuja placa tinha a
forma da antiga tigela de barbeiro (uma tigela rasa com uma
reentrância que permitia o encaixe no pescoço do freguês),
prateada ou dourada, de acordo com sua graduação. Os médicos –
na maioria, clérigos – deixavam o terreno livre para os barbeiros
porque tinham recebido uma proibição formal, dada pelo Concílio de
Tours de 1163, de efetuar qualquer ato de cirurgia: “a Igreja abomina
o sangue!”. Esse era o mandamento. Os médicos, portanto,
tagarelavam em latim, repetindo os ensinamentos dos antigos, e
deixavam para os barbeiros incultos (que, evidentemente, não
conheciam sequer a primeira declinação!) e diligentes a tarefa de
cortar pessoas a seco! Quando a guerra recomeçou, era de bom
tom contratar os serviços de um barbeiro para cuidar da tropa.
Sendo assim, com orgulho de suas raízes, a nobre Sociedade
Cirúrgica Francesa repetia com satisfação que, durante o cerco de
Damvillers, em 1552, o grande Ambroise Paré executou a primeira
ligadura de uma artéria durante uma amputação, a fim de evitar uma
hemorragia fulminante no momento da secção da artéria femoral.
Uma excelente prática, tanto no sentido lógico quanto no
pragmático, digna do famoso barbeiro-cirurgião da Renascença.
Mas como se fazia uma amputação antes de Ambroise Paré?
O método era muito simples, ainda que um tanto rústico… Antes
de afiar as facas e os cutelos e de tirar o serrote da maleta,
punham-se os atiçadores de fogo para esquentar, que serviriam
para cauterizar a ferida. “Cauterizar”… A palavra é muito suave para
designar uma prática tão bárbara. Na época, cortava-se todo o
membro, serrando o osso depois de ter colocado um torniquete na
junta. Então eram queimadas, com ferro em brasa, todas as carnes
do cotoco, até que virassem… carvão. Esse carvão em brasa, ao
queimar as extremidades das veias e das artérias, também fazia a
hemóstase* e estancava o sangramento. Guardadas as devidas
proporções, o procedimento em nada difere do que fazemos hoje
(ainda que com um pouco mais de delicadeza) com os modernos
bisturis elétricos. Realizada, obviamente, sem anestesia, a manobra
era bastante dolorosa, para não dizer insuportável. Mas, na época,
tinha a virtude de eliminar os miasmas infernais da podridão por
meio do fogo.
Essa técnica, contudo, por mais que possamos elogiar sua
eficácia e seu caráter marcial, escondia um grande defeito: um dos
maiores riscos era a queda colateral da escara, quando, depois de
alguns dias, esses tecidos calcinados se fragilizavam e cediam sob
o efeito da pressão sanguínea. Isso poderia causar a eliminação do
tampão que controlava o sangue arterial, que então jorrava aos
borbotões repentinamente, causando a morte do soldado depois de
alguns esguichos de um vermelho ardente.
De qualquer maneira, quem já viu uma femoral cortada na virilha
tem dificuldade de acreditar que seja possível interromper o copioso
fluxo de sangue com um cautério, sobretudo em um sujeito jovem,
gozando de boa saúde. Também é difícil de acreditar que foi preciso
esperar o século XVI, o cerco a Damvillers e o gênio (indiscutível)
do mestre Ambroise para que a ideia de uma ligadura de artéria que
jorra sangue aos borbotões brotasse na cachola dos cirurgiões da
Antiguidade, que não eram, nem de longe, débeis mentais.
Nesse belo século XVI, Ambroise Paré era barbeiro dos bascos
ligados ao conde de Rohan e empreendeu, com o exército do rei
Henrique II, uma viagem à Alemanha. As tropas pararam, de
passagem, em Damvillers, lugar de pouca importância na região da
Lorena, que fora submetido ao bombardeio da artilharia inimiga. No
entanto, em um erro comum daqueles que se sentem mais fortes do
que outros, as barracas dos sitiantes foram instaladas perto demais
dos muros. Tanto que uma bala de colubrina foi atirada por cima das
muralhas e atingiu a barraca de Rohan, alojando-se na perna de um
dos nobres que o acompanhavam e ali descansava. A amputação
necessária “foi feita sem aplicar os ferros ardentes” , especificou
Ambroise Paré quando publicou seu livro7 alguns anos mais tarde.
Uma frasezinha muito simples para descrever um fato capital na
história da cirurgia! Dizem até que, por não ter fio de sutura à mão,
Paré pegou alguns fios de crina do rabo do cavalo da ambulância
para fazer a ligadura, e que isso explica por que, até hoje, os fios
cirúrgicos são chamados de “crins” [crinas] em francês…
Mas o cirurgião moderno não tem como não ficar surpreso
quando Ambroise Paré descreve seu método: “Quando da
amputação de um membro, é necessário que uma certa quantidade
de sangue seja expelida para que o pedaço amputado sofra menos
complicações, conforme a condição física e a força do doente. Uma
vez que o sangue tiver drenado em quantidade suficiente, deve-se
ligar prontamente as grandes veias e artérias, de modo a fechá-las,
para que não fluam mais. Isso deve ser feito segurando os tais
vasos com a ajuda dos instrumentos denominados ‘bicos de
corvo’… Esses instrumentos devem pinçar os referidos vasos
(porque há risco de pegar alguma porção da carne dos músculos ou
de outras partes)… Uma vez retirados, deve-se ligar os vasos com
um fio duplo”.
Se a ligadura da artéria foi corretamente descrita aqui, incluindo
o detalhe de usar um fio duplo por precaução, podemos apenas nos
espantar ao descobrir que um pragmático como Ambroise Paré
levava em consideração as heresias da velha sangria de Galeno*. A
desculpa era a necessidade de deixar o sangue fluir para obter um
sangramento menos abundante em seguida, facilitando a
hemóstase. Então podemos entender por que um certo número de
seus feridos sangrava até perder a cor e não se recuperava mais.
Mas é um fato consumado: as ideias transmitidas por gerações e
gerações têm vida longa. O mestre Ambroise, mesmo sendo tão
original, não escapou à regra.
Então foi Ambroise Paré que inventou a ligadura arterial?
Reconheçamos que ele não reivindicou nenhuma primazia,
apenas descreveu o que fez com uma certa humildade. Se
pesquisarmos um pouco, veremos que quase todos os cirurgiões
que o precederam falam na ligadura de artérias como uma técnica
indiscutível. Os cristãos Guy de Chauliac, Henri de Mondeville e
Roger de Salerne praticavam a ligadura; Avicena, entre os árabes, e
Maimônides, entre os judeus, eram igualmente partidários da sutura
arterial. Quanto ao grande Galeno em si, tudo leva a crer que
conhecia a ligadura arterial. Além disso, não podemos esquecer que
ele foi cirurgião da escola de gladiadores de Pérgamo, e é um erro
achar que não havia sutura naquelas lesões arteriais por onde o
sangue se esvaía no ritmo dos batimentos cardíacos. Mas é certo
que, naquela época, Galeno ignorava as funções do coração.
Então Paré não inventou a ligadura das artérias. Quando muito, a
defendeu. Mas, pelo menos, seu conselho foi seguido?
Nem um pouco! No século XVIII, o cirurgião Jean-Louis Petit,
famoso na época, ainda era contrário ao procedimento. Mesmo
Percy, cirurgião do Grande Exército de Napoleão, que melhorou a
técnica da amputação com seu famoso afastador, permaneceu fiel
aos benefícios do cautério.
Então, na nossa história, por que Ambroise Paré?
Simplesmente porque o personagem de Paré é sedutor e ficaria
bem na fachada dos nossos hospitais modernos como “pai da
cirurgia francesa”. O charme também conta quando o assunto é
história! Vindo do nada, um simples barbeiro tornou-se cirurgião de
quatro reis da França e deu um xeque-mate na universidade ao
escrever suas obras diretamente em francês, já que ignorava o
latim. Talvez por ser um tanto rebelde, contestar todos os livros
escritos por seus antecessores, ser pedante com seus pares e
respeitar apenas a Bíblia, o personagem agrade naturalmente por
seu lado rabugento, revoltado e sem meias-palavras. Um legítimo
francês, justamente por sua arrogância e perspicácia, que
prenunciou Voltaire, Rousseau e os grandes revolucionários. Na
verdade, o tal Paré tinha em si um tanto de revolução burguesa!
Além disso, existe uma tentação igualitária em Ambroise Paré
que, sob muitosaspectos, prefigurou a medicina moderna. Heróis
nacionais são sempre necessários. Mesmo que, às vezes, seja
preciso forçar um pouco o destino. E assim foi atribuída ao cirurgião
a seguinte resposta, que teria sido dada ao rei Carlos IX, a quem ele
operaria e que lhe pedira para ser tratado com mais atenção que os
pobres que o barbeiro costumava atender:
– Espero que trates melhor de teu rei do que de teus indigentes.
– Não posso, majestade!
– Como não podes? Ambroise, sou teu rei!
– Sim, majestade. É que trato meus indigentes como reis…
7. La manière de traiter les playes faictes tant par hacquebutes que par flèches et les
accidents… [Como tratar feridas causadas tanto por arcabuzes quanto por flechas e as
complicações...]. Paris, 1552. (N.A.)
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Hoje em dia, todo mundo responde à pergunta “Para que serve um
hospital?”, invariavelmente, da seguinte maneira: “Para internar os
doentes, a fim de encontrar um diagnóstico e tratá-los da melhor
maneira possível”. Isso pode parecer algo evidente para nós,
contemporâneos, mas nem sempre foi assim. O hospital evoluiu
muito ao longo dos séculos, em função do que se estima ser a
necessidade da população, das possibilidades da medicina, mas
também de prioridades políticas.
Desse modo, a partir do século XVII na França as epidemias se
acalmaram um pouco, e as pestes de todas as espécies se
tornaram mais raras. Mesmo assim, Henrique IV decidiu construir o
Hospital Saint-Louis extramuros, para reunir os pacientes
contagiosos e fazê-los tomar o ar fresco do campo.8 Isolar os
doentes já era algo, mas isso não resolvia, é lógico, o problema dos
pobres. E os pobres, faziam o quê? Tornavam-se um problema cada
vez mais real, pela quantidade e por sua concentração nas grandes
cidades. Acontece que, para completar, eles pediam esmolas e se
tornavam perigosos, quando se reuniam em grandes bandos. Sair
desacompanhado por Paris à noite era certeza de perder a vida por
causa de algumas moedas. A frase “o dinheiro ou a vida!” não era
mera força de expressão… Onde, então, trancafiar esses malditos?
No hospício, é claro!
Luís XIV, compreendendo bem o problema, resolveu separar o
joio do trigo. Além disso, em 1662, decretou que toda cidade
importante pudesse usufruir “de um hôtel-Dieu ou hospício para
acolher os pobres, os velhos, os vadios e os órfãos”. Estava
resolvida a questão dos doentes ou quem assim parecesse. Mas, ao
lado do Hôtel-Dieu da Île de la Cité, que continuava acolhendo os
pacientes ditos curáveis (sejamos otimistas), o rei fez erguer, em
1656, dois grandes hospícios que existem até hoje: o Salpêtrière,
para mulheres; e o Bicêtre, para os homens. Estava resolvida a
questão dos indigentes.9
Na verdade, os pobres se tornaram um problema de segurança
pública bem maior do que o problema de saúde representado pelos
doentes, mesmo os contagiosos. Já em 1612, os pobres e inválidos
tinham a obrigação de se trancafiar nos hospitais. Em princípio,
devia ser uma internação voluntária. Mas, como o hospital evocava
mais uma prisão, logo começaram a ser conduzidos até lá por uma
polícia especial, os Arqueiros dos Pobres. E, em menos de vinte
anos, o hospital passou a funcionar como local de encarceramento.
O hospital, na época, era investido de uma missão social, a de
corrigir os indivíduos que desviavam do normal e garantir uma
grande reclusão dos pobres. Acabamos esquecendo, mas essa
missão do hospital público perdura até hoje.
Em 1656, um édito ordenou a prisão de todos os mendigos e
vadios – homens, mulheres, crianças – e a reclusão no Hospital
Geral de Bicêtre. O hospital foi então dividido em duas grandes alas:
de um lado, a prisão; do outro, a área reservada aos “bons pobres”,
como os vadios que aceitavam ir para lá sem oferecer resistência.
Para os outros, já estava tudo preparado, incluindo os engenhosos
aparelhos de tortura encarregados de restabelecê-los à norma, com
ajuda de algumas sevícias muito bem escolhidas. Mas não parou
por aí: os mendigos e outros vadios não tiveram a exclusividade do
Bicêtre por muito tempo. Em 1660, o Parlamento de Paris decidiu
que o hospital geral também acolheria os alienados. Alguns anos
mais tarde, foi a vez dos que tinham doenças venéreas. A ambição
era grande, mas ainda não se podia falar em um encarceramento de
verdade. Isso foi feito em 1729, quando o Bicêtre realmente se
tornou uma prisão para os criminosos comuns, que esperavam ali
até partir para os trabalhos forçados.
A Revolução Francesa pouco mudou isso. Antes de 1792, ainda
existia todo tipo de detento no Bicêtre: os que pagavam pelo
alojamento e os que não pagavam. Os que pagavam eram alojados
em uma das 296 “cabanas”, espécie de quarto pequeno com 2,5
metros de lado, de onde nunca saíam. Os outros eram mandados
para a prisão de la Force, na qual viviam trancados em salas
comuns de 12 metros de comprimento por 10 metros de largura,
onde se amontoavam até setenta prisioneiros. Nas masmorras do
Bicêtre, um lugar apavorante enterrado a 5 metros de profundidade,
sem luz e sem ar, os prisioneiros eram mantidos acorrentados,
alimentados de vez em quando por um carcereiro sádico. E o
regime da Convenção Nacional lotou essas masmorras em nome do
ideal revolucionário.
Apesar de tudo, o Bicêtre continuaria célebre por muito tempo,
por causa de sua corrente de trabalhos forçados, um grande
acontecimento que atraiu uma multidão de espectadores até o
século XIX. Era possível, de fato, assistir ao esplêndido espetáculo
da “ferradura”. Os prisioneiros que deviam partir para os trabalhos
forçados eram presos, de dois em dois, por uma canga de ferro que
era lacrada diretamente nos prisioneiros, que ficavam com a cabeça
apoiada em uma bigorna. Entendemos que tal suplício, com direito a
gritos, palavrões e lágrimas, era apaixonante e conseguia atrair
curiosos do outro lado do rio Bièvre. A última corrente de trabalhos
forçados saiu do Bicêtre em 1836. Em um capítulo de Os
miseráveis, ambientado em 1832, Vitor Hugo dá uma descrição
impressionante da partida da corrente para os portos das colônias
francesas ocidentais.
Foi no Bicêtre que nosso caro marquês de Sade – que não
correspondia exatamente à norma de seu tempo – foi encarcerado
em 1803, depois da escandalosa publicação de Justine ou os
infortúnios da virtude. Sua família fez de tudo para tirá-lo daquela
“horrenda prisão, bastilha da escumalha” e interná-lo em Charenton,
uma casa de saúde que tinha um regime incomparavelmente mais
brando. Em 27 de abril de 1803 – ou seja, pouco mais de um mês
depois de sua chegada –, o marquês conseguiu sair do Bicêtre.
Mas, com as celebridades é assim: sua presença assombra as
paredes até hoje. Além do mais, Sade no Bicêtre... que espetáculo!
Em 1880, o Bicêtre se tornou, oficialmente, um asilo, ainda que o
estabelecimento tenha prosseguido com uma orientação marcada
pela psiquiatria. O Hospício Bicêtre passou a receber homens
indigentes e idosos com idade mínima de setenta anos ou
indivíduos de qualquer idade acometidos por enfermidades
incuráveis e sem de qualquer forma de subsistência.
Os tempos passam, e hoje o Bicêtre é um CHU10 com
instalações modernas, reformadas recentemente. Fui interno lá nos
anos 1970, em um departamento que ainda funcionava nas antigas
instalações. E, ao vagar pelos corredores dessa fortaleza que no
século XVII dominava o platô que havia em cima do rio Bièvre, eu
não raro escutava a canção da sala de descanso que os internos do
Bicêtre cantam até hoje:
Nesse Bicêtre a gente se aborrece,
Longe de Paris, que a gente não esquece,
Muito fiquei a pensar
Sobre envelhecer e caducar,
De Bicêtre, escute a cantiga,
Uma lição que talvez lhe sirva:
Nem sempre dá para levantar
Aproveite as bolas enquanto dá:
Nem sempre dá para levantar,
Aproveite os amores enquanto dá!
8. À época de Henrique IV, a localização do então Hospital Saint-Louis, no X
arrondissement, era em meio a campos e pântanos: passando a Porte du Temple, não
muito longe do patíbulo de Montfaucon. O objetivo era desobstruir o Hôtel-Dieu durante
uma epidemia de pestenegra e colocar os doentes em quarentena (ou seja: pelo menos
quarenta dias). (N.A.)
9. Para completar, Luís XIV também mandou construir o Hotel dos Inválidos, para os
soldados. É preciso dizer que inválidos mutilados de todo tipo retornavam das guerras e,
com frequência, juntavam-se aos mendigos, arrastando suas muletas pelas ruas da cidade
e exibindo seus cotocos, o que em nada ajudava o recrutamento de novos voluntários para
futuras campanhas reais. (N.A.)
10. Centro Hospitalar Universitário. (N.A.)
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A França pode se orgulhar de ter a primeira faculdade de medicina
do mundo: a de Montpellier, criada no século XII. A instituição –
assim como as diversas faculdades de medicina que vieram depois
– sabia muito bem como formar médicos eruditos, mas a presença
deles no hospital era algo excepcional… De fato: há muitos séculos,
o hospital era domínio exclusivo dos religiosos. A Igreja todo-
poderosa ali exercia sua caridade, e diversas ordens monásticas –
muitas oriundas das Cruzadas – foram pouco a pouco se
especializando em cuidar dos miseráveis hospitalizados. Quanto
aos médicos, apareciam de vez em quando no hospício para dar
conselhos, mas estavam sempre marcando presença com a
clientela mais sofisticada, que recebia tratamento em domicílio e
não queria saber das salas coletivas, com seu cortejo de gemidos e
odores pútridos que carregavam os miasmas da morte.
O ensino praticado na faculdade não era nem um pouco livre de
críticas… O doutor recém-diplomado que dela saía com frequência
era bastante capaz, mas fora alvo de um ensino doutrinário, no qual
o conhecimento de latim e de grego parecia ser mais valorizado do
que o de anatomia, e a experiência prática (de tratar doentes) era
quase nula.
Durante muito tempo, o ensino nas faculdades foi,
principalmente, teórico. Professores, não raro brilhantes,
comentavam as obras anatômicas de Galeno enquanto deixavam
para um barbeiro ignaro a tarefa de encontrar no sujeito* dissecado,
diante de alunos muitas vezes às gargalhadas, as vísceras das
quais ele praticamente ignorava a existência. E os dias de
dissecação também eram poucos: não estavam autorizados, por
ordem eclesiástica, mais do que três por ano escolar, e ainda
apenas durante o inverno. Assim exigia a conservação dos
“sujeitos”!
Também havia pouca experiência prática nos hospícios que se
evitava frequentar, poucas dissecações (porque a Igreja abominava
o sangue) e, sobretudo, pouco ou nenhum tratamento eficaz. Até o
século XIII, essas faculdades produziam, no mais das vezes,
doutores no sentido acadêmico do termo, que discutiam em latim ao
pé do leito dos enfermos, mas eram incapazes de tratá-los. Eram os
famosos “doutores Diafoirus”, que não escaparam do sarcasmo do
grande Molière, em O doente imaginário: “Ele se tornou formidável,
não perde uma oportunidade para se pôr a argumentar à exaustão
em favor da proposição contrária. Encerra a disputa, forte como um
turco em relação aos seus princípios, sem jamais mudar de opinião
e persegue um raciocínio até os últimos recônditos de sua lógica.
Mas, especialmente, o que nele mais me agrada e, nesse aspecto,
ele segue meu exemplo, é que se apega cegamente às opiniões de
nossos precursores e jamais quis compreender nem escutar as
razões e as experiências das pretensas descobertas do nosso
século, no que tange à circulação do sangue e outras opiniões da
mesma espécie”.
Para arrebentar essa camisa de força, seria preciso alguns
figurões…
Resumindo, foi preciso duas personalidades da história da
França – nada mais, nada menos – para assumir a temerária tarefa
de reformar os hospitais e os estudos de medicina.
Surpreendentemente, foram Napoleão Bonaparte e o general De
Gaulle que se dedicaram a ela, separados por alguns séculos.
Como se, neste belo país que é a França, fosse necessário o pulso
firme de um poder executivo forte e, se possível, militar para ter a
ousadia de tocar nesse bastião de todos os conservadorismos.
*
* *
Façamos justiça a Bonaparte que, quando subiu ao poder, em
1799, herdou uma situação catastrófica, cujo grande responsável foi
o furor antirreligioso revolucionário. Comandados pelos religiosos,
os hospitais se tornaram o alvo preferencial do ódio anticlerical.
Carnot11, levado por seu furor revolucionário, chegou a escrever: “A
maioria dos hospitais ainda é atendida por freiras que distribuem os
tratamentos com uma parcialidade bem explícita… São focos de
fanatismo e de contrarrevolução: precisamos renovar toda a sua
administração, precisamos expulsar os padres refratários que lá
ainda trabalham, substituir todas as freiras por damas caridosas…”.
Como sempre, a realidade era um pouco diferente dos desejos de
Carnot. Na verdade, impuseram que todas as religiosas que
trabalhavam nos hospícios prestassem o juramento revolucionário.
É óbvio que a maioria se recusou, o que ocasionou uma série de
expulsões, prisões e, em certos casos, condenações à morte
dessas pobres mulheres, e, na prática, todo o pessoal formado e as
auxiliares minimamente competentes abandonaram os hospitais. Na
ânsia de consertar as coisas, proclamou-se, sob o pretexto da
igualdade, da liberdade de todas as profissões, que charlatães de
toda espécie podiam virar médicos improvisados…12
O Antigo Regime nunca conseguiu fazer os médicos pararem no
hospital, e a Revolução expulsou as enfermeiras!
Não restava mais nada além de liquidar as instalações em si,
algo que o comitê de finanças da Convenção conseguiu no dia 23
de messidor do ano II13 (11 de julho de 1794), quando pôs à venda
o patrimônio hospitalar sob forma de bens nacionais pagáveis em
assignats, uma moeda de troca da época, bastante favorável aos
compradores…
Já que os deputados da Convenção não eram nem um pouco
tolos, podemos nos perguntar como é que não entenderam a
dimensão de um erro deste tamanho. Mais uma vez, é preciso
mergulhar no espírito da época para entender. Para inúmeros
revolucionários daquele tempo, o hospício não passava de um
resquício obsoleto do poder religioso favorecido por um regime
aristocrático, decadente e injusto… Nessa época, ninguém falava
em doentes. Tanto que, de acordo com o pensamento
contemporâneo da Revolução, a doença só podia ser consequência
da miséria, como resumiu Saint-Just14 – que se sentia
particularmente repugnado pela existência dos hospitais – para a
tribuna da Assembleia Nacional: “Se a revolução terminar e ainda
existirem infelizes entre nós, nossos trabalhos revolucionários terão
sido em vão”. Logo, vendamos os hospitais para quem oferecer
mais: serão pagos em assignats sem valor. O que não tem
importância, porque amanhã os miseráveis terão desaparecido.
Evidentemente, a Revolução em curso resolveria a ambiguidade, já
que a justiça social, ao suprimir a pobreza, permitiria curar os
doentes. O mito do futuro brilhante, versão 1793. Era preciso
acreditar… O dogmatismo revolucionário conduziu a um
contrassenso com graves consequências.
O regime da Convenção só acabou quando uma boa parte do
estrago já estava feita. E como o “futuro brilhante” que os
convencionistas esperavam, do fundo do coração, não chegava, e
as doenças não compreenderam que não tinham mais direito à
cidadania na República, foi preciso que seus sucessores aceitassem
que precisavam se interessar de novo pelos hospitais.
O Diretório, regime que se seguiu, tentou salvar o que podia ser
salvo e suprimiu a lei de 23 de messidor que permitia a venda dos
hospitais. Mas, diante da decrepitude do que restava desse
patrimônio, das carências cruéis ligadas à evasão dos religiosos e à
espoliação, só conseguiram um resultado: livrar-se desse pesado
incômodo, confiando às cidades a obrigação e a responsabilidade
por seu funcionamento. Essa lei, promulgada em 16 de vindemiário
do ano V (7 de outubro de 1796), pode ser considerada fundamental
para a França, já que organiza, desde então, uma grande parte do
funcionamento de nosso sistema hospitalar: até hoje são os
prefeitos que decidem o destino dos estabelecimentos de suas
cidades. Quanto à venda dos benshospitalares, era preciso
estancar a hemorragia e tentar recuperar aquilo que ainda podia ser
recuperado para que fosse nacionalizado. Porém, também nesse
ponto o estrago já estava feito.
*
* *
Mas o risco de desaparecer era ainda maior para os médicos.
Façamos aqui uma devida homenagem a Antoine François de
Fourcroy (ajudado, sejamos justos, por Guillotin, Cabanis e
Chaptal), que restabeleceu o ensino da medicina naquelas
condições difíceis, criando Escolas de Saúde para resolver o que
era mais premente (formar “oficiais de Saúde”) e mantendo as
verdadeiras faculdades, para voltar a formar doutores de verdade.
Michel-Augustin Thouret foi nomeado diretor da Escola de Paris, e,
em 1795, o ensino voltou a ser oferecido nas faculdades. “Medicina
e cirurgia, dois ramos da mesma ciência”, eram reunidas e
ensinadas aos “alunos da Pátria”. Mas, no entendimento desses
revolucionários, que sonhavam com uma nova ordem para todas as
coisas, o ensino da medicina precisava ser inédito, baseado na
prática, fugindo das teorias enevoadas e prolixas da faculdade do
abominável Antigo Regime: “Ler pouco, ver muito e fazer muito.
Essa será a base do novo ensino”, explicou de Fourcroy ao Comitê
de Instrução Pública em 1794. Parte da lei de 10 de março de 1803
transformou as propostas de Guillotin em reformas. Reformas nas
quais a medicina de hoje ainda se baseia.
Enfim, depois das medidas de urgência do Diretório, também era
preciso reagir para salvar os doentes (ou os miseráveis... já vimos
que naquela época a diferença não era muito clara!). A criação do
Conselho de Salubridade do Departamento do Sena em 18 de
messidor do ano XI (7 de julho de 1802) permitiu que a
administração dispusesse de um órgão de consulta estável,
constante, e as comunas ficaram encarregadas de dar assistência
aos pobres, de gerenciar os hospitais (é daí que vem nomeação,
que perdura até hoje, do prefeito da cidade como presidente do
Conselho de Administração do hospital local) e de dar assistência e
medicamentos aos indigentes. As comunas passaram a ser
obrigadas a contratar médicos, que eram encarregados de informar
ao prefeito a respeito do estado de saúde da população e a respeito
de epidemias.
Continuava-se em pleno acordo com o contrato social do caro
Jean-Jacques Rousseau: a transformação global da sociedade
confundia o doente com o pobre sofredor, vítima de injustiças do
Antigo Regime. Nesse sistema, o hospital só podia ocupar um novo
lugar, o de espaço de formação e de assistência, o templo laico de
uma nova sociedade cujo objetivo era brilhante: substituir a caridade
pela assistência! Mas, atenção: uma assistência controlada pelo
Estado (Assistence Publique*), com médicos formados para essa
função e às suas ordens… E, se possível, a longo prazo (era
possível sonhar!), ter verdadeiros doentes acometidos por
verdadeiras doenças, e não apenas os pobres, mas cidadãos
capazes de progressivamente pagar por seus tratamentos. Mas, da
teoria à prática, havia uma grande distância…
*
* *
Napoleão, o primeiro cônsul, tinha de sua parte plena
consciência de que os médicos eram algo raro nos hospitais civis,
principalmente aqueles com verdadeira experiência prática. Também
sabia que depois do meio-dia e à noite ninguém cuidava dos
doentes. Em um verdadeiro golpe de mestre, fez criar, por meio do
decreto consular do dia 4 de ventoso do ano X (10 de fevereiro de
1802), que legislava a respeito do regulamento geral do Serviço de
Saúde, o internato e o externato dos hospitais*. O artigo 24 desse
decreto estipulou que “o exame para os alunos do internato em
medicina ou em cirurgia deverá ter por objetivo constatar se eles
estão em condições de se beneficiar da instrução prática que é
adquirida nos hospitais; assim sendo, serão questionados sobre os
diferentes temas que constituem a teoria da profissão. Todavia, o
exame será dirigido mais especificamente aos temas do treinamento
necessário para o cargo almejado”.
Disse tudo – ou quase. O primeiro cônsul colocou os melhores
dentro do hospital, para que largassem seus malditos manuais e
aprendessem, enfim, a tratar dos doentes. Mas, no final das contas,
também acabou selecionando a elite. A meritocracia revolucionária
se manifestou por meio de um concurso que até hoje tem
consequências na história da medicina francesa.
O primeiro processo seletivo teve lugar em frutidor (setembro) do
mesmo ano (como sempre, o primeiro cônsul era eficiente!); dos 64
candidatos que se apresentaram, 24 foram selecionados. O primeiro
colocado se chamava Louis Jean Baptiste Alin, e aí vem a pequena
história: seu internato durou quatro anos, e o tema da sua tese eram
hérnias intestinais incompletas com gangrena.
Que fique claro: os concursos para se tornar primeiro “externo”,
depois “interno” dos hospitais eram organizados pelas
administrações hospitalares e não pelas faculdades de medicina.
Era-se “interno” de Paris, de Lyon ou de outro lugar. Ou seja: era-se
formado por esses hospitais, mesmo quando seu vínculo
universitário dependia de outra cidade. Essa formação vinha em
paralelo e, por vezes, competia com a faculdade, onde o ensino
permanecia essencialmente teórico e só permitia que os estudantes
fizessem estágios nos estabelecimentos de saúde sobre os quais
não tinham nenhuma responsabilidade. As seleções de internato
atraíram a elite dos futuros clínicos e foram a força motriz da
medicina de qualidade na França. Permitiram formar médicos dos
hospitais (que nem sempre eram professores da faculdade) e
continuaram a garantir uma sólida formação prática.
Para estabelecer, no entanto, uma ponte entre a formação dos
internos e a daqueles que não participaram do programa e, dessa
forma, dar uma formação prática aos simples estagiários dos
hospitais, foi criada, em 1823, a função – logo, o título de prestígio –
de chefe de clínica. Que ainda existe, mas é com frequência mal
compreendida. Em primeiro lugar, porque o chefe de clínica não é
chefe (…do departamento) nem trabalha em uma clínica (…
privada)! É um título acadêmico e, portanto, depende da faculdade.
Na maioria das vezes, é dado a um ex-interno que fica encarregado,
no hospital e na faculdade, dos alunos que fazem estágio clínico.
Em outras palavras, de fazer os estagiários que ainda não
participaram da seleção (ou que não foram aprovados) se
beneficiarem de sua experiência adquirida durante o internato. Os
chefes de clínica atuais são verdadeiras peças-chave dos serviços,
um núcleo fundamental da formação médica universitária.
A Revolução Francesa, assim como em outras áreas,
desempenhou um papel determinante na evolução do hospital:
transferiu o poder hospitalar dos religiosos para os médicos por
motivos consideravelmente doutrinários; mas, ao fazê-lo, entregou –
sem querer – o hospital aos doentes e também fundou o hospital
moderno. Infelizmente, apesar de o hospital ter se tornado o lugar
onde se formaram os novos médicos, onde se desenvolveu a
pesquisa em anatomia clínica na primeira metade do século XIX e
onde os doentes iam para receber alguns cuidados, não pôde se
tornar um verdadeiro lugar para curar os doentes. Por uma razão
simples, mas importante: ainda não havia tratamentos realmente
eficazes… Os médicos do século XIX se encarregariam de
preencher essa lacuna…
11. Lazare Carnot, deputado da Assembleia Legislativa bastante influente no início da
Revolução Francesa. (N.T.)
12. Decretos da Assembleia Legislativa de março de 1791 e da Convenção Nacional de 15
de setembro de 1793. Pode-se considerar que a ideologia social irracional da época
provocou uma crise no seio da medicina hospitalar em benefício de uma medicina liberal
em que indivíduos sem formação distribuíam cuidados irresponsáveis. (N.A.)
13. Uma das ações da Revolução Francesa foi extinguir o calendário gregoriano,
considerado símbolo do poder da Igreja e da monarquia. Em 1973, foi adotado o calendário
revolucionário, que tinha início em 22 de setembro de 1792 (dia da proclamação da
República). (N.T.)
14. Louis Antoine Léon de Saint-Just, que ajudou a instaurar o regimedo Terror e morreu
na guilhotina, junto com Robespierre. (N.T.)
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Estamos em agosto de 1805, e Napoleão decidiu invadir a
Inglaterra e reunir um exército ao redor de Boulogne-sur-Mer para
preparar a invasão. O acampamento de Boulogne, ou melhor, os
acampamentos, eram constituídos de casebres de madeira e pedra,
onde a vida da guarnição era uma intensa sucessão de bebedeiras,
brigas e far niente. Mas, dia após dia, por trás dessa aparente
calmaria, moldava-se uma formidável ferramenta de combate.
As previsões do ministério contabilizavam mais de 500 mil
homens em pé de guerra, dos quais 400 mil eram soldados de
infantaria. É claro que é preciso descontar os feridos e desertores,
que não chegavam a representar algumas dezenas de milhares de
homens. Mas, desde os exércitos do ano II do calendário da
Revolução Francesa15, ninguém dispusera de uma força militar tão
importante. Tinham acabado de remanejar completamente as
meias-brigadas criadas em 1793 pelo decreto de 1o de vindemiário
do ano XII (24 de setembro de 1803). O objetivo era claro: dispor de
uma tropa mais instruída e mais organizada para se reunir sob uma
única autoridade: a do imperador. Além disso, os oficiais-generais
eram de uma nova geração, totalmente devotada às suas ordens.
Apesar de jovens (entre trinta e cinquenta anos), já tinham a
experiência das campanhas anteriores e, sobretudo, a maioria tinha
patente. Deviam a Napoleão sua carreira ou sua formidável
ascensão e eram defensores incondicionais do ideal revolucionário
e daquele que a seus olhos o encarnava.
Em Boulogne trabalhava-se muito. O marechal Ney revisava a
estratégia, e o general Soult realizava manobras diversas vezes por
semana com suas divisões. O entusiasmo motivava as tropas:
fariam picadinho daqueles malditos saxões. Como um novo
Guilherme, o Conquistador, Napoleão esmagaria a todos assim que
iniciasse a nova batalha de Hastings.16
Enquanto isso, um boato começou a circular entre os soldados:
havia uma ameaça perniciosa que não podia ser trucidada com
golpes de baioneta. Do outro lado do Canal da Mancha, havia uma
epidemia medonha de varíola, que semeava o terror na zona rural
inglesa. Não era questão de morrer em combate, mas de sucumbir a
pestilências infernais… Napoleão até ficou sensibilizado com o
efeito devastador da tal small pox17, que empesteava a Inglaterra
havia dezenas de anos. E aquela invasão já tinha dificuldades,
perigos e incertezas suficientes para que essa ameaça, que não
estava nos planos, fosse encarada de forma leviana. Sempre a par
dos avanços da ciência de seu tempo, pediu para que o dr. Guillotin
lhe contasse a história de um tal Jenner. Guillotin, então, tentou
convencer o imperador dos benefícios daquele método pioneiro que
acabara de ser inventado e começava ser chamado de “vacinação”.
Por que vacinar e qual o resultado nas vacas? A história divertiu o
imperador, seduzindo seu espírito pragmático.
*
* *
Tudo começou quando Jenner, um médico do interior e, portanto,
próximo do universo rural, ficou abalado com uma crença bastante
arraigada em Gloucestershire, onde clinicava: apesar de todas as
suas andanças, as camponesas jamais pegavam varíola. Não se
podia dizer que eram particularmente limpas ou bem cuidadas…
Suas mãos eram sujas, não raro cheias de terra, com pústulas* que
iam até o antebraço. Às vezes, infeccionavam, e o médico precisava
fazer curativos. Jenner tinha examinado um bom número dessas
moças, das bonitas às mancas, das gorduchas cobertas de sardas
vermelhas que iam do nariz até o púbis às grávidas que não tinham
a menor consciência disso, das que tossiam e até cuspiam sangue e
pus vindos de seus pulmões cavernosos e sifilíticas que exibiam um
cancro no baixo ventre. Mas, se parasse para pensar, não tinha
visto varíola em nenhuma dessas moças.
Talvez fosse por causa daquela doença das vacas, que
chamavam de cow pox ou vaccine, que podia ser transmitida para o
homem pelo contato e, portanto, para as ordenheiras ou para as
camponesas, na forma de pústulas mais ou menos profundas nas
mãos e nos antebraços, que as protegiam… Sem hesitar, Jenner
teve a ousadia de extrair as pústulas de Sarah, que tinha ido se
consultar. Sarah era o que devemos chamar de “uma bela dama”.
Uma camponesa bem fornida, de cabelo louro que transbordava por
baixo da touca, peitos fartos de um branco leitoso que escapavam
pelo decote do corpete. Ela exibiu a seu médico, a quem venerava
mais do que tudo, suas pústulas com uma expressão angustiada de
quem duvida do diagnóstico. Já vira morrer muitos bexiguentos18 e
sabia que não havia tratamento. Jenner a tranquilizou, sorrindo, mas
perguntou se podia recolher um pouco de pus de suas pústulas. A
avantajada Sarah não ficou brava até ver o bisturi se aproximar de
seu braço, mas deixou que ele terminasse a coleta.
Assim que o pus foi colhido, Jenner o inoculou na pele
escarificada do pequeno James Phipps. E, após ter certeza que o
jovem tinha contraído a cow pox, não hesitou em inocular nele uma
vesícula de um bexiguento que já morrera, para demonstrar que o
rapaz não podia mais ser contaminado. Que incrível coragem, que
incrível certeza de ter razão. Essa história em muito agradou
Napoleão. Era preciso homens com essa coragem!
O fato de Jenner ter enfrentado ceticismo e incompreensão em
seu próprio país não significava grande coisa aos olhos do
imperador. Pelo contrário! Seu relatório inicial sequer fora publicado
pela Royal Society. E, quando suas pesquisas se tornaram um
pouco conhecidas do público, o médico teve de encarar uma terrível
campanha da imprensa contra sua vacinação. Muita gente – por
causa dos caricaturistas, aliás – achava que a vacina fazia crescer
chifres de vaca na testa.
Mas o imperador já estava convencido: o seu exército poderia
até sucumbir às balas inglesas quando atacasse, mas não seria
vítima de malditas doenças. Bonaparte conhecera epidemias no
Egito, e a peste fizera uma carnificina em suas tropas. Estava
convencido de que era preciso evitar a varíola, se realmente
existisse como. Foi assim que tomou a decisão de vacinar seu
Grande Exército.
Na verdade, o mestre da vacinação na França, desde 1799, era
Guillotin.19 Defensor da vacinação sistemática e irrestrita de toda a
população, o médico clamava, coberto de razão, pela erradicação
da peste. Dono de uma inteligência viva em perpétua pesquisa,
presidira o Comitê da Vacina a partir de 11 de maio de 1800 e
obteve até o apoio do papa. O que foi uma proeza, pois uma parte
do clero francês se declarou contra a vacinação. Só Deus sabe o
porquê…
O próprio Napoleão havia fundado, em 1804, a Sociedade para
Extinção da Varíola e pela Propagação da Vacina, cujo objetivo era
construir infraestruturas de vacinação em cada departamento.
Recursos (na verdade, bem insuficientes) foram destinados a esse
comitê, para que se responsabilizasse pela vacinação em escala
departamental. Essa tentativa de política de saúde em escala
nacional – a primeira desse tipo –, muito antes da luta contra o
colesterol e o tabaco, conseguiu, contudo, colidir com a oposição
coordenada do clero e dos hospícios parisienses. Em política, assim
como na medicina, sempre é preciso ter oponentes para realmente
ter credibilidade.
No exército, Napoleão foi o líder que organizou o que parecia
bom para os soldados. Encarregou Desgenettes20 de dar o
exemplo. O médico levou o próprio filho para ser vacinado, em
1802, o que permitiu uma publicidade retumbante dos benefícios da
vacinação, já que o imperador – ao contrário das ideias propagadas
– não quis obrigar nenhum de seus homens a tomar vacina,
deixando-os livres para decidir. Em vez de forçar, ele queria
convencer. Além de Guillotin, podia contar com Antoine Augustin
Parmentier, primeiro farmacêutico do Grande Exército, que também
se esforçou para que a vacina fosse administrada por toda a França,
especialmente entre os soldados, e com Jean François Coste,
médico-chefe do Grande Exército, que organizou a vacinação da
tropa em Boulogne.
Mas, emretrospecto, foi a prudência que dominou a situação. E
Coste, em especial, insistiu muito nas medidas de higiene que
deveriam acompanhar a vacinação. A atitude foi louvável, mas logo
terminou em fracasso. Os médicos ficaram sabendo que o projeto
de ataque à Inglaterra fora abortado e que as tropas tinham
marchado para lutar em terra contra os russos e os austríacos, que
não pareciam ser atingidos pelas virulentas vesículas. Em 1806,
Coste e Percy redigiram um relatório que foi transmitido
imediatamente ao conjunto dos estados-maiores, propondo
novamente a vacinação das tropas. Mas as questões práticas não
foram muito bem orquestradas, e a intervenção não foi coroada pelo
sucesso. Cabe a nós avaliar: no começo do ano de 1807, apenas
2.066 soldados tinham sido vacinados. Quando o imperador
abdicou, esse número tinha triplicado. Mas tendo em vista que o
Grande Exército contava com 500 mil homens, continuava irrisório.
A distância entre querer e fazer é grande, vamos admitir. Quando
desistiu de invadir a Inglaterra, Napoleão perdeu o interesse pela
varíola? É fácil responder que não. Pelo contrário: ficou
profundamente convencido do interesse maior da vacinação e fez
Bourdois de la Motte – velho companheiro de sua primeira
campanha da Itália, que foi nomeado médico pessoal de seu filho –
vacinar o rei de Roma. Chegou até a acalentar um projeto de tornar
a vacinação obrigatória na França. Não teve tempo para isso.
Tinha outras preocupações, sem dúvida…
15. Quando começaram as guerras revolucionárias, por meio das quais a França
conquistou diversos territórios, como a península Itálica e os Países Baixos. (N.T.)
16. Batalha ocorrida em 1066, em Hastings, na Inglaterra, entre ingleses e normandos,
com vitória esmagadora dos normandos. (N.T.)
17. Varíola. (N.A.)
18. Em português, a varíola também era conhecida como “bexiga”, por causa das pústulas,
e seus doentes eram chamados de “bexiguentos”. (N.T.)
19. O nome do infeliz Joseph Guillotin, médico brilhante de seu tempo, continua
indissociavelmente ligado à máquina que ele defendeu com (cont.)
(cont.) um objetivo humanitário, para evitar sofrimentos inúteis. Muito igualitário e adepto
do ideal revolucionário, sonhava que os delitos fossem punidos “pela mesma pena,
qualquer que seja o posto ou classe social do condenado”. Até então, as execuções eram
diferentes, de acordo com o tipo de delito e o status social do criminoso: a cabeça dos
nobres era cortada com sabre; a dos plebeus, com machado; os ladrões eram condenados
à roda de despedaçamento ou à forca; os regicidas eram esquartejados, e os heréticos,
sempre queimados vivos. O aparelho foi desenvolvido em 1792, por seu colega cirurgião
Antoine Louis (de onde saiu o primeiro nome que a guilhotina teve em francês, “Louison”),
mas foi logo chamado de “Guillotine”, contra a vontade do corajoso Guillotin, que
manifestou seu arrependimento até morrer. Por pura coincidência, um médico de Lyon que
tinha o mesmo nome de Guillotin, sem ter nenhuma relação de parentesco com Joseph, foi
executado pela guilhotina, o que contribuiu para o surgimento do falso boato de que
Joseph fora executado por “sua” própria máquina. Na verdade, ele morreu de causas
naturais, deitado em sua cama… (N.A.)
20. René-Nicolas Desgenettes (1762-1827) foi médico-chefe do Grande Exército. Chamou
a atenção de Bonaparte durante a expedição ao Egito por suas habilidades em higiene e
por sua franqueza que, às vezes, contrariava as ordens do comandante em chefe. (N.A.)
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No começo do século XIX, a universidade francesa se recuperava
com dificuldade das torturas revolucionárias, e foi preciso algumas
personalidades excepcionais para reestruturar os estudos de
medicina e dar a eles um caráter prático e científico que cruelmente
lhes faltava no Antigo Regime. Orfila foi uma delas.
Mathieu Josep Bonaventura Orfila nasceu em Minorca, no ano de
1787. Fez sérios estudos na Espanha, concentrados nas ciências
fundamentais, especialmente em química. O jovem ambicioso,
querendo aperfeiçoar seu currículo, obteve, em 1807, uma bolsa
para estudar em Paris, onde lecionavam químicos brilhantes, como
Nicolas Vauquelin e Louis Jacques Thénard. Qual foi a motivação
para Orfila se inscrever na Faculdade de Medicina, em 1811, para
defender sua tese? Talvez os fabulosos professores de ciências
naturais, como Georges Couvier e Jean-Baptiste de Lamarck. Mas,
sem dúvida, também a intuição de que a medicina deveria se abrir
para ciências cujas aplicações eram múltiplas e de que ele parecia,
obviamente, ser o homem mais indicado para isso. Era um momento
propício para conquistar todas as promoções com as quais ele
sonhava. Além disso, Orfila se dedicou ao trabalho e publicou, em
1813, sua obra-prima: Traité des poisons tirés des règnes minéral,
végetal et animal [Tratado dos venenos tirados dos reinos mineral,
vegetal e animal], inventando, assim, uma nova ciência, a
toxicologia, que seria seu cavalo de batalha durante toda a vida.
Sua carreira universitária se desenvolveu rapidamente, apoiada
em numerosas publicações de química e medicina de urgência, no
âmbito das intoxicações, dos envenenamentos e afogamentos.
Objetivamente, o assunto agradava. Naqueles tempos exaltados, os
envenenamentos por arsênico eram frequentes, e os afogamentos
no rio Sena, cotidianos (é preciso dizer que diversas atividades
levavam o povo para o rio, mas ninguém sabia nadar!). O sucesso
foi tanto que Orfila foi nomeado professor de medicina legal na
faculdade de medicina, logo após obter a nacionalidade francesa.
Continuando sua irresistível ascensão, tornou-se decano da
faculdade de medicina de Paris, onde seu senso de organização e
seu desejo de reformas pôde se exprimir à vontade. Quem sabe faz
a hora! Orfila reestruturou profundamente o conteúdo dos estudos
propriamente ditos, introduzindo a química e outras matérias
fundamentais. Eliminou o título de oficial de saúde, que vinha do
período revolucionário, e obrigou os futuros estudantes a serem
bacharéis. Incansável, impôs uma seleção drástica dos professores,
propôs a construção de pavilhões de dissecação em frente às
instalações da faculdade, no Enclos des Cordeliers21 e de uma
escola de cirurgia na rua du Fer-à-Moulain. Pedagogo, instalou no
antigo refeitório dos franciscanos um museu de anatomia patológica,
o museu Dupuytren, que é visitado até hoje. Visionário, Orfila
obrigou os estudantes de medicina a frequentar as consultas
hospitalares, o que era loucamente inovador… Um trabalho titânico,
um vasto programa de reformas que ele tornou obrigatórias, tudo
em uma atmosfera de agitação estudantil alimentada pelos
acontecimentos políticos, daquelas que encontramos poucas vezes
ao longo da História…
Carreira exemplar? Seria o próprio arquétipo do mandarim*,
decano todo-poderoso, que realizou uma obra ao mesmo tempo
inteligente e duradoura? Certamente… Orfila foi um pouco disso
tudo. Objetivamente, a medicina moderna lhe deve muito. Porém,
um insidioso grão de areia vai se introduzir nesse suntuoso
panegírico: um grão de areia chamado Marie Lafarge.
*
* *
Marie Lafarge tinha 24 anos quando nossa história começa, em
1840. Sua avó nasceu de uma relação entre o duque Filipe de
Orleans – o célebre Filipe Igualdade – e Félicité de Genlis. O que
fazia de Marie Lafarge uma descendente de São Luís, mas
sobretudo prima (logicamente bastarda…) do rei Luís Filipe, que
estava no trono quando tudo aconteceu. Esse suposto parentesco
terá um grande peso no desenrolar de nossa história. Marie casara-
se um ano antes com Charles Lafarge, mestre das forjas da cartuxa
de Glandier, que lhe prometeu uma vida de senhora do castelo, mas
que queria, acima de tudo, receber seu dote para pagar as dívidas
em que estava afundado. A pobrezinha, muito romântica (coisas da
época!), imaginara para si uma vida de castelã. Mas, assim que se
casou, viu-se senhora de uma velha cabana, de um antigo
monastério caindo aos pedaços, à mercê de todos os ventos, sem
nenhum conforto e infestado de ratos… Imaginem só a decepção. A
pobreMarie Lafarge se decepcionou ainda mais quando seu marido
se revelou uma pessoa difícil de conviver, de um caráter interesseiro
e violento. Marie, desesperada, disse que desejava ir embora,
mesmo correndo o risco de perder seu dote. Mas, diante da recusa
do marido, engoliu o rancor e decidiu cumprir com seu dever de
esposa, dedicando a maior parte do tempo a pôr em ordem a velha
edificação sob sua responsabilidade, enquanto o marido corria o
país em busca de fundos para o seu negócio…
A corajosa Marie tentou solucionar uma emergência. E a
emergência era eliminar os bandos de roedores que assombravam
sua morada e assustavam a dama… Para isso, pediu para seu
administrador, Denis Barbier – um tratantezinho qualquer a serviço
de seu marido –, comprar arsênico, produto que era utilizado na
época para desratização… E eis que Marie espalhou o veneno por
toda a casa.
Foi aí que Lafarge partiu para Paris em viagem de negócios,
deixando a esposa sozinha com a sogra. Tentando restabelecer
uma relação de confiança com o marido, Marie aproveitou a
oportunidade para fazer bombas de creme, que enviou para Paris
junto com um retrato seu – fazendo as vezes de cartão de visitas –,
em um gesto de boa-fé. Porém, assim que o pobre Lafarge
experimentou um dos doces que sua esposa mandou, foi acometido
de dores de cabeça e vômitos violentos. Charles retornou com
urgência para Glandier em 3 de janeiro de 1840 e morreu no dia 14,
nos braços da esposa! No dia seguinte ao falecimento, a polícia foi
interrogar as pessoas da casa. Intrigada por essa morte inesperada
– e, para falar verdade, suspeita –, descobriu uma casa infestada de
arsênico. Daí para considerar a hipótese de um envenenamento,
não foi muito difícil. A vida íntima do casal foi exposta em praça
pública, e Marie foi logo acusada de envenenamento.
O julgamento transcorreu oito meses depois, no tribunal criminal
de Tulle. E foi nesse momento que nosso grande especialista
nacional, o professor Orfila, interveio. Na verdade, das quinze
análises toxicológicas efetuadas no cadáver de Lafarge pelos
médicos contratados para a perícia, apenas uma revelou presença
de arsênico e, ainda assim, em traços mínimos. Para a acusação,
ficou um pouco difícil condenar Marie Lafarge… Então a acusação
recorreu ao mais eminente toxicólogo da época para revelar a
verdade. E todo mundo sabia que Orfila tinha, em sua sacola, um
aparelho confeccionado por Marsh22 para dosar arsênico –
aparelho esse que o perito aperfeiçoara à sua própria maneira, para
torná-lo mais sensível –, cuja qualidade excepcional tinha elogiado
em diversas ocasiões. Para melhor desempenhar sua perícia, Orfila
pediu uma nova autópsia e, para surpresa de todos, afirmou, depois
de ter manipulado a máquina algumas vezes, que ela revelou
quantidades mínimas mas incontestáveis de arsênico no cadáver de
Lafarge. Essa afirmação teve um enorme peso. A acusação
conseguiu sua prova: a perícia de Orfila corria, então, o risco de
mandar Marie direto para o cadafalso… Nada mais, nada menos!
Uma parte do júri, contudo, permanecia cética… Os primeiros
estudos não tinham encontrado nada de conclusivo, apesar de suas
pesquisas aprofundadas… E, de repente, graças a uma máquina, foi
produzida a prova, irrefutável! Havia algo a ser questionado. Mas,
que peso tinham os especialistas anteriores diante da afirmação de
Orfila, esse príncipe dos toxicólogos, professor e decano de Paris,
autor do famoso tratado de toxicologia que servia de referência no
mundo inteiro, ferrenho partidário dos Orleans, ainda por cima – o
que reforçava sua posição imparcial diante daquela suposta prima
do rei, que continuava a proclamar sua inocência apesar de tudo?
Assim que entregou seu relatório, Orfila foi embora para Paris, onde
seus alunos o esperavam, levando consigo os reagentes que
utilizara.
No entanto, os defensores de Marie não se abalaram e exigiram
uma nova contraperícia, feita por Raspail, o grande químico
parisiense, adversário ferrenho de Orfila e republicano confesso.
Pobre Marie Lafarge: seu julgamento se transformou em uma
deliberação a respeito da Monarquia de Julho…23 Infelizmente,
esse segundo grande homem chega tarde demais para sua opinião
ter algum peso na decisão do júri, que acabara proclamar a
sentença: Marie Lafarge foi condenada a trabalhos forçados
perpétuos! Apesar desse julgamento injusto, Raspail terminou sua
perícia, descarregando impropérios contra Orfila, provando que o
arsênico existe naturalmente no corpo humano e que o método de
Orfila não era confiável, pois um de seus reagentes continha
arsênico e que, de qualquer maneira, as quantidades reveladas pelo
aparelho eram insuficientes para provocar um envenenamento…
“Encontraram arsênico no cadáver de Lafarge? Mas encontrariam
em qualquer coisa, até na cadeira do presidente!”, poderia ter
acrescentado.
Mas Orfila não estava mais lá para uma confrontação direta.
Parecia que tinha fugido para evitar seu adversário, como
ironizaram os humoristas da época: “Quando Raspail aparecia, logo
Orfila escapulia…”.
*
* *
A história foi muito difundida na época, não só porque a dúvida
em relação à culpabilidade de Marie Lafarge persistiu por muito
tempo, mas também por causa de seu parentesco com o rei Luís
Filipe. As opiniões políticas dos protagonistas interferiram no
julgamento, os escritores e jornalistas da época tomaram partido
naquilo que alguns chamaram de “crime perfeito” de uma bastarda
de Orleans, e outros denunciaram como um espantoso erro da
Justiça. Em sua correspondência com Eugène Delacroix, George
Sand tomou o partido de Marie, acusando o Ministério Público de
“prosseguir de modo sujo com esse caso mal conduzido”; Flaubert
buscou inspiração em Marie Lafarge para o personagem de Emma
Bovary…
Raspail não pôde influenciar o veredito nem conseguiu obter sua
anulação nas apelações. Mas continuou com suas críticas a Orfila e
ao aparelho de Marsh, com as seguintes palavras: “Apenas o sr.
Orfila, na França, sabe o segredo de interrogar o oráculo e
interpretar suas respostas!”.
No entanto, no ano seguinte, a Academia de Medicina exigiu
uma perícia do famoso instrumento, e o resultado dos testes foi, no
mínimo, severo com seu proprietário. Por ter sido ajustada por
Orfila, a famosa máquina de Marsh apresentava arsênico em todos
os cantos, inclusive onde não deveria. Por fim, passou a ser proibido
utilizar a máquina de Marsh, e – humilhação suprema – Orfila
precisou invalidar algumas de suas publicações anteriores.
Desacreditado por todos, teve que abandonar todas as suas
funções de perito judicial alguns anos depois desse caso.
À margem do duelo Orfila/Raspail, a estrela desse julgamento foi,
sem dúvida, o arsênico, já que os envenenamentos eram muito
frequentes naquela época. Mas quem foi que matou Charles
Lafarge? Infelizmente, não se sabe a resposta… Mas, quando
paramos para pensar, nos damos conta de que, na época, a
hipótese de uma intoxicação alimentar nem foi levantada, apesar de
ser a mais provável. Talvez Lafarge tenha morrido por consumir um
doce enviado por sua esposa. Um doce feito de creme e manteiga –
não pasteurizados, obviamente –, que viajou durante três dias, da
cartuxa de Glandier até Paris…
21. Antigo claustro franciscano. (N.T.)
22. James Marsh (1794-1846): químico britânico que inventou o teste para detecção de
arsênico. (N.T.)
23. Período de domínio da alta burguesia na França, entre 1830 e 1848. (N.T.)
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Quem passa na frente do número 149 da rua de Sèvres, perto da
entrada do Hospital Necker, em Paris, pode ver uma placa de
mármore bem modesta que não chama atenção à primeira vista,
pois se confunde com a austeridade da fachada da antiga
construção. E há tantas placas comemorativas na capital francesa
que ninguém mais presta atenção! Nesta, se lê: “Neste hospital,
Laennec descobriu auscultação”. Acima da inscrição, está esculpido
o perfil de um homem austero de traços emaciados, os olhos fundos
nas órbitas, com algo nos lábos que mais parece um ricto do que
um sorriso… Debaixo do rosto esculpido,

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