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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/234128738 Biogeografia dos peixes de água doce da América do Sul Chapter · January 2011 CITATIONS 14 READS 3,782 4 authors, including: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Biogeography and landscape evolution in Neotropical aquatic ecosystems View project Diversity, Diversification and Evolutionary History of the Electric Eel View project Flávio C. T. Lima University of Campinas 137 PUBLICATIONS 1,936 CITATIONS SEE PROFILE Alexande C. Ribeiro Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) 33 PUBLICATIONS 1,120 CITATIONS SEE PROFILE Naercio A. Menezes University of São Paulo 203 PUBLICATIONS 7,066 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Alexande C. Ribeiro on 22 October 2018. 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O número de espécies conhecidas se aproxima de 5.000 e estimativas quanto ao número real, conside- rando aquelas que ainda estão por serem descritas, giram em torno de 6.000 a 8.000 espécies1. A composição desta diversidade é resultado de longo processo de irradiação de diversas linhagens ao longo de milhões de anos, mas também da extinção de grupos outrora diversificados. Esta riqueza resulta, em última instância, de processos ecológicos e históricos comple- xos, contínuos através do tempo geológico. A história de nossa fauna moderna, cujas raízes remontam principal- mente ao período Mesozoico, ainda não é compreendida na sua totalidade. Desde as primeiras ideias dos autores precursores das atuais hipóteses fundamentadas no arca- bouço conceitual de métodos modernos de reconstrução filogenética e em teorias unificadoras, por exemplo, a Tectônica de Placas, houve avanços significativos. É notório, entretanto, que a história de nossa fauna aquáti- ca ainda contém lacunas e grandes questões que poderão ocupar a mente dos biogeógrafos por muitas gerações. Neste capítulo pretende-se fornecer uma visão geral do conhecimento da biogeografia dos peixes de água doce da América do Sul tentando correlacionar a evolu- ção da fauna com a evolução geográfica do continente, porém não se esgotará o assunto. Tentar-se-á demonstrar aqui, com base em exemplos da nossa rica fauna de peixes que, conforme já declarado por um dos mais importantes autores em biogeografia, Léon Croizat, “Terra e vida evoluem juntas”. Ictiofauna Sul-americana É imprescindível em discussão acerca da biogeografia dos peixes de água doce Neotropicais vislumbrar a megabiodiversidade da ictiofauna, abordando seus com- ponentes principais. Em sua composição ocorrem representantes de grupos antigos, outrora diversificados em Gondwana, mas hoje escassos, grupos Gondwânicos remanescentes e diversos ainda hoje e grupos resultantes de irradiações mais recentes, presumivelmente posterio- res a sua ruptura final, ou seja, grupos endêmicos de um continente sul-americano já isolado. Somam-se a estes componentes grupos de ancestrais marinhos relativa- mente recentes, invasores secundários da água doce e, em menor escala, grupos que transitam entre os ambien- tes marinho e dulciaquícola. Uma caracterização resumida nos obriga a analisar a composição da ictiofauna Neotropical em nível de agru- pamentos taxonômicos mais inclusivos,o que pode ser feito tendo como pano de fundo a filogenia simplificada dos grandes grupos modernos de peixes (Fig. 16.1). Detalhes sobre esta composição podem ser vistos em Reis et al.1. 262 – Padrões e Processos – Estudos de Casos 978-85-7241-896-6 Figura 16.1 – Filogenia dos grandes grupos de vertebrados ilustrando as relações entre os componentes da fauna de peixes da América do Sul discutidos neste capítulo. Craniata Vertebrata Actinopterygii Chondrichthyes O tocephala O stariophysi Euteleostei Percom orpha Myxiniformes (peixes feiticeira) Petromyzontiformes (lampreias) Holocephali (quimeras) Hybodontidae ✟ Galeomorphi (tubarões comuns) Batoidea (raias marinhas e de água doce) Squaliformes (cações-anjo e cia.) Polypteriformes Chondrostei (esturjões, peixes-espátula e cia.) Lapisosteidae (gars) Amiiformes Osteoglossomorpha (pirarucu, aruanãs e cia.) Elopomorpha (tarpões, enguias, moreias e cia.) Clupeomorpha (sardinhas, anchovas e cia.) Gonorynchiformes Cypriniformes (carpas e cia.) Characiformes (traíras, piranhas, lambaris e cia.) Siluriformes (bagres) Gymnotiformes (poraquê, tuviras) Paracanthopteryigi (salmões e cia.) Esociformes Stenopterygii Scopelomorpha Lampridiomorpha Paracanthopterygii (bacalhaus e cia.) Zeiformes Beryciformes Atherinomorpha (peixes-rei, barrigudinhos, peixes-agulha e cia.) Gasterosteiformes Scorpaeniformes (peixes-escorpião) Tetraodontiformes (baiacus e peixe-cofre) Pleuronectiformes (linguados) Perciformes (curvinas, carás e cia.) Sarcopterygii Actinistia (Celacantos) Dipinol (peixes pulmonados) Porolepiformes ✟ Choanata (tetrápodos e cia.) A ictiofauna dominante pertence a um grande grupo denominado Ostariophysi, que inclui todos os peixes que possuem um órgão de audição, o aparelho de Weber, por meio do qual ondas sonoras que chegam à bexiga natatória são transmitidas ao ouvido interno por meio de uma série de ossículos modificados na parte anterior da coluna vertebral e transformadas em impulsos elétri- cos transmitidos ao cérebro. Desse grupo faz parte a maioria dos “peixes de escama” (ordem Characiformes), os “peixes de couro”, vulgarmente conhecidos como bagres e cascudos (ordem Siluriformes) e os “peixes elétricos” sul-americanos (ordem Gymnotiformes). Biogeografia dos Peixes de Água Doce da América do Sul – 263 Dentre os Characiformes, apenas a família Characidae (lambaris, piranhas, pacus, matrinxãs e outros) possui 1.057 espécies válidas reconhecidas atualmente (esta e as demais estimativas de espécies válidas por grupo aqui apresentadas, segundo Eschmeyer e Fricke2). Algumas famílias, como a dos corimbatás (Prochilodontidae) e a dos piaus (Anostomidae), incluem os peixes mais im- portantes na pesca de subsistência, em razão de grande abundância e biomassa. Outras famílias, como a das traíras (Erythrinidae), possuem menor diversidade, mas são bem conhecidas popularmente. Além da América do Sul, os Characiformes ocorrem também na África (qua- tro famílias) e América do Norte, no sul do Texas e Novo México [apenas uma espécie, Astyanax mexicanus (De Filippi, 1853)]. Na Região Neotropical, os Siluriformes são represen- tados por 15 famílias, a maior parte delas com espécies na América do Sul. Sua diversidade, em número de es- pécies, ultrapassa a dos Characiformes. Só a família Loricariidae (popularmente conhecidos como cascudos, caris ou bodós) inclui cerca de 792 espécies conhecidas. Os limpa-fundo e tamboatás (família Callichthyidae) somam 197 espécies. Os grandes bagres como jaús, pintados e cacharas, assim como os mandis da família Pimelodidae, são representados por aproximadamente 102 espécies. Outras famílias importantes, menos co- nhecidas por serem representadas por formas diminutas, crípticas e de hábitos noturnos, são os bagrinhos da fa- mília Heptapteridae (199 espécies) e as cambevas e candirus da família Trichomycteridae (235 espécies). Duas famílias, Ariidae e Plotosidae, incluem espécies que invadiram secundariamente o hábitat marinho. Além da América do Sul, os Siluriformes sucedem em todos os continentes, incluindo a Antártica (como fósseis). Os Gymnotiformes, ou peixes elétricos sul-america- nos, são endêmicos da região Neotropical, porém com diversidade menor (algo em torno de 150 espécies), que os dois grupos anteriores. Todas as espécies das cinco famílias da ordem possuem a capacidade de gerar cam- po elétrico a partir de sua musculatura especializada, utilizado para eletropercepção e comunicação. Uma espécie, Electrophorus electricus (Linnaeus, 1766), conhecida como poraquê, produz descarga elétrica capaz de atordoar e mesmo matar presas ou predadores. Os peixes ósseos (Osteichthyes) incluem também alguns grupos antigos, mais abundantes como fósseis, mas atualmente representados por poucas espécies, como a piramboia (Lepidosiren paradoxa [Fitzinger, 1837]) “peixe pulmonado” da ordem Lepidosireniformes, en- contrada na Amazônia e bacias do Paraguai e do Prata, o pirarucu (Arapaima gigas [Schinz, 1822]) e os aruanãs (Osteoglossum bicirrhosum [Cuvier, 1829]) e O. ferrei- rai (Kanazawa, 1966) da ordem Osteoglossiformes, restritos à bacia Amazônica e outras drenagens ao norte da América do Sul. O tarpão (Megalops atlanticus [Valenciennes, 1847]) da ordem Elopiformes ocorre em águas marinhas e estuarinas, mas eventualmente é encontrado em água doce. Entre os Anguillliformes apenas duas espécies, o Anguillidae Anguilla rostrata (Lesueur, 1817) e o Ophi- chthidae Stictorhinus potamius (Böhlke e McCosker, 1975), são registradas em águas doces sul-americanas, a primeira no norte da América do Sul (Colômbia e Venezuela) e a segunda na bacia do Rio Tocantins, Brasil. Representantes da ordem Clupeiformes (manjubas, apapás e sardinhas), um grupo tipicamente marinho, possuem, no entanto, moderada representação em água doce. Nas águas continentais da América do Sul ocorrem três gêneros da família Clupeidae (Platanichthys e Ramnogaster na parte inferior da bacia do Prata e Rhinosardinia nos cursos inferiores de rios do norte e nordeste do continente) e espécies dos gêneros Anchoa, Anchovia, Amazonsprattus, Anchoviella, Jurengaulis, Pterengraulis e Lycengraulis, da família Engraulidae na Amazônia, bacia do Orinoco, Rio São Francisco e rios das Guianas. Em Pristigasteridae são conhecidos repre- sentantes dos gêneros Ilisha e Pristigaster na bacia Amazônia e Pellona nas bacias Amazônica e Paraná- -Paraguai e do Orinoco. No grande grupo que inclui os teleósteos mais deri- vados, Acanthopterygii, predominantes no ambiente marinho, algumas ordens são representadas por grupos que invadiram secundariamente a água doce. Em Athe- riniformes são encontrados alguns poucos representan- tes de peixes-agulha (Belonidae e Hemiramphidae) e os peixes-rei (Atherinopsidae). Uma ordem primariamente de água doce e com grande diversidade é Cyprinodon- tiformes, que inclui os barrigudinhos (Poeciliidae), os peixes anuais (Rivulidae), os tralhotos (Anablepidae), além de Cyprinodontidae em sistemas costeiros do nor- te da América do Sul e os Orestiidae do altiplano andino. O grupo com a maior diversidade de teleósteos, co- letivamente chamados Percomorpha, sucede em águas continentais sul-americanas, famílias com poucos repre- sentantes tais como Polycentridae (peixes-folha; duas espécies), Synbranchidae (muçum; quatro espécies), Gobiidae (amborés; três espécies exclusivas de água doce e pouco mais de uma dezena de espécies anfídro- mas), Sciaenidae (corvinas e pescadas; 19 espécies exclusivas de água doce), Percichthyidae (cinco espécies patagônicas/chilenas), Percilidae (duas espécies no 264 – Padrões e Processos – Estudos de Casos Chile) e outras de grande diversidade, tais como Cichli- dae (acarás, jacundás e tucunarés), que abriga mais de 330 espécies conhecidas em água doces sul-americanas. Grupos ainda mais derivados em função dos caracte- res morfológicos exclusivos que possuem, também são representados por um númeromais reduzido de espécies em água doce, como os baiacus (Colomesus asellus [Müller e Troschel, 1849] [Tetraodontidae: Tetraodon- tiformes]), e alguns gêneros de linguados (Achiridae: Pleuronectiformes). Os demais não Osteichthyes têm representatividade muito reduzida. Entre os peixes cartilaginosos (tubarões e raias) apenas uma espécie de tubarão, Carcharhinus leucas (Müller e Henle, 1839) e duas espécies de peixes-serra, Pristis pristis (Linnaeus, 1758) e Pristis pectinata (Latham, 1794) penetram em água doce, mas no grupo das raias existe toda uma família, Potamotrygo- nidae, exclusiva de água doce e representada por três gêneros (Potamotrygon, Paratrygon e Plesiotrygon) e pelo menos 18 espécies. História dos Estudos Biogeográficos em Peixes de Água Doce Sul-americanos Neste tópico, são comentadas algumas obras conside- radas de referência para o estudo da biogeografia de peixes de água doce da América do Sul. São incluídos trabalhos que, por seu escopo amplo e marcada influên- cia, trouxeram grandes avanços no entendimento da biogeografia de peixes de água doce neotropicais. Es- tudos mais pontuais, embora não menos dotados de importância intrínseca, não serão mencionados por questões práticas. O primeiro autor a realizar uma ampla análise de padrões biogeográficos em peixes sul-americanos foi Eigenmann3. Este autor dividiu a América do Sul em três regiões “ictiogeográficas”: “Brasileira”, “Andina” e “Patagônica”. A Região Patagônica foi definida como possuindo uma ictiofauna muito pobre, composta por elementos “migrantes do mar”, como os Atherinopsidae e os Percichthyidae, “imigrantes” da Região Brasileira (Characidae e Trichomycteridae), formas “autóctones” ou de “origem duvidosa” (Nematogenyidae e Diplomys- tidae) e grupos de relação biogeográfica transcontinen- tal (Galaxiidae, Aplochitonidae, atualmente incluídos em Galaxiidae e Petromyzontidae, hoje incluídos em Mordaciidae e Geotriidae). A Região Andina, definida como compreendendo rios drenando ambas as vertentes andinas e sistemas endorreicos da Bolívia e Peru (isto é, Lago Titicaca), também bastante pobre ictiofaunisti- camente, sendo caracterizada pela presença de alguns poucos grupos endêmicos (por exemplo, Astroblebidae e Orestiidae). A Região Brasileira, a mais vasta e diver- sa região ictiogeográfica, inclui, na concepção de Eigen- mann3, além de quase toda a América do Sul, toda a América Central, até o sul do México. Eigenmann3 subdivide essa região em dez “províncias”, das quais duas (“pacífica” e “Magdalena”) estão parcialmente e seis (“Amazônica”, “Guiana”, “Trinidad”, “São Francis- co”, “costeira” e “La Plata”) completamente situadas na América do Sul. A divisão em regiões e províncias ic- tiofaunísticas de Eigenmann3 obedece tanto a critérios de composição faunística como relações de grandes grupos; por exemplo, a ocorrência de Galaxiidae e lam- preias na região patagônica foi por ele considerada como indício da relação desta área com outras massas conti- nentais austrais que contêm esses mesmos elementos (isto é, Austrália e Nova Zelândia), assim como a ocor- rência de Orestiidae, uma família endêmica de Cyprino- dontiformes do altiplano andino, que provavelmente teria se originado, nas palavras de Eigenmann3, “when the lake was still an arm of the sea”. É notável que Ei- genmann3,4 já percebera a importância da história geológica na distribuição dos peixes de água doce sul- -americanos, ao verificar que as terras altas dos escudos, geologicamente mais antigas, apresentavam ictiofauna bastante distinta daquela das terras baixas das planícies, e que esta relação poderia ser mais significativa biogeo- graficamente do que os limites dos sistemas hidrográ- ficos. Por exemplo, a região guianense de Eigenmann3 inclui não só os rios guianenses, como também os tribu- tários da margem norte do Rio Amazonas que drenam o escudo guianense, bem como o Rio Branco. Em sentido amplo, a província amazônica incluiria, de fato, as terras baixas de todos os grandes sistemas hidrográficos sul- -americanos, ou nas palavras de Eigenmann3: “East of the Cordilleras, and therefore east of the Magdalena basin, is found the most extensive and intricate fresh water system in the world… a network of rivers practi- cally ininterrumpted, extending from the mouth of the Orinoco through the Cassiquiare, Rio Branco, Rio Ne- gro, Rio Madeira, Rio Guaporé, Rio Paraguay, Parana and La Plata to Buenos Aires”. Somente 60 anos depois, com Géry5, a biogeografia de peixes sul-americanos de água doce voltou a ser abordada de forma ampla. Géry5 identificou oito grandes regiões ictiogeográficas na América do Sul, que coinci- dem, em parte, com as regiões e províncias identificadas Biogeografia dos Peixes de Água Doce da América do Sul – 265 97 8- 85 -7 24 1- 89 6- 6 por Eigenmann3. As regiões ictiofaunísticas identificadas por Géry5 foram “Orinoco-Venezuelana”, abrangendo a bacia do Rio Orinoco, em conjunto com a bacia do lago Maracaibo, a ilha de Trinidade e alguns pequenos siste- mas hidrográficos do Mar do Caribe; “Magdalena”, abrangendo apenas o sistema do Rio Madalena na Co- lômbia; “Transandino”, compreendendo os sistemas hidrográficos a oeste dos Andes, situados entre o norte da Colômbia e Panamá até o norte do Peru; “Andina”, compreendendo a porção alta dos Andes, da Colômbia ao Chile; “Paranaense”, abrangendo a bacia platina e alguns sistemas do leste do Brasil; “Patagônica”, abarcando as drenagens do sul da Argentina e Chile; “Guiano-Amazônica”, abrangendo os rios guianenses e a bacia amazônica, e “Leste do Brasil”, incluindo os sistemas costeiros do nordeste, leste e sul do Brasil, incluindo o Rio São Francisco. Ao contrário de Eigen- mann3, Géry5 não reconheceu uma divisão de terras baixas e terras altas, mas as suas regiões são bastante similares às “províncias” de Eigenmann3, tendo como principal diferença o reconhecimento da região do Orinoco-Venezuela, uma área virtualmente desconhe- cida de modo ictiológico quando Eigenmann3 escreveu sua monografia. Ringuelet6 apresentou uma nova classificação das áreas de endemismo de peixes na América do Sul. Ele reconheceu vinte “áreas ictiogeográficas” na América do Sul, a maioria delas seguindo a proposta de subdivi- são de áreas maiores que haviam sido reconhecidas por Eigenmann3 e Géry5. Por exemplo, a área “Orinoco- -Venezuelana” foi por ele dividida em três áreas distintas: sistema do Lago de Maracaibo, drenagens costeiras do Caribe venezuelano e bacia do Rio Orinoco propriamen- te. A bacia platina foi dividida em três áreas: alto Paraná, alto Paraguai e sistema Párano-platense. Embora o re- conhecimento de maior número de áreas por Ringuelet6 reflita os avanços no conhecimento ictiofaunístico da América do Sul desde Eigenmann3, a desvantagem em reconhecer muitas regiões de endemismo reside em que as relações faunísticas entre as áreas são obscurecidas no processo, uma vez que as semelhanças (= táxons compartilhados) são preteridas ante as diferenças (= táxons endêmicos). Weitzman e Weitzman7 apresentaram uma revisão crítica das hipóteses biogeográficas sobre peixes sul- -americanos formuladas até aquela data. Eles notaram a falta de embasamento em hipóteses filogenéticas dos esquemas biogeográficos previamente propostos e a necessidade de conhecimento filogenético, taxonômico e distribucional muito mais detalhado da ictiofauna sul- -americana para que hipóteses biogeográficas mais específicas pudessem ser formuladas. Weitzman et al.8 exemplificaram o tipo de abordagem necessário, ao exibir uma discussão biogeográfica sobre os represen- tantes da tribo Glandulocaudini (Characidae) no leste da América do Sul. Fundamentado em ampla revisão sistemática da fa- mília Curimatidae, Vari9 apresentou revisão das regiões de endemismo em peixes de água doce sul-americanos. Como Weitzman e Weitzman7, Vari9 também enfatizou a necessidade de incorporar hipóteses filogenéticas e, assim, entendero componente histórico por trás das presentes associações faunísticas. Vari9 identificou oito áreas de endemismo habitadas por curimatídeos na América do Sul: “western” (incluindo os sistemas hi- drográficos transandinos, do lago de Maracaibo ao Rio Chira no norte do Peru), “Orinoco” (correspondendo à bacia do Rio Orinoco); “Guianas” (sistemas hidrográfi- cos da Guiana, Suriname e Guiana Francesa); “Amazon” (bacia amazônica, incluindo a bacia do Rio Tocantins); “northeast” (drenagens nordestinas ao norte do Rio São Francisco); “São Francisco” (correspondendo à bacia homônima); “coastal” (sistemas hidrográficos entre o sul do Rio São Francisco até o Rio Paraíba do Sul); “upper Paraná” (correspondendo à bacia do Rio Paraná, acima do salto de Sete Quedas, hoje afogado sob o lago de Itaipu) e “Paraguay” (incluindo a toda a bacia platina, com exceção do alto Paraná, e também os sistemas costeiros do Uruguai ao sul do estado de São Paulo). Apesar de repetir autores precedentes em estabelecer áreas de endemismo para peixes de água doce sul- -americanos com base na presença de espécies endêmicas nos diferentes sistemas, a grande importância do traba- lho de Vari9 consiste em ser o primeiro a discutir relações históricas entre diferentes bacias hidrográficas, funda- mentado em filogenias de alguns gêneros de Curimatidae. Assim, Vari9 aponta relação entre o lago de Maracaibo com as bacias amazônica, do Orinoco e platina, baseada na filogenia do gênero Potamorhina, da bacia do Rio Madalena com a bacia do Rio Orinoco e a bacia amazô- nica, embasado na filogenia de um grupo de espécies do gênero Curimata9, bem como a origem “híbrida” da fauna do Rio São Francisco9. Ao longo da década de 1990 houve grande incremen- to no número de estudos de revisão e filogenia de grupos de peixes Neotropicais com base em metodologias cla- dísticas modernas. Alguns estudos importantes trouxeram visão nova das afinidades zoogeográficas do continente sul-americano. Muito significante é a contribuição de Lundberg10, que reviu criticamente as evidências das supostas relações das faunas neotropical e africana, de- monstrando que as evidências fósseis e filogenéticas 266 – Padrões e Processos – Estudos de Casos 978-85-7241-896-6 sugerem padrões muito mais complexos que não podem, na maioria das vezes, serem identificados simplesmente como relações de grupos irmãos associados a um evento vicariante simples, por exemplo, a ruptura de Gondwana. Com relação aos grupos neotropicais, o ápice desta tendência moderna foi a publicação, em 1998, dos resul- tados de um simpósio sobre filogenia e classificação de peixes neotropicais na obra Phylogeny and Classification of Neotropical Fishes. Nesta importante obra foi publicado um dos trabalhos de maior impacto para a biogeografia de peixes Neotropicais. Trata-se do artigo de Lundberg et al.11, o primeiro a associar, de forma muito clara, a biogeografia de peixes de água doce aos processos tectônicos em escala continental a remodelar o continente sul-americano desde sua ruptura com a África. Naquele artigo ficou claro o papel dos processos tectônicos na remodelagem da paisagem em escala con- tinental e de sua influência nos processos vicariantes a afetar a distribuição geográfica da fauna de peixes de água doce na América do Sul. A contribuição de Lundberg et al.11, entretanto, enfatiza eventos históricos desenca- deados em porções amazônicas e ao longo do sopé andi- no, áreas de marcada influência do atual processo de soerguimento da cordilheira dos Andes ao longo princi- palmente do Cenozoico. Mais recentemente outros estu- dos trouxeram contribuições relevantes à compreensão da biogeografia de peixes Neotropicais. Ribeiro12 anali- sou a biogeografia dos peixes das drenagens costeiras do Brasil, na margem leste do continente sul-americano, abordando detalhadamente a história tectônica e sua significância na configuração de padrões de distribuição ao longo da margem atlântica em evolução a partir do Mesozoico. Hubert e Renno13 identificaram e propuseram relações entre 11 grandes áreas de endemismo com base em análise parcimoniosa de endemicidade (PAE, parsi- mony analysis of endemicity) (ver Cap. 3). Estrutura Geológica e História Tectônica do Continente Sul-americano Atualmente sabe-se que a evolução da paisagem de um continente deve ser compreendida no contexto da tectô- nica global. A Teoria da Tectônica de Placas de Alfred Wegener possui aceitação global atingida apenas por poucas teorias científicas (ver Cap. 1), o que lhe confere um status em Geociências comparável àquela atingida pela Teoria da Evolução nas Biociências ou Teoria da Relatividade na Física. Sabe-se hoje que as posições relativas dos continentes não são fixas, mas, por possuírem constituição rochosa majoritariamente granítica e, portanto, pouco densa, flutuam em equilíbrio isostático sobre o assoalho oceâ- nico, de composição majoritariamente basáltica e mais densa. As placas tectônicas, como são denominados estes gigantescos blocos continentais, têm estado em movimento, por conseguinte, continuamente ao longo das eras geológicas, impelidos por forças advindas das correntes de convecção do manto. O resultado é que os continentes estão em constante “deriva”, colidindo uns com os outros e também se fraturando e se fragmentan- do em continentes menores, continuamente extinguindo e originando bacias oceânicas ao longo das eras geoló- gicas. Este ciclo contínuo de amalgamação e ruptura de paleocontinentes é chamado “Ciclo de Wilson”, ou “abertura e fechamento de bacias oceânicas” ou ainda “Ciclos Orogenéticos”. Este último nome vem do fato de que, quando colidem, as placas tectônicas deformam- -se originando cadeias de montanhas como o Himalaia e os Andes (oros = montanha, genesis = origem). O que hoje é identificado como continente sul-ame- ricano, com suas grandes bacias hidrográficas (Fig. 16.2), é resultante de pelo menos quatro grandes ciclos oroge- néticos, ou seja, quatro grandes fusões e outras quatro grandes rupturas continentais, além do atual processo orogenético andino14. Durante estes ciclos, processos de deformação continental, magmatismo e falhamentos originaram grande parte da atual estrutura geológica do continente sul-americano. Dentre os ciclos orogenéticos que afetaram e resultaram na atual estrutura geológica do continente sul-americano, dois possuem significado especial para o entendimento da evolução atual da paisagem sul- -americana e, consequentemente, de sua biogeografia. São eles: o terceiro episódio de fusão continental e os quatro eventos de fissão, ou ruptura continental. Tais eventos são conhecidos na literatura especializada como ciclo Brasiliano/Pan-Africano e Ruptura do superconti- nente Pangeia. O ciclo Brasiliano/Pan-Africano constitui, no conjun- to, uma série de eventos complexos ocorridos entre 900 e 540 milhões de anos14. A esta altura alguém pode estar se perguntando como eventos geológicos tão antigos (já que os primeiros peixes aos quais se tem notícia não possuem muito mais do que 550 milhões de anos) podem ser de relevância no entendimento da biogeografia da fauna atual? Pois foi durante este período em que antigos continentes se amalgamaram e originaram a maior parte das províncias estruturais hoje presentes no continente sul-americano. Foi durante o ciclo Brasiliano/Pan- Biogeografia dos Peixes de Água Doce da América do Sul – 267 Figura 16.2 – Grandes bacias hidrográficas sul-americanas. Modificado de Lundberg et al.11. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 12 13 14 14 Africano que antigos continentes (sua porções são hoje denominados crátons) colidiram entre si formando extensas áreas de dobramentos em seu entorno (hoje denominados cinturões orogenéticos antigos). Juntas, estas diferentes províncias constituem-se na maioria dos chamados Escudos Cristalinos, ou seja, a maior porção do atual continente sul-americano. Destas antigas cadeias montanhosas,hoje totalmente erodidas, restam expostas apenas suas raízes mais profundas, contíguas aos crátons adjacentes. Os crátons, centrais nos escudos, são mais estáveis tectonica- mente. Já os antigos cinturões orogenéticos circundantes guardam heranças de sua origem enquanto resultado de colisões continentais, entre elas, um intrincado sistema de antigas falhas geológicas. Ao longo dos eventos tec- tônicos que se desenrolaram posteriormente, muitos deles ativos até hoje, estes sistemas de falhas pré-cam- brianas foram e continuam sendo reativados, originando importantes elementos da paisagem sul-americana, tais como bacias tectônicas modernas como o Pantanal e a depressão do Araguaia-Tocantins, entre outras15,16. Além 268 – Padrões e Processos – Estudos de Casos disso, é a reativação destas antigas falhas por forças tectônicas modernas que gera processos de capturas de rios entre bacias adjacentes12,17. A compreensão acerca da geologia estrutural do continente sul-americano é, portanto, de crucial importância àqueles que pretendem estudar a biogeografia de peixes ou quaisquer outros organismos. O outro grande evento tectônico global de crucial relevância é a ruptura da Pangeia, mais especificamente, os momentos finais de fragmentação de um de seus últimos grandes segmentos, Gondwana, que culminou com a ruptura da África e América do Sul. A ruptura de Gondwana não é um processo simples, ou mesmo sin- cronizado. Este evento tectônico magno, conhecido como “Evento Sul-Atlântico” tem suas origens ainda no Triás- sico, com indícios geológicos associados ao processo de ruptura identificados nas margens equatoriais da Améri- ca do Sul, da Guiana Francesa ao delta do amazonas entre 230 e 170 milhões de anos. Depois, entre 170 e 120 milhões de anos surgem indícios de atividade associada ao processo de ruptura mais ao sul, desde as margens costeiras da Argentina, Uruguai e Brasil, atingindo a região da atual costa do Estado do Espírito Santo. Há cerca de 90 milhões de anos desfez-se definitivamente a conexão existente entre a África e a América do Sul na atual região do Nordeste Brasileiro e a costa da Nigéria (ver referências citadas em Ribeiro12). A certa altura do processo de ruptura continental evoluiu, entre as margens divergentes dos futuros con- tinentes Africano e Sul-americano, uma grande bacia fluvial alongada em sentido norte-sul, estendendo-se entre zero e 20º de latitude sul, a chamada “Depressão Afro-brasileira”. Este sistema fluvial interconectado, nos quais estavam presentes sistemas fluviais e lacustres, persistiu por milhões de anos, subdividindo-se em sistemas fluviais menores, ao longo do tempo que ante- cedeu a fase de influência marinha entre as margens continentais18. Dentre as principais heranças da ruptura de Gondwa- na para a atual paisagem sul-americana está o sistema de drenagem do planalto cristalino brasileiro, pelo menos em sua porção mais ao leste, marcadamente influenciada pelos processos de ruptura continental. De acordo com alguns modelos, plumas ascendentes do manto causariam deformações em abóboda com centenas de quilômetros de diâmetro entre os continentes em separação, causando um padrão de drenagem característico, no qual os rios passam a drenar do centro soerguido (localizado na região central do rifte) para suas margens (localizadas tanto para as vertentes africanas como sul-americanas)19. Tal padrão de drenagem é característico e visível ainda hoje em di- versos sistemas fluviais sul-americanos, tais como os dos rios Paraná, São Francisco, Doce e Uruguai, os quais parecem nascer e “fugir” de centros de abóbodas ou megadomos soerguidos em direção ao interior dos con- tinentes, ou diretamente ao oceano20. Concomitantemente à abertura do Oceano Atlântico inicia-se, por conseguin- te, a evolução das drenagens costeiras sul-americanas. Muitas delas evoluindo e encontrando seu caminho ao longo dos sistemas de falhas geológicas pré-cambrianas, tais como o Rio Paraíba do Sul, que segue retilíneo, en- caixado em antigo sistema de falhas, outros, erodindo o embasamento e aproveitando também os sistemas de falha, mais suscetíveis à erosão, como no caso do vale do Rio Ribeira de Iguape21. No lado oposto do continente, em sua margem con- vergente, a Cordilheira dos Andes segue sua evolução concomitante, decorrente da subducção entre a placa continental sul-americana e a placa oceânica de Nazca. Embora a história andina ultrapasse no passado os limites do Mesozoico, é a partir deste período que sua evolução moderna se institui. Esta possui íntima correlação com o atual processo de deriva continental, com a placa con- tinental sul-americana convergindo contra a placa oceânica de Nazca, cuja deformação gera, em última instância, o cinturão orogenético Andino14. De acordo com McQuarrie et al.22, o início do soerguimento andino remonta a pelo menos 70 milhões de anos. Margens convergentes, independentemente de sua extensão, idade ou estágio de desenvolvimento, demons- tram similaridades topográficas que permitem a distinção de uma série de fisiografias. Ao sopé do cinturão dobra- do propriamente dito (fold-thrust belt) desenvolve-se uma área deprimida denominada bacia de antepaís (fo- reland basin). Tipicamente, ocorre uma flexura da crosta nos flancos da bacia de antepaís denominada fo- rebulge11. Como a deformação do orógeno andino progride para o leste, os sedimentos da bacia de antepaís vão sendo incorporados ao complexo montanhoso e a bacia de antepaís, assim como o arco flexural migram para leste juntamente com o orógeno. Áreas soerguidas dos planaltos adjacentes podem ser incorporadas ao conjunto de terras baixas da bacia de antepaís, por exem- plo, o Pantanal, uma bacia tectônica interconectada as terras baixas do Chaco16. As bacias de antepaís formam um conjunto de terras baixas ao sopé andino que podem sofrer transgressões marinhas esporádicas. Isto pode se desenvolver em consequência do aumento do nível dos oceanos em determinado momento, ou por afundamento (subsidência) da própria bacia de antepaís, impulsiona- da, por exemplo, por maior taxa de compressão entre as margens convergentes em interação. Biogeografia dos Peixes de Água Doce da América do Sul – 269 97 8- 85 -7 24 1- 89 6- 6 Padrões Biogeográficos Grupos Gondwânicos e Ruptura Afrobrasileira Diversos representantes da atual fauna de peixes de água doce da América do Sul claramente pertencem às linha- gens de ampla distribuição em Gondwana, antecedendo a separação entre os continentes africano e sul-america- no23. A piramboia sul-americana (Lepidosiren paradoxa: Lepidosirenidae) corresponde ao grupo irmão dos peixes pulmonados africanos do gênero Protopterus (Protop- teridae) e ambos correspondem ao grupo irmão do peixe pulmonado australiano (Neoceratodus forsteri [Krefft, 1870]: Ceratodontidae). Fósseis de Lepidosiren cf. paradoxa são conhecidos do Cretáceo Superior ao Paleoceno no Peru e Bolívia e de Lepidosiren paradoxa no Eoceno da Argentina10. Uma outra família, Cerato- dontidae, cujo único representante vivente é o peixe pulmonado australiano, ocorre na América do Sul apenas como fósseis. Estudos moleculares têm sugerido que a divergência entre Ceratodontidae e o clado formado por Lepidosirenidae e Protopteridae tenha ocorrido ainda no final do Paleozoico, há pelo menos 277 milhões de anos, enquanto a divergência entre os peixes pulmonados sul- -americanos e africanos gira em torno de 120 milhões de anos24. É possível, portanto, que neste último caso a separação entre a África e a América do sul corresponda ao evento cladogenético responsável pela divergência entre as linhagens africanas e sul-americana modernas. A superordem Osteoglossomorpha (que na América do Sul inclui o Pirarucu e os Aruanãs) também se enqua- dra no grupo de peixes cujas linhagens antecedem a ruptura afrobrasileira. Os Osteoglossomorpha estão entre as linhagens mais basais dentre os peixes atuais (Fig. 16.1)e com exceção da irradiação moderna da família africana Mormyridae (com mais de 200 espécies), esta superordem é representada por relativamente poucos grupos recentes, e seu registro fóssil é extenso10. Arapaima gigas (Schinz, 1822), o pirarucu é considerado o grupo-irmão de Heterotis niloticus (Cuvier, 1829) da África, ambos pertencentes à família Arapaimatidae. Já os aruanãs sul- -americanos (Osteoglossum) estão mais proximamente aparentados com Scleropages, os “Aruanãs” da Ásia e Austrália e são todos inclusos na família Osteoglossidae10. Por fim, dentre os representantes sul-americanos, cujas raízes filéticas comprovadamente remontam ao período que antecede a ruptura afrobrasileira, estão os Chara- ciformes e Siluriformes. Além da América do Sul, os Characiformes também estão na África, embora lá o grupo apresente irradiação menor, tanto em número de famílias (quatro) quanto em espécies (pouco mais de 250). Alguns grupos sul-americanos estão mais proximamente relacionados aos grupos africanos do que com os demais representantes Neotropicais. Estudos filogenéticos25 identificam, por exemplo, que as bicudas sul-americanas (gêneros Boulengerella e Ctenolucius) e as traíras (Erythrinidae) estão mais intimamente relacionadas ao gênero Hepsetus da áfrica do que aos demais grupos sul- -americanos. O mesmo ocorre para o gênero Neotropical Chalceus, cujas afinidades de parentesco se dão com demais membros da família africana Alestidae26. É pos- sível que, com o avanço dos estudos filogenéticos, vários outros grupos neotropicais venham a ser considerados como pertencentes aos clados transoceânicos, ou seja, cujas raízes evolutivas antecedem a ruptura de Gondwana. Enquanto fósseis de Characiformes são conhecidos já do Terciário da Europa23 e de vários depósitos da América do Sul e África27, a identidade de fósseis de Characiformes mais antigos é um assunto debatido. Possíveis dentes de traíras (Erythrinidae) são encontrados em depósitos do Cretáceo Superior e início do Paleoceno27, constituindo-se evidências importantes da idade mínima de alguns sub- grupos dentre os Characiformes. Dentre os Siluriformes, alguns estudos sugerem que diversas linhagens sul-americanas estão mais proxima- mente relacionadas às linhagens africanas, tais como os Doradoidea neotropicais e Mochokidae da África, Lo- ricarioidea (Região Neotropical) e Amphiliidae (África), assim como Aspredinidae (Região Neotropical) e Siso- roidea (Ásia)28. Margem Atlântica em Evolução e Biogeografia da Ictiofauna Correspondente Um exemplo da contínua evolução faunística em íntima associação aos eventos geológicos que governam a evolução das bacias hidrográficas ao longo do tempo, pode ser visto na fauna das drenagens costeiras do leste brasileiro. Ribeiro12 revisou os padrões de diversidade envolvendo os rios costeiros e as drenagens do escudo adjacentes, e os relacionou à história geológica da região. Quando entendida do ponto de vista de suas relações filogenéticas, conclui-se que a grande diversidade de peixes endêmicos dos rios costeiros é também compar- tilhada com as áreas adjacentes do escudo brasileiro, embora em diferentes níveis hierárquicos. Tratam-se de faunas irmãs, desde níveis muito inclusivos (relações entre subfamílias) passando por níveis intermediários (relações entre gêneros) aos níveis menos inclusivos onde se compartilham populações da mesma espécie (padrões designados por Ribeiro12 como padrões A, B e C, respectivamente). 270 – Padrões e Processos – Estudos de Casos 978-85-7241-896-6 Os diferentes níveis de compartilhamento faunístico entre estas regiões sugerem que os eventos cladoge- néticos entre as grandes bacias do escudo cristalino brasileiro e os rios costeiros são contínuos ao longo do tempo. Eventos antigos são responsáveis pelo reco- nhecimento dos níveis hierárquicos mais inclusivos, enquanto eventos recentes promovem o compartilhamen- to de populações da mesma espécie nas diferentes áreas. Desde o final da ruptura do supercontinente Gondwana aos dias atuais, as drenagens costeiras vêm evoluindo na margem leste do continente. Tal evolução geomorfológica está intimamente relacionada aos eventos tectônicos anti- gos e recentes ocorridos na região. Diferentemente do que se acreditava há algumas décadas, a margem leste da América do Sul apresenta intensa atividade tectônica29-31, o que promove intenso rearranjo entre drenagens entre o escudo cristalino e os tributários diretos do Oceano Atlân- tico com consequente miscigenação faunística12. Ribeiro et al.17, ao analisar a modesta ictiofauna da bacia do Guaratuba, uma cabeceira situada no alto da Serra do Mar paulista, identificaram, de forma muito clara, a maneira pela qual diferentes bacias hidrográficas permutam sua ictiofauna. A Serra do Mar corresponde a uma das inúmeras feições geomorfológicas que atuam como divisores de água entre grandes bacias hidrográ- ficas. Tal qual a Serra do Mar, a maior parte das regiões serranas divisoras de água entre grandes bacias hidro- gráficas do escudo brasileiro originou-se exatamente nas zonas de dobramentos e falhamentos antigos, caracteri- zadas por intensa atividade tectônica ressurgente (Fig. 16.2). Ainda que drenando diretamente para o Oceano Atlântico, a ictiofauna do trecho superior da bacia do Rio Guaratuba, o qual está isolado de seu trecho inferior pelos contrafortes escarpados da Serra do Mar, possui a mesma fauna de peixes de sua bacia vizinha, a do Rio Claro. Esta corresponde a um dos inúmeros tributários do alto Rio Tietê, cuja fauna é muito distinta daquela típica da província costeira. O fato de a fauna do Gua- ratuba ser idêntica daquela do Tietê levantou a hipótese de que o trecho superior do Guaratuba fosse um frag- mento capturado do Rio Claro para a drenagem do Guaratuba, que deságua no Oceano Atlântico. Uma análise morfotectônica, efetuada pelos autores demons- trou que a reativação de falhas geológicas presentes na região, fora a responsável pela captura do trecho superior do Rio Guaratuba levando consigo sua antiga ictiofauna para seu novo curso, como tributário direto do Oceano Atlântico e não mais do alto Rio Tietê17. Talvez o grupo de peixes de água doce da América do Sul mais bem estudado do ponto de vista biogeográfico seja Glandulocaudinae, uma subfamília de Characidae. Weitzman et al.8 delinearam o padrão de distribuição do grupo (então considerado como tribo Glandulocaudini), com base no estudo de relações filogenéticas conhecido na época. Foi invocada uma combinação dos fenômenos de capturas e cabeceiras entre rios de drenagens distintas e abaixamento do nível do mar durante o fim do Pleistoceno como deter- minante nos processos de dispersão e vicariância. O conhecimento mais recente da filogenia de Glandulocaudinae e de aspectos da evolução tectônica da parte sul Cisandina da América do Sul32 possibilitaram uma explicação algo diferente. Foi reconhecida a importância das flutuações do nível do mar na distribuição geográfica do grupo. Entretan- to, a diversificação atual de Glandulocaudinae foi admitida como resultante principalmente de reativações tectônicas ao longo da margem oeste da bacia do Paraná superior, da história tectônica da margem leste da mesma bacia e da atividade tectônica do arco de Ponta Grossa, uma área sujeita a levantamento tectônico recente que provavelmen- te proporcionou contato entre rios costeiros e afluentes da parte alta adjacente a leste do Rio Paraná superior. As áreas dos antigos cinturões orogenéticos, dos quais nascem cabeceiras de diversos quadrantes hidrográficos, são sabidamente áreas preferenciais das reativações tectônicas antigas e recentes15. Diversos divisores de água são transecionados por extensas zonas de falha pré-cambrianas, muitas delas com atividade tectônica comprovada de menos de 1,6 milhão de anos33. Mecanis- mos análogos aos ocorridos na bacia do Guaratuba são potencialmente passíveis de acontecer ao longo de exten-sas áreas que representam divisores de água entre grandes bacias, por exemplo, entre as bacias do Paraná, Tocantins, Araguaia, São Francisco, Paraíba do Sul, Rio Doce, entre outras. As deformações tectônicas nestas regiões ocasio- nam rearranjos de drenagem de diversas magnitudes. Desde capturas de cursos pequenos, como o Guaratuba, a grandes eventos, como a famosa captura do trecho su- perior do Paraíba do Sul, antigo tributário do Rio Tietê30. Outros eventos de grande magnitude também são asso- ciados aos movimentos tectônicos recentes, por exemplo, a origem da planície alagada do Pantanal Mato-grossense, e as depressões do Araguaia e Tocantins, todas associadas às reativações de grandiosas zonas de fratura continentais pré-cambrianas, cuja importância no intercâmbio faunís- tico entre bacias não pode ser negligenciado. Escudos Cristalinos Antigos e Distribuições Disjuntas A paisagem sul-americana possui dois grandes compo- nentes que podem ser prontamente identificados. Seu amplo território se subdivide em um conjunto de terras Biogeografia dos Peixes de Água Doce da América do Sul – 271 baixas, cujos limites podem ser arbitrariamente definidos como aqueles com cotas abaixo de 250m acima do nível do mar34 e um conjunto de terras altas, excetuando-se os Andes, cujas altitudes normalmente ultrapassam a cota dos 500m (Fig. 16.3). Tal divisão, embora arbitrária, é de grande significado biogeográfico e ecológico para a fauna de peixes da América do Sul. Nas regiões planálticas sul-americanas predominam rios com elevado gradiente e, por conseguinte, muita energia, o que se traduz em rios encachoeirados, encaixados em seus vales. Nestes sistemas, planícies de inundação são relativa- mente reduzidas, restritas às porções baixas das grandes bacias planálticas. Uma das características de muitos siste- mas hidrográficos planálticos é que estes possuem rios denominados “superimpostos”, o que significa que seu curso ignora ou se sobrepõe às estruturas litológicas. O motivo para isso é que tais drenagens são antigas e já deve- riam estar estabelecidas em períodos em que as estruturas por elas cortadas ainda não afloravam. Com a evolução do processo erosivo acarretado pela drenagem, esta, já estabe- lecida, simplesmente “passou por cima” de estruturas que, de outra forma, condicionariam seu curso. De fato, muitas das drenagens planálticas sul-americanas tiveram seus cursos gerais determinados pelos processos de soerguimen- to que antecederam a ruptura de Gondwana19. Muitas espécies de peixes endêmicos de regiões de grande altitude nos escudos cristalinos parecem represen- tar grupos antigos, com distribuições relictuais. Dentre os Glandulocaudinae já citados, por exemplo, os grupos mais basais na filogenia possuem distribuição restrita às regiões serranas do Brasil Central. Lophiobrycon weitzmanni, grupo irmão dos demais gêneros da subfamília, é conhe- cido apenas da Serra da Canastra em Minas Gerais. O grupo irmão subsequente, gênero Glandulocauda, também está restrito ao alto da Serra do Mar. Apenas o gênero Mimagoniates, mais diversificado, possui distri- buição em áreas de terras baixas17,32. Ribeiro et al.35, ao incluírem uma espécie recém-descoberta de lambari do gênero Creagrutus na filogenia do gênero, evidenciaram que aquela espécie, ocorrente na bacia do alto Paranaíba em Minas Gerais e Goiás, correspondia ao grupo irmão de todas as demais espécies do gênero, com ampla dis- tribuição Trans e Cisandina. As antigas terras altas do planalto brasileiro abrigam, portanto, representantes relativamente antigos da irradiação moderna da fauna de peixes de água doce da América do Sul. O fato de grandes bacias hidrográficas serem imensas áreas isoladas umas das outras levou a inevitável ideia, muito difundida, de que cada bacia deveria constituir grande área de endemismo. Realmente, muitas espécies Figura 16.3 – (A) Topografia do continente sul-americano visto a partir das imagens de Shuttle Radar Topography Mission (SRTM) da National Aeronautics and Space Administration (NASA) obtidas a partir de interferometria de radar. (B) Compartimentalização do continente em terras altas e baixas (abaixo de 250m acima do nível do mar). Escudo das Guianas Cordilheira Andina Esc ud o B ras ile iro Terras Baixas (abaixo de 250m)A B 272 – Padrões e Processos – Estudos de Casos são endêmicas de determinadas bacias hidrográficas, mas a verdade é que muitas outras possuem distribuições que ultrapassam os limites dos divisores de água entre bacias. Certos grupos com distribuição tipicamente planáltica podem, por exemplo, ocorrer em diversas drenagens, transpondo os limites de seus divisores, porém sempre associadas às suas cabeceiras, ou seja, nas porções mais altas da bacia. Diversos exemplos são dados por Lima e Ribeiro34 para as drenagens dos rios Tapajós, Madeira e Tocantins-Araguaia. Tal ocorrência demonstra que, tal qual se dá na margem divergente da América do Sul, capturas entre bacias adjacentes impulsionada por reati- vações tectônicas certamente acontecem em muitas outras regiões, incluindo o Brasil central. Grandes feições da paisagem atual são resultantes destes processos tectôni- cos, tais como a depressão do Araguaia-Tocantins e a depressão do Pantanal mato-grossense. Todos resultantes de reativações tectônicas relativamente recentes que aproveitaram o sistema de falhas geológicas antigas15. Outro padrão biogeográfico bastante recorrente se refere às espécies comuns, porém disjuntas entre o Es- cudo das Guianas e o Escudo Brasileiro34. Tal padrão poderia constituir um típico padrão relictual. Dados geológicos apontam, de fato, que as cabeceiras do que hoje são os tributários das margens sul e norte da Ama- zônia Oriental poderiam constituir cabeceiras de uma grande drenagem tipicamente planáltica20, hoje marca- damente influenciada pela atual foz do amazonas, atuante como uma barreira ecológica atual para estes grupos planálticos34. Cordilheira dos Andes e suas Consequências Biogeográficas O soerguimento da cordilheira dos Andes é um evento magno, de grandes consequências para a evolução da paisagem sul-americana e, por conseguinte, de sua ic- tiofauna. Tradicionalmente, a ictiofauna sul-americana se divide em um componente Cis (a leste) e outro Trans (oeste) andino, dada a grande distinção que se reconhe- ce entre as faunas separadas entre os dois lados desta cordilheira. Entretanto, grupos transandinos possuem relações filogenéticas com grupos cisandinos em dife- rentes níveis. Com certeza, a evolução da cordilheira dos Andes, que se iniciou ainda no Cretáceo, não corresponde a um evento de vicariâncias simples, mas assincrônico e regionalmente diferenciado. A porção transandina da América do Sul pode ser dividida em três regiões: uma região meridional, que corresponde ao Chile e que apresenta uma ictiofauna tipicamente austral, a região situada entre o norte do Chile e norte do Peru, semidesértica e com pouquíssimos peixes de água doce, e uma região setentrional, do norte do Peru às bacias do lago de Maracaibo na Venezuela, com uma fauna de peixes relativamente bem diversifi- cada. A afinidade dessa fauna com àquela ocorrendo na América do Sul cisandina já havia sido apontada por Eigenmann36, que escreveu: “the fauna [dos rios trans- andinos] is largely a part of the general South American fauna which has been pinched off by the formation of the Andes, and has gone its own way since the Andes have become high enough to form an effective barrier against the ready intermigration between the cisandean and transandean parts of the continent”. A conecti- vidade das drenagens do noroeste da América do Sul com àquelas do resto do continente começou a ser in- terrompida no meio do Mioceno, com o começo do soerguimento da cordilheira oriental na Colômbia, que determinou o atual curso do Rio Madalena (12 a 11,8 Ma) e culminou com a mudança da foz do Rio Orinoco das bacias do Maracaibo/Falconpara uma posição mais ao leste, no final do Mioceno (8 Ma)11. Esse grande evento vicariante pode ser traçado tanto pela ocorrência de diversos fósseis, tanto de peixes como de outros vertebrados aquáticos, hoje restritos a drenagens do norte da América do Sul cisandina, como grande bagres, pirarucus, tambaquis, tartarugas mata-matas, jacaré e botos, em formações miocênicas nas bacias dos rios Madalena e do Lago de Maracaibo11,37,38, como pela ocorrência de múltiplas relações de grupos irmãos en- contrados entre táxons trans e cisandinos9,34. Distribuições Singulares Dentre os padrões biogeográficos envolvendo os peixes da América do Sul, alguns são muito peculiares. Por exemplo, alguns grupos endêmicos dos altiplanos andinos possuem afinidades inesperadas. O gênero Orestias, um grupo de aproximadamente 40 espécies de peixes da or- dem Cyprinodontiformes são endêmicos de rios e lagos de altitude, entre a região central do Peru e o norte do Chile, sendo mais diversificados no Lago Titicaca, onde se dá mais de 60% da diversidade do grupo39. É um gru- po cujas afinidades filogenéticas são controversas, tendo sido já considerados como relacionados aos subgrupos de Cyprinodontiformes norte-americanos e, como alternati- va, a grupos sul-americanos, ou ainda aos membros da família Cyprinodontidae do velho mundo, habitantes de água doce ao redor dos mares Mediterrâneo, Negro, Ver- melho e da Arábia. Costa39, entretanto, identificou que Orestias consiste no grupo irmão de um clado mais inclusivo que abrange os membros da América Central e Biogeografia dos Peixes de Água Doce da América do Sul – 273 ao redor do Mediterrâneo. A constatação de que a fauna de Orestias do altiplano andino possui afinidades com outras regiões biogeográficas é surpreendente, uma vez que para a maior parte dos grupos Neotropicais de água doce, as afinidades se dão com outros componentes da região Neotropical ou da Gondwana. Outros grupos de ocorrência nos altiplanos possuem suas relações com outras áreas da região Neotropical39. A família Galaxiidae (ordem Salmoniformes) é um grupo que compreende cerca de 50 espécies, que apre- senta uma distribuição austral, ocorrendo no sudeste da Austrália, Tasmânia, Nova Zelândia, Nova Caledônia, sul da América do Sul (Chile e Patagônia argentina), sul da África do Sul, além de diversas ilhas neozelandensas, a ilha Lord Howe (Austrália) e as ilhas Falklands (Mal- vinas) (Argentina)40. Sete espécies ocorrem na América do Sul, no Chile, Argentina e ilhas Falklands40. Há grande controvérsia sobre a biogeografia da família. Para alguns, ela constitui um dos melhores exemplos de táxons apre- sentando uma distribuição ancestral gondwânica41. Contudo, a presença de diadromia no grupo, a pouca diferenciação das linhagens de Galaxiidae entre os dife- rentes continentes (por exemplo, a ocorrência de uma mesma espécie, Galaxias maculatus, uma espécie diádroma, no sul da América do Sul, Nova Zelândia, Austrália, em diversas ilhas neozelandesas e australianas, bem como nas ilhas Falklands) e a não relação entre espécies ocorrentes em determinada área com a história geológica (por exemplo, o acontecimento de espécies com afinidades sul-americanas, Aplochiton zebra e Galaxias maculatus nas ilhas Falklands/Malvinas, um bloco crustal que se desprendeu do sul da África) indicam que dispersão transoceânica deve ter tido papel prepon- derante no estabelecimento do atual padrão de distribui- ção geográfica do grupo42. O mesmo é verdadeiro para as lampreias sul-americanas, Geotriidae e Mordaciidae, distribuídas através do sul da Austrália, Tasmânia, Nova Zelândia, Chile e Argentina, cujos juvenis, após longo período larval em água doce, vivem por três a quatro anos crescendo e se alimentando no mar42. Terras Baixas Sul-americanas e Transgressões Marinhas Abaixo de 250m de altitude estendem-se, no continente sul-americano, milhões de quilômetros quadrados de planícies, muitas delas extensas áreas alagáveis, tais como a planície pantaneira e as terras baixas amazônicas. Caso se considere que a atual plataforma continental esteve emersa durante períodos glaciais do Pleistoceno, onde o nível dos oceanos foi mais abaixo do que o atual em até 100m, aumenta-se consideravelmente a extensão das terras baixas sul-americanas. Em muitas das terras baixas sul-americanas diversidade de peixes de água doce atinge seu auge no que se refere ao número de espécies em coexistência. Diferentemente dos planaltos adjacentes, as terras bai- xas sul-americanas (as quais se constituem em grandes bacias sedimentares mesozoicas e cenozoicas) possuem sistemas fluviais caracterizados por extensas planícies de inundação de grandes rios meandrantes. Enquanto nos planaltos predominam rios encaixados, nas terras baixas seus leitos oscilam ao longo de toda sua bacia de sedimen- tação durante milhares de anos. Desenvolve-se ainda, em áreas onde rios Andinos atingem as terras baixas adjacen- tes, a evolução de megacones fluviais: testemunhos dos graus de oscilação que os canais perfazem ao longo das planícies em sua longa evolução geomorfológica43. De- pendendo de onde se localizam suas cabeceiras, grandes rios das terras baixas sul-americanas podem ser caracteri- zados como de água preta (carregados de ácidos húmicos, resultado da decomposição de matéria vegetal, lixiviado dos solos arenosos), tais como aqueles que descem as vertentes do Escudo das Guianas; de água branca, carre- gados de sedimentos proveniente dos Andes, ou de água clara, quando descem das áreas lavadas do Escudo Brasi- leiro. Tal distinção acarreta grandes consequências ecológicas nas comunidades aquáticas sul-americanas34. As terras baixas sul-americanas podem ser divididas em dois grandes conjuntos quanto sua origem geológica: depressões tectônicas encravadas nos escudos e bacias de antepaís. As grandes depressões, tal qual a Depressão do Araguaia-Tocantins são oriundas de reativações tec- tônicas de falhas geológica antigas dos escudos, ao passo que as bacias de Antepaís constituem-se terras rebaixadas que se estabelecem ao sopé andino como um arco flexural consequente do mesmo processo que gera a deformação da cadeia montanhosa vizinha, num pro- cesso típico de margens convergentes. As bacias de antepaís, tais como a do Chaco, que se interconecta com a depressão do Pantanal, são áreas rebaixadas que recebem esporadicamente transgressões marinhas, quer seja em decorrência do aumento geral dos níveis dos oceanos, quer seja pelo seu rebaixamen- to tectônico eventual. Embora a extensão e a frequência das transgressões marinhas ao longo das terras baixas sul-americanas sejam assunto de grande debate44, acredita-se que a maior e mais recente delas tenha inun- dado todo o conjunto de terras baixas do Chaco-Pantanal, assim como o sopé andino ao norte, criando uma cone- xão marinha entre o Oceano Atlântico Sul e o Caribe 97 8- 85 -7 24 1- 89 6- 6 274 – Padrões e Processos – Estudos de Casos através de seu braço norte, e estendendo-se a leste pelas terras baixas amazônicas até a atual foz do Rio Amazo- nas aproximadamente entre 15 e 12 milhões de anos45. Dados de distribuição de espécies de peixes de água doce demonstram que as terras baixas são áreas propicias à expansão da distribuição geográfica da fauna aquática. Diversas espécies de peixes e outros grupos de água doce possuem distribuição que ultrapassa os limites dos atuais divisores de água entre as grandes bacias de antepaís ao sopé andino, estendendo-se também por outras áreas baixas sul-americanas, tais como a extensa bacia do Prata, ao sul, a maior parte das terras baixas amazônicas e atingindo as terras baixas tectonicamente desenvolvi- das nos escudos cristalinos, tais como a depressão do Araguaia-Tocantins34. O padrão também se repete para muitos táxons em que já existem disponíveis filogenias, onde se percebe a relação de grupos irmãos entre bacias de antepaís adjacentes34. O dinamismo tectônicoe geo- morfológico associado às terras baixas sul-americanas certamente promove a expansão da distribuição geográ- fica de diversos táxons, porém também promove vicariância, o que se reflete na relação de grupos irmãos ao longo das bacias de antepaís. Os diferentes níveis de inclusão destes padrões de grupos irmãos demonstram que a dinâmica destas terras baixas é constante, culmi- nando em padrões semelhantes, mas que podem estar distantes no tempo. As grandes transgressões marinhas que invadem a plataforma sul-americana pelas extensas baixadas constituem-se a porta de entrada para táxons de origem marinha, podendo explicar muitos dos grupos secunda- riamente de água doce hoje encontrados nos sistemas fluviais sul-americanos. Entretanto, esta óbvia correlação deve ser vista com cautela. A distribuição secundaria- mente marinha de muitos dos atuais grupos, tais como as raias de água doce da família Potamotrygonidae, tem sido explicada a partir destes eventos de transgressão. Lovejoy46 propôs, com base em relações filogenéticas e relógios moleculares, que as raias de água doce neotro- picais teriam invadido o continente sul-americano atra- vés de transgressões marinhas a partir da região do Caribe entre 15 e 23 milhões de anos. No entanto, a inclusão de diversos grupos fósseis em análise filogené- tica abrangente propôs que a linhagem de Potamotrygo- nidae seria ainda muito mais antiga, com idade mínima de 50 milhões de anos47. Tal hipótese não relaciona, portanto, a invasão das águas continentais da América do Sul pelo ancestral comum de Potamotrygonidae aos eventos de transgressão marinhos mais recentes associa- dos à evolução cenozoica da Cordilheira dos Andes, mas a prováveis eventos mesozoicos. Considerações Finais Neste capítulo são abordados alguns aspectos conside- rados relevantes acerca da biogeografia de peixes de água doce da América do Sul. Contudo, como já salientado em seu início, não se pretende aqui esgotar o assunto, o qual abarca muitos detalhes complexos, cuja abordagem não cabe nesta pequena introdução. O crescente avanço nas técnicas utilizadas em estudos de biologia com- parativa, dentre eles aqueles com possibilidades de obtenção de filogenias e datações cada vez mais precisas, aliado ao aumento da compreensão dos processos em geologia histórica e tectônica conduzem a um terreno fértil de exploração científica. Se por um lado muitos padrões antigos parecem já quase indistinguíveis, dada a intensa dinâmica de paisagem sul-americana, e apenas podem ser acessados com base em estudos comparativos abrangentes (incluindo grupos fósseis), por outro lado abordagens ao nível molecular poderão contribuir para a identificação de padrões de irradiação modernos a partir de estudos filogeográficos. Entretanto, não pode- mos esquecer que estes avanços só serão possíveis com o continuo aumento da informação disponível sobre a verdadeira identidade taxonômica e a real conhecimen- to acerca da distribuição geográfica das espécies de peixes de água doce. Embora se tenha progredido con- sideravelmente neste assunto, ainda se está muito longe de vislumbrar a verdadeira grandeza da diversidade de peixes da América do Sul, no que se refere aos seus padrões e processos. Sem tais estudos taxonômicos básicos, métodos analíticos avançados e caros correm o risco de tornarem-se apenas desperdícios frustrantes. RefeRências BiBliogRáficas 1. REIS, R. E.; KULLANDER, S. O.; FERRARIS, C. J. Check List of the Freshwater Fishes of South and Central America. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. 729p. 2. ESCHMEYER, W. N.; FONG, R. Catalog of Fishes electronic version 2009. Disponível em: http://research.calacademy.org/ ichthyology/catalog/fishcatmain.asp. Acesso em: 12/01/2010. 3. EIGENMANN, C. H. The freshwater fishes of Patagonia and an examination of the Archiplata-Archhelenis theory. In: SCOTT, W. B. Reports of the Princenton University Expeditions to Patagonia, 1896-1899. Princenton, NJ: Princeton University Press, 1909. p. 225-374. v. 3 (Zoology) 4. 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