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Coletânea de Aeon }. Skoble, Mark T. Conard e William Irwin MADRAS F iloso fia /T elev isão /D esenho A nim ado E A F I L O S O F I A \, Os Simpsom e a Filosofia traz uma série de análises a respeito da ironia e da irreverência de uma das comédias mais inteligentes da televisão mundial: Os Simpsons. Profissionais da Filosofia e de outras áreas do saber reúnem- se para desvendar questões filosóficas levantadas pelos personagens, enredos e pensamentos da série, mostrando que pode haver seriedade por trás de um programa que vai muito além da história de um “bobão” e sua família. Os ensaios aqui reunidos são provocantes, reflexivos e muito divertidos de se ler. Há textos que comparam Os Simpsons a outras séries televisivas, como Os Flintstons; outros que traçam paralelos entre a série e filmes como Psicose, Pulp Fiction — Tempos de Violência, O Retrato de Dorian Gray e Os Bons Companheiros; e outros ainda mais inusitados, aproximando a história dessa família ao cerne do pensamento filosófico, a exemplo dos capítulos “Homer e Aristóteles”, “Lisa e o antiintelectualismo americano” e “Assim falava Bart: Nietzsche e as virtudes de ser mau”. Formidável, inusitado e altamente desafiador, Os Simpsons e a Filosofia é um livro que mostra como a Filosofia pode residir em qualquer lugar, até mesmo em um desenho popular. Uma obra que alia a profundidade de uma ciência tão antiga à linguagem contemporânea dos desenhos animados, introduzindo os leitores ao pensamento filosófico pelo meio mais atrativo e agradável: o riso. Os Simpsons e a Filosofia, coletânea de filósofos como W illiam Irwin, M ark T. Conard e A eon J. Skoble, é um livro extrem am ente inteligente e inusitado por apresentar toda a profundidade da Filosofía por meio da linguagem dos desenhos anim ados, o que lhe garantiu sucesso e reconhecim ento em todo o m undo. Veja alguns com entários a respeito da obra: “Recomendo o livro a qualquer pessoa interessada em usar um texto provocante e, às vezes, desafiador como introdução para um curso de Filosofia. ” Professor M ichael F. G oodm an, H um boldt State U niversity “Os Sim psons e a Filosofia é um grande ponto de partida para qualquer estudo a respeito MADRAS dos Simpsons. Uma visão séria de um assunto engraçado. ” M ark I. Pinsky, autor de The Gospel According the Simpson “Não só Os Sim psons e a Filosofía é altamente educacional, mas ainda permite ver com novos o Utos os episódios, trazendo uma nova luz à série. ” Professor Per Brom an, Butler University, Indianópolis “Eu recomendo a todos, fãs de Simpsons ou não. Você ficará surpreso com a sabedoria que se esconde nestas páginas. ” Tom M orris, autor de I f Aristotles Ran General Motors “Os fãs dos Simpsons sem dúvida acharão este livro a resposta perfeita para aqueles que dizem que o desenho é estúpido. ” Publishers W eekly MADRAS Coletânea de W illian Irw in, M ark T. Conard eAeon J. Skoble Tradução: Marcos Malvezzi Leal MADRAS Publicado originalmente em inglés sob o título The Simpsons and Philosophy por Carus Publishing Company © 2001, Carus Publishing Company. Direitos de edição para todos os países de língua portuguesa. Tradução autorizada do inglés © 2004, Madras Editora Ltda. Editor: Wagner Veneziani Costa Produção e Capa: Equipe Técnica Madras Tradução: Marcos Malvezzi Leal Revisão: Arlete Genari Caroline Kazue Ramos Furukawa CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. S621 Os Simpsons e a filosofia/[editores]William Irwin, Mark T. Conard, Aeon J. Skoble; tradução Marcos Malvezzi Leal. - São Paulo: Madras, 2004 Tradução de: The Simpsons and philosophy ISBN 85-7374-849-4 I. Simpsons (Programa de televisão). 2. Filosofía - Miscelânea. I. Irwin, William, 1970-. II. Conard, Mark T., 1965-, III. Skoble, Aeon J. 04-0554. CDD 100 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Madras Editora, na pessoa de seu editor (Lei nB 9.610, de 19.2.98). Todos os direitos desta edição, em língua portuguesa, são reservados pela CDU 1 11.03.04 09.03.04 005740 MADRAS EDITORA LTDA. Rua Paulo Gonçalves, 88 — Santana 02403-020 — São Paulo — SP Caixa Postal 12299 — CEP 02013-970 — SP Tel.: (0__ 11) 6959.1127 — Fax: (0_ _11) 6959.3090 www.madras.com.br http://www.madras.com.br “Eu recomendo a todos, fãs dos Simpsons ou não. Você ficará surpreso com a sabedoria que se esconde nestas páginas. ” Tom Morris, autor de If Aristotles Ran General Motors “Os fãs dos Simpsons sem dúvida acharão este livro a resposta perfeita para aqueles que dizem que o desenho é estúpido. ” Publishers Weekly “Não só Os Simpsons e a Filosofía é altamente educacional, mas ainda permite ver com novos olhos os episódios, trazendo uma nova luz à série. ” Professor Per Broman, Butler University, Indianápolis “Os Simpsons e a Filosofia é um grande ponto de partida para qualquer estudo sobre os Simpsons. Uma visão séria de um assunto engraçado. ” Mark I. Pinsky, autor de The Gospel According the The Simpsons “Os Simpsons e a Filosofia é um livro formidável. Filósofos e não-filósofos se reúnem para mostrar que algumas questões filosóficas muito interessan tes são levantadas pelos personagens, pensamentos e enredos de Os Simpsons. Os ensaios são bem escritos, muitas vezes provocantes, reflexi vos, inteligentes sem elitismo e, talvez, muito valiosos, divertidos de ler. Nada de uma apologia aos Simpsons (por exemplo, Bart poderia ser um herói nietzschiano ou um pensador heideggeriano?), este livro é um trata do filosófico sério aplicado a um programa de televisão às vezes sério (e seriamente engraçado). Há também textos dedicados a interesses mais lite rários, como paródia, alusão e ironia, com tentativas de mostrar como Os Simpsons pode ser comparado a outras formas de arte, como por exemplo o cinema. São feitas algumas esplêndidas comparações entre Os Simpsons e numerosas outras séries de televisão; por exemplo, Seinfeld, Leave it to Beaver, The Jack Benny Show, e MASH, bem como filmes como Psicose, Pulp Fiction — Tempo de Violência, Os Bons Companheiros e O Retrato de Donan Gray. Recomendo este livro a qualquer um que já fo i pego desprevenido por um exemplo de Homer tendo sua lógica desafiada, ou Bart fazendo algum “truque sujo”, ou um comentário profundo de Lisa. Recomendo o livro a qualquer pessoa interessada em usar um texto provocante e, às vezes, desa fiador como introdução para um curso de filosofia. Você pode aprender muito com este livro (agora ouça as vozes de Homer e Bart ecoando), “mas não precisa se não quiser. ” Professor Michael F. Goodman Humboldt State University 5 Dedicatória Lionel Hutz e Troy McClure (que talvez você se lembre de programas de TV como Os Simpsons,) 7 Agradecimentos Escrever, editar e outras miscelâneas de tarefas envolvidas na produção de Os Simpsons e a Filosofia fo i uma experiência divertida e estimulante. Gostaríamos de agradecer as contribuições por manter mos o senso de profissionalismo e o senso de humor em todo o projeto. Nossos sinceros agradecimentos ao pessoal simpático da Open Court, particularmente David Ramsay Steele e Jennifer Asmuth por seus con selhos e assistência. Finalmente, e não com menos louvor, queremos agradecer também a nossos amigos, colegas e alunos com quem dis cutimos Os Simpsons e a Filosofia, que ajudaram a tomar possível este trabalho e ofereceram um valioso retorno enquanto ele estava em an damento. Uma lista assim é quase inevitavelmente incompleta, mas entre aqueles a quem muito devemos, estão: Trisha Alien, Lisa Bahnemann, Anthony Hartle, Megan Lloyd, Jennifer O ’Neill e Peter Stromberg. 9 ✓ Indice Introdução................................................................................................... 13 ParteI Os personagens ........................................................................................ 17 1. Homer e Aristóteles............................................................. 19 H aja H alwani 2. Lisa e o antiintelectualismo americano...............................33 A eon J. Skoble 3. A importância de Maggie: sons do silêncio, leste e oeste .... 43 E ric Bronson 4. A motivação moral de M arge............................................... 53 G erald J. E rion e J oseph A . Z eccardi 5. Assim falava Bart: Nietzsche e as virtudes de ser mau .... 65 M ark T. C onard Parte II Temas de Os Simpsons................................................................................81 6. Os Simpsons e alusão: “O pior ensaio já escrito” .............. 83 W illiam Irwin e J. R. L ombardo 7. Parodia popular: Os Simpsons e o filme policial................ 93 D eborah K night 8. Os Simpsons, hiper-ironismo e o significado da v id a ..... 107 C ari. M atheson 9. Política sexual simpsoniana............................................. 123 D ale E. Snow e J ames J. Snow 11 12 Os Simpsons e a Filosofia Parte III Não fu i eu: Ética e Os Simpsons...........................................................139 10. O mundo moral da familia Simpson: urna perspectiva kantiana..................................................... 141 James L awler 11. Os Simpsons: política atomística e a familia nuclear.........153 Paul A . C antor 12. Hipocrisia de Springfield.......................................................169 J ason H olt 13. Apreciando esse tal de “Sorvete”: Sr. Bums, satanás e felicidade.............................................181 D aniel B arwick 14. Hey-diddily-ho, Vizinhos: Ned Flanders e o amor ao próximo.............................................................191 D avid V essey 15. A função da ficção: o valor heurístico de Homer..............203 J ennifer L. M cM ahon Parte IV Os Simpsons e os filósofos ....................................................................219 16. Um marxista (Karl, não Groucho) em Springfield.............221 James M . W allace 17. “E o resto se escreve sozinho”: .......................................... 237 Roland Barthes assiste a Os Simpsons D avid L . G. Arnold 18. O que Bart chama de pensamento...................................... 253 Kelly D ean Jolley Guia de episodios............................................................................... 265 Baseado em idéias d e ............................................................................ 273 Apresentando as vozes d e ................................................................ 281 índice remissivo................................................................................. 285 Introdução Meditações a respeito de Springfield'P Quantos filósofos são necessários para escrever um livro sobre Os Simpsonsl Aparentemente, uns 20 para escrever e 3 para editar. Mas isso não é mau, se levarmos em conta que 300 pessoas levam 8 meses, com o custo de 1,5 milhão de dólares, para fazer um único episódio da série. Mas, falando sério, será que não temos mais nada para fazer além de escrever acerca de programas de televisão? A resposta mais curta é Sim, temos; mas gostamos de escrever estes ensaios e esperamos que você goste de lê-los. As sementes deste volume foram plantadas alguns anos atrás. Quan do a popular série cômica Seinfeld estava saindo do ar, William Irwin teve uma idéia ardilosa — uma coletânea de ensaios filosóficos a respeito de “uma série sobre nada”. Ele e seus colegas filósofos gostavam do progra ma e participavam de muitas discussões bem-humoradas e estimulantes sobre ele; então, por que não participar da diversão na forma de um livro? O pessoal da Open Court teve a visão, a fortitude e o senso de humor para assumir o projeto, então Irwin editou Seinfeld and Philosophy: A Book about Everything and Nothing. O livro foi um verdadeiro sucesso, não só no meio acadêmico, mas entre o público em geral. Outra série de televisão que Irwin e seus amigos apreciavam e sobre a qual tinham discutido era Os Simpsons. Gostavam da ironia do desenho, de sua irreverência, e perceberam — como em Seinfeld — que seria um terreno fértil para investigação e discussão filosófica. Então, Irwin resolveu montar um segundo volume, desta vez a respeito de Os Simpsons, e pediu 13 14 Os Simpsons e a Filosofia a dois de seus colaboradores em Seinfeld, Mark Conard e Aeon Skoble, que co-editassem a obra. Mais urna vez, a Open Court aplaudiu a idéia, e se você está lendo isso, é porque obviamente tem pelo menos um leve interesse ou por filosofia, ou pelos Sim psons, ou ambos. O conceito é o mesmo: a série tem inteligencia e profundidade suficientes para permitir discussões filosóficas e, como um programa popular, também serve de veículo para explorar uma variedade de assuntos filosóficos para um público geral. O s Sim psons é rico em sátira. Sem dúvida, é urna das comédias mais inteligentes na televisão hoje em dia (Sabemos que isso não é muito, mas...). Pode parecer incongruente para aquelas pessoas que desprezam a série, considerando-a apenas um desenho animado sobre um bobão e sua familia (e já vimos muitos programas assim), dizer que o programa é inteligente, mas, se ele for assistido com atenção, revelará níveis de comédia muito além da farsa. Vemos segmentos e mais segmentos de sátira, duplos senti dos, alusões à alta cultura e à cultura popular, manipulação, paródia e humor auto-referencial. Em resposta à crítica de Homer a respeito de um desenho animado que as crianças estão vendo, Lisa diz: “Se os desenhos fossem fei tos para adultos, passariam no horário nobre!” Apesar das palavras de Lisa, Os Simpsons é, sem dúvida, um programa para adultos, e seria superficial desprezá-lo simplesmente por ser um desenho animado popular. Matt Groening estudou Filosofia na faculdade, mas nenhum dos co- autores deste livro acredita que exista uma profunda filosofia no desenho de Groening. Isto não é “a filosofia de O s Sim psons” nem "Os Sim psons como filosofia”; é O s Sim psons e a F ilosofia. Não tentamos aqui transmi tir o sentido oculto e pretendido de Groening e da legião de roteiristas e artistas que trabalham no programa. Queremos, isto sim, destacar a impor tância filosófica de O s Sim psons, como a vemos. Alguns dos ensaios neste livro são as reflexões de acadêmicos com relação a um programa do qual eles gostam e que, segundo eles, diz algo acerca de um aspecto da filosofia. Por exemplo, Daniel Barwick trata do miserável Sr. Bums, para determinar se podemos aprender algo sobre a natureza da felicidade a partir da infeli cidade desse personagem. Outros exploram o pensamento de um filósofo, fazendo uso de um dos personagens. Mark Conard, por exemplo, pergunta: A rejeição de Nietzsche da moralidade tradicional pode justificar o mau comportamento de Bart? Outros ainda usam a série como um veículo para desenvolver temas filosóficos de uma maneira acessível ao não-especialis- ta (uma pessoa inteligente que tem um certo interesse em reflexão filosófi ca, mas não vive disso). Jason Holt, por exemplo, explora a “Hipocrisia de Springfield”, para determinar se a hipocrisia é sempre antiética. O livro não é uma tentativa de reduzir a Filosofia ao denominador comum mais baixo; não temos o intento de “nivelar por baixo”. Pelo contrá rio, esperamos que nossos leitores não-especialistas se interessem em ler mais a respeito de Filosofia, do tipo que não envolve programas de televi- Introdução 15 são. Também esperamos que nossos colegas que leiam estes ensaios os considerem provocantes e divertidos. É legítimo escrever ensaios filosóficos sobre cultura popular? A res posta padrão a essa pergunta é que Sófocles e Shakespeare também eram cultura popular em sua época, e ninguém questiona a validade das refle xões filosóficas de suas obras. Mas isso não se aplica no caso de Os Simpsons. (Dã!) Se déssemos a mesma resposta,passaríamos a impres são errônea de que consideramos Os Simpsons algo equivalente às melho res obras de literatura, profundo a ponto de iluminar a condição humana. Não é verdade. Mesmo assim, é um trabalho com certa profundidade, e suficientemente engraçado para merecer uma atenção séria. Além disso, sua popularidade significa que podemos usar Os Simpsons como meio de ilus trar questões filosóficas tradicionais para efetivamente atingir os leitores fora da academia. E, por favor, lembre-se de que, embora às vezes sejamos acusados de impiedade e até executados por isso, nós, filósofos, também somos huma nos. Não fique bravo, cara! Parte I Os beisonagens 17 f 1 Homer e Aristóteles Raja H alwani Os homens, por mais que olhem, não vêem o que é o bem-estar, o que é bom na vida. Aristóteles, A Ética a Eudêmio, 1216 a 10 Não sei viver uma vida simples como você. Eu quero tudo! Os aterradores baixos, os atordoantes altos, os insossos meios! Claro que eu posso ofen der alguns narizes empinados com meu passo arrogante e meu cheiro almiscarado —Ah, eu nunca vou ser o queridinho dos tais “Pais da Cida d e ”, que soltam a língua, acariciam a barba e perguntam “O que fazer com esse Homer Simpson ? ” HomerSimpson, “Lisa’sR iva l” Homer Simpson não passa no teste, se for avaliado moralmente. Isso se nota particularmente quando nos concentramos em seu caráter, em vez de em seus atos (embora ele não brilhe muito também na segunda catego ria). Mas, de alguma forma, existe algo eticamente admirável a respeito de Homer. Daí surge a seguinte charada: Se Homer Simpson é moralmente ruim, onde ele é admirável? Investiguemos isso. Os tipos de caráter de Aristóteles Aristóteles nos deu uma categorização lógica de quatro tipos de cará ter.1 Falando de um modo geral, e deixando de lado os dois tipos extremos 1 Minhas observações acerca de Aristóteles derivam basicamente de sua obra A Etica a Nicômaco, livros I, II, V e VIII, traduzido para o inglês por Terence Irwin (Indianápolis: Hackett, 1985) e Política (trad. para o inglês por B. Jowett, em lonathan Bames (ed.), The Complete Works o f Aristotles, volume 2 (Princeton: Princeton University Press, 1984). Referências específicas aparecem no corpo do texto. Desnecessário dizer que muito do que eu argumento a respeito de Aristóteles é passível de debate. 19 20 Os Simpsons e a Filosofia que são o caráter do super-humano e do bestial, temos o virtuoso, continen te, incontinente e o vicioso. Para compreendermos melhor cada tipo, vamos contrastá-los em termos de como cada caráter se manifesta em ações, decisões e desejos. Devemos também considerar uma situação como exem plo e ver como cada um reagiria a ela. Suponha que uma pessoa, a quem chamaremos de “Lisa”, estivesse andando na rua e encontrasse uma carteira com uma considerável quantia em dinheiro. Se Lisa fosse virtuosa, ela não só tomaria a decisão de entre gar a carteira às autoridades competentes, mas ainda se sentiría bem em fazer isso. Os desejos de Lisa estariam em harmonia com a correta ação e decisão. Considere agora Lenny, que é continente: se Lenny achasse a car teira, ele tomaria a decisão certa - devolver a carteira intacta - e seria capaz de cumprir a decisão - mas estaria agindo de forma contrária ao desejo de não devolver. Essa é a marca da pessoa continente: lutar contra os desejos para conseguir fazer a coisa certa. Com os tipos incontinente e vicioso de caráter, as coisas pioram. A pessoa incontinente é capaz de tomar a decisão certa, mas tem a vontade fraca. No caso da carteira, e supondo que Bart seja o tipo de caráter incon tinente de que falamos, ele sucumbiría ao desejo de ficar com a carteira e não agir corretamente, embora saiba que é errado não entregá-la ao dono. Com a pessoa viciosa, não há luta entre os desejos nem vontade fraca. O motivo disso, porém, é que a decisão da pessoa viciosa é moralmente erra da, e seus desejos cooperam plenamente com ela. Se Nelson fosse vicioso, ele resolvería ficar com o dinheiro (e jogar fora o resto da carteira, ou devolvê-la e mentir sobre o que encontrou nela), desejaria fazer isso e agi ría de acordo com o desejo. Observemos melhor o que constitui um caráter virtuoso. Uma pessoa virtuosa é aquela que tem e exerce virtudes. Essas virtudes, aliás, são esta dos (ou características) de caráter que dispõem seu detentor a agir da for ma correta e reagir emocionalmente da mesma maneira. Diante disso, vemos por que Aristóteles insistia em que as virtudes são estados de caráter que concernem tanto à ação quanto ao sentimento (Ética, livro II, especialmen te 1106M5-35). Por exemplo, se alguém tem a virtude da benevolência, estará disposto a ser caridoso com as pessoas certas nas circunstâncias certas. Ele não daria dinheiro a qualquer um que lhe pedisse. O indivíduo virtuoso deve perceber que seu beneficiário necessita realmente do dinhei ro, e que o usará corretamente. Além disso, a reação emocional da pessoa virtuosa é apropriada à situação. Isso significa que a pessoa benevolente em nosso exemplo daria o dinheiro de bom grado, sem se lamentar, e sua motivação seria a necessidade do beneficiário. Em contrapartida, uma pes soa continente não abre mão facilmente do dinheiro, não porque precise dele e não possa partilhar, mas porque é predisposta à ganância ou superes tima o quanto pode necessitar do dinheiro no futuro. Homer e Aristóteles 21 Observe, porém, considerando este relato, que o motivo tem um papel crucial. Pois, se para ser virtuoso, alguém precisa de habilidades perceptivas quanto às situações enfrentadas, então o indivíduo virtuoso não pode ser estúpido ou ingênuo. Deve ter habilidades de raciocínio crítico que lhe per mitam notar as diferenças nas situações e ser capaz de reagir de acordo. De fato, esse é um dos motivos por que Aristóteles enfatizava a idéia de que o tema da ética não admite a precisão rigorosa {Ética, 1094M3-19). A função da razão prática (phronesis) é algo em que Aristóteles insistia: se uma pessoa é virtuosa por impulso, digamos, não possui a virtude “total”, mas no máximo “natural” {Etica, 114b3-15); e possuir a virtude natural significa estar inclinado a fazer a coisa certa por acaso.2 Se apelarmos para as condições de Aristóteles para as ações corre tas, estaremos em posição de completar nosso relato. Aristóteles diz: “Pri meiro, [o agente] deve saber que o que está fazendo é uma ação virtuosa; depois, deve decidir fazê-la - e decidir pela ação em si; e, finalmente, deve agir a partir de um caráter firme e imutável” {Ética, 1105a30-1105b). Em suma, o que o filósofo tinha em mente aqui era isto: em primeiro lugar, ao agir com virtude, o agente deve saber que sua ação é virtuosa; ele age segundo a descrição de que “tal e tal ação é justa (ou generosa, ou hones ta).” A segunda condição parece englobar duas condições, não uma. O agente deve agir voluntariamente, e assim proceder porque a ação é virtuo sa. Isso significa que mesmo que alguém aja sob a descrição de que “esta ação é justa”, sua ação não seria virtuosa a menos que ele a praticasse justamente por ser virtuosa. A terceira condição estabelecida é crucial, e nos leva ao início desta discussão: o indivíduo virtuoso age com virtude não só quando a ação é justa e porque é justa, mas também porque ele é um indivíduo justo. Ele é do tipo que está disposto a se comportar de modo moralmente correto quando a situação assim exige. Isso (faz parte do que) significa ter um caráter “firme e imutável”. 0 caráter de Homer: Dãí Dãí E duplo dãí Tendo em vista o relato de Aristóteles acerca de virtude, a situação parece ruim para Homer Simpson (e não voltarei atrás nesse julgamento; por isso, não espere alguma distinção engenhosa que me faça rever essas palavras). Considere a princípio a virtude da temperança (moderação) que, 2 Devemos resistir à tentação de pensar que uma pessoa viciosa também possui sabedoria prática. A pessoa viciosa, segundo Aristóteles,não tem phronesis; tem, isto sim, apenas esperteza. Para Aristóteles, a razão prática tem força normativa e não o mero papel de usar um meio para chegar a um fim. Phronesis nos permite saber que coisas são importantes e éticas na vida. Por isso Aristóteles diz repetidas vezes que o que é certo parece certo para o agente virtuoso (ver, por exemplo, Ética 1176al6-19). 22 Os Simpsons e a Filosofia basicamente, porém com certa contenção, aborda nossa habilidade em moderar os apetites físicos. Não é preciso uma observação astuta para se perceber que Homer está longe de ser um homem moderado. Ele não só não é virtuoso quanto aos apetites físicos, mas é extremamente vicioso, o que se observa de modo particular em seu consumo de comida e bebida, ainda que não em atividade sexual. Seus desejos o impelem a se empantur rar constantemente, e ele sucumbe de bom grado a esses desejos. Por exemplo, em “Homer’s Enemy”,3 ele se deliciou comendo metade de um sanduíche que pertencia a seu colega de trabalho temporário Frank Grimes - ou “Grimey” - embora na lancheira estivesse marcado claramente o nome deste. Pior ainda, mesmo depois de Grimes ter mostrado isso a ele, Homer conseguiu dar mais duas mordidas no sanduíche antes de colocá-lo de volta na lancheira. O desejo de Homer por comida também o faz criar algumas receitas interessantes. Observe, por exemplo, quando ele enrola um waffle semiassado num palito com manteiga e, claro, o come (“Homer the Heretic”). A saúde de Homer ficou comprometida por causa de seus maus hábitos alimentares, tanto que ele precisou de uma ponte de safena (“Homer’s Triple Bypass”), mas não se intimidou com isso. De fato, mes mo quando está sofrendo evidente e forte dor física, Homer não se intimi da. Veja-o comer carne estragada no Kwik-E-Mart, depois passar mal e ser levado às pressas para o hospital. Em vez de se queixar formalmente contra Apu, ele ficou imediatamente satisfeito com a oferta de Apu de 5 quilos de camarão passado, grátis. Homer sabia que o camarão tinha um cheiro “esquisito”, mas o comeu mesmo assim, e teve de voltar ao hospi tal (“Homer e Apu”). A gula de Homer é parte tão integrante de seu caráter, que ele consome comida mesmo quando está semiadormecido. Em “Rosebud”, em estado sonambúlico, Homer entra na cozinha, abre a porta da geladeira, comenta: “Hmm... 64 fatias de queijo americano”, e vai comendo o queijo durante o resto da noite. A questão da intemperança de Homer não precisa de mais explicações; seu nome passou a ser um sinônimo de amor por comida e cerveja. Ele é também um mentiroso contumaz; falta-lhe honestidade. Em “Duffless”, ele mentiu para a família sobre seus planos para um determina do dia, dizendo a eles que ia trabalhar quando, na verdade, pretendia fazer uma excursão pela Cervejaria Duff. Para catalogarmos algumas outras lorotas de Homer: ele mentiu para Marge quanto a nunca ter concluído o ensino médio (“The Front”); mentiu a respeito de seus prejuízos financeiros em investimentos (“Homer vs. Patty and Selma”), e mentiu repetidas vezes 3 Ver “Guia de Episódios” no fim deste livro. Muitas das citações e todos os títulos dos episódios em meu texto são de The Simpsons: A Complete Guide to Our Favorite Family, editado por Ray Richmond (Nova York: Harper Collins, 1997), e The Simpsons Forever, editado por Scott M. Gimple (Nova York: Harper Collins, 1999) Homer e Aristóteles 23 sobre ter jogado fora a arma que tinha comprado (“The Cartridge Family”). Homer também envolveu Apu em uma grande teia de mentiras contadas à mãe deste último, dizendo a ela que já era casado com Marge, forçando Marge a participar da trama (“The Two Mrs. Nahasappemapetilons”). Homer não é sensível às necessidades e direitos dos outros; ele parece não ter benevolência nem justiça. Em “When Flanders Failed”, ele insiste para que Ned Flanders lhe venda os móveis da casa dele a preço de banana, embora soubesse que Ned estava “a zero” e precisava de dinheiro. Em “Bart the Lover”, ele aconselhou Bart, que usava o pseudônimo de Woodrow (o amante por correspondência da Sra. Krabappel), a romper com ela es crevendo uma nota com as seguintes palavras: “Querida, bem-vinda a Ci dade dos Rejeitados: população: você” (antes de escrever, ele diz a Bart que as cartas de amor sensíveis são sua especialidade). Homer também não tem a menor inclinação para a generosidade: certa vez, disse a Bart: “Você deu os dois cachorros? Você sabe o que eu acho de dar as coisas!” (“The Canine Mutiny”). E resolveu não votar “culpado” na acusação de agressão de Fred Quimby, não porque achasse que Quimby era inocente, mas porque percebeu que se agisse assim, o júri ficaria num impasse e podería se hospedar de graça no Springfield Palace Hotel (“The Boy Who Knew Too Much”). Homer tem vários “chegados”, mas nenhum amigo. Aristóteles enfatizava a importância da amizade devido às suas crenças de que, sem amigos, não podemos exercer a virtude nem ter uma vida plena e flores cente. Homer não tem um único amigo verdadeiro. No máximo, ele encon tra companheiros de bebida (Bamey, Lenny e Cari), mas ninguém com quem partilhar suas metas, falar acerca de suas atividades, alegrias e triste zas.4 Na verdade, é até difícil dizer que Homer tem algum objetivo na vida além de beber. Suas qualidades como marido e pai deixam muito a desejar (Aristóte les parece ter incluído cônjuges e filhos no escopo da amizade; ver Ética 1158b9-16). Pensemos em alguns dos grandes tropeços de Homer. Ele ten ta ganhar o amor de Lisa, comprando-lhe um pônei (“Lisa’s Pony”). Res- sentiu-se quando Bart arrumou um “Irmão Mais Velho” e, assim, acabou se tomando o próprio Irmão Mais Velho de Pepi —a quem ele chama de “Pepsi” — (“Brother form the Same Planet”). Mandou Bart trabalhar num salão burlesco como castigo (“Bart After Dark”). Homer acendeu o pavio da rivalidade entre irmãos quando Lisa descobriu que gostava de hóquei no gelo: “Nesta sexta-feira, o time de Lisa vai jogar contra o time de Bart. Vocês estão em uma competição direta. Quero ver os dois lutando pelo 4 Marge podería suprir essa falta, já que Homer conclui que ela é sua alma gêmea. (“The Mysterious Voyage of Homer”), mas a maioria dos outros episódios da série parece indicar que os dois são muito diferentes em termos de objetivos, interesses e atividades. 24 Os Simpsons e a Filosofia amor dos pais” (“Lisa on Ice”). Não vamos nos esquecer das tentativas de estrangulamento de Bart, precedidas por “Ora seu pequeno...!” E, final mente, ele vive esquecendo que Maggie existe.5 As qualidades de Homer como marido não são melhores. Ele não apóia ou é indiferente aos projetos de Marge; disse isso a ela em “A Streetcar Named Marge.” Sua recusa a ir a espetáculos artísticos e exibições certa vez levaram Marge a procurar a companhia de Ruth Powers; a amizade das duas colocou as duas mulheres em uma caçada policial ao estilo de Thelma e Louise. É verdade que ele pediu desculpas, mas suas desculpas são reveladoras: “Olhe, Marge, desculpe-me por eu não ter sido um marido melhor, desculpe por ter feito molho na banheira, pela vez que usei o seu vestido de noiva para encerar o carro, e desculpe - bem, desculpe-me por todo o casamento até agora” (“Marge on the Lam”). Em “Secrets of a Successful Marriage”, Homer atingiu um novo pico. Percebeu o que podería oferecer com exclu sividade a Marge: “completa e total dependência.” Na verdade, mesmo quando tenta apoiar, ele acaba fazendo tudo errado: certa vez, tentou ajudar Marge em seu negócio de pretzels, e foi procurar auxílio com a Máfia de Springfield, forçando Marge a lidar com Fat Tony e seus capangas (“The Twisted World of Marge Simpson”). Além disso, qualquer esperança de que Homer possa um dia adquirir as virtudes morais morre quando reconhecemos que ele não tem aquela virtude intelectual necessária para um caráter ético, ou seja, a sabedoria prática (phronesis). Phronesis não é conhecimento teórico, embora Homer não tenha isso também.Tampouco é o conhecimento dos fatos, outra coisa que Homer não tem. A sabedoria prática é a habilidade de uma pessoa seguir seu caminho no mundo de maneira inteligente, moral e orientada por metas. Alguns exemplos serão suficientes. Primeiro, algumas amostras de sabedoria de Homer são altamente duvidosas. Em “There’s No Disgrace Like Home”, ele diz: “Quando vou aprender? As respostas para os proble mas da vida não estão no fundo de uma garrafa. Estão na televisão!” E falando de garrafas - uma vez fez o famoso brinde: “Ao álcool! A causa e a solução de todos os problemas da vida!” (“Homer ví. the Eighteenth Amendment”). Em “The Otto Show”, ele disse a Bart que “Se uma coisa é difícil de fazer, então não vale a pena fazer.” E em “Reality Bites”, disse a Marge que “Tentar é o primeiro passo para o fracasso.” Em segundo lugar, Homer parece não ter os poderes mínimos de inferência. Certa vez, ele deduziu que Timmy OToole (o menino fictício que Bart afirmava ter caído num poço) era um herói real pelo mero “fato” de ter caído em um poço e não conseguir sair (“Radio Bart”). Deduziu também que a política do prefeito Quimby de ter uma patrulha de ursos era eficiente só porque não havia ursos nas ruas de Springfield! Quando Lisa 5 Ver capítulo 3 deste livro. Homer e Aristóteles 25 explicou que aquele raciocínio era errôneo, ele achou que ela o estava cum primentando (“Much Apu About Nothing”). Quando Lisa lhe disse que roubar sinal da TV a cabo era errado, ele discutiu com ela, dizendo que a menina também era ladra, pois não pagava pelas refeições em casa nem pelas roupas que lhe davam (“Homer vs. Lisa and the 8th Commandment”). Em terceiro lugar, Homer não tem um dos aspectos mais cruciais do raciocínio prático: a capacidade de organizar a vida em tomo de metas importantes e dignas, e ir atrás delas com responsabilidade e moral. Ele tem muitos sonhos, como se tornar um condutor de monotrilho (“Marge vs. the Monorail”) e ser o dono do time Dallas Cowboys (“You Only Move Twice”); mas sonhos não são metas, e estas Homer não tem. Pelo me nos, metas nobres e dignas de alcançar. Ele parece satisfeito em ser um inspetor de segurança incompetente, trabalhando no setor 7G na usina de força de Bum, vendo alguns de seus subordinados sendo promovidos antes dele. Na verdade, ele estava disposto (“King-Size Homer”) a engordar para receber uma licença por incapacidade e trabalhar em casa. Se Homer tem uma meta na vida, é a de passá-la inutilmente, comendo, bebendo e mergulhando na preguiça. Acrescente-se a tudo isso a extrema ingenuida de de Homer (veja quantas vezes Bart é capaz de tapeá-lo), e que teremos é alguém com capacidade mínima de raciocínio. 0 caráter de Homer: o vislumbre de alguns lu-hús Não devemos, porém, ser muito duros com Homer, pois, às vezes, ele age de modo admirável. Paradoxalmente, por exemplo, embora ele se es queça da existência de Maggie, seu local de trabalho é repleto de fotos dela, que ele mesmo colocou por amor a ela (“And Maggie Makes Three”). Também, que se saiba, ele nunca cometeu adultério, embora tenha tido algumas oportunidades (“Coloner Homer” e “The Last Temptation of Homer”).6 Ele costuma ser afetuoso e carinhoso com Marge: desposou-a novamente (após se divorciar dela) para compensar o casamento “abala do” original (“A Milhouse Divided”). Homer também tem um bom relacio namento com Lisa. Considere os seguintes exemplos: seu apoio ao plano dela de revelar a teia de mentiras que cercava as origens de Jebediah Springfield (“Lisa the Iconclast”), o apoio à autoconfiança de Lisa, inscre vendo-a no concurso de Pequena Miss Springfield (“Lisa the Beauty Queen”), deixar de comprar um ar condicionado duas vezes para poder lhe dar um saxofone (“Lisa’s Sax”), e a ocasião em que ele a levou furtiva- 6 Digo “que se saiba” porque em “Viva Ned Flanders”, Homer acorda num hotel em Las Vegas e descobre que durante a bebedeira da noite anterior tinha se casado com uma garço- nete, mas não fica claro na história se os dois tiveram relação sexual. 26 Os Simpsons e a Filosofía mente ao Museu Springsoniano para que ela pudesse ver os “Tesouros de ísis” (“Lost Our Lisa”). As vezes, Homer demonstra coragem. Considere agora estes exem plos: ele esbravejou com o Sr. Bums por exigir demais dele (“Homer the Smithers”) e por não se lembrar de seu nome (“Who Shot Mr. Bums?”), deu uma surra em George Bush (os motivos não ficaram claros; nada tinha a ver com alianças partidárias, pois ele apóia Gerald Ford, também republi cano) (“Two Bad Neighbors”). Homer também exibe atos de bondade, mesmo com pessoas que ele detesta. Em “When Flanders Failed”, ele aju dou Ned a aumentar suas vendas no Leftorium; em “Homer Loves Flanders”, ele defendeu Ned na igreja (“... esse homem deu toda face de seu corpo pra levar um tapa”); e em “Homer versus Patty and Selma”, Homer fingiu ser ele que estava fumando para que Patty e Selma não fossem despedidas por fumar no local de trabalho. Homer, às vezes, exibe até inteligência e sabedoria teórica. Como exemplos da primeira, ele bolou um intrincado plano para trazer álcool contrabandeado a Springfield e se tomou o famoso “Barão da Cerveja” (“Homer vs. the Eighteenth Amendmenf’), e elaborou um esquema para ganhar dinheiro com o esqueleto de um “anjo” (“Lisa the Skeptic”). Como exemplo de sabedoria teórica, Homer mostrou um raro discernimento da na tureza da religião, quando resolveu parar de ir à igreja, pois - segundo con cluiu - Deus está em todo lugar. Até citou, embora não se lembrasse do nome, Jesus como alguém que se colocou contra as práticas ortodoxas e que estava certo ao fazê-lo (“Homer the Heretic”). Ele tem também raros momentos em que parece reconhecer as próprias limitações. Certa vez, perguntou a Marge: “Você está aqui para me ver, certo?”, quando ela apa receu na usina, revelando sua crença de que, como ele era um homem de poucas qualidades, precisava ter certeza de que Marge estava lá de fato para vê-lo (“Life on the Fast Lane”). E checou duas, três vezes se Lurleen Lumpkin estava realmente flertando com ele, só para ter certeza de que ela estava sexualmente interessada nele (“Colonel Homer”). Avaliação: julgando Homer O que podemos deduzir de tudo isso? Como fica Homer em uma avaliação ética? Ele não é uma pessoa maligna. Embora não seja um para digma de virtude, também não é mau. A reação mais dura que podemos ter em relação a ele é de pena. Temos pelo menos dois motivos para isso. O primeiro é que a formação de Homer deixa muito a desejar. Para começo de conversa, ele cresceu em Springfield, uma cidade cujos habitantes - com a rara exceção de Lisa - tem graves defeitos de caráter, variando da estupidez à maldade, da incompetência à falta de noção do mundo (mesmo Marge, que é uma boa candidata a ser outra exceção entre os habitantes de Homer e Aristóteles 27 Sprinfield, é muito convencional e não costuma ter certas habilidades críti cas7). Considere que mesmo quando os membros do capítulo da Mensa em Springfield governaram a cidade (após a fuga do prefeito Quimby), conse guiram propor regras injustas, restritivas e altamente idealistas. Desneces sário dizer que reinou o caos (“They Saved Lisa’s Brain”).8 O efeito de ser criado num ambiente assim pode ser prejudicial para a formação do futuro caráter e das habilidades intelectuais de uma pessoa. Além disso, a criação num ambiente saudável é um dos principais argu mentos para o projeto de Aristóteles em Política: “Nosso propósito é con siderar que forma de comunidade política é a melhor para aqueles que forem mais capazes de realizar seu ideal de vida” (1260b25). De fato, a Ética de Aristóteles também visa ao estadista que deve pensar em qual seria o melhor caráter ético, e projetar uma comunidade política capaz de produzir esse caráter. Se isso estiver certo, então um motivo por que temos pena de Homer é que esse aspecto de sua formação - isto é, Springfield - escapa de seu controle. Alémdisso, a criação de Homer em casa também deixa muito a dese jar. Sua mãe o abandonou quando ele era muito pequeno, e seu pai nunca o incentivou a se tomou alguém de valor; quando Homer tinha qualquer aspi ração, o pai as destroçava (“Mother Simpson” e “Barí Star”). Além disso, uma qualidade sobre Homer que ele certamente não podería controlar é o gene Simpson, que aparentemente faz um Simpson ficar mais estúpido com a idade. Esse gene “tem defeito só no cromossomo Y” e não no X, o que explica por que Lisa e outras mulheres Simpsons têm sido espertas e bem- sucedidas (“Lisa the Simpson”). Nesse caso, Homer pouco pode fazer para melhorar a si próprio. E esses fatores explicam por que costumamos olhar para Homer com pena, em vez de desdém ou ódio. O segundo motivo para o nosso julgamento de Homer não ser duro demais, embora ele não seja virtuoso, é que ele geralmente não é uma pessoa maldosa. E egoísta, guloso, ganancioso e, às vezes, muito burro, mas raramente tem inveja dos outros ou lhes deseja algo ruim. É verdade que ele costuma agir com intenção deliberada de prejudicar as pessoas, mas achamos que essas pessoas, de certa forma, não merecem um trata mento melhor. Por exemplo, o desprezo que Homer tem de Selma e Patty parece ser apropriado, se levarmos em conta o jeito como elas o tratam e a atitude desdenhosa delas para com ele. Homer também não gosta (embora tenha medo) do Sr. Bums. E, digam o que quiserem do Sr. Bums, ele é o paradigma do capitalista ganancioso, mau e cruel, disposto a andar por cima do cadáver de qualquer um para alcançar seus objetivos.9 E, por fim, Homer 7 Para uma visão aristotélica do caráter de Marge, ver capítulo 4 deste volume. 8 Sobre os vícios e erros de Springfield, ver capítulo 12 deste volume. 9 E também nunca será feliz. Ver capítulo 13 deste volume. 28 Os Simpsons e a Filosofia trata Flanders de maneira indecente, indo da indiferença ao desdém. Mas Flanders, por sua vez, é um sujeito prepotente, arrogante e, ao mesmo tem po, ingênuo.10 Isso não justifica o jeito como Homer o trata, mas ajuda a entender. Se lembrarmos dessas exceções, veremos que Homer não é um indivíduo mau e não trata as pessoas com maldade. Esse é outro motivo por que, apesar da falta de caráter ético, Homer não provoca uma reação ne gativa em nós. Podemos, portanto, julgar efetivamente que Homer não é uma pessoa viciosa, no sentido de ser governado pelo vício (vício, como inclinação para o mal). Digo “efetivamente” porque há uma exceção nesse julgamento: em relação aos apetites físicos por comida e bebida, Homer é vicioso. Não se contenta em comer e beber moderadamente, e isso deixa fora a virtude, pelo menos nessa área. Ele raramente, se é que alguma vez, acredita que deve controlar o excesso de comida e bebida, o que deixa de fora continência e incontinência. Além disso, não parece pensar que é errado (exceto por alguns problemas ocasionais de saúde) exagerar na comilança, mesmo em lugares inapropriados. Uma vez, disse a Marge: “Se Deus não quisesse que a gente comesse na igreja, não teda colocado a gula como pecado” (“King of the Hill”). Essas considerações nos permitem concluir com segurança que Homer exibe vícios na área dos apetites físicos da gastronomia. Tendo em vista a abundância de evidências e exemplos, podemos chegar ao seguinte julgamento: Homer não é uma pessoa virtuosa. Nume rosos fatores nos levam a essa conclusão, mas talvez o mais saliente seja o fato de Homer não ter a estabilidade de caráter que acentua uma pessoa virtuosa. Simplesmente não se pode contar com ele para fazer a coisa cer ta, nem mesmo com respeito a ações que envolvam seus familiares. Além disso, o julgamento de que ele não é virtuoso, diferente do primeiro - i.e., que não é vicioso - não é efetivo. Pois embora Homer às vezes se compor te corretamente, seus motivos são tortuosos, ou na melhor das hipóteses ambíguos (seus atos de coragem são o melhor exemplo). E no que concer ne à sua família, mesmo quando ele faz o que achamos próprio de um bom pai ou marido, há exemplos demais que mostram o contrário. Homer sim plesmente não tem o tipo de caráter estável que é necessário para alguém ser virtuoso. Devemos também nos lembrar de que em muitos casos nos quais ele faz a coisa certa, principalmente em relação à sua família, ele precisa lutar contra seus desejos de agir de forma contrária. As duas vezes em que com prou um saxofone para Lisa, ele teve de lutar contra seu desejo de comprar um ar condicionado (“Lisa’s Sax”). Às vezes, apesar de saber o que deve ser feito, ele prefere agir errado, exibindo o que os gregos chamam de akrasia, ou “fraqueza de vontade”. Por exemplo, em “The War of the Simpsons”, 10 Sobre o caráter de Flanders, ver capítulo 14 deste volume. Homer e Aristóteles 29 ele prefere ir pescar durante a estada em Catfish Lake, embora soubesse que deveria dar atenção a Marge e ao casamento. Homer não é uma pessoa virtuosa. Ele mostra seus defeitos na área da gastronomia e em outras esferas da vida; oscila entre a continência e a incontinência. Isso, é claro, não aparece na divisão dos tipos de caráter estabelecida por Aristóteles, pois sua divisão é lógica, e não uma descrição de que tipos de pessoas existem de fato. Homer exemplifica diferentes tipos de caráter, dependendo da área da vida em que se levanta a questão. Conclusão: 9 importância de ser Homer No início deste ensaio, afirmei que havia algo eticamente admirável em Homer Simpson. Mas tal afirmação gera um problema: Como isso pode ser verdade, se Homer não é virtuoso? Pois se o paradigma de um caráter eticamente admirável é ser virtuoso, e se Homer não corresponde a esse padrão, então dizer que ele é eticamente admirável soa falso. Além disso, mesmo que não o achemos maldoso, e mesmo que acreditemos que a for mação de seu caráter - pelo menos de um modo geral - estivesse além de seu controle, esses fatores não são suficientes para tomá-lo eticamente admirável. Para que aquela afirmação seja plausível, deve haver alguma outra coisa envolvida. E não pode ser o fato de Homer às vezes fazer a coisa certa, pois a afirmação é sobre ele, seu caráter, e não um subgrupo de ações. Em “Scenes form the Class Struggle in Springfield”, Marge se dá conta de seu erro em tentar convencer a família a aceitar um círculo social elitista para o qual ela entrou recentemente. Aceitando os membros da família como eles são, ela enumera as qualidades que aprecia em cada um (mas não conseguiu encontrar uma em Bart). A qualidade de Homer que ela menciona é a de “humanidade na cara”; e essa qualidade, compreendi da em termos suficientemente gerais, não só se aplica a ele mas também explica como ele é eticamente admirável. Essa qualidade não engloba aquelas características que levam Homer a fazer coisas que muitos de nós, em diferentes graus, considerariam exe cráveis, como arrotar, dar vazão à flatulência, coçar os glúteos e comer e beber até desmaiar. Se fosse só isso, Homer seria simplesmente um chato. Na verda de, essa qualidade aborda o amor e a paixão de Homer pela vida, em seus elementos mais básicos, enquanto, ao mesmo tempo, ele não dá muita atenção ao que as pessoas pensam. Homer não costuma ligar para etiqueta ou para a opinião que os outros fazem dele. Ele quer desfrutar a vida - a sua versão dela - ao máximo. Seu entusiasmo pela vida não é calculado, tampouco ele tem consciência disso. Mas esse entusiasmo se manifesta em suas ações, atitudes, falta de maldade e comportamento de criança (para não dizermos infantil); o que, de fato, pode ser encontrado na maioria dos exemplos deste 30 Os Simpsons e a Filosofía ensaio. Quando acrescentamos a isso o fato de Homer ser um cidadão lutador de “classe média-alta-baixa”, que trabalha em urna fábrica sob a tirania de um capitalista cruel, e quando acrescentamos também o fato de Homer morar em Springfield, uma cidade que deve fazer uma pessoa parar e pensar antes de crer que a vida merece seramada, descobrimos um individuo que tem muito a ser admirado. Essa qualidade que explica a admirabilidade de Homer - vamos cha- má-la de “amor pela vida”, lembrando do rótulo de Ned Flanders, “luxúria embriagante da vida” (“Viva Ned Flanders”) - não é uma virtude em si. Não porque não apareça na lista de Aristóteles, mas porque, como bem sabemos, tal qualidade, se não for canalizada, pode ser perigosa tanto para os outros quanto à própria pessoa (como penso ser o caso de Homer). Assim como a ambição, é uma qualidade positiva, e até admirável. Tam bém é uma qualidade ética. Se possuída devidamente, ela melhora a vida da pessoa, tomando-a mais agradável, e faz com que nós desejemos estar na companhia dela, não porque seja contagiante, mas simplesmente porque é agradável estar perto de gente assim. Se essas qualidades que contribuem para a felicidade de uma pessoa e seu florescimento geral forem plausivel- mente consideradas éticas, então uma qualidade como amor pela vida é útil, se usada e regulada pela razão prática. No caso de Homero, a qualidade não é canalizada pela razão, e vem com outros traços que fazem de sua posse algo perigoso. Mesmo assim, admiramos Homer por tê-la, a despeito de todas as probabilidades do contrário.11 Além disso, essa qualidade, especialmente por não estar devidamente canalizada em Homer, o fazer abertamente honesto quanto aos seus dese jos e necessidades - a ponto do exagero. Enquanto os outros fazem intrigas e tramam furtivamente, fingindo ser socialmente conformistas, Homer é claro, honesto e até franco demais sobre quem ele é, o que quer, o que pensa dos outros. Ele conhece suas limitações, ama sua família - de seu jeito próprio e moralmente atenuado - e é uma pessoa que mostra “na cara” o que é. Contudo, não quero ser mal interpretado. Não estou dizendo que Homer é uma pessoa admirável, mas apenas que tem uma característica admirá vel. E tentador passar da última afirmação para a primeira, porque, em primeiro lugar, embora Homer não seja virtuoso também é vicioso, exceto pelos apetites físicos; em segundo lugar, o fato de Homer amar a vida a despeito de seus modestos meios financeiros e econômicos, e apesar de ter 11 As probabilidades do contrário aqui incluem seus meios financeiros e intelectuais mode rados e o fato de viver entre os moradores de Springfield. Devemos nos lembrar também que podemos admirar o caráter de Homer por outros motivos. Ele é, obviamente, muito engra çado. Também podemos admirá-lo porque vemos nele um sentido exagerado daquilo que somos. Homer e Aristóteles 31 crescido e viver em uma cidade como Springfield (que não induz a uma vida boa), pode nos fazer achá-lo admirável por reter esse amor pela vida mesmo diante das situações difíceis. Mas devemos resistir à tentação, e por três motivos. Primeiro, e como já mencionei, a qualidade do amor pela vida no caso de Homer não é regulada pela razão, e isso pode tomá-la moralmente peri gosa. Segundo, gostar da vida não é o mesmo que ter uma vida florescente. Uma pessoa pode realmente amar ao máximo a vida, sem, no entanto, vivê- la de maneira notável. Pense em alguém plenamente feliz, passando a vida contando as folhas da grama ou colecionando tampinhas de garrafa, mas que é capaz de ter metas mais nobres. Por mais feliz que seja essa pessoa, e por mais que goste do que faz, não podemos dizer que sua vida é bem vivida. Diante dos exemplos mencionados na terceira seção anterior, Homer certamente é capaz de levar uma vida melhor do que a sua atual. O terceiro é um motivo lógico: possuir uma característica admirável não faz de seu possuidor um indivíduo admirável. Os vilões geralmente têm a característi ca de superar o medo diante do perigo, e embora isso seja admirável, não achamos os vilões pessoas admiráveis. Na verdade, é por isso que às vezes dizemos a respeito de uma pessoa cruel: “Bem, pelo menos está sendo coerente”, reconhecendo essa coerência como uma característica admirá vel, embora isso não seja suficiente para considerar a pessoa também admi rável. Além disso, um momento de reflexão nos faz compreender que Homer, na verdade, não é um indivíduo admirável. Não é virtuoso, e esse fato em si é suficiente para frustrar qualquer tentativa de se atribuir a ele admirabili- dade. Entretanto, às vezes as pessoas não-virtuosas são chamadas de admi ráveis se compensarem sua falta de virtude dando ao mundo, por exemplo, obras-primas artísticas. O exemplo a que me refiro é do artista Gauguin, que abandonou sua família à própria sorte enquanto ia se dedicar à arte no Taiti. Tais fatores extenuantes, porém, não se aplicam a Homer: Que con tribuição perene ele fez ao mundo para compensar sua falta de virtude e merecer a descrição de “admirável”? Mas o amor de Homer pela vida é, sem dúvida, uma característica admirável, e essa conclusão não é trivial, pois muita gente só vê nele fanfarronice e imoralidade. E, além disso, o amor de Homer pela vida se destaca como uma qualidade importante, principalmente em nossos tem pos, em que a preocupação com uma política correta, os bons modos e a gentileza, a decisão de não julgar os outros, a obsessão pela saúde física, e o pessimismo quanto ao que é bom e agradável na vida reinam de maneira mais ou menos suprema. Em nossos dias, Homer Simpson - cujo adesivo no pára-lama diz “Single’n’Sassy” (Solteiro e gostoso) brilha como uma pessoa que se gaba dessas “verdades”. Ele não é politicamente correto, fica mais do que feliz por julgar os outros e, certamente, não parece ser 32 Os Simpsons e a Filosofia obcecado por saúde. Essas qualidades podem não fazer de Homer um ho mem admirável, mas o tomam admirável em alguns sentidos e, mais impor tante, nos fazem desejá-lo e desejar os outros Homer Simpsons deste mundo.12 12 Quero agradecer às seguintes pessoas: os editores deste livro, por seus comentários úteis, principalmente Bill Irwin também por seu constante apoio e incentivo; Steve Iones, por participar comigo de excelentes conversas sobre Homer Simpson e por tolerar (e às vezes até apreciar) meu constante uso de citações homéricas em minha fala regular; meus brilhan tes estudantes na Escola do Instituto de Arte de Chicago, por discutir o tópico desse estudo comigo em numerosas ocasiões (envolvendo muita indulgência ¡moderada em comida e bebida), por usar exemplos de Os Simpsons em seus trabalhos de Filosofia e pela alegria contagiante deles só por saberem que eu estava escrevendo este ensaio: Annika Connor, Ted Dumitrescu, Christopher Koch, Cory Poole, Sara Puzey, Austin Stewart, e Dahlia Tulett (este trabalho é dedicado a eles). 2 Lisa e o antiintelectualismo americano A eon J. Skoble A sociedade americana costuma ter um relacionamento de amor e ódio com a noção do intelectual. Por outro lado, há um senso de respeito pelo professor ou dentista; mas, ao mesmo tempo, existe também um gran de ressentimento pela “torre de marfim” ou pelo “rato de biblioteca”, urna espécie de defensiva contra os inteligentes ou mais instruídos. Os ideais re publicanos dos Fundadores pressupõem cidadãos esclarecidos, mas, mesmo hoje em dia, a introdução de análises ainda que remotamente sofisticadas de tópicos políticos é taxada de “elitismo”. Todos respeitam um historiador; no entanto, a opinião dele pode ser desconsiderada com o argumento de que “não é mais válida” do que aquela do “operário”. Os comentaristas populistas e políticos frequentemente exploram esse ressentimento dos conhecimen tos especializados, embora apelem para eles quando lhes convêm; por exem plo, quando um candidato ataca seu adversário por ser um “elitista”, quando, na verdade, ele é um produto semelhante (ou conta com conselheiros se melhantes) da mesma origem educacional. Do mesmo modo, um hospital pode consultar um especialista em bioética, ou rejeitar seus conselhos, alegando ser abstratos demais ou sem ligação com as realidades da medicina. Na verdade, parece que a maioria das pessoasgosta de defender suas posições citando especialistas, mas invoca um sen timento populista quando estes não defendem suas visões. Por exemplo, posso fortalecer meu argumento citando um especialista que concorde co migo, mas, se o especialista discordar de mim, eu direi: “Ora, o que ele sabe?” ou “Eu tenho direito à minha opinião também.” Por estranho que pareça, vemos o antiintelectualismo mesmo entre os intelectuais. Por exemplo, em muitas universidades hoje em dia, tanto entre os alunos quanto no corpo docente, a importância dos clássicos e das ciências humanas tem sido incrivelmente diminuída. A tendência é desenvolver programas pré-profissionais e enfatizar 3 3 3 4 Os Simpsons e a Filosofia a “relevância”; enquanto as aulas de ciências humanas são consideradas um luxo ou apenas um programa adicional, mas não necessariamente ca racterísticas de uma educação universitária. Na melhor das hipóteses, são vistas como veículos para desenvolver “habilidades transferíveis”, tais como composição ou pensamento crítico. Parece que há modismos periódicos, como o oscilar de um péndulo: nos anos 1950 e inicio dos anos 1960, havia um tremendo respeito pelos dentistas, enquanto os Estados Unidos competiam com os soviéticos em áreas como a exploração espacial. Hoje, parece que o pêndulo reverteu seu balanço, à medida que o atual zeitgeist considera todas as opiniões igualmente válidas. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas ainda parecem inte ressadas no que os supostos especialistas têm a dizer. Uma breve análise dos talk shows na televisão ou das cartas ao editor, nos jornais, revela essa ambivalência. O talk show convida um especialista porque presumivel mente as pessoas se interessarão pelas análises ou opiniões de tal indivíduo. Mas os participantes do painel e membros da platéia que discordarem do especialista poderão dizer que suas opiniões e perspectivas são igualmente dignas de notas. Um jornal pode manter uma coluna com opiniões de um especialista, cuja análise de uma situação pode ser mais completa do que a de uma pessoa comum, mas as cartas dos leitores que discordam geralmente se baseiam na subjacente (quando não declarada) premissa de que “Ninguém sabe realmente coisa alguma” ou “Tudo é questão de opinião, e a minha também conta”. Essa última noção é particularmente insidiosa: na verdade, se fosse verdade que tudo depende de opinião, a minha seria tão importante quanto a de um especialista; não existiría o conhecimento especializado. Assim, é justo dizer que a sociedade americana vive em conflito quanto aos intelectuais. O respeito por ele parece andar de mãos dadas com o ressentimento. Esse é um problema intrigante, e também de grande importância, pois parece que estamos à beira de uma nova “idade das tre vas”, em que não só a noção da especialidade, mas de todos os padrões de racionalidade estão sendo desafiados. As consequências sociais são clara mente significativas. Como um veículo de exploração desse tema, pode ser surpreendente escolher um programa de televisão que, à primeira vista, parece dedicado à idéia de quanto mais idiota melhor; mas, na verdade, dentre as muitas coisas que Os Simpsons habilmente ilustra sobre a socie dade, a ambivalência americana quanto ao conhecimento especializado e a racionalidade é, sem dúvida, uma delas.13 13 Seria antiintelectual para uma pessoa com Ph.D. escrever um ensaio sobre um progra ma de tevê? Como discutimos na introdução, não necessariamente: depende se o programa pode iluminar algum problema filosófico, ou servir como um exemplo acessível para expli car uma questão. Se quiséssemos adotar uma abordagem antiintelectual, poderiamos argu mentar que tudo o que precisamos saber pode ser aprendido na televisão, mas, certamente, não é isso que estamos dizendo: de fato, estamos tentando usar o interesse das pessoas pelo programa como um meio de fazê-las ler mais filosofia. Lisa e o antiintelectualismo americano 3 5 Em Os Simpsons, Homer é o clássico exemplo de um bobão antiintelectual, assim como a maioria de seus conhecidos e seu filho. Mas sua filha, Lisa, não só é pró-intelectual, mas tem uma inteligência superior à sua idade. Ela é extremamente inteligente, sofisticada e, freqüentemente, mais esperta que todos à sua volta. Claro que as outras crianças caçoam dela na escola e os adultos geralmente a ignoram. Por outro lado, seu pro grama de tevê favorito é o mesmo do irmão: um desenho animado violento e inconseqüente. A preferência dela pelo programa retrata o relaciona mento de amor e ódio da sociedade americana com os intelectuais.14 Antes de estudarmos os modos como isso acontece, examinemos o problema mais de perto. Autoridade falaciosa e a especialidade real Um tema essencial dos cursos introdutórios de lógica é que é um engano ou uma falácia “apelar para a autoridade”; entretanto, as pessoas costumam fazer isso com mais frequência do que seria apropriado. Estrita mente em termos de lógica, é sempre um erro argumentar que uma propo sição é verdadeira porque fulano assim afirma; mas os apelos à autoridade costumam ser usados para demonstrar que temos bons motivos para acre ditar na proposição, embora não constituam prova de sua veracidade. Como todas as falácias envolvendo a tal relevância, o problema com esses argu mentos de autoridade é que eles a evocam de uma maneira irrelevante. Por exemplo, em questões que são realmente subjetivas, como qual pizza ou refrigerante eu devo experimentar, invocar a autoridade de outra pessoa é irrelevante, pois eu posso não ter os mesmos gostos.15 Em outros casos, o erro está em se supor que, porque uma pessoa é autoridade em determina da área, seu nível de conhecimento especializado se estende a todas as outras. Por exemplo, Troy McClure endossando a cerveja Duff não consti tuiría um apelo válido à autoridade, pois ser ator não garante a especialida de em cerveja. (E experiência não é o mesmo que especialidade: Barney também não é especialista em cerveja.) Em outros casos, o apelo é enga noso, ou falacioso, uma vez que certos assuntos não podem ser resolvidos recorrendo-se a especialistas, não por serem subjetivos, mas porque são incognoscíveis, como por exemplo o futuro do progresso científico. O exem- 14 Intelectuais e especialistas não são a mesma coisa, claro: muitos intelectuais não se especializam em coisa alguma. Mas eu desconfio que a antipatia para com ambos tem raízes semelhantes, e a distinção se perde entre aqueles que tendem a rejeitar ou desprezar os dois. 15 Não estou dizendo se há ou não critérios objetivos para julgar a comida, mas simplesmen te mostrando que o fato de Smith preferir chocolate à baunilha é bem diferente do fato de Jones preferir assassinato ao aconselhamento. 3 6 Os Simpsons e a Filosofía pío clássico aqui é a afirmação de Einstein, em 1932, de que “não existe a menor indicação de que a energia [nuclear] pode ser obtida.”16 Mas após expormos todo esse ceticismo em relação aos apelos à autoridade, vale lembrar que algumas pessoas realmente sabem mais so bre certas coisas do que outras, em muitos casos, o fato de uma autorida de em determinado assunto nos dizer alguma coisa realmente é um bom motivo para acreditarmos nela. Por exemplo, como não tenho um conhe cimento em primeira mão da Batalha de Maratona, devo acreditar no que outras pessoas me dizem sobre o tema, e um historiador clássico é exata mente o tipo de pessoa a quem devo recorrer, enquanto um médico já não seria.17 Geralmente as pessoas se ressentem da aplicação da sabedoria, prin cipalmente em ideais morais ou sociais. Elas podem argumentar que, de fato, existe a possibilidade de alguém se especializar no estudo das guerras entre gregos e persas, mas isso não significa que tal indivíduo possa nos esclarecer a respeito da política mundial na atualidade.18 Você pode ser um perito na teoria moral de Aristóteles, mas isso não significa que você tem condições de me dizer como devo levar minha vida. Essa espéciede resistência ao conhecimento especializado vem, em parte, da natureza de um regime democrático, e o problema não é novo, mas já tinha sido identificado por filósofos como Platão, por exemplo. Já que em uma demo cracia todas as vozes são ouvidas, isso pode levar as pessoas a concluir que todas as vozes têm igual valor. As democracias costumam se justificar pelo contraste às aristocracias ou oligarquias que pretendem substituir ou resis tir. Nessas sociedades elitistas, alguns presumem saber mais ou até ser pessoas melhores; enquanto nós, democratas, sabemos que isso não é ver dade. Todas as pessoas são iguais. E claro, porém, que a igualdade política não implica que ninguém possua conhecimento que os outros não têm; na verdade, poucas pessoas levam isso em conta na maioria das habilidades específicas, como encanador ou mecânico de automóveis. Ninguém, entre tanto (dizem), pode saber mais do que os outros sobre como viver, como ser justo. Daí se desenvolve uma espécie de relativismo: da rejeição das elites governantes, que podem não saber mais a respeito de justiça do que qual quer um de nós, a uma rejeição da noção de padrões objetivos de certo e errado. O certo é aquilo que eu sinto ser certo, o que é certo para mim. Hoje em dia, há uma tendência até nas academias de se questionar as noções de objetividade e especialidade. Não são consideradas como histó 16 Citado por Christopher Cerf e Victor Navasky, The Experts Speak (Nova York: Pantheon Books, 1984), p. 215. 17 Claro que há exceções, caso o médico, por exemplo, também for especialista na Batalha de Maratona, se estudá-la como hobby; mas me refiro aqui à profissão médica. 18 Caso você esteja em dúvida, veja The Greco-Persian Wars, de Peter Green (Berkeley: University of California Press, 1996). Lisa e o antiintelectualismo americano 3 7 ria verdadeira, mas apenas diferentes interpretações da história.19 Não há interpretações corretas de obras literárias, somente interpretações diferen tes.20 Até a ciência física, às vezes, é considerada repleta de valores e não objetiva.21 Assim, temos todos esses fatores contribuindo para um clima no qual a noção da especialidade se dilui e, ao mesmo tempo, vemos tendências contra ditórias. Se não existe o conhecimento especializado, e todas as opiniões são igualmente válidas, por que os talk shows e as listas dos livros mais vendidos trazem tantos especialistas em amor e anjos? Aliás, para que assistir a esses programas ou ler esses livros? Para que mandar as crianças à escola? É óbvio que as pessoas ainda dão uma certa importância à noção da especiali dade e, em muitos casos, buscam sua orientação. As pessoas parecem ter uma tendência a desejar que lhes digam o que fazer. Alguns críticos de reli gião atribuem sua influência a essa necessidade psicológica, mas não preci samos procurar fora do reino político para ver evidências disso. Espera-se “liderança” das figuras políticas: temos o problema do desemprego - ninguém sabe que providências tomar? Esse fulano seria um melhor presidente do que aquele outro, porque ele sabe como reduzir os crimes, acabar com a pobreza, melhorar as vidas de nossas crianças e assim por diante. Mas a ambivalência se mostra distintamente nesses contextos. Se o candidato Smith se gabar de sua especialidade e capacidade de “fazer as coisas bem feitas”, o candidato Jones provavelmente o acusará de ser um elitista de “nariz empinado”. Tam bém vemos a situação paradoxal em que as declarações das celebridades a respeito de questões políticas são levadas a sério, como se um músico ou ator pudesse acrescer alguma coisa à visão política de qualquer pessoa, e ao 19 Veja por exemplo o livro de Mary Lefkowitz, Not Out o f Africa (Nova York: Basic Books, 1996), no qual ela narra suas experiências como uma classicista tentando manter padrões de inquirição na inflamada área da Arqueologia com base em raças. 20 Para uma rara explicação objetiva da interpretação artística, ver William Irwin, Intentionalist Interpretation: A Philosophical Explanation and Defense (Westport, CT: Greenwood Press, 1999). Ironicamente, ao mesmo tempo em que noção de verdade e especialidade está sendo desafiada dentro do meio acadêmico - não existem especialistas em moralidade - os talk shows e as listas dos livros mais vendidos estão repletos de especialistas em itens como relacionamento, horóscopo e anjos. Mas esses especialistas, eu creio, só são procurados porque confirmam as predisposições de uma pessoa, e rejeitados quando não o fazem. De fato, a rejeição das afirmações de conhecimento no campo de valores é diferente da rejeição das afirmações de conhecimento nas áreas físicas; mas o interessante é vermos ambas, e ao mesmo tempo também deparamos com afirmações falsas de especialidade em inúmeras questões inapropriadas. 21 Ver, por exemplo, Alan Sokal e Jean Bricmont, Fashionable Nonsense Postmodem lntellectuals ’ Abuse o f Science (Nova York: Picador, 1998). A base desse livro foi a fraude, hoje famosa, de Sokal, na qual ele enviou um ensaio fajuto baseado nesse tema, que foi prontamente aceito por editores de periódicos científicos como uma ótima obra. O título do ensaio era: “Transgredindo as fronteiras: Na direção de uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica”, originalmente publicada em Social Text 46-47, (1996), p. 217-252. 3 8 Os Simpsons e a Filosofía mesmo tempo se deseja a noção de especialidade em govemos. Com quais visões a maioria dos americanos está mais familiarizada: de Alee Baldwin e Charlton Heston ou de John Rawls e Robert Nozick? Além da especialidade política, as pessoas também anseiam (embora pareçam ambivalentes) pela especialidade tecnológica. A maioria não hesi ta em reconhecer que é incompetente para serviços de encanador e mecâ nica e para realizar cirurgias, e de bom grado passam essas tarefas para as mãos dos especialistas. No caso do cirurgião, vemos outra manifestação da ambivalência. Penso nos casos em que as pessoas defendem a medicina alternativa ou as curas espirituais - o que sabem os médicos, afinal? Essa é uma tendência moderna nos meios acadêmicos de se achar que a ciência é repleta de valores e deficiente em objetividade. Mas não encontramos defensores dos “encanadores alternativos” ou “mecânica de automóveis espiritual”, por isso a especialidade desses profissionais é mais facilmente aceita; e os serviços do tipo faça-você-mesmo não são exemplos contrários, pois se trata aqui de alguém se considerar hábil nesse ofício, não necessaria mente negar aos outros essa aptidão. Além disso, como os encanadores e mecânicos não costumam se posicionar como especialistas em campos além dos seus (já os cirurgiões podem se posicionar como peritos em ética), são menos susceptíveis ao ceticismo alheio.22 Admiramos Lisa ou rimos delâ P O antiintelectualismo americano, portanto, é penetrante, mas não abrange tudo e todos. Assim como muitos outros aspectos da sociedade moderna, Os Simpsons usa freqüentemente esse tema como alimento para a sua sátira. Na família Simpson, só Lisa poderia ser descrita como inte lectual. Mas essa descrição não é totalmente lisonjeira. Em contraste ao seu pai, absurdamente ignorante, ela sempre tem a resposta certa para um problema ou uma análise mais perceptiva de uma situação; por exemplo, quando expõe a corrupção política23 ou quando desiste do sonho de ter um pônei para que Homer não precise trabalhar em três empregos.24 Quando Lisa descobre a verdade por trás do mito de Jebediah Springfield, muitas pessoas não se convencem, mas Homer diz: “Você sempre está certa nes sas coisas.”25 Em “Homer’s Triple Bypass”, Lisa chega a conversar com o Dr. Nick durante uma cirurgia do coração e salva a vida de seu pai. Mas, outras vezes, seu intelectualismo é usado como motivo de piadas, como se 22 Isso também indica por que as atitudes populares em relação a “autoridade” e aos “intelectuais” não são exatamente as mesmas. 23 “Mr. Lisa Goes to Washington.”24 “Lisa’s Pony.” 25 “Lisa the Iconoclast.” Lisa e o antiintelectualismo americano 3 9 ela fosse esperta “demais”, ou estivesse apenas dando sermões. Por exem plo, seu vegetarianismo por principios é revelado como dogmático e instá vel,26 e ela usa Bart num experimento científico sem o conhecimento dele,27 evocando exemplos do pior tipo de arrogância, como o infame estudo Tuskegee.28 Ela faz um agito para entrar no time de futebol, mas está mais interessada em provar uma idéia do que em jogar.29 Assim, embora sua sabedoria seja, às vezes, apresentada como valiosa, em outras ocasiões ela demonstra o caso de ser santimonial ou condescendente. Uma crítica populista comum do intelectual é o chavão típico: “Você não é melhor do que nós.” A idéia dessa acusação parece ser que, se eu consigo demonstrar que o suposto sábio é “na verdade” uma pessoa co mum, então talvez eu não precise ficar tão impressionado com a opinião dele. Daí a expressão, “ele veste a calça uma perna de cada vez, como todo mundo.” A implicação desse vulgarismo é claramente “ele é uma pes soa comum como você e eu; então, por que devemos ficar assombrados com sua alegada especialidade?” No caso de Lisa, vemos que ela tem muitas das mesmas manias das outras crianças: ao lado do irmão, ela assis te ao violento desenho animado Comichão e Coçadinha, venera o ídolo adolescente Corey, brinca com a boneca que seria a Barbie de Springfield, Malibu Stacy. Temos, portanto, ampla oportunidade de ver Lisa como al guém que “não é melhor” que os outros em muitos sentidos, o que nos permite não levar muito a sério sua esperteza. E verdade, claro, que isso é apenas um comportamento típico de uma garota muito jovem, mas como em tantos outros casos ela é apresentada não simplesmente como um prodígio, mas sim sobrenaturalmente sábia, sua predileção pelo violento desenho e por Corey parece ganhar destaque, assumindo uma importância maior. Lisa é retratada como o avatar da lógica e da sabedoria; no entanto, ela venera Corey, por isso não é “melhor que os outros”. Em “Lisa the Skeptic”, ela é a única voz da razão quando a cidade está convencida de que foi encontrado o “esqueleto de um anjo” (trata-se de uma fraude), mas quando o esqueleto parece falar, ela fica com medo, assim como todas as outras pessoas. O relacionamento de Lisa com a boneca Maliby Stacy, é na verdade, o tema central de um episódio,30 e isso também demonstra uma ambivalên cia na sociedade quanto ao racionalismo. Aos poucos, Lisa vai percebendo que a boneca não é um modelo positivo para jovens garotas, e ela começa a insistir, na verdade até contribui para o desenvolvimento de uma boneca diferente que encoraja as meninas a crescer e a aprender. Mas os fabri- 26 Lisa the Vegetarían.” 27 “Duffless.” 28 Esse foi um caso em que os médicos fizeram experiências sem o consentimento e desres peitando o bem-estar dos “participantes”, que foram infectados com sífilis. 29 “Bart Star.” 30 “Lisa v í . Malibu Stacy.” 40 Os Simpsons e a Filosofia cantes de Malibu Stacy contra-atacam com uma nova versão de sua bone ca, que triunfa no mercado de brinquedos. O fato de a boneca “menos intelectual” ser grandemente preferida à boneca de Lisa, embora todas as objeções da menina sejam sensatas, serve para ilustrar como as idéias sen satas podem ser relegadas ao segundo plano, perdendo espaço para a “di versão” e o hábito de “seguir o fluxo”. Esse debate ocorre com freqüéncia no mundo real, claro: Barbie é o alvo de eternas críticas do tipo das que Lisa faz contra Malibu Stacy, mas continua sendo imensamente popular, e de um modo geral, vemos críticas intelectuais sobre brinquedos considerados “fora do real” ou elitistas.31 Reís filósofos*? Dã! Um exemplo mais específico de como Os Simpsons reflete a ambi valência americana em relação aos intelectuais aparece no episodio “They Saved Lisa’s Brain”.32 Nesse episodio, Lisa se associa à filial local de Mensa, que já inclui o professor Frink, o Dr. Hibbert e o Cara dos Quadri nhos (Comic Book Guy). Juntos, eles acabam se tomando responsáveis por Springfield. Lisa como que faz urna rapsodia sobre a liderança dos inte lectuais, uma verdadeira utopia racionalista, mas muitos dos programas alie nam os cidadãos comuns (incluindo, é claro, Homer, líder da brigada dos idiotas). Seria muito fácil vermos essa seqüéncia de eventos como urna sátira da pessoa comum que é tola demais para reconhecer a liderança dos sábios; mas a sátira vai além. A própria noção de liderança intelectual é atacada - os membros da Mensa têm algumas idéias legítimas e boas (por exemplo, mais regras de trânsito racionais), mas também algumas ridí culas (censura, rituais de acasalamento como os que aparecem em Jorna da nas Estrelas), e vivem brigando entre si. Eles oferecem algo de valor, principalmente em contraste ao regime corrupto do prefeito Quimby ou ao reinado de idiotice que Homer representa, e as intenções de Lisa são boas; mas é impossível vermos esse episódio como inegavelmente pró-intelectual, já que um dos temas é claramente o fato de que os esquemas utópicos das elites são instáveis, inevitavelmente impopulares e, às vezes, idiotas. Como diz Paul Cantor: “o episódio da utopia representa a estranha mistura de intelectualismo e antiintelectualismo característica de Os Simpsons. No desafio de Lisa a Springfield, o programa chama a atenção para as limita ções culturais das cidadezinhas americanas, mas também nos lembra que o 31 GJ Joe, por exemplo, é criticado por promover o militarismo e a violência, como todos os outros brinquedos “armas”; os pais, porém, rejeitam os alertas dos intelectuais para que as crianças usem outro tipo de brinquedo. 32 Para uma discussão mais detalhada desse episódio, ver capítulo 11 deste livro. Lisa e o antiintelectualismo americano 41 desdém intelectual pelo homem comum pode ser levado ao extremo e essa teoria pode facilmente levar a um afastamento do senso comum.”33 E verdade, porém, que os esquemas utópicos das elites geralmente são mal concebidos, ou constituem, na verdade, esquema de sede de poder mascarando o senso comum. Mas será que a única alternativa é a plebe de Homer ou a oligarquia de Quimby? Os elaboradores da Constituição dos Estados Unidos esperavam combinar principios democráticos (um Con gresso) com alguns dos benefícios de um governo de elite não-democrático (um Senado, uma Corte Suprema, uma Declaração de Direitos). Isso levou a resultados mistos, mas em contraste a outras alternativas parece ter dado certo. Será que toda a ambivalência de nossa sociedade sobre os inte lectuais se deve a essa tensão constitucional? Certamente não. E parte dela, mas, provavelmente, essa ambivalência é uma manifestação de con flitos psicológicos mais profundos. Nós queremos ter orientação autoritária, mas também queremos autonomia. Não gostamos de nos sentir estúpi dos; mas quando somos honestos, percebemos a necessidade de aprender algumas coisas, respeitamos as realizações dos outros, mas, às vezes, sentimo-nos ameaçados e ressentidos. Temos respeito pelas autoridades quando nos convém, e abraçamos o relativismo em outros casos. O uso de “nós” aqui, claro, é uma generalização: algumas pessoas manifestam esse conflito menos que outras (ou em alguns casos nem o manifestam), mas parece uma descrição apropriada de um panorama social geral. Não é uma surpresa que Os Simpsons, nosso programa de televisão mais profunda mente satírico, ilustra e exemplifica isso. A ambivalência na sociedade americana com relação aos intelectuais, se for de fato um fenômeno psicológico com raízes profundas, provavel mente não desaparecerá logo. Mas ninguém melhora de status ou situação incentivando ou promovendo o antiintelectualismo. Aqueles que desejam salvar a república da tirania do professor Frink e do Cara dos Quadrinhos precisam encontrar meios de argumentar contra essa tirania de uma ma neira que não desencadeie um ataque em massa contra o ideal do desen volvimento
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