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Feminino e sagrado Feminino e sagrado Diálogos entre a literatura e a filosofia Organizadora Maria Simone Marinho Nogueira Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/ Arte de Capa: Kate Bedell - https://www.katebedell.com/ O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) NOGUEIRA, Maria Simone Marinho (Org.) Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia [recurso eletrônico] / Maria Simone Marinho Nogueira (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021. 265 p. ISBN - 978-65-5917-393-8 DOI - 10.22350/9786559173938 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Feminino; 2. Sagrado; 3. Literatura; 4. Filosofia; 5. Coletânea; I. Título. CDD: 100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 Nota da organizadora Os textos aqui reunidos são fruto dos trabalhos realizados para o Componente Curricular Literatura e Sagrado, ministrado por mim no se- gundo semestre de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade/PPGLI da Universidade Estadual da Paraíba/UEPB. São de autoria de mestrandas e mestrandos, contando alguns poucos com a participação de professoras e professores do Programa. O Componente Curricular teve como tema O sagrado a partir da literatura de autoria fe- minina e o seu objetivo geral foi pensar o sagrado em suas diferentes perspectivas, tomando como horizonte de sentido textos escritos por mu- lheres na Idade Média e na Contemporaneidade. Em um primeiro momento houve uma abordagem do referencial teórico sobre literatura e sagrado, e posteriormente procurou-se repensar a categoria do sagrado sob o viés da mística, sobretudo da mística feminina. Para tanto, foram analisados os textos de autoria feminina, focando nas suas características literário-filosóficas como recursos de expressão do sagrado, e nove mulhe- res foram abordadas a partir dos respectivos temas que aparecem a seguir: O sagrado na mística sufi de Rabiaa Al Adawiyya (ca. 715); Orewoet van minnen como sagrado nas poesias de Hadewijch da Antuérpia († 1248); A teologia natural e a intuição feminina do divino em Christine de Pisan (1364-1430)1; O sagrado na Autobiografia espiritual de Simone Weil (1909-1943); A última aparição do sagrado em Maria Zambrano (1904- 1991); A ausente Presença na lírica de Hilda Hilst (1930-2004); Erotismo, mística e morte: a tríade Adelina (Adélia Prado, 1935)2; O feminino e o sa- grado em Julia Kristeva (1941) e Catherine Clément (1939). 1 A aula sobre Christine de Pizan contou com a colaboração do Prof. Dr. Evaniel Brás, da Universidade Federal de Sergipe. 2 As aulas sobre Hilda Hilst e sobre Adélia Prado contou com a colaboração da Profa. Dra. Cleide Oliveira, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, e que gentilmente engrandece este livro com o Prefácio. De qualquer modo, é importante fazer uma observação em relação aos textos aqui publicados. Com exceção de dois deles, que têm por base as pesquisas já desenvolvidas na Pós-Graduação, todos os outros se cons- tituem num esforço por parte das mestrandas e dos mestrandos em realizar uma investigação sobre uma escritora até então desconhecida ou nunca trabalhada por elas e eles, valorizando-os ainda mais porque pos- suem o sabor da descoberta e do encanto que deve ser um dos pressupostos da pesquisa quando se trata, sobretudo, das humanidades. Área tão necessária e importante quanto mal compreendida no atual con- texto em que vivemos. Nesta direção, o solicitado no Componente Curricular foi que ao final do semestre fosse entregue um artigo sobre o tema abordado a partir das mulheres apresentadas ou de outras que pu- dessem acrescentar novas perspectivas à discussão. Assim, dentre as estudadas, se apresentaram textos sobre Hadewijch da Antuérpia, Simone Weil, Hilda Hilst e Adélia Prado. A estes, acrescentaram-se textos sobre Isabel Machado, Catarina de Siena, Etty Hillesum, Clarice Lispector e Dôra Limeira. Logo, da Idade Média à Contemporaneidade, partindo dos Países Baixos, passa pela Itália, França e Portugal, cruza o Atlântico e chega ao Brasil, recortando diferentes paisagens. Neste percurso, vê-se um coro de vozes, na verdade, de escritas que desenham o sagrado ou que expressam um experienciar dele. Seja como for, cada uma à sua maneira, cada uma na sua língua, escreve para si e para quem tiver a disponibilidade da escuta para o indizível, isto é, para aquelas e aqueles que têm sede do infinito e a quem, naturalmente, tudo não basta. Aproveitando a metáfora do desejo, que não baste, desta forma, este livro, e que suas leitoras e seus leitores se sintam sedentos por provar um pouco mais. Maria Simone Marinho Nogueira Campina Grande/PB, julho de 2021. Sumário Prefácio 11 Cleide Oliveira 1 14 Um pouco da religiosidade medieval a partir das experiências místicas de Catarina de Siena Ana Rachel G. C. de Vasconcelos 2 37 “Cristo desceu e tomou conta de mim”: a mística em Simone Weil Luiza Benício Pereira Maria Simone Marinho Nogueira 3 60 Crítica à instituição igreja e a recusa de Simone Weil ao batismo em carta a um religioso Luana Micaelhy da Silva Morais 4 77 Simone Weil e o acesso ao divino por meio do infortúnio Jaqueline Vieira de Lima 5 92 A espera de Deus em Simone Weil: reflexões sobre justiça e caridade Erica Dayana Monteiro Cavalcante 6 106 Testemunho e sagrado em Simone Weil Jéssica da Silva Nascimento Reginaldo Oliveira Silva 7 129 A experiência mística na escrita de si em Etty Hillesum Solange Alves de Almeida 8 149 Entre o feminino e o sagrado: um estudo sobre a relação com o divino em D. Isabel de Aragão no medievo europeu Francisco Edinaldo de Pontes Aldinida Medeiros 9 180 Peças do inespecífico: o mosaico do amor na poética de Hadewijch da antuérpia Itamar Mateus Muniz de Melo 10 193 Entre o real e o sagrado: uma leitura possível do conto Búfalo, de Clarice Lispector João Aleixo da Silva Neto 11 203 Dimensões do sagrado em Hilda Hilst, Obscena Senhora D. Julian Bohrz 12 226 A experiência divina em Adélia Prado: uma ligação mística do eu-lírico em Consanguíneos e O amor no Éter Pedro Caio Sousa Almeida 13 240 A presença do sagrado na escrita de autoria feminina em O beijo de Deus, de Dôra Limeira Ana Flávia da Silva Oliveira Autoras e autores 262 Prefácio Cleide Oliveira Das muitas possibilidades de compreensão dos substantivos sagrado e feminino, e das possíveis pontes de intercessão entre eles, quero chamar atenção para a pluralidade de cores e matizes hermenêuticas que tornam difícil, se não impossível, que a conceituação precisa e inequívoca recaia sobre esse binômio singular. Em tempos em que, por um lado, complexi- ficam-se as designações de gênero e, por outro lado, problematiza-se o conceito de sagrado – que precisa ser circunscrito a essa ou aquela percep- ção teórica – não é óbvio do que se trata um livro sobre feminino e sagrado. Mas tal dificuldade é minimizada quando folheamos as páginas dessa pu- blicação e constatamos que uma certa unidade se impõe à aparente fluidez desses treze ensaios que se debruçam sobre o feliz binômio, perscrutando as possibilidades de interação, influência e confluência entre esse irromper do Completamente Outro – na esteira da compreensão de RudolfOtto do sagrado, autor que frequenta amiúde os diversos textos aqui presentes – e a sua recepção/percepção/reflexão por um eu que se diz no feminino. Os textos que ora se dispõem à fruição do leitor curioso tem em comum o foco em personagens femininas – históricas ou ficcionais – em embate com um sagrado, no mais das vezes de tradição judaico-cristã, que irrompe de forma tempestuosa e se impõe como força que a si tudo conclama e seduz. São textos como o de Ana Rachel G. C. de Vasconcelos, que escreve sobre a espiritualidade mística da também medieval Catarina Benincasa de Siena, que exerceu importante papel político no medievo. Ainda os textos de Luiza Benício Pereira e Maria Simone Marinho Nogueira, de Luana Micaelhy da Silva Morais, de Jaqueline Vieira de Lima, 12 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia de Erica Dayana Monteiro Cavalcante e de Jéssica da Silva Nascimento e Reginaldo Oliveira Silva, que abordam diferentes facetas da vida e obra da filósofa e mística Simone Weil. Outra filósofa abordada, no artigo de Solange Alves de Almeida, é Etty Hillesum, onde, por meio da análise dos Diários da autora, é enfatizada a força combativa que a escrita de si possui, e o papel de resistência que tal escrita assumiu na vida de Etty Hillesum, no contexto terrível da Segunda Guerra Mundial e do nazismo. Se os primeiros textos se voltam para figuras histórias para compreender o apelo místico a que todas elas atenderam, os demais possuem como objeto de estudo a literatura, tanto em prosa quanto na poesia. A questão do sagrado amarra com fios delicados cada um dos textos, por exemplo o de Francisco Edinaldo de Pontes e Aldinida Medeiros, que analisam a personagem D. Isabel de Aragão, personagem do romance histórico A Rainha Santa (2017), de Isabel Machado, em sua sede pelo divino no contexto teocêntrico da Idade Média. Ou o de Itamar Mateus Muniz de Melo, que discorre sobre o poema Strophische Gedichten V da mística medieval Hadewijch da Antuérpia († 1248), na tentativa de entender como se configura o tema do amor em sua poesia mística. Ou João Aleixo da Silva Neto, que visita a narrativa Búfalo, de Clarice Lispector, a partir de um instrumental teórico lacaniano, e formula como hipótese interpretativa a sobreposição entre o conceito de Real, em Lacan, e Sagrado, para a análise do conto. Ainda, a instigante personagem Senhora D., de Hilda Hilst, comparece no ensaio de Julian Bohrz, que se detém na construção memorialística dessa obscena senhora, focando principalmente as agudas reflexões da narrativa hilstiana sobre o divino. De igual modo, o texto de Pedro Caio Sousa Almeida propõe uma leitura de dois poemas de Adélia Prado, Consanguíneos e O Amor no Éter, os quais tratam de uma complexa relação entre o humano e o divino, essa “formidável parelha” que aponta para uma espiritualidade tanto mística quanto ética nos textos adelianos. Cleide Oliveira | 13 Por fim, o texto de Ana Flávia da Silva Oliveira, sobre a escritora paraibana Dôra Limeira, em especial sobre a narrativa O beijo de Deus (2007), texto que enfoca a intercessão sempre surpreendente entre o erótico e o sagrado na referida narrativa. Entre o feminino e o sagrado os textos que aqui se dispõem estabele- cem rico diálogo com a filosofia e com a literatura; fica a sugestão para que o leitor aceite o convite e se embrenhe nessa floresta de signos tecida a partir de uma multiplicidade de vozes que se conjugam no feminino e se afinam no comum desejo de aceder ao sagrado. Curvelo/MG, outubro de 2021. 1 Um pouco da religiosidade medieval a partir das experiências místicas de Catarina de Siena Ana Rachel G. C. de Vasconcelos Introdução O século XIV é visto, por muitos autores, como paradoxal, pois, se por um lado, foi marcado por eventos como a Guerra dos Cem Anos, a Peste Negra e o Grande Cisma, por outro, foi também a época em que viveram grandes poetas, místicos e santos, como Boccaccio, Geoffrey Chaucer, Jo- hann Tauler, Henrique Suso, Ruysbroeck, Brígida da Suécia e Catarina de Siena. Por isto, ele é comumente descrito como uma era de destruição, mas também de soerguimento; de terror apocalíptico, mas também de espe- rança mística. Nele, houve o colapso da ordem estabelecida pela Igreja, o esgota- mento do modelo feudal, o surgimento do nacionalismo e das primeiras divisões religiosas, contudo, espiritualmente, ele foi bastante profícuo, uma época de bastante vitalidade espiritual que marcou a história do Oci- dente (DAWSON, 2002). A Itália, que viria a ser expoente do Renascimento, produziu, nos sé- culos anteriores, uma literatura espiritual extremamente rica, “repleta de devoção mística e fervor religioso” (KING, 2004, p.56). Embora alguns místicos tenham se mantido propositalmente afastados das polêmicas, preferindo enfatizar a necessidade de conversão pessoal e de uma mu- dança interior; outros, como Catarina de Siena, sentiram-se compelidos ao profundo envolvimento em defesa do papado e de uma reforma da Igreja (MCGINN, 2005). Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 15 Catarina foi talvez a mais importante mística italiana do século XIV e a primeira a deixar seus escritos em língua vernácula (MCGINN, 2016). Autora de uma importante obra de espiritualidade e de um extenso epis- tolário; possuidora de uma personalidade marcante, na esteira de Joaquim de Fiore, Dante Alighieri, João de Parma, Francisco de Assis e Angela de Foligno, a mística italiana, desde muito cedo, tomou ciência dos problemas eclesiásticos e envolveu-se profundamente, – primeiramente como con- templativa e, num segundo momento, também como profetisa e embaixatriz de Siena e do Papa – doando-se pela unidade dos cristãos e pela paz. Neste escrito, faremos um breve estudo da experiência mística de Ca- tarina Benincasa de Siena, figura importante não apenas para os estudos de gênero e das relações de poder, mas também para a compreensão da mística e da cosmovisão medievais. Como sabemos, a reconhecida santidade, normalmente ligada à vir- gindade, dava à mulher medieval autoridade para influenciar nas questões temporais e espirituais, e Catarina é o perfeito exemplo de mulher que exerceu fortemente esta atividade, entrando para a história pela atuação pública, mas, antes disso, Catarina foi uma típica mística medieval e só desempenhou aquele importante papel porque primeiro desenvolveu ple- namente a sua vida interior. Ela estabeleceu uma íntima relação com Deus, tendo como principais notas de sua espiritualidade o severo ascetismo, a devoção à Paixão, ao sangue e à eucaristia, os inúmeros êxtases, o recebimento de estigmas (MCGINN, 2005) e outras experiências decorrentes daquela, como o casa- mento místico, a troca de corações, a levitação etc. O entendimento da mística catariniana a partir das suas próprias prá- ticas, crenças e anseios é o objeto deste estudo. Primeiro, abordar-se-á o sagrado, a partir das bases estabelecidas por Mircea Eliade, e alguns 16 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia aspectos definidores da espiritualidade medieval. Em seguida, após uma breve exposição de Catarina como mística dominicana por excelência, pas- saremos à exposição das suas práticas religiosas e experiências místicas. A mística cristã medieval O homem contemporâneo, de maneira geral, sente certo desconforto em relação às manifestações do sagrado. Apenas com muito esforço, sua mente materialista e pragmática consegue compreender o que representa a hierofania – em especial a maior de todas, para os cristãos, a encarnação de Deus – para o homo religiosus (ELIADE, 2011). O homem ocidental contemporâneo olha para a sociedade medieval com condescendência, tomando a sua religiosidade e as suas práticas como sinais de profunda ingenuidade, quandonão de tolice. É excruciante para ele a ideia de que o sagrado possa, para o religioso, manifestar-se em um pedaço de pão, por exemplo, porque ele olha para o pão e vê apenas pão, enquanto o religioso considera que, embora a aparência não mude, quando o sagrado se manifesta, aquilo torna-se outra coisa. O pão e o vinho sagrados são adorados não pelo que são material- mente, mas como hierofanias. Eles transmudaram-se para uma realidade sobrenatural e passaram a revelar algo que já não é nem pão, nem vinho, mas o sagrado sob aquelas espécies. Frequentemente o contemporâneo olha para o medieval com lentes atuais e pressupostos inadequados, es- quecendo-se que os fatos religiosos estão para além da apreensão meramente histórico-cultural e que o fenômeno religioso tem caráter trans-histórico (RIES, 2014). Para bem compreender a religiosidade me- dieval, portanto, é necessário deixar que o próprio medieval explique a sua experiência, pois o seu comportamento decorre inteiramente dela (RIES, 2014). Para ele, tudo possui valor e significado religioso ou espiritual. A alimentação é valorizada, a vida sexual é ritualizada, o casamento é visto Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 17 como mais do que mera realidade natural, e tudo – a própria casa, a rotina – é compreendido a partir de uma perspectiva que toma por base a trans- cendência (ELIADE, 2011). O sagrado, para ele, é a realidade por excelência, e ele deseja nunca perdê-la de vista, mantendo-se, o máximo possível, perto de onde ele se manifesta primordialmente, o templo, e dos objetos consagrados, dese- jando santificar-se e viver num mundo santificado. A vida cotidiana é valorizada no plano religioso e metafísico e é transfigurada, de forma que até o gesto mais habitual pode significar um ato espiritual, e a vida mesma, de muitas formas, é passível de ser santificada (ELIADE, 2011). Embora muito do que Eliade descreve seja relativo a sociedades primitivas, as in- formações supracitadas ajudam o ocidental contemporâneo a compreender o pensamento cristão e a mística medieval, que se funda- menta nesta necessidade que o religioso tem de santificar-se para entrar em comunhão com Deus – tudo o mais se desenvolve a partir deste postu- lado inicial (ADDISON, 1918). O religioso considera haver no coração do homem uma inquietação1, um abismo2, uma saudade profunda, um “desejo de Deus” intenso e ine- xaurível, chamado pelos primeiros padres sírios de “sede da alma pelo Deus vivo” (GEBHART, 1922). A partir deste ponto de vista, desde os pri- mitivos, com seus rituais e sacrifícios, há uma busca do homem por algo superior que o criou e com quem deve restabelecer o contato, por meio de rituais religiosos e da observância de leis, de uma ética revelada por este ser supremo a um pontífice, seja sacerdote ou profeta. 1 “Todavia, o homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te. Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”. (AGOSTINHO, 1955, 1.1) 2 “O infinito abismo só pode ser preenchido por um objeto infinito e imutável, isto é, somente pelo próprio Deus”. (PASCAL, 2001, VII, 425). 18 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia Para o cristão medieval, isto decorre da comunhão perdida com a ex- pulsão do Éden. Mas, se Adão e Eva fugiram e esconderam-se de Deus, envergonhados, após a desobediência primeva, por estarem nus – algo que só puderam notar porque, simbolicamente, perderam a visão vertical e passaram a ter uma visão horizontal e rasteira –, sendo expulsos do para- íso3, há esperança para a cristandade medieval com a Nova Criação, inaugurada pela nova Eva4, Maria de Nazaré, e o novo Adão, Jesus Cristo. Aquela, por sua obediência e submissão, e este, por sua encarnação e sa- crifício, tornaram novamente possível a comunhão com Deus. O místico cristão é a pessoa que consegue estabelecer, em vida, a união pessoal com Deus, tornada possível pela Encarnação do Verbo. Adão e Eva podem ser lidos, simbolicamente, como figuras5 dos místicos cristãos (que não à toa frequentemente falam em nudez); todo o drama de Jó pode ser resumido na luta do homem por encontrar e alcançar a Deus, e sua vida é facilmente relacionada6 com o caminho místico. Da boca de Jó saem palavras com as quais qualquer místico cristão concordaria: "Sim, hoje a minha queixa é amarga, ainda que sua mão reprima meus suspiros. Oxalá soubesse onde poderia encontrá-lo, para que eu pudesse chegar ao seu trono!" (Jo 23, 2-3). 3 Gn 3, 23-24: "O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, para que ele cultivasse a terra “de onde havia tirado”. E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida" 4 Maria de Nazaré é uma figura bastante cara aos medievais, que costumavam apontá-la como contrária a Eva: a desobediência da primeira Eva ocasionou a queda; a obediência da nova Eva permitiu a Encarnação do Verbo; a primeira Eva disse “não” a Deus, a nova Eva disse “sim” e concebeu do Espírito Santo; por meio da primeira Eva, o pecado veio ao mundo; por meio da nova Eva, a redenção veio ao mundo. Se por meio da primeira Eva houve a queda, pela intercessão da nova Eva Jesus iniciou seu ministério salvífico com o primeiro milagre (bodas de Caná) etc. A nova Eva é amada triplamente por Deus: com amor de Criador, por Deus Pai; com amor de esposo, pelo Espírito Santo; e com amor de Filho, por Jesus Cristo, sendo, por isso, considerada a maior e mais amada dentre as criaturas. Se, com a expulsão do Éden, anjos foram colocados na porta para evitar a volta do casal caído e, em todo o Antigo Testamento, os homens se prostram e não conseguem fitar os anjos, tamanho o seu esplendor; a nova Eva é saudada alegremente pelo maior dos arcanjos e o fita com tranquilidade etc. A famosa Ladainha de Nossa Senhora remonta ao século XIII. 5 Deus passeava no jardim à hora da brisa da tarde, em plena comunhão com os homens (Gn 3,8) [grifos nossos] 6 Jó se despoja de tudo e suporta o sofrimento pacientemente, perde bens, filhos e chega a ter o corpo coberto por feridas – lembra o que ocorre com certa frequência na mística cristã. Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 19 A peregrinação pelo deserto em busca da terra prometida, relatada no Pentateuco; o livro dos Salmos, repleto de expressões que refletem a via mística (não à toa, na Idade Média, era decorado e entoado pelos reli- giosos), tais como: Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por vós, ó meu Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei contemplar a face de Deus? Minhas lágrimas se converteram em ali- mento dia e noite, enquanto me repetem sem cessar: “Teu Deus, onde está?” [...] Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu Deus. Desfalece-me a alma dentro de mim; por isso, penso em vós do lon- gínquo país do Jordão, perto do Hermon e do monte Misar. Uma vaga traz outra no fragor das águas revoltas, todos os vagalhões de vossas torrentes passaram sobre mim. Conceda-me o Senhor de dia a sua graça; e de noite eu cantarei, louvarei ao Deus de minha vida. Sl 42, 2-4.6-9. (Destaques nossos) Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro. Minha alma está se- denta de vós, e minha carne por vós anseia como a terra árida e sequiosa, sem água. Quero vos contemplar no santuário, para ver vosso poder e vossa glória. Porque vossa graça me é mais preciosa do que a vida, meus lábios entoarão vossos louvores. Assim vos bendirei em toda a minha vida, com minhas mãos erguidas vosso nome adorarei. Minha alma saciada como de fino manjar, com exultante alegria meus lábios vos louvarão. Quando, no leito, me vem vossa lembrança, passo a noite todapensando em vós. Porque vós sois o meu apoio, exulto de alegria, à sombra de vossas asas. Minha alma está unida a vós, sustenta-me a vossa destra. Sl 62, 2-9. (Destaques nossos) Os livros dos profetas7, o Cântico dos Cânticos etc, todo o Antigo e o Novo Testamentos estão permeados por expressões que remetem a uma 7 Por exemplo: "Buscai o Senhor, já que ele se deixa encontrar; invocai-o, já que está perto" Is 55,6. 20 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia busca8, uma espera9 do homem por Deus, com quem deseja estabelecer uma relação pessoal. A mesma coisa é encontrada nos primeiros séculos do Cristianismo e na Idade Média. "A teologia mística começa sustentando que o homem se apartou de Deus e anseia por estar novamente unida a ele" (GEBHART, 1922), este anseio, como dito, é o postulado da mística cristã. O homem está incompleto, insatisfeito, e não se satisfará com nada menos que Deus. Mas, além da natural dificuldade, para o homem moderno, de com- preender a cosmovisão medieval, no entendimento da mística medieval sobrevém ainda o antigo problema da linguagem que, em certa medida, foi responsável pelos clássicos embates entre teólogos especulativos e mís- ticos; aqueles, buscando, a todo custo, enquadrar as ações divinas na razão humana e em seus conceitos filosóficos e teológicos, e estes sem conseguir expressar perfeitamente a experiência mística, utilizando termos inexatos, inadequados, ou até mesmo, para os teólogos, exagerados, devido à limi- tação da linguagem a qual os místicos sentem-se constrangidos a recorrer por não haver outra opção, mesmo sabendo que fica muito aquém da ex- periência inefável10 que tentam descrever (ROYO MARÍN, 1988). Em certa ocasião, relata Raimundo de Cápua, Catarina afirmou: “Mas aqui me falta a memória, e a pobreza da linguagem me impede de dar uma descrição adequada destas coisas. Não obstante, lhe darei o que puder” (CÁPUA, 1960, p. 76). Em outro momento, o confessor diz que Catarina de Siena, durante uma de suas visões, repetiu em latim, por muito tempo, 8 Jo 14,8: Disse-lhe Filipe: "Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta". 9 João Batista, considerado o último profeta da Antiga Aliança, mandou perguntarem ao Cristo: “Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?” (Mt, 11,3). 10 Interessante destacar que o apóstolo Paulo, em II Cor, 2-4 – citação entendida por McGinn (2016, p. 242) como "arquétipo de exaltação extática e exemplo da possibilidade de algum tipo de visão de Deus nesta vida” -, relata que não é permitido repetir as palavras inefáveis ouvidas: “Conheço um homem em Cristo que há catorze anos foi arrebatado até o terceiro céu. Se foi no corpo, não sei. Se fora do corpo, também não sei; Deus o sabe. E sei que esse homem – se no corpo ou se fora do corpo, não sei; Deus o sabe – foi arrebatado ao paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (Destaques nossos). Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 21 Vidi arcana Dei, vi os segredos de Deus. Muito tempo depois, quando vol- tou a si, continuou repetindo as mesmas palavras. Por isso, quando questionada acerca do motivo pelo qual repetia aquelas palavras sem ex- plicá-las, como costumava fazer, respondeu: Devo repreender-me pelo compromisso de expressar-lhe o que vi, como cul- pada de proferir palavras vãs - parece-me que blasfemo contra Deus e o desonro com minha fala. Tamanha é a distância entre o que meu espírito con- templou, quando arrebatado por Deus, e tudo o que eu poderia expressar com palavras que penso estar falseando ao falar-lhe dele. Não devo, portanto, prestar-me a explicar para vós; tudo o que posso dizer é que vi coisas inefáveis (CÁPUA, 1960, p. 115) [Destaques nossos] Há, portanto, o caminho largo e seguido pela maioria e, mais adiante, o “caminho da perfeição”, difícil de compreender e de ser explicado; es- treito e difícil também de seguir, a princípio, mas que se vai tornando suave e fácil aos que o escolhem por amor (ARINTERO, 1920). O dominicano Tomás de Aquino diz, na Suma Teológica11 que, pela graça santificante, que aperfeiçoa a criatura racional, o ser humano pode fruir (potestatem fruendi divina persona) e gozar da pessoa divina (ut ipsa persona divina fruendi). Por dom recebido do alto, a criatura racional torna-se participante do Verbo divino e do Amor procedente, podendo co- nhecer a Deus verdadeira e livremente e amá-lo retamente. Deus confirma, em O Diálogo, esta afirmação, e deixa claro que deseja unir-se às almas devotas: “Eu jamais cesso de fazê-los semelhantes a Mim, contanto que não coloqueis obstáculos. O que em minha vida fiz, quero renovar em vossas almas” (CÁPUA, 1960, p. 57). Em vários outros mo- mentos, Ele descreve a união mística a Catarina: 11 ST I, q. 43, art. 3, resp. 22 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia Estas almas lançadas no forno de minha caridade, sem que nada delas reste fora de mim, ou seja, nenhum desejo seu, senão todos eles abrasa- dos em mim, nada há que seja capaz de tomá-las e arrancá-las de mim e minha graça, porque estão feitas uma só coisa comigo, e eu com elas. E jamais delas me aparto por este sentimento de minha presença: seu espírito me sente sempre consigo, enquanto que em outros, menos perfeitos, te disse que ia e vinha, afastando-me deles quanto ao sentimento, embora não en- quanto graça, e que isto fazia para levá-los à perfeição. (CATALINA DE SIENA, 1996, p. 193) Catarina de Siena não apenas expôs, em seu livro (O Diálogo), a ex- periência de união; ele mesmo, ditado por ela durante um êxtase, é fruto da experiência mística da santa, e ela é um exemplo de mulher que, se- gundo a explicação cristã, pela graça santificante, pôde passar por esta experiência de união com Deus e fruir da Pessoa divina, como se verá no terceiro ponto deste artigo. Da cela para o mundo: Catarina de Siena, perfeita realização do carisma dominicano A Escola de Espiritualidade Dominicana, da qual Catarina fez parte, como terciária, tem por lema contemplata aliis tradere, frase da Suma Te- ológica12 que expressa o ideal da ordem de contemplar e levar ao próximo, compartilhar, o fruto da contemplação. Embora, para muitos, haja incompatibilidade entre a vida ativa e a vida contemplativa, para os dominicanos, o apostolado não só não impede a vida contemplativa, como deve advir de seu transbordamento. Royo Ma- rín bem sintetiza o ideal da ordem: “O dominicano deve ser um monge contemplativo que comunica aos demais, pelo apostolado da palavra e da pluma, a verdade saboreada previamente no silêncio da contemplação” (2019, p. 284). 12 ST II.IIae, q. 188, art. 6. Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 23 A analfabeta, mas grandiosíssima escritora (LEONARDI, 2006), Ca- tarina, em sua vida e em seus escritos – onde se nota claramente a doutrina da Graça agostiniana e a assimilação de muito da filosofia tomista13 unidas ao profundo conhecimento das Escrituras – estava em plena sintonia com os ideais de sua ordem, unindo contemplação e ação. Catarina de Siena passou a primeira parte de sua vida religiosa culti- vando a vida interior. Foi só quando a desenvolveu plenamente e passou pela experiência da “morte mística”, que começou, por ordem divina, a influenciar o mundo político e eclesiástico, passando da contemplação à ação, sem deixar de lado a vida interior, em busca da ordenação do mundo exterior que, em sua época, estava em plena ebulição. Pode-se dizer, portanto, que a mantellata14 Catarina de Siena é a per- feita expressão do carisma da ordem de Domingos de Gusmão, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Mestre Eckhart, Johannes Tauler e Henrique Suso. A vida de contemplação e ação se unem, tratando-se, sem sombra de dú- vidas, de uma “mística missionária, uma mística do apostolado” (PETRY, 2006, p. 265).Não obstante tenha viajado e pregado, em grande medida, sua atua- ção pública esteve ligada à troca de cartas15 – escritas por seus secretários, visto que foi por quase toda a vida analfabeta – com diversas pessoas, de leigos e familiares a papas e reis (SIENA, 2016). Há sempre, em sua mís- tica, um caráter profundamente intelectual e um aspecto marcadamente filosófico e teológico (ROYO MARÍN, 2019). 13 Capítulos inteiros do Diálogo têm teor idêntico a questões da Suma Teológica; 14 Mantellate: mulheres piedosas da Ordem Terceira Dominicana que usavam hábito preto e capa branca e dedicavam-se à caridade, normalmente eram viúvas e mulheres de idade; 15 “Suas cartas são ótima fonte para conhecer seu espírito de amante da vida espiritual e dos mais nobres valores fundados na fé e na caridade de Cristo. Mostram Catarina como portadora de uma mensagem ligada a realidades que lhe são infinitamente superiores” (CATARINA DE SIENA, 2016, p. 11) 24 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia Catarina era uma grande pensadora e olhava o assunto principal sob diversos pontos de vista. Tinha grande facilidade de palavras, férrea unidade e associ- ação de ideias, ótima memória sobre afirmações feitas precedentemente (INTRODUÇÃO, CATARINA DE SIENA, 2016, p. 18). Nas Cartas, onde demonstra grande cultura e erudição, ela dá expli- cações profundas, mas claras, sobre temas complexos da teologia católica sem perder de vista a vida e a situação pessoal de seus destinatários. Sua sabedoria, embora notadamente fruto de uma prolífica vida interior, em- basada na filosofia e espiritualidade dominicanas, é também direcionada à vida prática; Catarina dá conselhos aplicáveis à vida cotidiana, ilumi- nando-a com uma visão mais profunda e sobrenatural (SESÉ, 1993). Sua vida ativa, iniciada aos 24 anos, consistiu, resumidamente, na atuação como embaixatriz na resolução da guerra entre Florença e a Santa Sé; na promoção de uma cruzada contra o Islã, a fim de unir novamente os cristãos em torno de um inimigo em comum; na defesa ardente de uma reforma da Igreja que tivesse por base a santidade; na volta do Papa de Avignon, onde estava há mais de sessenta anos, para Roma16, cidade esco- lhida por Deus para ser o centro da cristandade; e na busca pela resolução do Cisma do Ocidente, em que não obteve sucesso. Comumente, os estudiosos focam na atuação política de Catarina, mas o fato é que sua vida espiritual é tão interessante quanto, primeiro, por ser o fundamento daquela e, segundo, pela diversidade e riqueza de experiências místicas vividas e descritas pela santa e por seu confessor, secretário e biógrafo, Raimundo de Cápua. Cumpre frisar que não fosse por ele, dificilmente as obras de Catarina de Siena teriam sido escritas e chegado até nós, e pouco saberíamos da sua vida; ela faz parte do extenso 16 Brígida da Suécia também agiu pelo mesmo propósito, mas não há registros de que tenha conhecido ou chegado a se corresponder com Catarina. Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 25 rol17 de mulheres que contaram com parceiros homens que creram na ve- racidade das experiências místicas e ajudaram a registrar e divulgar as suas mensagens. Os escritos de Catarina são uma verdadeira joia não apenas quando lidos em busca de informações históricas ou sociológicas, para uma melhor leitura da sociedade italiana medieval, mas também – e principalmente – por sua beleza e riqueza espiritual. Tanto o Epistolário como as Orações e seu O Diálogo foram escritos em língua vernácula, não em latim; este úl- timo, inclusive, “é uma das mais apreciadas joias da mística cristã de todos os tempos” (ROYO MARÍN, 2019, p. 307), apontado, por muitos, como um clássico da língua italiana sendo a contrapartida mística em prosa da Di- vina Comédia. Doutrinariamente, Catarina ecoa os grandes ensinamentos dos cris- tãos de seu tempo, o que faz com que seja parte, portanto, de uma tradição; mas, ao mesmo tempo, ela inova trazendo conceitos e reflexões próprias, com ênfases bastante particulares, de tal forma que resta difícil definir a espiritualidade catariniana apontando uma única característica. Quatro elementos importantes permeiam os seus escritos: o conhecimento de si, que, juntamente com o conhecimento de Deus, leva à santidade; o amor ao próximo como forma de pôr em prática o amor a Deus, ou seja, o amor a Deus no próximo; a caridade; e o sacrifício redentor de Jesus Cristo (MCGINN, 2016). 17 Hildegarda de Bingen e Volmar de S. Disibodo; Elisabeth e Ekbert de Schönau; Christina de Markyate e Geoffrey de St. Albans; Jacques de Vitry e Marie de Oignies; Lutgarda de Aywières e Thomas de Cantimpré; Matilde de Magdeburgo e Enrique de Halle; Christine de Stommeln e Peter de Dracia; Elsbeth Stagel e Henrique Suso; Dorothea de Montau e John Marienwerder; e Angela de Foligno e Irmão A. (NEWMAN, 1995) são alguns exemplos. Ademais, Jerônimo e Paula, João da Cruz e Teresa d’Ávila, Francisco de Sales e Joana de Chantal e Vicente de Paula e Luisa de Marillac (ROYO MARÍN, 1988) são exemplos de mútua influência sobrenatural. 26 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia A vida mística de Catarina: práticas religiosas e experiências extraordinárias Como dito, a vida interior de Catarina é bastante rica e comumente relegada em nome da ênfase em sua atuação política. Parece-nos impor- tante, então, após explicar um pouco da cosmovisão medieval e da vida pública de Catarina, destacar algumas de suas principais práticas religio- sas, devoções e, principalmente, experiências místicas, tais como: o casamento místico, os estigmas, a troca de corações, a levitação, a morte mística, a sobrevivência pela ingestão unicamente da eucaristia por anos e, por fim, a experiência de carregar sobre os ombros o peso da Igreja. Experiências místicas eram usuais na sua vida. Normalmente, du- rante as experiências místicas, Catarina de Siena contraía as mãos e os pés violentamente, de tal forma que era impossível arrancar os objetos que tinha em mãos, no entanto, embora o comum seja a insensibilidade e imo- bilidade, em alguns momentos, tal qual Madalena de Pazzi, durante o êxtase, Catarina não tinha uma suspensão completa dos sentidos, de ma- neira que, por vezes, podia falar do objeto de sua visão contemplativa e ditar as revelações recebidas (TANQUEREY, 1948). Deus mesmo justifica: Unidas todas estas potências e imersas no fogo do Meu amor, o corpo perde o sentido de modo que, vendo, o olho não vê; a língua, mesmo falando, não fala; a mão, apalpando, não toca; e os pés, se movendo, não caminham. Algumas vezes, pelo transbordamento do coração, permito que a língua se mova, pronunciando palavras para desafogar o coração e para glória e louvor do Meu nome. (CATALINA DE SIENA, 1996, p. 194-195) [grifos nos- sos] A primeira visão de Catarina ocorreu quando ainda era criança. Aos seis anos de Idade, em 1353, viu Cristo, Pedro, Paulo e João pairando acima da igreja de São Domingos. Um ano depois, contrariando sua família, con- sagrou sua virgindade a Jesus Cristo (MITCHELL, 2007), algo bastante Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 27 valorizado na Idade Média, que certamente fortaleceu a sua autoridade para o exercício da posição de destaque que ocuparia anos mais tarde (LACEY, 1999). Mesmo não sendo freira, como mantellata, desde muito nova viveu num ambiente propício ao florescimento da vida mística, em que as leituras em voz alta, as conversas, as imagens, os pensamentos e afetos remetiam a Deus, sendo o êxtase quase que uma consequência na- tural (ROYO MARÍN, 1988). Desde cedo dedicou-se às penosas práticas ascéticas, fazendo jejuns – buscando aniquilar em si quaisquer afetos pelas coisas do mundo e forta- lecer o autodomínio, desenvolvendo a virtude da temperança –, dormindo pouquíssimas horas pornoite e passando bastante tempo adorando a Eu- caristia, com uma intensa vida de oração. Aos 20 anos, Catarina de Siena, após meses de experiências místicas, casou-se espiritualmente com Cristo. Raimundo de Cápua descreve (1960, p. 57-58): Um dia, ao aproximar-se o tempo sagrado da Quaresma (...) Catarina retirou- se para sua cela para desfrutar seu esposo mais intimamente com jejum e ora- ção; ela reiterou seu pedido com maior fervor, e Nosso Senhor respondeu: “porque evitaste as vaidades do mundo e os prazeres proibidos, fixando so- mente em mim todos os desejos do seu coração, pretendo, enquanto sua família se regozija em festas e festivais profanos, celebrar o casamento para unir-me à tua alma. Vou, de acordo com a minha promessa, desposar-te na fé” Em seguida a Virgem Maria apareceu, com João Evangelista, Paulo, Domingos de Gusmão e Davi, com sua harpa, e oficiou a cerimônia, to- mando a mão de Catarina e apresentando-a a Jesus, pedindo-lhe que se casasse com ela. Jesus consentiu amorosamente e colocou no dedo de Ca- tarina o anel de ouro incrustado com pedras preciosas. Em seguida, cessou a visão, e o anel permaneceu no dedo de Catarina, mas invisível aos de- mais, de forma que apenas ela o enxergava. 28 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia Para os cristãos medievais, o casamento místico é uma experiência – embora não essencial – por meio da qual a pessoa passa a ter uma partici- pação mais íntima nos sofrimentos do Cristo. O embasamento para tal vem da própria Bíblia. No Novo Testamento, por exemplo, Paulo, em mais18 de uma ocasião19, estabelece o paralelo entre o matrimônio e a união de Cristo com a Igreja. Segundo Hugo de São Vítor, o matrimônio espiritual não é uma rea- lidade menos verdadeira que o matrimônio terreno, antes, é este que não passa de uma sombra, uma figura daquele, ou seja, falar em matrimônio não é mera figura de linguagem ou recurso retórico dos místicos, ao con- trário, a união mística é a experiência real, e o matrimônio que conhecemos a figura; o matrimônio é o que é pela união entre Cristo e a Igreja, de forma que “o que há na experiência humana de intimidade, fe- cundidade, alegria e grandeza não passa de frieza, desamparo, tristeza e desânimo em relação à união espiritual da alma transformada em Deus” (ROYO MARÍN, 1988, p. 742). Catarina tinha grande devoção pelo corpo, a Eucaristia, e pelo sangue de Cristo – o centro da teologia mística dela, “nenhum teólogo deu ao san- gue mais atenção que Catarina de Siena” (MCGINN, 2016, p. 208). Em uma de suas experiências místicas, bebeu do sangue da lateral do corpo dele. Segundo Raimundo de Cápua, a partir deste momento, seus êxtases eram quase que contínuos e ela passou a viver como que em permanente estado de contemplação, “com seu espírito de tal modo absorto que é como se estivesse fora dos sentidos” (CÁPUA, 1960, p. 95), não mais conseguindo ingerir alimento algum. 18 2Cor 11, 2: “"Eu vos consagro um carinho e amor santo, porque vos desposei com um esposo único e vos apresentei a Cristo como virgem pura" 19 Ef 5, 25-27. 32: "Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá- la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível [...]"Esse mistério é grande, quero dizer, com referência a Cristo e à Igreja." Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 29 A Eucaristia também figura frequentemente em seus textos e experi- ências místicas. O que o crucifixo era para outros místicos, como Francisco de Assis, a Eucaristia era para Catarina: o símbolo que fitava e estimulava a sua atenção, provavelmente ajudando-a a ter visões (ADDISON, 1918). Como Teresa de Jesus, Micaela do Santíssimo Sacramento e tantas outras, Catarina de Siena teve uma fome e sede tão devoradoras, um desejo tão ardente por ela, que não passava um único dia sem receber a Comunhão. O biógrafo Raimundo de Cápua descreveu que, certa vez, “recebida a Co- munhão, pareceu que sua alma entrava no Senhor, e o Senhor nela, como o peixe entra na água e a água o envolve por completo” (CÁPUA, 1960, p. 207). Tamanha era a sua devoção pela Eucaristia que, por oito anos, tempo muito superior ao naturalmente suportado pelo corpo – que resiste por algumas poucas semanas -, viveu em jejum absoluto, alimentando-se ex- clusivamente dela, sem perder peso, sem ter a saúde fragilizada ou perder a energia para as atividades cotidianas, antes, tendo ainda mais vitalidade e sendo ainda mais ativa (ROYO MARÍN, 1988). Viver da ingestão apenas da Comunhão por muitos anos não é peculiaridade de Catarina, antes, é evento comum na vida de muitos estigmatizados, e normalmente vem acompanhado da privação de sono (TANQUEREY, 1948, p. 788). Nos escritos dela percebemos a sua grande devoção pelos sofrimentos do Cristo Crucificado (GRAEF, 1970), pelo precioso sangue derramado em sua Paixão e pela Eucaristia (KING, 2004). O Senhor lhe guiava pessoalmente pelos caminhos da santidade aparecia a ela com frequência, rezava com ela o Breviário, e alguma vez lhe deu Ele mesmo a Sagrada Comunhão, assim como deu a ela de beber de seu próprio lado aberto pela lança. Seus êxtases e arroubos eram quase contínuos (ROYO MARÍN, 2019, pp. 305-306). 30 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia A mística de Catarina tem esta grande nota – comum aos místicos católicos – de sofrimento, ela sofria com dores lancinantes20. Comumente nos questionamos acerca da necessidade do sofrimento, para grande parte dos místicos cristãos, no processo de união com Deus. Pode-se dizer que, para o cristão tradicional, o sofrimento é compreendido como uma conse- quência da mútua entrega e da transformação da alma em Deus (TANQUEREY, 1948). Da mesma forma que os cônjuges precisam se adap- tar à nova realidade, o místico cristão precisa se configurar ao esposo – um Deus que sofre e quer ser consolado. O místico cristão repete em seu coração as paradoxais palavras de Paulo, para quem as marcas são sinais de triunfo, um troféu de vitória: Ele me disse: “Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força”. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fra- quezas, para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no pro- fundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sinto fraco, então é que sou forte"(2Cor 12, 9-10) [destaques nossos]. Assim como Francisco de Assis21, tamanha foi a união com Cristo que Catarina chegou a receber os estigmas, mas pediu – e foi atendida – que ficassem invisíveis para os demais. A própria Catarina descreve o aconte- cimento ao seu confessor e biógrafo: Eu vi o Senhor crucificado descendo para mim em uma grande luz…. Então, pelas marcas de Suas feridas mais sagradas, vi cinco raios vermelho-sangue 20 Na carta 373, de despedida ao Frei Raimundo de Cápua, ao descrever as fortes dores e agonias, ela revela uma visão na qual o próprio Cristo a conforta: “Abraçou-me e disse palavras com muita ternura, mas não as direi”. (CATERINA DA SIENA, 1939, p. 1239) 21 Francisco de Assis é considerado o primeiro estigmatizado da História do Cristianismo; quem não o considera, normalmente vê nas declarações de Paulo (Gl 6, 17: carrego em meu corpo as marcas de Jesus; II Cor 12,7: foi-me dado um espinho na carne; Gl 2,20: já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; Col 1, 24: Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo que é a Igreja, etc) provas de que era estigmatizado. Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 31 descendo sobre mim, os quaisse dirigiam para as mãos, os pés e o coração do meu corpo. Portanto, percebendo o mistério, exclamei imediatamente: “Ah! Senhor, meu Deus, suplico-te, não deixes que as marcas apareçam externa- mente no corpo”. [...] Sinto nestes cinco locais, especialmente em meu coração, uma dor tão grande que, a menos que o Senhor faça um novo milagre, não me parece possível viver neste estado, com tanta agonia. (CÁPUA, 1960 p. 123) Os estigmas são o sinal por excelência da união do místico com o Cru- cificado e da participação no seu martírio. Este fenômeno, que normalmente vem acompanhado de fortes dores (TANQUEREY, 1948), consiste no aparecimento, sem que sejam provocados, de estigmas ou cha- gas, normalmente, nos mesmos locais e assemelhando-se às de Jesus. Outra importante experiência mística de Catarina de Siena foi a troca de corações com Cristo. Assim como Gertrudes de Helfta e Margarida Ma- ria Alacoque, por exemplo, Catarina passou pelo fenômeno de extração de seu coração e substituição pelo do próprio Cristo. Raimundo de Cápua as- sim descreve: O Senhor apareceu-lhe segurando em suas sagradas mãos certo coração hu- mano vermelho e resplandecente (...) abrindo o seu peito esquerdo e introduzindo o coração que segurava em suas mãos, disse: “eis aqui, caríssima filha, assim como ontem te tirei o coração, te entrego agora o meu para que vivas sempre por ele”. Dito isto, fechou e cicatrizou a ferida que havia aberto em seu peito (...) e, como sinal do milagre, permaneceu naquele lugar a cica- triz, como suas companheiras me asseguraram e a muitos outros tê-la visto frequentemente; perguntando a ela mesma seriamente, não pôde negar, e confessando ser verdade, confirmou (CÁPUA, 1960, p. 110-111) Dentre as extraordinárias experiências de Catarina de Siena, encon- tramos também a levitação, que normalmente ocorre durante o êxtase místico, e consiste numa elevação não provocada do corpo no ar, sem 32 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia apoio ou causa aparente. São inúmeros os casos de levitação, como os de Francisco de Assis, Felipe Nery, Teresa de Jesus e João da Cruz (ROYO MARÍN, 1988). Num dos trechos mais bonitos de O Diálogo, Catarina atri- bui a levitação à força da união mística: Apesar de serem mortais, experimentam os bens imortais, e, suportando ainda o peso do corpo, adquire a leveza do espírito. Por isso muitas vezes o corpo se eleva da terra, pela perfeita união que a alma realizou comigo, como se o corpo pesado se tornasse leve. Não é que se lhe tire o peso, mas porque a união que a alma tem comigo é mais perfeita que a existente entre a alma e o corpo, e por isso a força do espírito unido a mim levanta da terra o peso do corpo, e este fica como que imóvel, todo desprendido pelo afeto da alma, até o ponto que, como recordas ter ouvido de algumas pessoas, não seria pos- sível viver se minha bondade não lhe cercasse com força. Compreenda que maior milagre é ver que a alma não se separa do corpo nesta união do que ver muitos corpos ressuscitados (CATALINA DE SIENA, 1996, p. 194) [destaques nossos] Em 1370, Catarina passou por um longo êxtase, conhecido como ex- periência de morte mística. Segundo Raimundo de Cápua, foram três dias e três noites sem sinais vitais: “Nossa virgem foi arrebatada em êxtase e seu espírito subiu tão alto que, por três dias e três noites, ela não teve sinais vitais” (CÁPUA, 1960, p. 68). Foi nesta ocasião que ela recebeu a ordem de Deus para que deixasse a cela e começasse a influenciar diretamente a so- ciedade, tendo em vista os tempos tão conturbados. Seguindo o mesmo caminho de muitos contemplativos, Catarina, como dito no ponto anterior, passou a atuar para ordenar as coisas exteriores, sem deixar de lado ou comprometer sua vida contemplativa. Após um breve período de paz com o papa tendo chegado a Roma, no qual ocorreu a escrita de O Diálogo, irrompeu o Grande Cisma, provo- cando imenso desgosto a Catarina, que empregou todas as suas forças na Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 33 sua resolução, mas sem sucesso. Ela ofertou a sua vida ao Esposo, ofere- cendo-se para suportar o peso de todos os pecados do mundo, pela unidade e reforma da Igreja. Nos últimos três meses de vida, Catarina sentiu profunda agonia, su- portando-a, paradoxalmente, com júbilo e contentamento. A nave de São Pedro havia sido colocada sobre os seus ombros e a estava esmagando. Ela escreve as últimas cartas, despede-se, confessa os seus pecados, pede a mi- sericórdia divina, exclama “Sangue! Sangue!”, e entrega a sua alma a Deus (ROYO MARÍN, 2019). Catarina, inteiramente unida a Cristo, faleceu em um domingo, dia do Senhor, um mês após completar 33 anos, a idade com que Ele morreu pelos pecadores. Considerações finais Neste breve estudo, buscamos inserir Catarina de Siena em sua época, destacando a cosmovisão medieval e o pano de fundo teológico cris- tão a partir do qual compreendemos no que ela cria, o que desejava e o porquê de oferecer a própria vida como sacrifício, por meio de práticas consideradas estranhas ou até doentias para a modernidade. Primeiramente, expusemos brevemente, a partir dos conceitos de homo religiosus e de hierofania, de Eliade, um pouco do pensamento da pessoa religiosa. Em seguida, falamos especificamente do cristão medieval e de aspectos de sua crença. A partir daí, inserimos Catarina de Siena, mu- lher dominicana da Ordem Terceira, ou seja, leiga e solteira, como exemplo por meio do qual é possível ilustrar melhor as práticas e os an- seios do religioso cristão medieval. Em Catarina encontramos uma mulher que encarna o ideal domini- cano de atuação pública como desdobramento de uma rica e profunda vida interior. Catarina desempenhou um papel decisivo na volta do papado de Avignon para Roma e foi bastante influente na sociedade da época, tendo 34 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia trocado cartas com grandes personalidades e influenciado não apenas a política eclesiástica, mas também a temporal, numa época em que facil- mente ambas se confundiam. Mas, para além do trabalho ativo, Catarina, como contemplativa se- cular, conquistou o maior sucesso da perspectiva católica, e o que mais desejava: a união mística com Jesus Cristo. Em sua vida, vemos o casa- mento místico, os estigmas, a troca de corações, o profundo êxtase conhecido por “morte mística”, a sobrevivência pela ingestão unicamente da Eucaristia por oito anos, as sucessivas visitas de Jesus Cristo, a devoção à Eucaristia e ao sangue de Cristo, o júbilo encontrado no sofrimento e o oferecimento de si como holocausto e vítima de propiciação pelo bem da Igreja. Com sua vida e obras, a analfabeta Catarina, como Teresa de Jesus e João da Cruz, por exemplo, esclarece, complementa e corrige os conceitos definidos pelos grandes doutores, que empenharam as suas vidas ao es- tudo da Filosofia e da Teologia, o que desconcertava – e ainda desconcerta – sobremaneira as mentes mais racionalistas. Catarina é a mística medie- val que, pela riqueza de experiências e profundidade de seus escritos, foi a escolhida para ilustrar a relação entre o cristão medieval que de fato seguiu o caminho proposto pela religião e o Sagrado. Referências ADDISON, Charles Morris. The Theory and Practice of Mysticism. New York: E. P. Dutton Company, 1918. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1955. AQUINAS, Thomas. Summa Theologiae. Prima Pars, 1-49. New York: Aquinas Institute, 2012. Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 35 AQUINAS, Thomas. Summa Theologiae. Secunda Secundae, 92-189. New York. Aquinas Institute, 2012. ARINTERO, Juan Gonzalez. 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Conforme Rudolf Otto, as concepções teístas acerca de uma divindade tendem a con- siderar indispensável a definição em torno das suas características, direcionando-se aos campos da racionalidade e da individualidade na constituição de uma concepção de Deus interligada às limitações humanas. A racionalidade, de alguma forma, circunscreve o âmbito religioso, mas o sagrado não pode ser pensado apenas partir dela, pois é “algo árreton [‘im- pronunciável’], um neffabile [‘indizível’]” (OTTO, 2007, p. 37), porquanto excede a categoria conceitual. Neste direcionamento, destacamos, a mística, esta palavra plurívoca (Cf. VELASCO, 1999), que apresenta diversas facetas pragmáticas, que pode ser compreendida, de modo abrangente, a partir da colocação de No- gueira (2019, p. 194), como um percurso que leva ao encontro do humano com o divino. Acerca das suas especificidades (da mística) trataremos um pouco mais adiante. No momento, cabe destacar que essa trajetória vivida pelo sujeito com o sagrado é enxergada sem delimitações ou criações de conceitos em si fechados, já que não é possível atribuir à mística uma 38 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia concepção estática e limitada, uma vez que ela é dinâmica e busca uma experienciar do ilimitado. A pensadora enfocada neste estudo é a filósofa francesa Simone Adol- phine Weil1 – uma das mentes mais impactantes e inquietantes do século XX –, que nasceu em Paris em 3 de fevereiro de 1909 e faleceu em 24 de agosto do ano de 1943 no Reino Unido, “sem ter podido presenciar a der- rocada do nazismo e a libertação da França do jugo da Alemanha hitlerista” (PUENTE, 2020, p. 55). Em seu percurso de 34 anos, atuou não apenas no campo das produções teóricas, mas também na filosofia, na docência, como militante ativa dos movimentos sociais, na luta pelos mais pobres, foi também “sindicalista, crítica do capitalismo (do colonialismo, do comu- nismo, do marxismo, do totalitarismo, da revolução), anarquista, operária” (NOGUEIRA, 2019, p. 204). A capacidade intelectual e a versati- lidade são marcas constantes na vida e na escrita de Simone Weil, que produziu obras acerca de diversas áreas do conhecimento: na teologia, ci- ência, política, filosofia, literatura, sociologia, dentre outras, mantendo aflorada até os últimos minutos de sua vida a ânsia por compreender a si mesma e os acontecimentos que a cercavam, em sua totalidade. Simone Weil preocupou-se com os mais pobres, com a classe traba- lhadora, em uma visão que contemplava as categorias políticas e sociais, refletindo sobre as causas que promoviam a miserabilidade do sujeito. Eram essas as suas inquietações pessoais no desnudamento da caridade, do amor, da partilha do sofrimento ou do querer sentir a angústia que abarcava a tantos para, assim, sofrer na própria carne e entender na sua vida as dimensões da alma humana e da realidade desumanizadora, bus- cando sentir, simbolicamente, a cruz de Cristo, com todas as suas contradições. 1 Nogueira (2019) destaca a existência da obra biográfica La vie de Simone Weil, datada de 1973, escrita por Simone Pétrement, amiga da pensadora francesa. Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 39 Nossa pensadora teve contato com a filosofia “antiga e moderna, principalmente com Platão, Descartes e Kant, com a tradição literária e [...] cristã, além de ser influenciada [...] por escritos da tradição hinduísta, taoísta e certas tradições budistas” (MARIZ, 2016, p. 122). Assim sendo, o trajeto da vida de Weil percorreu e absorveu diferentes tradições religio- sas, mas sempre a conduziu aos braços do Cristo, e a sua “mística da cruz” pode ser encontrada em todos os campos da sua breve e profunda existên- cia, unindo temas que lhes eram caros, como, por exemplo, mística e trabalho, chegando a falar de uma espiritualidade do trabalho no seu livro A gravidade e a graça (1993), precisamente na sua última parte intitulada Mística do trabalho. Vemos, assim, que o período histórico, social, político e econômico em que viveu fora marcado por guerras mundiais2, em uma época que suscitou “intensos movimentos sindicais de luta por melhores condições de trabalhos para os operários, [...] engajamento de intelectuais da época para promover a formação educacional dos trabalhadores” (MARIZ, 2016, p. 122). Dentro deste contexto, Weil elaborou ideias consistentes e críticas contundentes a determinadas correntes teóricas. Leitora assídua de Marx, escreveu em seus textos sua oposição à dimensão revolucionária, a partir da experiência que adquiriu como operária nas fábricas e também conhe- cendo o que se passava na então União Soviética depois da Revolução3. Feitas estas breves considerações gerais, objetivamos apresentar neste texto a mística weiliana, que não se fundamenta ou não deve ser entendida unicamente através de uma via afetiva – característica frequen- temente e erroneamente atribuída às mulheres místicas –, mas enquanto 2 Referimo-nos à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e à Segunda Guerra Mundial (1939-1945). 3 Como escreveMartins (2013, p. 55): “Simone Weil mantinha certo preço pelo marxismo, mas de forma crítica. Aproximou-se do comunismo, mas tinha certeza de que o comunismo soviético de Stalin era tão opressor como qualquer regime capitalista. Crítica Stalin por criar uma máquina burocrática e um Estado que não libertou os trabalhadores, mas a opressão apenas trocou de mãos.” 40 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia união com o divino, e com o próximo, envolvendo, desta forma, suas per- cepções, sua filosofia de vida, seus modos de enxergar o outro e os problemas que o envolvem, sua reflexão do Cristianismo e de outras reli- giões, assim como sua contemplação do Cristo. Para tanto, tomamos como apoio a carta Autobiografia espiritual, e os ensaios O amor de Deus e o infortúnio, que se encontram na obra Espera de Deus (2019)4. Dessa forma, buscamos colocar em evidência um pouco do percurso existencial de Simone Weil, dando destaque aos acontecimentos principais de sua vida, visto ser esta bastante dinâmica e marcada por inúmeros fatos importantes, inclusive, no que diz respeito ao seu percurso espiritual. Em seguida, procuramos abordar a mística a partir dos aspectos conceituais e terminológicos, com base no teólogo Juan Martins Velasco. Por último, abordamos os textos da pensadora em tela, tendo como foco a sua mística. Simone Adolphine Weil: professora, filósofa e mística francesa Nesta seção, pretendemos apresentar outras informações do per- curso de Simone Weil, não considerando suficiente as explicitadas anteriormente em nossas considerações iniciais, por ter nossa pensadora uma vida bastante efervescente e entrelaçada com a sua visão do Cristia- nismo. Sabemos que Weil deixou uma extensa produção intelectual, o que não nos permite fazer uso de toda sua obra. Todavia, mencionaremos de uma forma geral alguns temas recorrentes nas produções da escritora francesa. Simone Weil pertenceu a uma família judia não praticante de classe média alta. O pai, Bernard Weil, exercia a medicina, e a mãe, Selma Rei- nherz, dedicava-se aos cuidados dos filhos e da casa. O irmão de Simone Weil, André Weil (1906-1998), foi um matemático de prestígio do século 4 O título original é Attende de Dieu. Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 41 XX. A relação dos irmãos foi regada de amizade e cumplicidade. Na infân- cia, “estudaram em casa com diversos professores particulares e sob os auspícios zelosos de sua mãe em função de mudanças constantes que tive- ram de fazer devido aos sucessivos empregos do pai” (PUENTE, 2020, p. 55). Durante a fase adulta os laços de respeito e afeto não se desfizeram. Como salienta Puente (2020), ao longo do tempo houve uma intensa troca de correspondência entre os irmãos, marcada por profundas reflexões fi- losóficas, científicas e matemáticas. A origem socioeconômica elevada de Weil causava-lhe incômodo a ponto de lamentar não ter nascido em uma família humilde. Ela trajava- se de maneira desleixada, exibindo um visual excêntrico (CUGINI, 2010). A personalidade irreverente e marcante a levou a ser chamada de “Marci- ana”, por Alain – pseudônimo de Émile-Auguste Chartier5 –, que fora seu professor e mestre no Liceu Henry IV, onde estudou ao longo dos anos de 1925 a 1928. O mestre Alain contribuiu com o aprofundamento das ideias de Simone Weil durante a sua formação e a sua “influência no pensamento weiliano se faz presente tanto no modo de leitura e intepretação dos textos filosóficos, quanto na estreita relação empreendida por ele entre teoria e prática” (MARIZ, 2016, p. 122), abarcando, inclusive, o olhar filosófico que se estende e/ou se aplica aos fatores políticos e sociais. Em 1931, Weil começa a lecionar em um liceu de Le Puy, destinado à educação do público feminino. Neste mesmo ano, ela e Simone Prétement fazem parte de “uma manifestação organizada por estudantes pacifistas em honra de Aristide Briand, demonstração que degenera em confronto com a polícia” (MARTINS, 2011, p. 161). A participação nas atividades de protesto e reinvindicação dos direitos civis interessa muito à filósofa 5 Nasceu em 1868 e faleceu em 1951, na França. Além de professor de Filosofia, atuante nos liceus franceses, foi jornalista e escritor. Os textos produzidos por Alain versam sobre diversos temas, da política à educação, publicados no jornal francês La Dépêche de Rouen et de Normandie, e em outras fontes da época. 42 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia francesa, pois compreendia e defendia a importância da igualdade social, pensamento presente em sua vida desde a infância. Em 1934, divide-se entre a docência e o trabalho de operária – desejo este que nutria desde 1924 –, entrando na fábrica Alsthom6, empresa do ramo eletricista e mecânico, depois trabalhou na Carnaud e na Renault. A experiência de sentir na pele a realidade opressora e desumana dos ope- rários da época refletiu-se na filosofia weiliana e na maneira como enxergou as relações de trabalho e as ideias revolucionárias provenientes dos marxistas, passando a criticar de modo contundente os limites entre a teoria da revolução incentivada e defendida nos postulados de Karl Marx e Engels e a concretização desta na realidade massacrante que perdurava nos anos 30. De acordo com Mariz (2016), Simone Weil colaborou com uma nova concepção de trabalho cuja base respalda-se em uma visão de vida e de mundo igualitária e espiritual no exercício da caridade cristã. Publica em 1934, antes de trabalhar na fábrica, a obra Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social. Escreve em 1936, Diário de fábrica, com as vivências adquiridas como operária. Em agosto de 1936, resolve “se engajar na Guerra Civil Espanhola. Lutou ao lado dos republi- canos na coluna comandada por Durruti, que dirigia a formação mais importante das milícias da Central Sindical Anarquista” (PUENTE, 2020, p. 56). A experiência que passou faz com que compreenda, de forma em- pírica, a violência que afeta o ser humano, independente das suas raízes ideológicas ou culturais. Os textos Reflexões sobre a barbárie e Ilíada ou o poema da força destacam tais questões pensadas por Weil. Em 1940, co- nhece o padre Joseph-Marie Perrin, que se torna seu grande amigo e com quem refletiu acerca da religião cristã, expondo a sua perspectiva acerca de Cristo e das normas instituídas pela igreja, dentre outros temas. 6 Simone Weil contou com a colaboração de Auguste Detoeuf, que a pedido de Boris Souvarine, oportunizou a sua entrada na Alsthom em 04 de dezembro de 1934, permanecendo até o mês de abril do ano seguinte (MARTINS, 2011). Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 43 Conheceu por intermédio de Pe. Perrin o agricultor Gustave Thibon, e este proporcionou a Simone Weil trabalhar nas vindimas, onde realizou um trabalho duro e satisfatório7 (PUENTE, 2020). Em maio de 1942, refugia-se com os pais em Nova Iorque, atemori- zados pelas ações contra os judeus, entregando aos amigos, Gustave Thibon e Pe. Perrin, os vários escritos que possuía. Ao primeiro, “deixou vários Cadernos que registavam os seus pensamentos e reflexões” (LUZ, 2009, p.1532) e que resultaram na obra A Gravidade e a Graça, publicada em 1947. Ao segundo, “confiou um conjunto de manuscritos de índole es- piritual e de problematização de diversos temas ligados às contingências mais dilacerantes da vida humana” (LUZ, 2009, p. 1532). A partir destes textos, acrescentados de nove cartas, formou-se o livro Espera de Deus, publicado em 1950 (LUZ, 2009). A estadia de Simone Weil em Nova Iorque pode ser descrita como apreensiva e contrária as suas vontades, uma vez que só realizou a viagem para garantir a segurança dos pais, já que planejava voltar à França. La- mentava “por não fazer nada e por não estar sofrendo juntocom as pessoas que lutavam contra a força hitleriana ou eram vítimas da guerra” (MARTINS, 2011, p. 41). Diante da dificuldade da realização de viagens, devido aos conflitos que estavam ocorrendo, pede ajuda ao amigo do tempo de sua formação no liceu, Maurice Schumann, “que intercedeu junto a Andre Philip, comissário do Interior e do Trabalho do comitê naci- onal do France Libre” (MARTINS, 2011, p. 42), permitindo a partida de Weil a Londres em novembro de 1942, onde colaborou com a resistência francesa londrina, sendo direcionada a trabalhar nos trâmites do escritó- rio, pois não tinha condições físicas, – devido à frágil saúde que 7 José Luiz Brandão Luz (2009) destaca, utilizando o registro de Gustave Thibon, que enquanto trabalhava como operária, Weil não aceitou as confortáveis acomodações disponibilizadas pelo agricultor, preferindo “uma habitação degradada que possuía numa propriedade de família” (LUZ, 2009, p. 1533). 44 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia apresentava – e também por ter tido o projeto enfermeiras de primeira linha8 não aprovado por Charles de Gaulle (MARTINS, 2011). Segundo Martins (2011), Weil escreveu em seus últimos meses de vida a obra L’Enracinement, que apresenta uma reflexão acerca das mu- danças nos sistemas políticos e sociais que poderiam ser adotadas em uma França livre. Destarte, “este é o único texto sistemático escrito por ela, cer- tamente um dos mais importantes” (MARTINS, 2011, p. 42). Em Londres, não conseguiu ajudar aqueles que viviam as atrocidades da guerra, como gostaria. Não sentiu os mesmos pesares daqueles que estavam imersos em intenso calvário, não desceu a Gólgota, como tanto desejou. Diante da frus- tação sentida, conforme aponta Maria Clara Bingemer (2011), Simone Weil escreve a seguinte oração: Pai, em nome de Cristo, concede-me: Que eu não possa corresponder a ne- nhuma de minhas vontades com nenhum movimento do corpo, nem sequer um esboço de movimento, como um paralítico completo. Que eu seja incapaz de receber qualquer sensação, como alguém que fosse inteiramente cego, surdo e privado dos três outros sentidos. Que eu fique fora do estado de enca- dear pela menor ligação dois pensamentos, mesmo os mais simples, como um desses idiotas completos que, além de não saber contar nem ler, não puderam jamais aprender a falar. Pai em nome de Cristo, concede-me realmente tudo isso... Que tudo isso seja arrancado de mim, devorado por Deus, transformado em substância de Cristo, e dado de comer aos infelizes cujo corpo e alma care- cem de toda espécie de alimento. E que eu seja um paralisado, cego, surdo, idiota e lesado. Pai, porque és tu o Bem e eu sou o medíocre, arranca de mim este corpo e esta alma para fazer deles coisas tuas, e deixa subsistir em mim, eternamente, este desgarramento, ou então o nada. (WEIL, 1966, s.p, apud BINGEMER, 2011, p. 171-172) 8 Em linha gerais, o projeto consistia no envio, por meio de paraquedas, de enfermeiras capacitadas ao campo de combate para a prestação dos socorros necessários aos soldados feridos, a própria Weil preparou-se para tal tarefa quando estava nos Estados Unidos (MARTINS, 2011). O projeto encontra-se nos Ecrits de Londres et dernières letres e uma tradução para língua portuguesa pode ser encontrada no belo livro de Maria Clara Bingemer, Simone Weil. A força e a fraqueza do amor, 2007, no Anexo III. Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 45 A francesa em epígrafe é, sem dúvida, uma pensadora desafiante, a sua vida fora marcada por fortes convicções filosóficas e místicas, interli- gadas fortemente aos aspectos sociais. Do mesmo modo que não se limitava a uma religião, também não se limitava a um único tipo de com- portamento (mesmo com a saúde frágil que sempre a acompanhou). Pelo contrário, a sua trajetória foi movida pela luta em busca de melhores con- dições sociais para o outro que sofre, por uma reflexão profunda e ativa dos contextos políticos, e por um olhar do cristianismo enriquecido e am- pliado pela acolhida de outras tradições religiosas. Encerramos esta parte, destacando que muitas são as informações acerca da nossa filósofa que mereciam ser mencionadas, mas restringimo- nos a estas, pelo espaço que aqui dispomos e por considerá-las suficientes para uma primeira aproximação da mística weiliana, cuja contempl(ação) alcança o próximo, os oprimidos, os marcados pela dor. Mística: uma tentativa de compreensão Apresentamos nesta parte as discussões que envolvem a mística, di- ferenciando-a de outros tipos de vivências com Deus, as quais se distanciam do que se compreende do que estamos entendendo por expe- riência mística. Desse modo, caminhamos pela polissemia do termo e sua etimologia; passamos pela categoria de adjetivo à de substantivo; e chega- mos à conceituação do que foge a um determinado tipo de razão e a um determinado conhecimento do divino. Acreditamos que tais reflexões po- dem nos ajudar a melhor compreender, no sentindo de apreender, a mística weiliana. Conforme Velasco (1999), a palavra mística pode ser empregada em diferentes conjunturas, entrando, obrigatoriamente, na dimensão da im- precisão e das múltiplas significações. Isto constata-se, inclusive, nas 46 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia definições dicionarizadas, não alcançando, porém o rigor do seu signifi- cado. Tal ambivalência, ou imprecisão, deve-se ao fato de que “o termo ultrapassou o terreno religioso em que nasceu e começou a ser utilizado para fazer referência a áreas limítrofes da experiência humana” (VELASCO, 1999, p. 18, tradução nossa). Essa ambiguidade coloca a mís- tica em um espaço nebuloso no que tange seu entendimento. Todavia, tentaremos adentrar neste umbral de polissemias e aproximar-se do que compreendemos por mística, caminho que nos levará a conhecer diferen- tes contextos e suas interpretações. Tendo esclarecido este ponto, vejamos o entendimento acerca da mís- tica na perspectiva de Velasco (1999): O termo «místico» é utilizado para designar esse mundo, essa «nebulosa», do esotérico, do oculto, o maravilhoso, o paranormal, o parapsíquico de quem se ocupa toda uma família de novos movimentos em que emerge o cansaço cul- tural produzido por uma civilização unicamente técnico-científica incapaz de responder às necessidades e aspirações muito profundamente enraizadas na consciência humana. (VELASCO, 1999, p. 18, tradução nossa) Os fenômenos que fogem dos mecanismos positivistas de compreen- são e constatação experimental, o hermético, o que desafia, inquieta, o que não é totalmente compreendido, nem poderia tornar-se, o que não se res- tringe aos relatos tecnicistas, passam a ser denominados de místico. Isto leva o termo para uma área semântica que em nada ajudar a entender o seu real sentindo ou, ao menos, o sentido de uma cognitio Dei experimen- talis. De toda forma, como visto no excerto acima, a mística também se vincula ao que é impenetrável pela razão, ao que não é respondido de forma simplista. Segundo Velasco (1999), a mística é vista na religião como um enga- jamento em função do “absoluto”, porém ainda não apresenta uma Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 47 exatidão no conceito. Isso ocorre em função da sua capacidade de nomear diferentes fenômenos e das múltiplas perspectivas existentes entre os filó- sofos, teólogos, historiadores, os quais se debruçam em sua heterogeneidade. Nesse seguimento, como destaca Bernard Mcginn (2012), a mística deve ser entendida como um componente que faz parte das correntes religiosas e não como uma nova religião, ou seja, o elemento místico encontra-se inserido nesse contexto religioso de contínua modifi- cação. O termo mística deriva do grego mystikòs, pertencendo ao grupo do radical myo, que se refere ao desconhecido,
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