Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Libertas Faculdades Integradas Holocausto Brasileiro Cíntia de Paiva Sousa Técnico em Enfermagem 2°Módulo /2023 HOLOCAUSTO BRASILEIRO “O Holocausto brasileiro”, Arbex, Daniela (2013). Ao analisar as origens da história do nascimento da psiquiatria no Brasil, observa-se que o intuito de internar estes pacientes era, inicialmente, escondê-los da vergonha de sua exposição nas ruas e impedir que fossem recolhidos à cadeia pública. O confinamento tinha o intuito de esconder os alienados e segrega-los de qualquer convívio social, pois eram um estorvo na família e nas suas comunidades. Esconder o problema iria trazer alívio às famílias e bem-estar na sociedade, como registravam os relatórios pesquisados. Para os doentes ainda não haviam encontrado um tratamento adequado, como se pode constatar. As reivindicações das autoridades e diretores dos hospitais eram, portanto, angariar fundos para melhorar as condições de vida no estabelecimento e introduzir métodos de cura, e tratamento adequado; afinal os hospícios eram assim alcunhados de depósito de loucos porque nada ofereciam para o tratamento da doença, pelo contrário, submetiam os indivíduos já fragilizados, a situações desumanas de existência, como foi relatado nos relatórios e documentos da época Imperial. Apesar de todos os relatórios apontarem para denúncias da precariedade da vida dos internos e reivindicarem investimentos e melhorias, isso infelizmente não aconteceu no território nacional e nenhuma mudança significativa ou positiva houve nestas instituições. Podemos observar na evolução desse quadro, pelo contrário, a ocorrência da maior violação de direitos humanos na história do Brasil, que se desenvolveu no Hospital Colônia de Barbacena, MG. Este trágico episódio, que se iniciou no sec. XX e se arrastou por décadas, foi documentado no livro reportagem da jornalista Daniela Arbex, de onde serão feitas as análises e reflexões a seguir. A saúde mental na época do Império, e o Estado começou de forma superficial a lidar com o problema da precariedade das instalações psiquiátricas. Apesar dos diversos pedidos para melhoria da situação, estes relatórios foram simplesmente ignorados, não havia vontade política, não havia, portanto, verbas para tal fim. Ironicamente parecia que enquanto os alienados estivem reclusos e não incomodassem ninguém, o problema estaria resolvido! Afinal estes cidadãos não iriam ter poder de voto, não seriam economicamente ativos, não poderiam constituir uma família ou contribuir de alguma forma para o bem-estar da sociedade, eram apenas um estorvo. Com sua morte, ninguém iria sentir sua falta. Tal raciocínio não era consciente, não era proposital que eram vítimas de tantos maus tratos, mas isso era associado ao infeliz aparecimento da doença, para a qual a medicina ainda não tinha tratamento adequado. Neste contexto, o ser humano perde aos poucos a sensibilidade para o que é adequado. E a situação de precariedade foi só piorando, como retrata a autora: “Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria, enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças” (Arbex, D. 2013). Cabe-se observar que a política de saúde mental do Império, de segregar os doentes, escondê-los, retirar do convívio social, era um padrão que se perpetuou no Hospital Colônia Barbacena, isso já no final de sec. XIX. O mesmo padrão de esconder o doente que incomoda, ao invés de trata-lo, ou de tirar da sociedade aquele que se torna inadequado, veio se repetindo até início do sec. XIX. Agora não somente os doentes mentais seriam encarcerados, mas também epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, esposas rejeitadas, filhas que engravidavam solteiras e qualquer que fosse um “estorvo” para o sistema poderia ser vítima da segregação e do banimento da sociedade. Toda essa classe de minorias era eventualmente enviada para o Hospital Colônia de Barbacena ou outros “hospícios”. A autora relata os horrores que documentou no local e dedica sua obra a milhares de homens, mulheres, e crianças que perderam a vida num campo de concentração chamado Colônia: “Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs. Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida. Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Este foi o destino de Débora Aparecida Soares, nascida em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”. Só muito mais tarde, depois de adulta, Débora descobriria sua origem. Ao empreender uma jornada em busca da mãe, alcançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas”. Esta é uma das narrativas que Arbex (2013) documenta e transforma em memória, no seu livro-reportagem, cuja leitura se torna fundamental para maior compreensão de todo processo. Ao expor a anatomia do sistema, a repórter ilumina um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade. É importante destacar que, infelizmente, no período em que ocorreram os fatos era ditadura militar, e não havia liberdade de expressão: quem denunciava o Estado ficava sujeito a retaliações. Isso dificultou que os acontecimentos se tornassem públicos de início. Cabe aqui pontuar, fazendo um paralelo com o holocausto nazista, que este estava inserido num contexto de guerra e violência, em que havia luta de todos pela sobrevivência, numa situação hostil e incomum. O que não justifica, mas explica, a origem das atrocidades na segunda guerra. No entanto no holocausto brasileiro, não havia situação de guerra. Era paz, eram acontecimentos rotineiros, e os fatos ocorreram dentro de umainstituição pública, com o apoio da Igreja Católica, e criada com o intuito de curar doentes mentais: um hospital, como palco de tortura, violações graves de direitos humanos e genocídio! Tal paradoxo merece uma reflexão profunda de como os propósitos de humanização e cura na medicina podem se perder, tomando o rumo oposto de sofrimento e morte. Aquilo na época do Império parecia omissão dos poderes públicos para com os hospícios, foi tomando progressivamente uma dimensão generalizada em todo o território brasileiro, chegando às dimensões de genocídio um século depois, no caso em tela. A anatomia do sistema de saúde mental precária da época do Império tornou- se, como se observa, um padrão que ia se repetindo nas gerações seguintes: rejeição do doente mental, segregação e confinamento do mesmo, falta de recursos para seu tratamento, submissão destes aos maus tratos, e a morte dentro das instituições, ou graves sequelas psicológicas dos doentes e de seus familiares. Não houve registro de que o Brasil sofreu algum tipo de denúncia ou sanção nos Organismos Internacionais defensores dos Direitos Humanos, por conta do genocídio e tortura de aproximadamente sessenta mil pessoas. Havia censura a tudo que podia ser crítica ao Estado, o qual enfrentava a resistência de grupos que lutavam pela democracia. Nesta conjuntura havia muita dificuldade para se fazer qualquer ato de protesto contra essa violação de direitos humanos, sem sofrer punições ou retaliações. O mundo iria ser palco de duas grandes guerras mundiais, em que a violência e a morte seriam corriqueiras, de tal forma que casos pontuais, como no Brasil eram esquecidos, ficavam ofuscados pelos horrores da guerra na Europa, ficavam fora dos “holofotes” e não tiveram a atenção que mereciam. Assim, esse genocídio pouco foi propagado ou conhecido fora do Brasil. Mas em território brasileiro, começaram a se levantar denúncias contra os horrores no hospital Colônia: “O psiquiatra Ronaldo Simões Coelho, no final da década de 70, então chefe do Serviço Psiquiátrico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) realizou o gesto mais ousado: denunciar, no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, as atrocidades cometidas no Colônia. — Lá, existe um psiquiatra para 400 doentes. Os alimentos são jogados em cochos, e os doidos avançam para comer. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma. Seria de desejar que o Hospital Colônia morresse de velhice. Nascido por lei, em 16 de agosto de 1900, morreria sem glórias. E, parafraseando Dante, poderia ser escrito sobre o seu túmulo: quem aqui entrou perdeu toda a esperança. Estas declarações tiveram o efeito de impactar o meio médico. Mas por causa delas o médico perdeu o emprego na Fhemig. A demissão de Simões foi o primeiro ato de perseguição aos que romperam a cultura do silêncio” (Arbex, D. 2013). Assim, a semente estava lançada e as estruturas do modelo manicomial já não se sustentavam e começaram paulatinamente a ruir. Por sua vez, o médico italiano F. Basaglia fazia na época um trabalho voltado para uma política antimanicomial e, ao tomar ciência do caso em tela no Brasil, veio aqui fazer uma inspeção no hospital de Barbacena: “Em 1979, o psiquiatra italiano, que era pioneiro na luta contra os manicômios, esteve no Brasil para visitar a Colônia. Em seguida chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. “Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa” (Arbex D. 2013). Por ocasião da visita ao hospital Colônia do médico italiano Franco Basaglia, pontua a autora: “É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta” (Arbex, D. 2013). No decorrer do seu trabalho de pesquisa, Arbex escutou o depoimento de funcionários e médicos que haviam trabalhado na Colônia; um dos médicos, Ronaldo Simões, expressou para ela: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro” (Arbex, D, 2013) No final dos anos 70, o Psiquiatra Ronaldo Simões havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção, mas em consequência perdeu o emprego. Cabe aqui observar que o Brasil vivia na época dos anos de chumbo da ditadura e era muito difícil fazer protestos ou denúncias contra o Estado. O processo de abertura e redemocratização só veio acontecer décadas depois, no fim da década de 80. No início dos anos 60, a rotina do hospício veio finalmente a público: depois de conhecer o Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe: “Aquilo não é um acidente, mas um assassinato em massa”. Em 1961, a rotina do hospício foi narrada na revista o Cruzeiro, de maior circulação nacional na época, pelo repórter José Franco e pelo fotógrafo Luis Alfredo. O título da matéria era “A Sucursal do Inferno”, que causou grande comoção na sociedade. Em 1979 o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os Porões da loucura” no Estado de Minas. No mesmo ano foi filmado o documentário “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton, que também se tornou marcante na luta antimanicomial. Daniela Arbex publicou uma série de reportagens na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora. Seguiu investigando e compilou material para a confecção do livro “Holocausto Brasileiro”, o mais completo sobre o assunto. Para este trabalho ela viajava de Juiz de Fora a Barbacena todos os dias, noventa e cinco quilômetros. Voltava a tarde, exausta, tendo entrevistado mais de cem pessoas. Seu trabalho teve o mérito, segundo Eliane Brum, que fez o prefácio do livro, de “salvar do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou”, conclui. Duas décadas mais tarde, a partir dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica ganhou força, essa realidade começou a mudar. Restaram menos de 200 sobreviventes da Colônia, parte deles morreria internada. Outros seriam instalados em residências terapêuticas, com supervisão de funcionários, pois nunca ficaram autônomos e capazes de autodeterminação. Como farrapos humanos se destacavam os olhos mudos, sem brilho, sem identidade; restos de humanidade na história do holocausto brasileiro. Em Barbacena existe, para que a memória deste massacre não seja esquecida, o “Museu da Loucura”, o qual foi inaugurado em 1996 no torreão do antigo Hospital Colônia. O mesmo pretende ser um tributo às dezenas de milhares de vítimas da lendária instituição. Dos cinco museus de Barbacena, ele é o mais visitado por turistas. Neste sentido, Botti et al (2006) fizeram um trabalho de campo, em que visitaram o local, e realizaram uma compilação de reflexões sobre a importância da preservação da memória do Colônia: “A importância do Museu da Loucura é levar a pensar como tantos sofredores mentais foram marginalizados e excluídos e, a partir dessa reflexão, tentar ver o portador de uma outra maneira, porque o Museu da Loucura não deixa que a história da Psiquiatria em Minas e no Brasil fique arquivada num passado distante” (Botti et al,2006). AS MARCAS DO SOFRIMENTO NO ANTIGO HOSPITAL SANT’ANA As violações de direitos humanos nas instituições psiquiátricas do Brasil não se resumiram apenas no caso isolado de Barbacena, mas o desamparo, o sofrimento do doente mental institucionalizado era disseminado em todo o território nacional. Neste sentido, Borges (2013) observa: Na década de 70, o antigo hospício catarinense, O Hospital Colônia Sant’Ana vivia o ápice de sua superlotação”. Para coletar dados sobre a situação precária da época, a autora analisa entrevistas pertencentes ao Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Sant’Ana, realizadas com profissionais dainstituição no período, além de pesquisar outras fontes. As memórias das falas tecem assim a história do lugar por meio das lembranças marcadas pelo sofrimento. Assim o sofrimento será também entendido como um catalisador de mudanças e novos arranjos sociais na história do desenvolvimento da saúde mental no Brasil. A autora reporta o relato do enfermeiro Wilson de Paula que em 1971 iniciou suas atividades no Sant’Ana, onde trabalhou até 1977. Sua primeira visita ao local é assim descrita: (...) à primeira visita … foi uma coisa horrorosa. Comecei a conhecer a Colônia levado pelo administrador, que foi me dando as explicações mais absurdas. … uma das primeiras coisas que ele me mostrou foi um pedaço de pau que ele tinha guardado ao lado da mesa dele na sala da administração e que, segundo ele, às vezes ele precisava usar. Foi terrível: aquela visão dele me mostrando o pedaço de madeira, falando da loucura como um analfabeto (Paula, jan. 2009). Tais relatos são todos marcados pela perplexidade diante da realidade de um espaço que deveria ser na verdade terapêutico. Os registros da autora traduzem a realidade triste da instituição, que foi criada em novembro de 1941, no auge da tendência à institucionalização da loucura. Localizada no município de São José, surge para atender as políticas de saúde pública deste período, que visava implantar um serviço de assistência à saúde mental no Estado. Sua existência é, portanto, fruto de uma demanda ligada ao sofrimento, a fim de retirar do convívio social aqueles tidos como loucos. O intuito seria evitar a reclusão nas imundas cadeias situadas nos baixos das Câmaras Municipais. Relata a autora que para lá eram levados os alienados, igualmente a outros estados do Brasil, amarrados solidamente, depois de violência e lutas físicas. Desde sua fundação até trinta anos depois a situação não havia mudado. Os tratamentos e cuidados nunca foram tentados, e os alienados deixaram simplesmente a reclusão das prisões para a dos hospícios. Estes tinham inicialmente o intuito de dar um tratamento mais humano aos privados da razão, no entanto, como em outros casos, falharam no seu objetivo, tendo-se tornado um “depósito de gente”, um espaço superlotado, marcado pelo descaso: Uma característica que define grande parte dos hospitais psiquiátricos brasileiros em diferentes épocas, conclui a autora. Um dos relatos no seu trabalho de pesquisa ilustra, de forma clara, os vários tipos de violações aos direitos humanos a que os internos eram submetidos: O hospital que eu encontrei em 1971 era um hospital com seis ou sete médicos e com 2.156 pessoas. Havia lugares onde os doentes eram lavados em grupo, lugares onde os pacientes passam o dia inteiro dando volta numa estrutura que a gente chamava de sombrinha, onde havia enfermarias que, para você entrar, você tinha que chamar os guardas para ir junto, onde os pacientes estavam entregues à própria sorte. Era algo muito feio, muito triste, muito doloroso. Então se entrar em uma instituição com 2.156 pessoas hospitalizadas, onde só tinha cama para 1.200, onde havia beliches em que um deitava por cima do outro, e onde dado o fato que aquilo existia por tanto tempo, então se observava que aquilo era visto como natural, que as pessoas dormissem no chão, naquela condição. Isto só acontecia na psiquiatria (Gonçalves, mar. 2009). Este quadro de horror foi também amplamente documentado por registros fotográficos. A coleção de imagens foi realizada entre 1970 e 1978, possui um caráter de denúncia e marcam a entrada de novos profissionais na instituição; hoje faz parte da coleção da Cedope, HCS, em Santa Catarina. As imagens potencializam as falas e relatos dos depoentes, corroborando suas narrativas. Segundo a autora, é importante observar que o sofrimento não deve ser entendido como algo inerente exclusivamente à realidade das instituições psiquiátricas. Nem sempre e nem para todos os seus habitantes o cotidiano dentro destes espaços institucionais foi sinônimo de sofrimento (Wadi, 2004), ao estudar os prontuários de internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, problematizou “a perspectiva de vida de alguns habitantes de instituições psiquiátricas, que a despeito de quão nefandas podiam ser consideradas, buscaram nas mesmas encontrar um lugar para si. A autora também cita Borges (2006), o qual problematiza o desejo de permanência na instituição por parte de internos do Centro Agrícola de Reabilitação em Viamão (RS), documentando falas e vestígios deixados por pacientes, que revelavam que alguns passavam a se identificar com o local, e suas atividades agrícolas propostas, encontrando espaço na instituição. Assim pode observar que nem todas as memórias a respeito de instituições psiquiátricas da época são marcadas por lembranças ligadas ao sofrimento e maus tratos. Conforme Duarte (1998, p.13), apud Borges não se deve considerar o sofrimento uma simples consequência da internação ou mera criação desta, mas uma dessas formas inevitáveis para lidar com a dimensão entranhada do adoecimento. O que faz o essencial da doença, ou seja, a experiência de uma disrupção das formas e funções regulares da pessoa, implica necessariamente o “sofrimento”, quer seja entendido no sentido físico, restrito, quer no sentido moral, abrangente, que inclui também o sentido físico. O sofrimento tem algo de subjetivo, pessoal, que não pode ser mensurado ou comparado por fatores externos. É no foro íntimo do ser, dentro da alma, que ele é vivenciado e só pode ser mensurado por quem o vive. Contudo, o sofrimento físico e moral causado pela própria doença, anterior à internação pode, por vezes, ser potencializado por este. Contudo, nos depoimentos, as condições desumanas da instituição são atribuídas principalmente à superlotação, a qual atingiu seu ápice na década de 1970, problema que atormentou, tal como já abordado, todas as instituições psiquiátricas brasileiras nas diferentes regiões do país. Nas falas as condições desumanas da instituição são atribuídas sobretudo à sua superlotação: A Sant’Ana era um depósito de pacientes. Havia mais de 2.000 pacientes internados e lá existiam os chamados leitos-chão. Não sei se usa essa expressão, mas era uma pilha de colchões, cujas pessoas excedentes ali dormiam. Durante o dia, os colchões ficavam empilhados num canto e à noite eram colocados entre as outras camas. Aquilo precisava mudar a Colônia não ia ser mais um depósito (Paraíso, mar. 2009). De acordo com Santos (set. 2009), um dos depoentes entrevistados por Borges (2013): Aqui também tinha o quinto, que era um pavilhão chamado de geladeira, e era insuportável. Tinha na época, uma base de trezentos e cinquenta pacientes todos juntos.... No inverno, não é contar história, não é querer exagerar para ilustrar as coisas, mas eu cansei de recolher os mortos pela manhã quando chegava.... Tinha dia, no inverno forte daquela época, que nós chegávamos de manhã e recolhíamos quatro, cinco mortos, eram então colocados no necrotério, vestidos, porque eles estavam na maioria do tempo pelados. Eram levados para o cemitério no famoso carretão, quatro, cinco caixões no fundo da carreta, amarrados. Era assim, todo inverno eu acho que morriam uma série de vinte, trinta pacientes, por aí, na beira do rio, no inverno constante e forte, sem roupa, no piso, sem cobertor, colchão ou capim, sem medicação apropriada para dormir e para sedar. O que é que podia dar uma situação dessa. Era só morte, só morte, só morte!" Concluindo, Borges, apud Farge (2011) observa: Trabalhar sobre sofrimento e crueldade em história é também querer erradicá-los hoje. Explicando os dispositivos e os mecanismos de racionalidade que os fizeram nascer, o historiador pode fornecer os meios intelectuais de suprimi-los ou de evitá-los. No cotidiano superlotado, a morte é colocada como algo sempre à espreita, perpassando as diferentes falas. Nesse sentido, outras narrativas impactantes são trazidas pelo enfermeiroWilson de Paula e pelo médico doutor Ribeiro: Havia uma enfermaria que era chamada de geladeira, porque era muito fria e úmida. Lá tinha vários cubículos onde eram colocados os pacientes mais graves. Um dia eu cheguei lá e encontrei uma mulher agonizante com uma vela acesa na mão, e um monte de moscas em volta. Então, eu perguntei para a freira: o que é isso irmã? Aí ela disse: aqui é o quarto das moribundas, quando as doentes estão muito mal a gente coloca aqui para não morrerem nas enfermarias. (Paula, jan. 2009). Tínhamos que sair pelo hospital para preencher os atestados de óbitos dos pacientes que haviam falecido na noite anterior. Eu e meu colega clínico geral, Aluísio Bonrart, preenchíamos os atestados de óbito com base no que estava escrito no prontuário e nas informações que os atendentes nos davam... Às vezes nós íamos atender pacientes naquela unidade lá atrás que era chamada de “geladeira”; às onze horas da noite aquilo era terrível, era escura, a expressão correta era tétrica. Mas sempre que possível o paciente era trazido até o consultório. Os psiquiatras também não atendiam nas enfermarias. (Ribeiro, abr. 2009). Na Instituição superlotada, alguns tratamentos eram realizados sem atender as normativas, colocando a vida dos internos em risco. Era também feito muito eletrochoque. Havia dois funcionários que eram os encarregados de fazer o choque. Era uma seção horrível. Colocavam o colchão no chão, e, aí, quatro pacientes seguravam um outro para que eles aplicassem o choque, e depois seriam os outros que segurariam que iriam sofrer a mesma prática. Isso era terrível (Paula, jan. 2009). O enfermeiro Santos (set. 2009) relata ter sido um dos responsáveis por aplicar o eletrochoque nos internos. Eu acho que morreu muita gente, era feito muito eletrochoque. Começava às oito da manhã e ia até ao meio-dia, era a manhã toda, só fazendo choque. No dia que eu fazia eletrochoque, à tarde eu chegava em casa tremendo. A gente imobilizava o paciente, e ficava um homem na parte do joelho, um na bacia, e um na parte dos ombros. Se tu mostra aquela valise preta do eletrochoque que vocês guardaram no museu, tem paciente dos mais antigos que vai sair correndo. Eu fui responsável pelo eletrochoque por três anos. O aparelho de eletrochoque foi criado no final da década de 1930, sendo utilizado muitas vezes sem atender a critérios básicos, como o uso de anestesia, conforme evidenciam os depoimentos citados. Na perspectiva de reestruturação do HCS, em 1973 foi instituída a exigência de uma sala apropriada para a realização do eletrochoque, com material para reanimação respiratória, prescrição médica, bem como a presença de um médico e de um enfermeiro durante sua realização. Conforme Costa (2010, p.172), a partir desse período, a utilização de tal procedimento foi progressivamente abandonada até ser completamente extinta como prática institucional em 1985. Portanto, as entrevistas que trazem os fatos acima narrados servem de um ponto de reflexão, trazendo à tona o sofrimento de testemunhas e entrevistados; o que pode ser interpretado como uma tentativa de buscar tempos mais humanos na história da psiquiatria no Brasil. Reviver estas memórias é trazer à luz uma realidade que se fez presente não somente em Santa Catarina, mas também em outros Estados brasileiros; é criar resistência ao horror, à violação de direitos humanos a que as vítimas eram submetidas. Paralelo à indignação dos depoentes renasce, assim, a esperança de resistência, e do repúdio à tudo que fere a dignidade humana do cidadão brasileiro frágil e dependente dos cuidados da sociedade, dos recursos de Estado. Renasce assim a esperança de melhorias no trato do doente psiquiátrico nas décadas seguintes. Apesar das dificuldades, a sociedade, o Estado, as famílias unem esforços para resgatar a cidadania e a dignidade dos enfermos, e reinseri-los na vida social. Muitas vezes conseguem, muitas vezes trabalham em vão. Cabe aqui pontuar, portanto, que o sofrimento causado pela doença mental não atinge somente o portador, mas seus conviventes, família, comunidade, e a sociedade que busca o equilíbrio, o bem geral. Grandes são, portanto, os desafios: Do genocídio dos primeiros hospitais, até os dias de hoje.O sofrimento do doente mental, ou do drogadicto, ainda perfaz a fronteira entre o massacre da dura realidade e o sonho de um tratamento digno e eficaz, numa caminhada que parece ser ainda muito longa. Neste percurso, vale aqui ressaltar o legado do aprendizado nas noites frias de confinamento e morte, que nunca mais deverá fazer parte do tratamento do doente psiquiátrico. Neste sentido, resgatar os erros históricos, traze-los à memória, é uma tentativa da sociedade de se redimir, evitando que tais horrores se repitam em nome da ciência. Manicômio de Barbacena Referência Holocausto Brasileiro - Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes No Maior Hospício do Brasil, Daniela Arbex
Compartilhar