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75 SAÚDE E DOENÇA E A CRÍTICA AO “MODELO BIOMÉDICO” Objetivos • Compreender a historicidade da formulação dos conceitos de saúde e doença. • Verificar como uma concepção específica de doença tornou-se predomi- nante na Medicina e repercutiu nas análises sociais. • Compreender as bases da crítica ao “modelo biomédico”. Conteúdos • A Medicina anatomoclínica. • A fundamentação e a crítica do “modelo biomédico”. Orientações para o estudo da unidade Antes de iniciar o estudo desta unidade, leia as orientações a seguir: 1) Não se limite ao conteúdo deste material. Procure ler os materiais com- plementares descritos no Conteúdo Digital Integrador e textos relaciona- dos em bases de dados científicas. 2) Reflita sobre a relação entre os conteúdos das unidades anteriores e o atual. Pense nos diálogos possíveis entre os autores abordados e procure elencar quais são suas ideias principais e como interpretá-las à luz de sua realidade social. 3) Não deixe de tirar dúvidas com seu tutor e dialogar com seus colegas no Fórum. Procure posicionar-se a respeito das questões colocadas, levando em conta suas leituras e sua experiência pessoal. UNIDADE 3 76 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" 77© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" 1. INTRODUÇÃO Vamos avançar nas discussões partindo do que aprende- mos até aqui! Na unidade anterior, com base nas contribuições de Michel Foucault, vimos como o saber médico, em aliança com o Estado, foi responsável por políticas coletivas que visavam à “otimiza- ção” do corpo populacional e individual em sociedades urbaniza- das e industriais. Tais políticas não funcionavam tendo em vista a noção de direito à saúde a ser democratizada. Muitas vezes, pau- tavam-se por critérios de classe e raça, constituindo, como vimos no caso inglês, cordões sanitários que mais serviam para reforçar as desigualdades sociais. Tais políticas eram pautadas por estra- tégias pouco democráticas em suas acepções e resultados. Nesta unidade, discutiremos os aspectos sociais e históri- cos da saúde e da doença, não mais centrados na problemática da coletividade. Trataremos de fomentar uma discussão sobre as formas históricas de se conceber a “doença” que fundamen- taram o que se denomina, contemporaneamente, de “modelo biomédico”. Em seguida, veremos como uma noção estritamen- te biológica da doença passou a ser criticada por concepções que partem da subjetividade e da inserção sociocultural dos pacien- tes, não os reduzindo a um “corpo doente”. Vamos começar? 2. CONTEÚDO BÁSICO DE REFERÊNCIA O Conteúdo Básico de Referência apresenta, de forma su- cinta, os temas abordados nesta unidade. Para sua compreensão 78 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" integral, é necessário o aprofundamento pelo estudo do Conteú- do Digital Integrador. 2.1. O NORMAL E O PATOLÓGICO Abordamos na unidade anterior a questão da influência de fenômenos históricos e culturais na esfera da Medicina. Vimos, por outro lado, como o saber médico interveio na forma de con- figuração do social, imbricado com a valorização da vida como uma tecnologia de poder própria da modernidade (biopoder). Levando em conta os conceitos de normal e patológico como centrais a esse saber, podemos nos perguntar: o conceito de doença é acessível objetivamente? Ou ele também se relacio- na com a história e a cultura? De que maneira a concepção de normal e patológico não só remete a descrições objetivas, mas implica também efeitos sociais e subjetivos? Richard Miskolci (2003) demonstra que a concepção de normal, na forma em que se difundiu modernamente, tem ori- gem histórica. Está associada à formação de uma sociedade bur- guesa, por sua vez calcada nos mecanismos disciplinares abor- dados na unidade anterior. Esse autor cita o sociólogo Auguste Comte como importante na conceituação de normal que se di- fundiu no século 19: [...] é na década de 1820 que Comte (1791-1857) dá à palavra sua primeira conotação médica. Exprimia, assim, sua esperança de que as leis relativas ao estado normal e do organismo seriam conhecidas e seria possível estudar a patologia comparada. O uso do termo normal como o conhecemos surge da intersecção do conhecimento sociológico e do médico. Ambos estavam im- buídos do mesmo interesse de medir, classificar e disciplinar os 79© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" indivíduos de forma a que estes se conformassem à normalida- de [...] (MISKOLCI, 2003, p. 110). Georges Canguilhem (2002) analisa como o normal e o pa- tológico foram alvos de teorização desde o século 19, abordando, especialmente, as definições de Broussais e Comte. Canguilhem compreende que as definições se caracterizavam pela ambigui- dade em definir o normal ora como média, medido quantitati- vamente, e ora como ideal, sendo, portanto, qualitativo. O que o filósofo francês explora é que ambos partem de pressupostos arbitrários em sua definição. Na visão do autor, normal e patoló- gico são termos normativos e relacionais e, portanto, historica- mente constituídos. Para além de uma questão conceitual, a definição de nor- mal e patológico parte de mudanças na própria linguagem e na experiência médica, levando em conta que a visibilidade e a for- ma de abordar a saúde e a doença variam historicamente. Articulado à constituição da moderna Medicina social, Foucault aborda o surgimento da Medicina anatomoclínica. Em O nascimento da clínica (2008), elabora o surgimento histórico de uma perspectiva da doença localizada não mais em represen- tações calcadas em modelos abstratos, mas inferida no próprio corpo humano. Trata-se da passagem de um espaço taxonômico para um espaço corpóreo: [...] o objetivo do livro é dar conta da ruptura arqueológica en- tre a medicina clássica dos séculos XVII e XVIII e a medicina mo- derna a partir de Bichat e Broussais como uma mutação, uma mudança de estrutura, uma reorganização formal e profunda que acarretará a emergência tanto de um novo tipo de olhar e de um novo tipo de linguagem quanto de uma nova articulação entre eles. O resultado dessa mutação, cuja ambição do livro é estabelecer as condições de possibilidade, é a anátomo-clínica moderna considerada como conhecimento singular do indiví- 80 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" duo doente, primeiro tipo de conhecimento racional, científico sobre o indivíduo, primeiro conhecimento objetivo sobre o su- jeito [...] (MACHADO, 2005, p. 53). A passagem da Medicina clássica à Medicina moderna pode ser compreendida nas citações a seguir: [...] a medicina clássica é uma medicina classificatória, uma medicina das espécies patológicas, que, seguindo modelo da história natural, em relação às plantas e aos animais, estabele- ce identidades e diferenças entre as doenças, organizando um quadro em termos de classes, ordens e espécies [...] (MACHA- DO, 2005, p. 16). [...] O Nascimento da Clínica estuda a passagem de um espaço ideal, superficial, de representação, de configuração da doença, a um espaço real, profundo, objetivo, sólido, corpóreo, de loca- lização da doença que se deu no conhecimento médico entre o final do século XVIII e o início do XIX [...] (MACHADO, 2005, p. 55). A reorganização da Medicina baseada na experiência da clínica foi constituída com a exploração empírica anatômica. Bi- chat é tido como um dos precursores da prática de estudo dos cadáveres. A partir de então, o acesso à morte é concebido como capaz de esclarecer os fenômenos orgânicos e suas perturbações (MACHADO, 2005, p. 56). Em outras palavras, a morte torna possível o conhecimento da vida e da doença, dos fenômenos orgânicos: [...] A anátomo-clínica se constitui precisamente a partir da re- lação que se estabelece entre os métodos da clínica eda ana- tomia patológica, dois procedimentos analíticos ou dois olhares de superfície: a clínica, que se propõe a ler os sintomas patoló- gicos, e a anatomia patológica, que estuda as alterações dos te- cidos. A anátomo-clínica, tal como se delineia nesse momento, se propõe a relacionar essas entidades heterogêneas: sintomas 81© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" e tecidos. Isso se realiza pela aplicação do “princípio diacríti- co”, que postula que só existe fato patológico comparado. E isto significa o imperativo de estabelecer uma relação entre os sintomas e as lesões tissulares, ligação entre duas superfícies de níveis diferentes que institui uma terceira dimensão, e, con- sequentemente, um volume. A anátomo-clínica é mais do que uma análise sintomática ou uma análise tissular. Estabelecendo um caminho entre as dimensões heterogêneas dos sintomas e dos tecidos, cria um novo espaço de percepção médica: o corpo doente [...] (MACHADO, 2006, p. 98). Trata-se da mudança do conceito de doença, na qual o “Ser”, ou a essência da doença, deixa de existir, abrindo espaço para o corpo doente. A Medicina anatomoclínica, analisada por Michel Foucault, acabou por estabelecer uma perspectiva da do- ença localizada no corpo humano. Trata-se de uma nova episte- me que configurou a forma de acessar o patológico: [...] desde o surgimento da racionalidade médica moderna, vem se consolidando o projeto de situar o saber e a prática mé- dica no interior do modelo das ciências naturais. Com isso, a medicina faz sua opção pela naturalização de seu objeto através do processo de objetivação, ou seja, o de fazer surgir a objetivi- dade da doença, com a exclusão da subjetividade e a constru- ção de generalidades [...] (GUEDES; NOGUEIRA; CAMARGO JR., 2006, p. 1095). Com as leituras propostas no Tópico 3. 1., você vai apri- morar seus conhecimentos sobre as concepções históricas e sociais do normal e do patológico. Antes de prosseguir para o próximo assunto, realize as leituras indicadas, procurando assimilar o conteúdo estudado. 82 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" 2.2. A NOÇÃO HISTÓRICA DE PATOLOGIA SOCIAL Conceber a patologia como estritamente objetiva e que se observa no corpo humano foi algo que se sedimentou durante o século 19, com implicações sociais. Na unidade anterior, dis- cutimos a importância das instituições, sujeitos e saberes mé- dicos na organização social, em especial com a constituição do que Michel Foucault denominou de biopoder. O respaldo que as ciências biológicas e, em especial, a Medicina obtinham na so- ciedade garantia a elas um prestígio de não apenas interpretar a sociedade, mas também intervir nela. A Sociologia nascente no século 19 surgiu com interpreta- ções da sociedade calcada em uma metáfora entre corpo social e organismo. As categorias de normal e patológico passaram a ser elementos-chave na interpretação social. Como na Medicina anatomoclínica, sociólogos buscavam reconhecer objetivamen- te na sociedade a doença para então extirpá-la. Muitas vezes, aquilo que se distinguia das convenções sociais era considerado patológico em análises marcadas pelo objetivo de profilaxia, ou seja, de tornar a sociedade sadia. Trata-se de um momento de transformação social, no qual a norma de saúde se sobrepôs ao ideal religioso de salvação. Sobre esse assunto, observe o trecho a seguir. [...] até o fim do século XVIII [...] a medicina referiu-se mais à saúde que à normalidade. Ela apontava para as qualidades de vigor, flexibilidade e fluidez que a doença faria perder e que se deveria restaurar. A prática médica pré-Revolução Industrial destacava o regime, a dietética, enfim, toda uma regra de vida e de alimentação que o indivíduo impunha a si mesmo. Já a medicina do século XIX se apoiava na análise de um funciona- mento regular, normal, para detectar onde o indivíduo teria se desviado [...] (COELHO; FILHO, 1999, p. 22). 83© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" Trata-se da constituição de uma sociedade caracterizada pelo exame perpétuo que visava garantir a normalização social, o que, por sua vez, só se materializou no encontro entre tecnolo- gias disciplinares e biopoder (FOUCAULT, 1999). Buscando a saú- de do corpo populacional, ou combater suas patologias, muitos dos primeiros analistas sociais recuperaram todo um repertório das ciências naturais para a compreensão da sociedade. Deno- mina-se de darwinistas-sociais aqueles que: foram os principais responsáveis pela naturalização do que foi social e historicamente criado e por criar uma classificação que unificava todos os tipos de desvio sob um termo tão genérico quanto assustador: degeneração [...] (MISKOLCI, 2005, p. 17). O termo degeneração era amplamente difundido e aceito no século 19, consistindo em “um rótulo que carregava consi- go o fardo de uma condição congênita, portanto sem a menor possibilidade de cura e diante da qual nenhum esforço humano valeria a pena” (MISKOLCI, 2005, p. 18). A degeneração era normalmente a forma de compreensão de indivíduos que não se adequavam às normas sociais, como, por exemplo: prostitutas, alcoólatras, homossexuais etc. Em ou- tros termos, o normal passava a ser sinônimo de homem/mu- lher, branco, burguês e heterossexual. O degenerado, desviante da normalidade, era compreendido como possuidor de anoma- lias de fundo hereditário e sem cura. A degeneração era um conceito que se difundia sem muito rigor científico e utilizado de forma a compreender uma suposta face oculta da modernidade: os riscos dos descaminhos morais da sociedade (BORGES, 2005). O “cruzamento racial” era uma das grandes preocupações dos pensadores sociais europeus. Sob o paradigma darwinista- 84 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" -social, compreendiam as diferenças observadas entre as dis- tintas culturas humanas como diferenças raciais. Esse conheci- mento produzido na Europa considerava a raça “branca” como superior às demais e teorizava o encontro entre as “raças” como potencialmente degenerativo. Não se tratou apenas de desenvolvimento na esfera das ideias, o pensamento darwinista-social desembocou na eugenia, originalmente: um termo cunhado por Francis Galton em 1883 para abarcar o conjunto de estudos e práticas voltadas para o controle da hereditariedade humana visando a preservação de grupos “ra- ciais” considerados superiores e a contenção da reprodução dos grupos e indivíduos que representassem uma ameaça, sobretudo as “raças inferiores”, os portadores de deficiências físicas, doentes mentais e desviantes em geral [...] (MISKOLCI, 2005, p. 18). Respondendo à suposta ameaça de degeneração interna e externa aos Estados-Nações que se formavam, o saber eugê- nico, disseminado em várias partes do mundo por meio de asso- ciações, embasou práticas, diferentes em cada contexto, como esterilização, segregação e, no limite, a câmara letal. O fim da Segunda Guerra Mundial e da experiência nazista representou um ponto de viragem, uma inflexão a partir dos horrores que resultaram das práticas embasadas nesse olhar respaldado por um saber biologicista do social. A Sociologia em seu projeto inicial estava muito atrelada a essa forma de pensar a sociedade. Muito embora, no século 19, Èmile Durkheim (1999), um dos seus clássicos, já tinha um olhar crítico a ela e propunha uma nova forma de abordar o social. Sua obra ainda continuou marcada por explicações baseadas no binômio normalidade/patologia e por metáforas biológicas na 85© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" explicação do social, como, por exemplo, a ideia da sociedade comparada a uma totalidade orgânica. No entanto, seu méto- do sociológico pressupunha explicar o social pelo social e, neste sentido, distanciou-sede leituras darwinistas sociais, para uma abordagem que compreendesse como a organização das so- ciedades se explica, antes de tudo, por seus arranjos sociais ou morais. Tal concepção foi fundamental para o desenvolvimento na Antropologia dos conceitos de relativismo cultural e etnocentris- mo. O primeiro atenta para a diversidade cultural como um as- pecto básico ao se pensar as sociedades humanas. E o segundo para uma crítica à perspectiva de julgar as diversas sociedades com base nos nossos valores culturais e morais. Compreender a diversidade cultural é compreender que não há uma forma única e necessária de organização social. Nesse sentido, julgar algo nas sociedades como normal, patológico, degeneração se revela não mais do que preconceito. Mas as mudanças sociais que questionaram as bases do normal e patológico presentes no discurso darwinista-social não impactaram somente as ciências humanas e sociais, mas tam- bém a própria Medicina. Conceberam-se novas formas de pen- sar a saúde e a doença, mais articuladas com suas dimensões sociais. Tal mudança estava ao encontro de uma nova interpre- tação do binômio saúde-doença, levando em conta a indissocia- bilidade entre aspectos biológicos, físicos e sociais. Tratava-se de uma nova abordagem crítica ao que se concebeu como modelo biomédico. 86 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" 2.3. A CRÍTICA AO MODELO BIOMÉDICO Com o desenrolar do século 20, a expectativa de vida au- mentou consideravelmente. Podem ser elencados como fatores fundamentais para tal: o saneamento básico, a melhoria da nu- trição, a criação de sistema de esgotos e higiene, a redução das taxas de mortalidade natal e infantil, a melhora na alimentação, a melhora nas condições de habitação e a invenção das vacinas e antibióticos. Não obstante, a extensão da vida nem sempre se deu em condições plenas de saúde. Uma das evidências de tal afirmação é a proliferação de doenças crônicas no mundo contemporâneo. Em sua origem moderna, a Medicina veiculou um discurso de regeneração da sociedade em sua face social, ao mesmo tempo em que ganhou prestígio com suas descobertas empíricas. A fé na Medicina como panaceia era algo recorrente na virada para o século 20, mas encontrou certos limites no decorrer dele. Anthony Giddens (2005) desenvolve tal argumento, mos- trando sua relação com uma crítica que se estabeleceu em re- lação ao modelo biomédico. De acordo com o sociólogo: “o mo- delo biomédico de saúde define doença em termos objetivos e acredita que o corpo saudável pode ser restabelecido por meio de um tratamento médico cientificamente fundado” (GIDDENS, 2005, p. 129). Para uma definição mais aprofundada, destaca três ele- mentos centrais em sua caracterização: 1) em primeiro lugar, a doença é vista como um colapso no interior do corpo humano que diverge de seu modo de ser “normal”. A teoria do germe da doença, de- senvolvida no final do século XIX, sustenta que há um 87© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" agente específico identificável em cada doença. A fim de restabelecer a saúde do corpo, a causa da doença precisa ser isolada e tratada (GIDDENS, 2005, p. 138). 2) em segundo lugar, a mente e o corpo podem ser trata- dos separadamente. O paciente representa um corpo doente – uma patologia – mais do que um todo indi- vidual. Há ênfase maior na cura da doença do que no bem-estar do indivíduo. O modelo biomédico sustenta que o corpo do doente pode ser manipulado, investi- gado e tratado isoladamente, sem considerar outros fatores. Os médicos especialistas adotam um olhar médico, uma abordagem discriminada ao examinar e tratar o paciente doente. O tratamento deve ser rea- lizado de um modo neutro, livre de valorações, com informação coletada e compilada, em termos clínicos, dentro de um arquivo oficial do paciente (GIDDENS, 2005, p. 139). 3) em terceiro lugar, os médicos especialistas treinados são considerados os únicos especialistas no tratamen- to da doença. A profissão médica, enquanto corpora- ção, adere a um reconhecido código de ética e é cons- tituída por indivíduos credenciados, que completaram com sucesso um longo treinamento. Não há lugar para curandeiros autodidatas ou para práticas médicas “não-científicas”. O hospital representa um ambiente apropriado onde doenças graves são tratadas: esses tratamentos muitas vezes contam com a combinação entre tecnologia, medicação ou cirurgia (GIDDENS, 2005, p. 139). 88 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" Podemos perceber como tal concepção, embora ainda presente, deriva do olhar médico historicamente analisado por Michel Foucault (1979) da Medicina anatomoclínica. A ideia de um patológico objetivamente identificado no corpo doente e um pressuposto neutro na abordagem médica passou a ser criticada com base nas seguintes suposições: 1) A doença não é simplesmente um colapso do corpo humano causado por um agente biológico específi- co. A definição da doença passa por uma construção social, não algo que simplesmente pode ser revelado através da “verdade científica”. 2) O paciente não deve ser visto como um “corpo doen- te”, mas como um ser ativo, “integral”, cujo bem-estar geral – não só saúde física – é importante. 3) Os médicos e especialistas não são a única fonte de conhecimento sobre saúde e doença. Existem formas alternativas de conhecimento, igualmente válidas. 4) A cura não precisa localizar-se em um hospital e os tra- tamentos utilizando tecnologia, medicação e cirurgia não são necessariamente superiores (GIDDENS, 2005, p. 139-140). O modelo biomédico acaba por separar e hierarquizar a es- fera do diagnóstico médico e o da terapêutica. Guedes, Nogueira e Camargo (2006) exploram como tal modelo deparou-se, nas úl- timas décadas, com a problemática dos pacientes cujo diagnósti- co não é aferido, comumente denominados de “somatizadores”, que, por sua vez, trazem a questão da subjetividade no que se refere ao adoecimento: [...] Verificou-se, então, uma verdadeira cisão entre teoria e práticas médicas, que termina por fragmentar também o pa- 89© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" ciente (sintomas objetivos x sintomas subjetivos). Na maioria das vezes, os sintomas subjetivos não são levados em conta, ou mesmo, não se sabe como "dar conta" deles. Assim, entendemos que a subjetividade do adoecimento, isto é, a complexidade e a singularidade do sofrimento humano, e mais ainda, a sua dimensão fenomenológica, experiencial, nun- ca chegou a ser objeto das ciências biomédicas, uma vez que o modelo da medicina ocidental é herdeiro da racionalidade científica moderna [...] (GUEDES; NOGUEIRA; CAMARGO, 2006, p. 1095). Em outros termos, os autores estão questionando o prima- do do biológico na perspectiva do modelo biomédico, enquanto os aspectos psicossociais são, muitas vezes, deixados de lado. Mesmo que discursivamente apareçam como nortes da Medici- na, ainda há predomínio da divisão entre “objetividade” versus subjetividade, na qual a segunda, expressa no sofrimento do pa- ciente, é muitas vezes desprezada. O questionamento do modelo biomédico vem sendo leva- do a cabo há muitas décadas, sendo tema de conferências e mes- mo resoluções internacionais que se pautam cada vez mais em um modelo de saúde calcado em suas relações com os aspectos biopsicossociais imbricados. Supera-se assim a visão da saúde e da doença como puros determinantes biológicos. Concebe-se como o direito à saúde é indissociável a outros direitos sociais. Além disso, salienta-se como de igual importância “os cuidados primários de saúde, incluindo os serviços de promoção, preven- ção, cura e reabilitação” (JUNGES, 2009, p. 287). As leituras indicadas no Tópico 3. 2. tratam do tema do “modelo biomédico”. Neste momento, você deve realizar es- sasleituras para aprofundar o tema abordado. 90 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" Vídeo complementar ––––––––––––––––––––––––––––––– Neste momento, é fundamental que você assista ao vídeo complementar. • Para assistir ao vídeo, pela Sala de Aula Virtual, clique no ícone Videoaula, localizado na barra superior. Em seguida, selecione o nível de seu curso (Graduação), a categoria (Disciplinar) e o tipo de vídeo (Complementar). Por fim, clique no nome da disciplina para abrir a lista de vídeos. • Para assistir ao vídeo pelo seu CD, clique no Botão “Vídeos” e selecione: Sociologia Aplicada à Saúde – Vídeos Complementares – Complementar 3. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 3. CONTEÚDO DIGITAL INTEGRADOR O Conteúdo Digital Integrador representa uma condição necessária e indispensável para você compreender integralmen- te os conteúdos apresentados nesta unidade. 3.1. O NORMAL E O PATOLÓGICO Os artigos indicados a seguir versam sobre as concepções históricas e sociais do normal e do patológico. No primeiro tex- to, revisitando as contribuições de Canguilhem, ressalta-se como esse intelectual se debruçou sobre os saberes médicos e refletiu sobre seus pressupostos. Os dois outros textos sociológicos ver- sam sobre as concepções de normalidade e desvio social e suas implicações discursivas e práticas. • COELHO, M. T.; FILHO, N. Normal-Patológico, saúde-do- ença: revisitando Canguilhem. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 13-36, 1999. Dispo- nível em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v9n1/02. pdf>. Acesso em: 12 set. 2014. 91© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" • MISKOLCI, R. Reflexões sobre normalidade e desvio so- cial. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 7, n. 13-14, p. 109-126, 2003. Disponível em: <http://seer.fclar.unesp. br/estudos/article/view/169/167>. Acesso em: 12 set. 2014. • ______. Do desvio às diferenças. Revista Teoria & Pes- quisa. Dossiê Normalidade, Desvio, Diferenças. São Car- los: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, p. 9-42, 2005. Disponível em: <http://www.teoriaepes- quisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/43/36>. Acesso em: 12 set. 2014. 3.2. O MODELO BIOMÉDICO Os textos seguintes versam sobre o tema do “modelo bio- médico”, perpassando as críticas a certa concepção e abordagem da doença, as fundamentações teóricas anteriores que deram origem à crítica e a emergência de medicinas alternativas ao mo- delo que fazem parte do cenário contemporâneo mais diverso das práticas e dos saberes médicos. • GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. O estatuto da medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estatuto da desmedi- calização. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 30, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/2012nahead/aop2112. pdf>. Acesso em: 12 set. 2014. • GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JR., K. R. A subjetividade como anomalia: contribuições epistemo- lógicas para a crítica do modelo biomédico. Ciência & 92 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 1093-1103, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/ v11n4/32345.pdf>. Acesso em: 12 set. 2014. • LUZ, M. T. Cultura contemporânea e medicinas alterna- tivas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 145-176, 2005. Disponível em: <http://www. scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf>. Acesso em: 12 set. 2014. 4. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para você testar o seu desempenho. Se encontrar dificuldades em responder às questões a seguir, você deverá revisar os conteú- dos estudados para sanar as suas dúvidas. 1) O conceito de saúde e de doença: a) tem sua definição perpassada por concepções históricas e sociais. b) é estritamente objetivo e foi conquistado à custa de desenvolvimento tecnológico e científico. c) desenvolvido na área das ciências biológicas, não impactou as ciências sociais emergentes. d) versa objetivamente sobre aspectos da cura individual, e, portanto, não guarda relações com aspectos culturais valorativos. 2) É característica da Medicina anatomoclínica analisada por Michel Foucault: a) Pautar as classificações a priori de doenças a partir de um quadro de classes, ordens e espécies patológicas, seguindo o exemplo da história natural. b) Sua fundamentação articulada no diagnóstico clínico e na exploração anatômica, constituindo uma concepção da doença objetivamente delimitada. 93© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" c) Evitar a abordagem anatômica de cadáveres para a compreensão de processos patológicos. d) Levar em conta os aspectos biopsicossociais da doença. 3) A ideia de patologia social não se relaciona com: a) O poder de verdade que a Medicina (junto com as ciências biológicas) alcançou com seu prestígio entre o fim do século 19 e o começo do 20. b) Preconceitos e valores morais de uma sociedade em dada época. c) Perspectivas que levam em conta a diversidade cultural e são críticas ao etnocentrismo. d) Processos sociais de normalização, vinculados ao biopoder e ao regime disciplinar. e) Uma concepção objetivista de doença que, a despeito de lidar com normas arbitrárias, assenta-se na ideia de neutralidade. 4) O “modelo biomédico” não pode ser definido como: a) Aquele que se pauta na definição estrita de doença como colapso no interior do corpo humano que diverge de seu modo de ser “normal”. b) Aquele no qual os diagnósticos e procedimentos se baseiam no corpo do paciente, isolado de outros aspectos de sua vida. c) Aquele que vê no hospital, na tecnologia médica e na medicamentali- zação as principais esferas de ação da Medicina. d) Aquele que considera o tratamento como neutro, livre de valorações e aspectos subjetivos. e) Caracterizado por considerar o paciente sujeito integral e não compar- timentar os aspectos biopsicossociais envolvidos na doença. 5) As críticas ao “modelo biomédico” comumente defendem: a) A necessidade de ser mais objetivo na definição da doença, evitando dar voz à subjetividade “confusa” do doente. b) Respaldar a superioridade dos médicos diante dos outros profissionais da saúde, visto que são os únicos capazes de definição do diagnóstico e independem de um trabalho interdisciplinar. c) A necessidade da especialização médica cada vez mais acentuada para a definição mais precisa da doença. d) A definição da doença como algo mais abrangente do que um aspecto biológico e o tratamento do paciente como ser integral. 94 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" Gabarito Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas: 1) a. 2) b. 3) c. 4) e. 5) d. 5. CONSIDERAÇÕES Chegamos ao final da terceira unidade, na qual discutimos os aspectos sociais e históricos da definição do patológico e do normal, ou, em termos mais ampliados, da saúde e da doença. Partimos da consolidação de uma concepção objetiva e biológi- ca da doença, por meio da consolidação da anatomoclínica, per- passamos a influência das concepções biológicas nas nascentes ciências sociais e concluímos com a consolidação e a crítica ao “modelo biomédico”. Veja agora o Conteúdo Digital Integrador que é funda- mental para o domínio do conteúdo aqui trabalhado. Trata-se de textos que recuperam as temáticas, comparam com outras e abordam de forma aprofundada os temas, o que é importante no estudo universitário. 95© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE UNIDADE 3 – SAÚDE, DOENÇA E A CRÍTICA AO "MODELO BIOMÉDICO" 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, D. “Inchado, feio, preguiçosoe inerte”: a degeneração no pensamento social brasileiro, 1880-1940. Tradução de Richard Miskolci. Revista Teoria & Pesquisa. Dossiê Normalidade, Desvio, Diferenças. São Carlos: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Departamento de Ciências Sociais, p. 43-70, 2005. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. COELHO, M. T.; FILHO, N. Normal-Patológico, saúde-doença: revisitando Canguilhem. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 13-36, 1999. DURKHEIM, È. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. GIDDENS, A. Sociologia do corpo: saúde, doença e envelhecimento. In: ______. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JR., K. R. A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 1093-1103, 2006. JUNGES, J. R. Direito à saúde, biopoder e bioética. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 13, n. 29, p. 285-295, abr./jun. 2009. MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006. ______. Foucault, a filosofia e a literatura. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2005. MISKOLCI, R. Reflexões sobre normalidade e desvio social. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 7, n. 13-14, p. 109-126, 2003. ______. Do desvio às diferenças. Revista Teoria & Pesquisa. Dossiê Normalidade, Desvio, Diferenças. São Carlos: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, p. 9-42, 2005.
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