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MARIA LAURA R BARROS MED 107 HUMANIDADES Uma breve reflexão sobre a Antropologia Médica A reflexão antropológica na área da saúde é de grande importância para o médico e demais profissionais dessa área. Os aspectos biológicos, políticos, econômicos e socioculturais precisam ser considerados quando se pretende abordar o campo da saúde. A área da saúde se coloca como um espaço para a reflexão antropológica, na medida em que se desenvolve em contextos de relações de alteridade, através das práticas culturais e de modos de vida de indivíduos e de grupos sociais e étnicos. A alteridade é a forma de perceber o outro, com suas singularidades e diferenças. O campo da antropologia médica visa evidenciar os limites da concepção biomédica, ao mostrar que um modo de entender uma doença ou prática de saúde está ligado a visão de mundo de uma determinada população. A antropologia busca a compreensão do outro, dentro de seu contexto sociocultural. De modo geral, os pacientes apresentam múltiplas queixas e diagnósticos, evidenciando os diversos determinantes da saúde, entre os quais o comportamento social, as crenças e os hábitos culturais. Para Helman, é importante reconhecer os recursos comunitários em programas de cuidados primários de saúde. De acordo com esse autor, os principais recursos são: agentes comunitários, curandeiros tradicionais, lideranças locais e grupos comunitários de saúde. Assim, o papel dos curandeiros e dos grupos comunitários (como igrejas, associação de moradores) são importantes, pois são entendidos como efetivos parceiros da saúde coletiva. A perspectiva médica presume que as enfermidades sejam universais em forma, desenvolvimento e conteúdo. De acordo com essa visão, a causa, o quadro clínico e o tratamento serão sempre os mesmos. Por exemplo, a tuberculose será a mesma enfermidade, seja qual for a sociedade ou cultura em que apareça. Entretanto, essa perspectiva não leva em conta as dimensões sociais e psicológicas dos problemas de saúde, nem o contexto sociocultural em que aparecem – o que determina o significado da enfermidade para o paciente e para aqueles que o rodeiam. Fatores como a personalidade, crença religiosa e condição socioeconômica são, muitas vezes, considerados irrelevantes na realização do diagnóstico e na prescrição do tratamento, pois a Medicina moderna valoriza mais os aspectos físicos da doença. Assim, a doença é vista pela concepção biomédica como um desvio de variáveis biológicas em relação à norma. Este modelo, fundamentado em uma perspectiva mecanicista, considera os fenômenos complexos como constituídos por princípios simples, uma relação de causa-efeito, distinção cartesiana entre mente e corpo, minimizando as dimensões sociais, psicológicos e comportamentais. No entanto, a prática médica varia muito nos diferentes países ocidentais e nos outros lugares do mundo. De um modo geral, o modelo médico é delimitado culturalmente e varia muito segundo o contexto no qual aparece. Além disso, quando um médico formado em Medicina científica moderna faz um diagnóstico, ele MARIA LAURA R BARROS MED 107 HUMANIDADES normalmente utiliza vários modelos e perspectivas diversas; cada um destes enfoca o problema de maneira distinta, pois cada médico possui um repertório de modelos interpretativos, cada qual com perspectiva própria sobre determinada enfermidade. As definições de saúde e doença variam entre indivíduos, grupos culturais e classes sociais. Em grande parte das sociedades não industrializadas, a saúde é conceituada como o equilíbrio no relacionamento do homem com o homem, com a natureza e com o mundo sobrenatural. Nas sociedades ocidentais, as definições de saúde tendem a ser menos abrangentes, mas incluem aspectos físicos, psicológicos e comportamentais, também variando entre as classes sociais. Os modelos médicos e leigos podem diferir muito na maneira de interpretar um episódio de doença, especialmente sua etiologia, diagnóstico e tratamento adequado. Por exemplo, um médico que vai trabalhar em um contexto cultural diferente do dele, pode ter dificuldades para compreender as explicações sobrenaturais ou interpessoais dos problemas de saúde, as definições de saúde como “equilíbrio” moral e social, como o uso de terminologias populares (“fui enfeitiçado”, “fizeram bruxaria” ou “estou com encosto”). A doença, em alguns casos, é atribuída a uma combinação de causas (natural, psicossocial, socioeconômica e sobrenatural). Em muitas situações, as etiologias sociais e sobrenaturais são características de algumas comunidades do mundo não industrializado (No entanto, também se percebe a presença dessas causas de doenças em sociedades industrializadas). Já as explicações centradas no paciente ou no mundo natural são mais comuns no mundo industrializado ocidental. Segundo Minayo, “a proposta de estudar o campo da Causalidade nos coloca frente a umas das questões polêmicas no interior da chamada sociologia médica. Trata-se da classificação dicotômica da origem natural e sobrenatural das doenças. É dito frequentemente como tese que os povos primitivos, os camponeses e, por extensão, as “camadas populares urbano- industriais” explicam através do sobrenatural, em contraposição aos conceitos da história natural das doenças próprias da medicina biomédica. (...) Ora, sabemos que nem de um lado nem de outro a realidade acontece dessa forma linear e dicotômica. O tema que aqui tratamos revela-nos facetas muito complexas da realidade. A visão popular da etiologia das doenças não é monolítica”. Dessa forma, ainda segundo Minayo, percebemos que o conhecimento etiológico se relaciona com o conceito de cultura popular, englobando as dimensões da vida em sociedade e que as “teorias populares “desenvolvem-se no contato com a prática, tanto da medicina “oficial” como de todos os sistemas alternativos. Assim, diferentes grupos sociais possuem uma concepção pluralística da saúde-doença, incluindo explicações de causação natural, psicossocial, socioeconômica e sobrenatural. De acordo com a autora, o sistema etiológico inclui vários domínios de causação que possuem dimensões distintas e não contraditórias. De acordo com Helman, o médico deve buscar compreender a linguagem de sofrimento do paciente, especialmente no caso de apresentação de doenças populares de determinado contexto cultural (“quebranto”, “mau-olhado”, etc.). Junto a isso, o médico precisa refletir sobre o papel de seu próprio contexto sociocultural, no sentido de melhorar a comunicação com o paciente. Os sistemas de cuidados à saúde devem ser compreendidos como um sistema cultural, sendo necessário avaliá-los a partir do contexto em que estão inseridos. Nesse sentido, inclui as crenças de determinada população sobre a saúde, a doença e o adoecimento, as normas MARIA LAURA R BARROS MED 107 HUMANIDADES governamentais escolhidas para a organização dos serviços de saúde, os atores legitimados socialmente para realizar o cuidar e as relações de poder estabelecidas entre atores e instituições. Não há como o profissional de saúde deixar de considerar a rede de símbolos que está presente na lógica do sistema de cuidado popular/familiar e na lógica do sistema profissional. O Médico precisa buscar valorizar a experiência individual e familiar do paciente, de maneira que se possa respeitar o seu contexto cultural, promovendo um cuidado contextualizado e compartilhado. O médico precisa perceber o seu paciente, com suas singularidades e diferenças para, a partir disso, exercer o relativismo. O relativismo é, como o próprio nome diz, relativizar conceitos tidos como absolutos, sejam ideais, dogmas, comportamentos, etc. Tendo cada cultura seus próprios valores e práticas, os indivíduos não devem fazer juízos de valor sobre diferenças culturais. Nessa perspectiva,o médico pode fortalecer e fomentar processos de proteção de cuidados em saúde congruentes com os valores culturais dos pacientes. Por outro lado, profissionais de saúde podem acentuar o traço etnocêntrico das práticas de saúde, quando levam em consideração somente um referencial, considerado como único e verdadeiro. Ao se adotar uma visão etnocêntrica, o indivíduo julga o seu modo de vida (e de seu grupo/sociedade) como melhor que a de outras outros povos e culturas. Dessa forma, a postura etnocêntrica do profissional de saúde pode desgastar o potencial do encontro com os pacientes dos serviços de saúde. É importante ressaltar, segundo Caprara e Franco, que em torno da relação médico- paciente, “aqueles que o têm como objeto podem repensá-lo, colocando o paciente em uma posição tão ativa quanto a do médico, na medida em que a queixa do paciente guia o momento clínico, e este repensar do lugar do paciente indica um dos alvos do projeto de humanização da medicina”.
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