Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Modelos sociológicos explicativos do crime APRESENTAÇÃO Os modelos sociológicos explicativos do crime são alternativas às investigações biológicas e psicológicas do fenômeno delitual. Ao longo do tempo, essas explicações evoluíram de investigações monofatoriais para multifatoriais, constituindo linhas mais definidas entre as escolas estrutural-funcionalista de ordem liberal e conflituais de ordem marxista, buscando compor avanços dessas duas linhas de investigação. Nesta Unidade de Aprendizagem, você compreenderá o conceito de Sociologia Criminal, analisará as contribuições das escolas multifatorial e de Chicago, além de distinguir as escolas estrutural-funcionalista e conflituais dentro da Sociologia. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir a Sociologia Criminal.• Elencar as contribuições teóricas feitas à Sociologia Criminal pelos enfoques multifatoriais e pela escola de Chicago. • Descrever as teorias estrutural-funcionalistas e as teorias do conflito sob a lente do modelo sociológico. • DESAFIO O assassinato da vereadora Maria José, conhecida por seu trabalho dedicado ao monitoramento de um regime de exceção instaurado no município de Rondonópolis, trouxe discussões acirradas sobre a possibilidade do envolvimento da polícia no crime em questão. Procurado pelo jornal de circulação do Estado do Mato Grosso, Diário de Rondonópolis, onde se situa o município de Rondonópolis, você foi contratado para responder os seguintes questionamentos. 1. Qual a teoria da Sociologia Criminal que explica o fenômeno social-político ocorrido entre a vereadora e as autoridades do Município de Rondópolis? 2. Qual a justificativa da teoria em questão para o assassinato? INFOGRÁFICO As escolas conflituais marxistas e não marxistas opõem-se ao modelo desenvolvido por Durkheim e demais teóricos da escola estrutural-funcionalista. Neste Infográfico, você poderá ver suas características principais, além das semelhanças e diferenças. CONTEÚDO DO LIVRO A Sociologia Criminal é um ramo da Sociologia Jurídica, preocupada com as orígens do delito, suas normas e aplicações das mesmas em relação aos agentes criminosos. No capítulo Modelos sociológicos explicativos do crime, base teórica desta Unidade de Aprendizagem, você verá o conceito de Sociologia Criminal, as contribuições da escola multifatorial e da escola de Chicago e as distinções entre as escolas estrutural-funcionalista e as teorias do conflito. Boa leitura. Modelos sociológicos explicativos do crime Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir a sociologia criminal. � Elencar as contribuições teóricas feitas à sociologia criminal pelos enfoques multifatoriais e pela Escola de Chicago. � Descrever as teorias estrutural-funcionalistas e as teorias do conflito sob a lente do modelo sociológico. Introdução Neste capítulo, você vai conhecer melhor a sociologia criminal, que estuda as origens do crime na sociedade, a tipificação dos comportamentos criminosos e o seu tratamento pelo Estado. Além disso, você vai se fa- miliarizar com as principais correntes sociológicas que se dedicaram a estudar o crime, como as teorias do conflito e os enfoques desenvolvidos pela Escola de Chicago. A sociologia criminal A sociologia jurídica é um ramo das ciências sociais dedicado à compreensão de fenômenos criadores das leis, sua aplicação e suas consequências em re- lação aos grupos sociais envolvidos. Nessa perspectiva, encontra-se o ramo da sociologia criminal, que se dedica de forma específica à explicação das origens do fenômeno do crime na sociedade, à tipificação dos comportamentos enquadrados como criminosos em determinada sociedade e ao seu tratamento pelo Estado. Segundo Baratta (2011, p. 21), o objeto da sociologia jurídica é, “[...] por um lado, a relação entre mecanismos de ordenação do direito e da comunidade, e por outro lado, a relação entre o direito e outros setores da ordem social”. Esse autor aponta três modos de ação e de comportamento que configuram esse objeto: � aquele que tem como consequências normas jurídicas (costumes como fonte de direitos, modos de ação e de aplicação do direito); � aquele que será percebido como efeito das normas jurídicas (controle social por meio de direito, efetividade, conhecimento e aceitação do direito); � aquele que é posto em relação com modelos de ação e de efeitos das normas, abrangendo (a) e (b) — é nesse terceiro ponto de vista que se encontra o estudo do interesse na formação do direito como tal, bem como a sua aplicação e a reação social ao comportamento desviante. O controle social do desvio por parte do direito e dos órgãos oficiais de sua aplicação, conforme o autor, é estudado pela sociologia empírica, que, como tal, “[...] não pode se projetar, como método de observação, para além deles” (BA- RATTA, 2011, p. 22), e pela sociologia teórica, que, “[...] alcançando um nível mais alto de abstração, chega da descrição dos fenômenos (os comportamentos) às estruturas e às leis sociais que não são empiricamente observáveis, mas que são necessárias para interpretar os fenômenos” (BARATTA, 2011, p. 22). Para Baratta (2011, p. 23), portanto, “[...] o objeto da sociologia jurídico- -penal corresponde às três categorias de comportamento objeto da sociologia jurídica em geral”. Molina e Gomes (2010, p. 215), por sua vez, caracterizam a criminologia em geral a partir da divisão dessa área em três aproximações distintas, sendo elas as aproximações biológicas, psicológicas e sociológicas. Os autores ensinam que a aproximação biológica trata do “homem de- linquente”. Assim, busca identificar nas suas partes corporais ou no funcio- namento dos seus diversos sistemas e subsistemas fatores que o distinguem do “homem normal”. A ideia é, a partir disso, explicar a conduta delitiva, compreendida como patológica, disfuncional ou fruto de transtorno orgânico. Para isso, são utilizadas hipóteses tão variadas quanto as disciplinas e espe- cialidades que as apontam: antropológicas, biotipológicas, endocrinológicas, genéticas, etc. (MOLINA; GOMES, 2010, p. 215). As orientações psicológicas, em sentido amplo, buscam a explicação do comportamento delitivo nos processos psíquicos “anormais” (psicopatologia) ou nas vivências subconscientes que têm sua origem no passado remoto do indivíduo e que só podem ser captadas por meio da introspecção (psicanálise). Elas também creem que o comportamento delitivo em sua gênese (aprendiza- gem), estrutura e dinâmica tem idênticas características e se rege pelas mesmas pautas do não delitivo (teorias psicológicas da aprendizagem). Modelos sociológicos explicativos do crime2 Por último, as orientações sociológicas “[...] contemplam o fato delitivo como ‘fenômeno social’, aplicando à sua análise diversos marcos teóricos precisos: ecológico, estrutural-funcionalista, subcultural, conflitual, interacionista, etc.” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 216), lembrando que de qualquer maneira a polêmica atual se desenvolve por base do método empírico-científico. Molina e Gomes (2010) entendem que a moderna sociologia criminal não se limita, diferentemente das concepções anteriores, a ressaltar a importância do “meio” ou “entorno” na gênese da criminalidade. Ela contempla o fato delitivo como “fenômeno social” e pretende explicá-lo em função de um duplo entroncamento, o europeu e o norte-americano. O europeu é represen- tado por Durkheim e o norte-americano, pela Escola de Chicago. De ambos, nasceram os diversos esquemas teóricos (teorias ecológicas, subculturais, etiquetamento, etc.). As contribuições teóricas dos enfoques multifatoriais e da Escola de Chicago As escolas da sociologia criminal possuem diferentes métodos de estudo do fenômeno delitual. Modernamente, destaca-se a dicotomia entre as esco- las estrutural-funcionalista e conflitual, que vocêvai estudar mais adiante. Contudo, as escolas também fazem distinções importantes entre análises multifatoriais e ecológicas, tal como você vai ver a seguir. As teorias multifatoriais possuem correspondência no trabalho dos autores citados por Molina e Gomes (2010, p. 338): Glueck, Burt, Tappan, etc. Seu âmbito de investigação predileto é a delinquência juvenil. A esse respeito, Molina e Gomes (2010) advertem que nem sempre suas análises servem para as demais manifestações da criminalidade. Essa escola utiliza o método empírico indutivo, ou seja, observação de determinados fatos e dados e inferência dos resultados sem preocupação rigorosa com esquemas preconcebidos. “Para estes autores, a criminalidade nunca é o resultado de um único fator ou causa, senão da ação combinada de muitos dados, fatores, circunstâncias, etc.” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 339). Para Molina e Gomes (2010), no entanto, tratam-se de concepções “socio- lógicas”, embora utilizem vestígios de aproximações “biológicas” e fatores individuais presentes no fato delitual. O exemplo apontado pelo autor para caracterizar essa escola é o trabalho realizado pelo casal Glueck, em que foram analisados 500 pares de jovens delinquentes e não delinquentes, buscando fatores que distinguissem os grupos. Para isso, foram tomados como fatores 3Modelos sociológicos explicativos do crime referenciais a família, a escola, o município e a estrutura da personalidade (partindo da contemplação de 400 fatores de aproximação); ademais, os jovens foram selecionados progressivamente pelo critério do interesse. Segundo Molina e Gomes (2010, p. 338–339), os Glueck “[...] concluíram que, para a elaboração do prognóstico, os mais relevantes seriam: a vigilância do jovem por sua mãe, a maior ou menor severidade com que ela lhe eduque e o clima de harmonia ou de desavenças familiares”. Em adição ao trabalho do casal, Healy constatou variáveis como males hereditários, anomalias men- tais, constituição física anormal, conflitos anímicos, mau ambiente familiar, amizades inadequadas, frustração de expectativas do indivíduo, condições insatisfatórias para o desenvolvimento infantil, etc. Por sua vez, Burton veri- ficou 170 “condições” que desencadeariam o comportamento não desejado. Já Mabel A. Elliot e Francis E. Merril notaram a “[...] acumulação ou concurso de uma pluralidade heterogênea de fatos que, talvez por si sós, não motivariam aquela [delinquência]” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 340). A criança, dizem, é capaz de superar talvez um ou dois handicaps (a morte de um de seus pais, a pobreza ou uma má saúde, por exemplo). Mas, se a isso se acrescentar o desemprego e o alcoolismo do chefe de família, a instabilidade da mãe, o subdesenvolvimento anímico da própria criança que deixa cedo a escola para trabalhar, as péssimas condições de moradia e as más companhias, aos autores parece então que todos os fatores em tal contexto surgem contra a criança. Se ela se torna uma delinquente, concluem Eliot e Merril, não costuma ser por uma razão única, senão pela acumulação de sete ou mais circunstâncias que lhe colocam em desvantagem. Para Molina e Gomes (2010), ao passo que a aproximação multifatorial reúne uma informação realista completa e demonstra a fragilidade dos mo- delos monofatoriais, trata-se de um “empirismo grosseiro”. Afinal, relaciona fatores sem hierarquizá-los, equiparando a relevância de uns e outros. Além disso, tampouco explica a influência no comportamento delitivo de cada fato investigado. Para o autor, o diagnóstico é condicionado pela seleção prévia de fatores que servem de base à investigação, tratando-se de diagnósticos que costumam “[...] coincidir sintomaticamente com crenças muito arraigadas nas convicções populares” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 341). A Escola de Chicago, por sua vez, é considerada pelos autores como o berço da moderna sociologia americana (MOLINA; GOMES, 2010, p. 341). Ela é responsável pelo emprego da observação direta e caracterizada pela finalidade prática para as quais os estudos se orientavam. Seus principais expoentes são Park, Burgess, Mckenzie, Shaw e Mckay. Além disso, ela possui nomenclatura própria: é a teoria ecológica e sociológica criminal urbana. Modelos sociológicos explicativos do crime4 A temática da Escola de Chicago foi a chamada “sociologia da grande cidade”. Seus investigadores iniciais eram jornalistas e seus objetos de análise eram o desenvolvimento urbano e os fatores da civilização industrial, bem como a morfologia da criminalidade nesse novo meio. O cenário estudado pela escola é o das grandes cidades norte-americanas, tendo como pano de fundo as questões de industrialização, migração, imigração, conflitos culturais e outros. Seu objeto de interesse são os grupos e culturas minoritários conflitivos, aprofundando-se “desde dentro” o mundo dos desviados, suas formas de vida e cosmovisões e analisando os mecanismos de aprendizagem e transmissão das culturas desviadas (MOLINA; GOMES, 2010, p. 342). A primeira teoria da escola, chamada “teoria ecológica”, considerada ingênua pelos autores, possui como objeto a “[...] grande cidade como uni- dade ecológica” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 343). Suas teses consistem em que “[...] existe um claro paralelismo entre o processo de criação dos novos centros urbanos e a sua criminalidade, a criminalidade urbana (claramente diferenciada, sob todos os pontos de vista, da que é produzida fora dos núcleos urbanos)” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 343). Para os autores, a cidade “pro- duz” delinquência. Além disso, na grande cidade pode-se verificar inclusive a existência de zonas ou áreas muito definidas (a gangland, as delinquency areas) onde essa delinquência se concentra. A explicação da teoria ecológica está no desabilitamento do controle social nesses núcleos, em contraste com as áreas residenciais urbanas. Essa situação leva à deterioração dos grupos primários (família, etc.), à modificação quali- tativa das relações interpessoais que se tornam impessoais, à alta mobilidade e à consequente perda de raízes no lugar de residência, bem como à crise de valores tradicionais trazida pela superpopulação. Para a escola, “A tentadora proximidade às áreas comerciais e industriais onde se acumula riqueza e o citado enfraquecimento do controle social criam um meio desorganizado e criminógeno” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 344). Segundo Molina e Gomes (2010), a investigação mais conhecida da Escola de Chicago é a de Thrasher, denominada “The Gang”, que examinou 1.313 quadrilhas que operavam em Chicago, caracterizando como gangland o distrito industrial da cidade. Nesse sentido, se constatou “[...] que a criminalidade surge nos confins da civilização e em zonas que mostram insuficiências nas condições elementares da vida” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 344). 5Modelos sociológicos explicativos do crime Para Molina e Gomes (2010), as teorias ecológicas tiveram o mérito de chamar a atenção para o impacto do desenvolvimento urbano na gênese delitual. No entanto, a contraposição clássica urbana e rural, para eles, não interessa hoje como naquela época, porque o que realmente preocupa é a moderna “civilização técnica” e suas implicações criminógenas, pro- blema que transcende o âmbito das grandes cidades. Hoje, esse problema pode ser somado à globalização e ao acesso à informação pelos meios de comunicação em massa; muito embora as características ambientais não possam ser completamente descartadas. Molina e Gomes (2010, p. 345) entendem que não se deve exacerbar a “força atrativa” que certas zonas possuem, atribuindo a elas um papel “causal”, uma vez que elas atraem a criminalidade, mas não a produzem. A análise estritamente ecológica deu espaço, nos anos 1950, para estudos da “área social” e para métodos estatísticos multivariados. As teorias estrutural-funcionalistas e as teorias do conflito sob a lente do modelo sociológico As teorias estrutural-funcionalistas e as teorias do conflito são hoje asprincipais correntes da sociologia criminal. Contudo, há uma clara dis- tinção ideológica entre elas. A escola estrutural-funcionalista é encarada como a primeira explicação verdadeiramente sociológica para o fenômeno delitual, em contraste com as aproximações biológicas e psicológicas. Já a escola conflitual nega esses princípios basilares para construir sua própria explicação desse fenômeno. Segundo Molina e Gomes (2010, p. 349), a teoria da anomia de Durkheim, ao lado de outras formulações realizadas por Merton, Cloward e Ohin e das teorias sistêmicas, surge no contexto das economias vertiginosamente indus- trializadas e das profundas mudanças sociais enfrentadas por elas. Nessas sociedades, há também o enfraquecimento e a crise dos modelos, normas e pautas de conduta. Segundo os autores, seus “[...] postulados de maior transcendência crimi- nológica são dois: a normalidade e a funcionalidade do crime” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 349). Segundo essa escola, o crime seria normal pois não teria origem em qualquer patologia individual ou social, mas comporia o normal e regular funcionamento de toda e qualquer ordem social. Apareceria inevitavelmente unido ao desenvolvimento do sistema social e dos fenômenos Modelos sociológicos explicativos do crime6 normais da vida cotidiana. Além disso, seria funcional para a estabilidade e a mudança social, como um fio condutor das inovações sociais e da formação da anomia como um estado de desenvolvimento social. Foi Durkheim que concebeu a ubiquidade do fenômeno delitual (podendo ocorrer em qualquer estrato social e em qualquer modelo de sociedade), que seria derivado das estruturas e fenômenos cotidianos de uma ordem social intacta e não necessariamente de uma sociedade “desorganizada” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 349–350). Para o autor, o delito não é senão uma modali- dade de conduta “irregular” quanto a uma conduta “regrada”. Nesse sentido, a anormalidade não é a ocorrência do delito, mas o incremento ou descenso das taxas de criminalidade. Assim, ele postula que “[...] uma sociedade sem condutas irregulares seria uma sociedade pouco desenvolvida, monolótica, imóvel e primitiva” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 350). Durkheim afirma que o crime cumpre uma função integradora e inovadora e deve ser contemplado como produto do normal funcionamento de toda socie- dade (MOLINA; GOMES, 2010). Para ele, o delinquente não é um indivíduo patológico ou antissocial, mas um “[...] fator do funcionamento regular da vida social”. Da mesma forma, a pena ou castigo é uma instituição social como qualquer outra relação estrutural-funcional (MOLINA; GOMES, 2010). Para Durkheim, “[...] o delito fere os sentimentos coletivos, porque o delinquente rompe o que é tido socialmente como bom e correto; a pena é, pois, a reação social necessária e atualiza aqueles sentimentos coletivos, que correm o risco de fragilização” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 350). Outra característica marcante do trabalho de Durkheim é o conceito de anomia. Esse termo pretende expressar a crise, a perda de efetividade ou o desmoronamento de normas e valores vigentes em uma sociedade precisamente como consequência do seu rápido e acelerado desenvolvimento econômico e de suas profundas alterações sociais, que debilitam a consciência coletiva (MOLINA; GOMES, 2010, p. 350–351). Você pode considerar, por exemplo, as mudanças de valores ocorridas no final do século XX e início do século XXI, como a inclusão da diversidade de gêneros, notadamente com o reconhe- cimento do casamento homossexual, encarado como uma patologia ou mesmo contravenção pela sociedade do início do século XX e hoje reconhecido como um comportamento normal pelas comunidades científicas e políticas. Além disso, as reiteradas discussões e experimentos legiferantes da liberalização das drogas anteriormente “ilícitas”, como é o caso da maconha no Uruguai, na Holanda e em alguns estados norte-americanos, demonstram a importância desse conceito. 7Modelos sociológicos explicativos do crime Esses reflexos também indicam a evolução do conceito de anomia trazida por Merton. Esse autor converteu a teoria da criminalidade para tornar o conceito de anomia um sintoma do vazio que se produz quando os meios socioestruturais existentes não servem para satisfazer às expectativas culturais de uma sociedade (MOLINA; GOMES, 2010, p. 351). Baratta (2011) sintetiza a contribuição da teoria estrutural-funcionalista por meio da negação do princípio do bem e do mal. Isso representaria a virada na direção sociológica, constituindo a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciais biopsicológicos do delinquente. Nesse sentido: 1) As causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioan- tropológicos e naturais (clima, raça), nem em uma situação patológica da estrutura social. 2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social. 3) Somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social, seguindo-se de um estado de desorganização, no qual todo o sistema de re- gras de conduta perde valor, enquanto um novo sistema não se afirmou (esta é a situação de “anomia”). Ao contrário, dentro de seus limites funcionais, o comportamento desviante é um fator necessário e útil para o equilíbrio e o desenvolvimento sociocultural (BARATTA, 2011, p. 59–60). Em contraste com a visão liberal da teoria estrutural-funcionalista, encon- tram-se as teorias do conflito. Elas deslocam a “normalidade” da atividade delitual e apontam para a sua fabricação por meio dos conflitos existentes entre determinados grupos que compõem a sociedade. As teorias do conflito são classicamente divididas entre teorias marxistas e não marxistas, de acordo com seu grau de radicalização ou aproximação com a teoria social da luta de classes. Conforme conceitua Baratta (2011, p. 120), não se tratam de teorias de médio alcance, mas de uma reformulação das teorias sociais da compreensão do fenômeno delitual. Segundo Molina e Gomes (2010, p. 355), essas teorias possuem uma grande tradição na sociologia criminal norte-americana, preocupada especialmente com o problema da migração e da imigração, sobretudo com a segunda ge- ração de imigrantes, cuja cultura originária poderia entrar em conflito com a cultura “adotiva”. Assim, diferem das teorias anômicas liberais, que partem do pressuposto lógico de uma sociedade monolítica, cujos valores são produto de amplo consenso. As teorias do conflito pressupõem a existência de uma pluralidade de grupos e subgrupos que, eventualmente, apresentam discre- pâncias em suas pautas valorativas. Modelos sociológicos explicativos do crime8 A teoria sociológica do conflito reflete e acompanha a evolução ideológica que iden- tifica como utópica a organização liberal da sociedade. Dessa forma, repele, como um mito do qual é necessário libertar-se, a representação de uma sociedade fechada em si mesma e estática, desprovida de conflito e baseada no consenso. É essa a “utopia” da qual Ralf Dahrendorf, em um ensaio famoso, convidava a sociologia a sair (BARATTA, 2011, p. 120–121). A criminologia positivista parte de quatro pressuposições, sendo elas: a ordem social fundamentada no consenso (MOLINA; GOMES, 2010, p. 356); o direito como representação da tutela dos valores básicos do sistema; o Estado como garantidor da sociedade pluralista a partir da aplicação neu- tra das leis; e a ideia de que os interesses gerais da sociedade estão acima dos interesses particulares dos diversos grupos. Já as teorias conflituais entendem que é o conflito que garante a manutenção do sistema e promove as alterações necessárias para seu desenvolvimento dinâmico e estável. O crime, em consequência, é contemplado como expressão dos conflitos existentes na sociedade. Os postulados da criminologia conflitual são: a dissensão da sociedade industrializada; o conflito como estrutura e dinâmica de mudança social;o direito como representação dos valores e interesses de classes ou setores dominantes (e não dos interesses gerais da sociedade) e a aplicação da justiça penal de acordo com esses interesses; o delito como uma relação desigual e injusta de distribuição de poder e riqueza na sociedade (MOLINA; GOMES, 2010, p. 356). As teorias não marxistas são representadas pelo trabalho, entre outros, de Taft e Sellin, White e Cohen. Para Taft, a criminalidade é produto da mudança social. A cultura, “[...] com suas numerosas contradições internas, seria o fator criminógeno por excelência”. De fato, “[...] é assim que Taft explica as elevadas taxas de criminalidade masculina nos Estados Unidos (acentuação do princípio de competitividade, dupla moral, dissolução das instituições tradicionais, etc.)” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 356–357). Já Sellin entende que os conflitos não ocorrem em modelos culturais em bloco, senão entre as pautas normativas dos diversos grupos e subgrupos sociais, cujas valorações são discrepantes (MOLINA; GOMES, 2010, p. 357). Dahrendorf, em um “relançamento” do pensamento conflitual, definiu como 9Modelos sociológicos explicativos do crime pilares de todo o modelo sociológico a mudança, o conflito e a dominação, ao entender que as organizações se consolidam e evoluem pela coação e pela pressão de um grupo sobre o outro (MOLINA; GOMES, 2010, p. 357–358). Coser, por sua vez, afirma que o conflito é funcional, pois assegura a mudança social e contribui para a integração e a conservação da ordem e do sistema (MOLINA; GOMES, 2010, p. 357–358). As teorias conflituais de orientação marxista ortodoxas contemplam o crime como função das relações de produção da sociedade capitalista (MOLINA; GOMES, 2010, p. 361). Sob diversas denominações, como criminologia crítica, criminologia radical, nova criminologia, etc., todas essas teorias têm suas raízes no pensamento de Marx e Engels, tendo recebido um valioso impulso renovador com a obra de Taylor, Walton e Young e com a National Deviancy Conference, organização constituída em 1968 por um grupo de sociólogos britânicos que assumem o modelo conflitual do labelling approach, com todas as suas implicações. Para Molina e Gomes (2010, p. 362), as “[...] teorias marxistas do conflito apelam para a estrutura ‘classista’ da sociedade capitalista — assim, o conflito social é um conflito de ‘classe’ — e concebem o sistema legal como mero instrumento a serviço da classe dominante para oprimir a classe trabalhadora”. Para elas, a justiça penal é definida como administradora da criminalidade, pois não combateria o delito, mas recrutaria a população desviada para sua “clientela” natural. Segundo os autores, “[...] até mesmo a criminalidade, conforme o pensamento marxista, não é mais que o subproduto final de um processo de criação e aplicação de leis orientadas sempre para as classes sub- metidas” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 362). A criminologia radical contesta sistematicamente a função legitimadora e conservadora da criminologia atual, que não questiona nem critica os processos de definição (criação da lei penal de acordo com os interesses da classe dominante). Sutherland, segundo Baratta (2011, p. 127–128), sintetiza todos os principais elementos da criminologia do conflito, sendo eles: a) a precedência lógica dada ao processo de criminalização sobre o com- portamento criminoso; b) a referência do processo de criminalização e do comportamento cri- minoso à existência, aos interesses e à atividade dos grupos sociais em conflito; c) o caráter político que assume todo fenômeno criminal: criminalização, comportamento criminalizado e pena são aspectos de um conflito que Modelos sociológicos explicativos do crime10 se resolve mediante a instrumentalização do direito e do Estado, ou seja, de um conflito no qual o grupo mais forte consegue definir como ilegais comportamentos de outro grupo, contrários ao próprio interesse, que, assim, é constrangido a agir contra a lei. Sob o ponto de vista metodológico, os criminólogos marxistas afastam-se dos padrões e das técnicas das ciências sociais. Segundo Molina e Gomes (2010, p. 362), eles “[...] não aceitam as investigações puramente empíricas e optam por um método histórico-analítico”. Esse método permite uma análise macrossociológica do fenômeno criminal, “[...] como [do modo com que] o processo de acumulação de riqueza afeta os índices de criminalidade”, e também uma análise microssociológica, por exemplo, a “[...] incidência das interações criminais nos indivíduos que vivem na sociedade capitalista”. A análise do desenvolvimento histórico institucional da sociedade capita- lista, no entanto, possui déficit empírico com desmedida carga especulativa e com pretensões generalizadoras, que, conforme criticam Molina e Gomes (2010), não possuem fundamento algum. Assim, “Que um determinado conflito social gere crime ou explique certas manifestações delitivas parece óbvio. De qualquer modo, o que não é tão evidente é que todo fato delituoso tenha por base um conflito” (MOLINA; GOMES, 2010, p. 363). Além disso, os teóricos do conflito, segundo os autores, [...] com frequência renunciam a estabelecer a difícil, porém lógica relação — do ponto de vista científico — entre um determinado conflito, cuja natureza e forma deveriam ser mais precisadas, e concretas formas da criminalidade. Em seu lugar optam por esvaziar de todo conteúdo o conceito de conflito, colocando-o em um abstrato âmbito filosófico-político não suscetível de verificação empírica, ou inclusive para supor a existência de um substrato conflitual onde este não exista (MOLINA; GOMES, 2010, p. 363). A dicotomia entre os modelos liberal e conflitual da criminologia persiste nos dias atuais, muito embora as suas distinções se atenuem para a cons- trução de uma criminologia que busque uma integração social com base na compreensão da existência dos diferentes conflitos sociais. Como você viu, a sociologia criminal é uma escola em construção. Ela desenvolve seu método a partir de movimentos históricos de construção e desconstrução de modelos para o estabelecimento de distintos métodos e aproximações sobre seu objeto de estudo: a gênese, o tratamento e a aplicação do fenômeno delitual e do seu controle social. 11Modelos sociológicos explicativos do crime As teorias conflituais não devem ser confundidas: [...] com efeito, para as teorias do conflito não marxistas o crime é produto normal das tensões sociais e carece de significado patológico. A ordem social, para elas, é constituída de uma pluralidade de grupos, segmentos e estratos, que disputam o poder político sem chegar a monopolizá-lo por completo. As estruturas de dominação se articulam sobre a base de um poder diferenciado, não absoluto, sendo este só um dos fatores que inspiram a criação e o processo de aplicação das leis. Estas teorias, ademais, situam o conflito em um remoto e abstrato âm- bito político, desconectado dos modos de produção e da infraestrutura socioeconômica da sociedade capitalista. Pelo contrário, de acordo com a análise criminológica marxista o delito é sempre um produto histórico, patológico e contingente da socieda- de capitalista. Ela contempla a ordem social como confrontação de “classes” antagônicas, sendo que uma delas se sobrepõe e explora a outra, servindo-se do Direito e da Justiça Penal. O conflito inerente à sociedade capitalista, por último, é — para o marxismo ortodoxo — um conflito de classes enraizado nos modos de produção e na infraestrutura econômica daquela (MOLINA; GOMES, 2010, p. 361). BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. MOLINA, A. G.-P.; GOMES, L. F. Criminologia. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. (Coleção Ciências Criminais, v. 5). Modelos sociológicos explicativos do crime12 DICA DO PROFESSOR A escola estrutural-funcionalista de Durkheim é consideradaa primeira verdadeiramente sociológica da criminologia, abandonando o conceito de delito como patologia biológica ou psicológica para desenvolver a criminalidade como característica normal e funcional das sociedades. Nesta Dica do Professor, veremos as principais características dessa escola e do conceito de anomia. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) A Sociologia Jurídica tem três objetos principais de investigação, estando entre eles: A) os efeitos das normas sociológicas. B) os costumes como fontes de Direito. C) os contratos como fontes do Direito. D) os efeitos das normas de interpretação. E) as relações entre a vontade do legislador e a literalidade da lei. 2) Para Baratta, o objeto da Sociologia Jurídico-penal corresponde a ______________ categorias de comportamento objeto da Sociologia Jurídica em geral. A) algumas B) apenas uma das C) todas D) apenas duas E) nenhuma das 3) A teoria ecológica é fruto da escola: A) estrutural-funcionalista B) conflitual-marxista C) conflitual não marxista D) escola de Chicago E) escola multifatorial 4) Para Molina, ao passo que a aproximação multifatorial reúne uma informação realista, completa e demonstra a fragilidade dos modelos monofatoriais, trata-se de um “empirismo grosseiro”, pois relaciona fatores sem _______________. A) explicá-los. B) hierarquizá-los. C) regrá-los. D) nomeá-los. E) equipará-los. 5) Baratta sintetiza a contribuição da teoria estrutural-funcionlista pela negação do princípio: A) da justiça. B) do bem e do mal. C) da ordem social. D) do crime natural. E) do conflito. NA PRÁTICA As explicações sociológicas para o fenômeno delitual compõem um importante elemento das discussões jurídicas a esse respeito. Como exemplo, pode-se citar o uso da escola estrutural-funcionalista para referir a importância do processo judicial em relação ao estudo do delito, sendo que o anti-social é exceção segundo essa escola. SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Abordagens científicas sobre as causas da criminalidade violenta: uma análise da teoria da ecologia humana Este artigo objetiva apresentar seis abordagens científicas que explicam as causas da criminalidade violenta: teorias focadas nas patologias individuais, Teoria da Desorganização Social, Teoria Estrutural-Funcionalista do Desvio e da Anomia, Teoria da Associação Diferencial e do Aprendizado Cultural, Teoria do Controle, Teoria da Ecologia Humana. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A teoria do conflito e sua importância na concretização do acesso à justiça material A pesquisa que ora se apresenta tem como objetivo demonstrar que o estímulo à utilização dos meios consensuais de solução de conflitos se apresenta como resposta adequada e eficaz para a crise de litigiosidade crescente enfrentada pelo Poder Judiciário. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Émile Durkheim e a análise sociológica do Direito à atualidade e os limites de um clássico Este artigo pretende analisar as contribuições e os limites da abordagem sociológica de Émile Durkheim para a compreensão do Direito. Assim, em primeiro lugar, sublinha a relevância do pensamento de Durkheim na configuração da Sociologia Moderna. Para tanto, realiza uma breve incursão pela análise de Danilo Martuccelli acerca das matrizes do pensamento sociológico sobre a modernidade. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
Compartilhar