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A doutrina da vontade de poder em Nietzsth

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A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
Dado s d e Catalogaçã o na Publicaçã o (CIP ) Internaciona l
(Câmar a Brasileir a d o Livro , SP , Brasil )
Múller-Lauter, Wolfgan g
A doutrin a d a vontad e d e pode r e m Nietzsch e / Wolfgan g Múller-Laute r ;
Itraduçã o Oswald o Giacoi a l. — Sã o Paul o : ANNABLUME , 1997 . — (Colaçã o E ; 6 )
Título original: Nietzsche Lehre von Willen Zúr Macht .
Bibliografia .
1. Nietzsche , Friedric h Wilhelm , 1844-190 0 l. Título . II . Série .
CDD-19 3
índice s par a catálog o sistemático :
1. Vontad e de poder: Nietzsche : Fiolosofia alem ã
19 3
A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
Wolfgan g Múller-Laute r
ISBN: 85-85596-85-6
Capa: Luciano Guimarães
Revisão: Dída Bessana
CONSELH O EDITORIA L
Eduardo Permeia Canizal
Willi Bolle
Norval Baitello Júnior
Carlos Gardin
Lucrécia D'Aléssio Ferrara
Ivan Bystrina
SalmaT. Muchail
Ubiratan D'Ambrósio
Plínio de Arruda Sampaio
Maria Odila Leite da Silva Dias
11 edição: maio de 199 7
©Wolfgang Múller-Lauter
ANNABLUME editora. comunicação
Rua Ferreira de Araújo , 359 — Pinheiros
05428-000 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax . (011)212.6764
http://annablume.com.br
SUMÁRI O
A TERCEIR A MARGE M D A INTERPRETAÇÃ O 7
Scaríett Marton
A DOUTRIN A DA VONT A DE PODE R EM
NIETZSCH E 4 9
Caracterizaçã o provisóri a da vontad e de 1 pode r 5 4
Observaçõe s sobr e a problemátic a do s póstumo s 5 6
A significaçã o do s póstumo s na interpretaçã o de
Nietzsch e po r Karl Schlecht a 5 9
A respeit o da s declaraçõe s de Nietzsch e sobr e a
vontade de pode r em obra s publicadas 6 2
Sobr e a interpretaçã o da vontad e de pode r com o
princípio metafísic o 7 0
A vontad e de pode r com o um e múltipl o 7 3
'Vontad e de Poder ' no singula r 8 1
Os muito s mundo s e o únic o mund o 9 8
'As ' vontade s de pode r 'no ' mund o 10 4
A vontad e de pode r com o interpretaçã o 12 0
A TERCEIRA
MARGEM DA
INTERPRETAÇÃO
Scarlett Marton
Sempre os escritos de Nietzsche dão margem a múl-
tiplas leituras. Apresentam enorme riqueza em figuras de esti-
lo, mascaram a história da vida de um homem, revelam uma
experiência filosófica determinante. Prestam-se a estudos de
ordem diversa: o exame estilístico, a análise psicológica, a
interpretação filosófica.
Neles se inspiram grande número de trabalhos; deles
tratam outros tantos. Há os que se consagram às influências
que o filósofo exerceu e os que se dedicam à repercussão de
sua obra. Há os que comparam o tratamento que ele dá a
alguns temas com os de outros autores e os que se detêm na
análise de um de seus textos. Há ainda os que se voltam para
o exame de questões precisas e os que se empenham em
avaliar a atualidade de seu pensamento enquanto um todo.
Entre nós, duas leituras da obra de Nietzsche acaba-
ram por impor-se: a de Heidegger e a de Foucault. Enquanto
Heidegger, com seu fino e preciso trabalho filológico, julgou
que a empresa nietzschiana consistia em levar a metafísica
até as últimas consequências, Foucault, com a amplitude e
audácia de sua visão, entendeu que ela residia em inaugurar
10 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
novas técnicas de interpretação. Um atenuou a reflexão do
filósofo para pôr em relevo a sua própria; o outro dela se
apropriou enquanto caixa de ferramentas.
À margem de ambas situa-se a interpretação de
Múller-Lauter.
Em seu ensaio A doutrina da vontade de poder em
Nietzsche,1 Wolfgang Múller-Lauter propõe-se a explorar as
ideias do filósofo e desvendar a trama dos seus conceitos.
Partindo da análise de uma concepção considerada central
pela maioria dos comentadores, reconstrói com clareza e vigor
o pensamento do autor de Zaratustra, aquilatando o alcance
de sua reflexão.
Não é por acaso, porém, que adota este ponto de
partida. Controvertida, a concepção de vontade de potência2 é
1. Publicado numa primeira versão nos Nietzsche-Studien
(3) 1974, Berlim, Walter de Gruyter, p. 1-60, é considera-
do pelo próprio autor como seu ensaio mais importante.
2. Optamos por traduzir a expressão Wille zur Macht por
vontade de potência. E isto por várias razões. Adotamos
a escolha feita por Rubens Rodrigues Torres Filho na sua
tradução para o volume Nietzsche — Obras Incompletas
da coleção "Os Pensadores" (São Paulo, Abril Cultural,
2S ed., 1978). Permanecemos fiéis a outros escritos nos-
sos, em que desde 1979 fizemos essa opção. Se traduzir
Wille zur Macht por vontade de potência pode induzir o
leitor a alguns equívocos, como o de conferir ao termo
"potência" conotação aristotélica, traduzir a expressão
por vontade de poder corre o risco de levá-lo a outros,
como o de tomar o vocábulo "poder" estritamente no
sentido político (e, neste caso, contribuir — sem que seja
essa a intenção — para reforçar eventualmente apropria-
ções indevidas do pensamento nietzschiano). Mesmo cor-
rendo o risco de fazer má filologia, parece-nos ser possí-
vel entender o termo Wille enquanto disposição, tendên-
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 11
e permanece objeto das mais diversas interpretações. Mas tal
diversidade não resulta apenas dos pressupostos que norteiam
as várias leituras; deve-se também a uma dificuldade técnica.
É sobretudo nos fragmentos póstumos, redigidos pelo filósofo
entre o verão de 1882 e os primeiros dias de 1889, que tal
concepção se acha presente; e só muito recentemente estas
anotações foram publicadas na íntegra.3
Múller-Lauter enfrenta o desafio. Começa por pergun-
tar pela legitimidade de recorrer aos póstumos para examinar
a concepção de vontade de potência. Deve-se considerá-los
mais relevantes que a obra publicada? Ou, pelo menos, tão
importantes quanto ela? Deve-se, ao contrário, levar em conta
somente os textos publicados pelo próprio Nietzsche? Ou ater-
se sobretudo a eles? Mais até, deve-se confiar em igual medi-
da nas diferentes edições das anotações inéditas deixadas
pelo filósofo? Enfim, como se deve proceder diante dos escri-
tos de Nietzsche?
Esta é, por certo, uma questão metodológica; é inevi-
tável que os estudiosos tenham de se haver com ela. Alguns
julgam de maior valor os livros editados pelo filósofo; outros
cia, impulso e o vocábulo Macht, associado ao verbo ma-
chen, como fazer, produzir, formar, efetuar, criar. Enquan-
to força eficiente, a vontade de potência é força plástica,
criadora. É o impulso de toda força a efetivar-se e, com
isso, criar novas configurações em relação com as de-
mais. Contudo, a principal razão, que nos leva a manter
a escolha que fizemos, consiste em oferecer ao leitor,
com as duas opções de tradução ("vontade de potência"
e "vontade de poder"), a possibilidade de enriquecer sua
compreensão dos sentidos que a concepção Wille zur
Macht abriga em Nietzsche.
3. Trata-se da edição crítica das obras completas do filóso-
fo organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Wer-
ke. Kritische Gesamtausgabe, 30 vs., Berlim, Walter de
Gruyter & Co., 1967/1978.
12 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
atribuem peso maior aos fragmentos póstumos. Há ainda quem
hierarquize os textos segundo a importância que acreditam ter
cada um deles, encarando este ou aquele como a "obra capi-
tal". E há quem entenda que se deva levar em conta apenas
os póstumos que se mostram de acordo com a obra publicada.
Contudo, esta não é apenas uma questão metodológi-
ca. Perguntar sobre a relação que se deve estabelecer com os
escritos de Nietzsche tem outras implicações. Importa, antes
de mais nada, deixar clara a disposição de não considerar a
obra do autor de Zaratustra mero escrito ideológico; implica
sobretudo tornar patente a intenção de toma-la enquanto texto
filosófico. Esta atitude vem contrapor-se a outras que, sem
dúvida, não se pautam por motivos teóricos nem se norteiam
por razões de método.
Visando a construir e divulgar certa imagem do filóso-fo, logo depois do colapso psíquico que ele sofreu nos primei-
ros dias de janeiro de 1889, muitos decidiram colocá-lo "no
seu devido lugar". Houve então os que se dispuseram a fazer
uma reavaliação retrospectiva das ideias à luz do enlouqueci-
mento; atribuíram diferentes datas à manifestação dos primei-
ros sintomas da doença mental. Houve também os que tenta-
ram detectar os escritos redigidos sob o efeito das drogas;
foram unânimes em ver nos textos de Turim a influência do
cloral. Enfim, não foram poucos os que se aproveitaram do
estado em que Nietzsche mergulhou para desacreditar sua obra.
Hoje a situação é outra. São razões de método que
têm de embasar os diversos procedimentos que os estudiosos
adotam em relação à obra publicada e às anotações inéditas
do filósofo. Mas é bem possível que tais decisões metodológi-
cas escondam intenções; é provável até que exponham ângu-
los de visão. É certo que revelam o viés pelo qual o estudioso
compreende o autor de Zaratustra, a maneira pela qual o intér-
prete apreende como o próprio Nietzsche se percebeu e se
colocou.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 13
Assim é que Karl Jaspers, por exemplo, compara a
obra do filósofo a um canteiro de obras: as pedras estão mais
ou menos talhadas, mas a construção se acha por fazer.4
Walter Kaufmann caracteriza seu modo de pensar e expres-
sar-se como "monadológico": cada aforismo tende a ser auto-
suficiente, mas o conjunto se apresenta enquanto construção
filosófica.5 Jean Granier entende seus escritos enquanto um
todo como um campo de ruínas — aspecto causado por sua
vontade ilimitada de contestação.6 Eugen Fink, por sua vez,
assegura que "Nietzsche mais dissimulou que publicou sua
filosofia"7 e Heidegger, de quem esta interpretação é tributá-
ria, afirma que "é nos escritos 'póstumos' que será preciso
buscar a autêntica filosofia de Nietzsche".8
Quanto a este ponto, Múller-Lauter parece estar de
acordo com Heidegger. Também ele entende que Nietzsche
ocultou concepções suas ou apenas as deixou entrever. De
fato, não são raras as passagens em que o filósofo critica a
linguagem em sua função comunicativa.9 Para que haja comu-
4. Cf. Nietzsche — Einfúhrung in das Verstándnis seines
Philosophierens, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1950.
5. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist, Nova York,
The World Publishing Co., 101 ed., 1965.
6. Lê problème de Ia vérité dans Ia philosophie de Nietzsche,
Paris, Seuil, 1966.
7. Nietzsches Philosophie, Stuttgart, 1960, p. 10.
8. Nietzsche, Berlim, GuntherNeskeVerlag, 1961, v. 1,p. 17.
9. Lembremos da belíssima passagem do Crepúsculo dos
ídolos: "Não nos estimamos mais o bastante, quando nos
comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são
nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se quises-
sem. É que lhes falta a palavra. Quando temos palavras
para algo, também já o ultrapassamos. Em todo falar há
um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi inven-
tada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo.
Com a fala já se vulgariza o falante" (Incursões de um
14 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
nicação, não basta utilizar as mesmas palavras; é preciso co-
mungar as mesmas experiências. Atendendo a exigências da
vida gregária, a linguagem opera abreviações. Antes de mais
nada, abrevia como o indivíduo se sente e o que pensa a
respeito de si e do mundo. Seu caráter grosseiro está longe,
pois, de ser contingente; acha-se inscrito em sua própria natu-
reza. É para facilitar a sobrevivência que a linguagem, grossei-
ra, simplifica. E não se reconhecendo simplificadora torna-se
o solo propício onde se enraízam preconceitos metafísico-reli-
giosos. Razões bastantes para Nietzsche apresentar concep-
ções suas de modo velado, alusivo ou mesmo hipotético.
E a estas razões acrescentam-se outras. Tampouco
são raros os momentos em que o filósofo se antecipa à elabo-
ração de suas ideias. Tanto é que, em agosto de 1881, ao ser
atravessado pela visão do eterno retorno, decide não partici-
pá-la a ninguém.10 Mas, passados alguns meses, já na Gaia
ciência anuncia que tudo retorna sem cessar. É certo que, em
sua obra, existem questões sempre retomadas; é certo tam-
bém que algumas questões são tratadas num único texto e
outras surgem, sofrem mudanças e desaparecem; é certo ain-
da que, por vezes, a descontinuidade das questões se dá de
uma linha para outra. Mas também ocorre que ideias se apre-
sentem de início enquanto simples anotações, pareçam logo per-
extemporâneo, § 26. Utilizamos a edição das obras de
Nietzsche (Werke. Kritische Studienausgabe), organi-
zada por Colli e Montinari; sempre que possível, recor-
remos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho
para o volume Nietzsche — Obras Incompletas da cole-
ção Os Pensadores.
10: Tanto é que no dia 14 escreve a Heinrich Kõselitz: "Pen-
samentos surgiram em meu horizonte, pensamentos tais
como nunca vi. Não direi uma palavra e procurarei man-
ter-me calmo e impassível. Sem dúvida, é preciso que
eu viva ainda alguns anos".
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 15
der a importância e recebam, por fim, cuidadosa formulação.
Ao que nos parece, para tentar compreender o pensamento de
Nietzsche, é preciso levar em conta todas as suas ideias — as
claramente explicitadas e as por serem elaboradas. É igual-
mente necessário considerar todos os seus escritos — os li-
vros publicados e os fragmentos póstumos. Pois, como bem
(az ver Muller-Lauter, o próprio filósofo "se compreendia como
o mais escondido de todos os ocultos".
No fim das contas, o autor de Zaratustra é um pen-
sador a quem não se aplica a máxima estruturalista que in-
siste em dever o historiador trabalhar tão-somente com a obra
assumida pelo autor.11 Por isso mesmo, é fundamental dis-
tinguir, no conjunto dos inéditos, os escritos póstumos e os
esboços preparatórios de trabalhos publicados, as paráfrases
de textos já concluídos e os projetos de empreendimentos
futuros. É imprescindível discernir com clareza os diversos
registros em que as anotações póstumas se situam. Daí, a
importância de discutir e avaliar as diversas edições da obra
do filósofo.
Para o leitor brasileiro, esta questão talvez pareça
desprovida de sentido. Ela não revela de imediato toda sua
importância; ainda hoje não se dispõe sequer de uma edição
11. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor. "Tempo histórico e tempo
lógico na interpretação dos sistemas filosóficos". In A
religião de Platão, traduzido do francês por leda e Os-
waldo Porchat Pereira, São Paulo, Difel, 1963, onde se
lê: "Seja qual for o valor dos inéditos, eles não são,
enquanto concebidos num tempo unicamente vivido, cons-
truídos no tempo lógico, que é o único a permitir o exer-
cício da responsabilidade filosófica. Notas preparató-
rias, onde o pensamento se experimenta e se lança,
sem ainda determinar-se, são léxeis sem crença e, filo-
soficamente, irresponsáveis; elas não podem prevale-
cer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la ou coroá-
la" (p. 146-7).
16 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
das obras completas de Nietzsche em português.12 Aqui como
alhures, o filósofo tornou-se célebre antes de ser conhecido.
Por volta de 1900, André Gide escrevia nas Lettres à Angèle:
"A influência de Nietzsche precedeu o aparecimento de sua
obra". Atento à difusão de seu pensamento na França, referia-
se ao fato de seus livros não terem sido todos traduzidos para
o francês. Quase cem anos depois, as palavras de Gide pres-
tam-se muito bem para descrever o que ocorre entre nós.
Os estudiosos de Nietzsche, porém, logo se vêem
confrontados com sérios problemas, quando se debruçam so-
bre as primeiras edições de seus textos. Em 1901, Elizabeth
Fõrster-Nietzsche publicou uma obra a que deu o nome de
Vontade de potência. A partir de apontamentos que o filósofo
deixou e de um plano que ele seguiu durante algum tempo,
reuniu 483 fragmentos póstumos redigidosentre o outono de
1887 e os primeiros dias de janeiro de 1889. Escolheu-os a
dedo no caos das notas escritas durante meses e organizou-
os sem respeitar sequer a ordem cronológica. Assim, com a
ajuda de Heinrich Kóselitz, compilou o que apresentou como
a "obra filosófica capital" de Nietzsche.
Para legitimar sua empresa, a irmã do filósofo não
hesitou em falsificar cartas por ele dirigidas, na sua maioria, à
amiga Malwida von Meysenbug; obteve os originais, compôs o
texto a partir deles e depois os destruiu. Apresentando-se co-
mo destinatária das missivas, pretendia impor imagem de cre-
dibilidade junto aos editores e amigos do filósofo; queria levar
a crer que conhecia as intenções dele melhor que ninguém.
Espírito empreendedor, Elizabeth empenhou-se na di-
fusão do nome de Nietzsche pela imprensa; entre 1893 e 1900,
fez dele o ídolo das revistas. De posse da custódia de seus
escritos, elaborou uma nova edição de seus livros, supervisio-
12. E ainda menos da edição crítica organizada por Giorgio
Colli e Mazzino Montinari.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 17
nou as publicações, insistiu no lançamento de edições bara-
tas. Leiloou os manuscritos das conferências "Sobre o futuro
dos nossos estabelecimentos de ensino", vendendo-os para
um jornal popular em dezembro de 1893; autorizou a publica-
ção de O anticristoem setembro de 1895; organizou uma an-
tologia de poemas lançada antes do Natal de 1897. Com o
capital proveniente dos direitos autorais, adquiriu uma proprie-
dade em Weimar e nela instalou os Arquivos Nietzsche, onde
recebia personalidades do mundo cultural e político. Mais tar-
de, permitiu e incentivou a utilização da filosofia nietzschiana
pelo Terceiro Reich e, em 1935, foi enterrada com as honras
nacionais.
E sobre o filósofo Elizabeth Fõrster-Nietzsche escre-
veu ensaios, artigos e uma biografia em três volumes. Para a
primeira edição da Vontade de potência, redigiu longa introdu-
ção. Nela afirmava que o livro constituía a principal obra em
prosa do irmão; infelizmente não fora concluído ou talvez ti-
vesse sido, perdendo-se o manuscrito por ocasião da crise de
Turim. Em 1906, publicou a segunda edição, em que reuniu
1.067 fragmentos póstumos, e mais uma vez não respeitou a
ordem cronológica nem explicitou os critérios de seleção.
Nos manuscritos de Nietzsche, a intenção de escre-
ver um livro intitulado Vontade de potência surge por volta de
agosto de 1885; é apenas um título ao lado de outros, um
projeto literário dentre vários. No verão do ano seguinte, um pla-
no de trabalho intitulado "Vontade de potência" traz como sub-
título "Ensaio de uma transvaloração de todos os valores. Em
4 livros", disposição que se mantém até 26 de agosto de 1888.
A partir daí, o título "Vontade de potência" desaparece, ceden-
do lugar a "Transvaloração de todos os valores".13
13. A esse propósito, comenta Mazzino Montinari: "Assim
terminam, na vigília do próprio fim de Nietzsche, as vi-
cissitudes do projeto literário da Vontade de potência"
(Su Nietzsche, Milão, Editor! Riuniti, 1981, p. 65).
18 A DOUTRIN A DA VONTAD E DE PODE R EM NIETZSCH E
Questionáve l so b vário s aspectos , a obr a qu e a irm ã
do filósof o publico u com o Vontade d e potência serviu , at é a
décad a d e 1950 , enquant o instrument o d e trabalh o par a os
estudiosos . Contudo , depoi s da Segund a Grand e Guerra , Kar l
Schlecht a denuncio u o procediment o d e Elizabet h
Fôrster-Nietzsch e e desqualifico u o livr o po r el a inventado .
Baseando-s e e m pesquisa s feita s no s Arquivo s Nietzsch e e m
Weimar , constato u qu e nã o existi a a Vontade de potência, a
"obr a capital" ; tud o o qu e havi a era m papéi s póstumos. 14
Nã o coub e a ele , porém , publica r n a íntegr a os escri -
tos d o filósofo ; na ediçã o e m trê s volume s qu e levo u a termo ,
limitou-s e a divulga r pequen o númer o d e inéditos . E , a o lad o
de algun s outro s textos , nel a inclui u justament e os fragmento s
póstumo s reunido s na ediçã o de 190 6 da Vontade de potên-
cia. É be m verdad e qu e procuro u estabelece r a orde m crono -
lógic a em qu e teria m sid o redigidos ; ma s nã o alcanço u grand e
êxito , pois , a o qu e consta , nã o tev e acess o ao s manuscrito s
originais . Nã o é po r acas o que , no entende r de Muller-Lauter ,
o grand e mérit o d a ediçã o qu e Schlecht a organizo u residi u
em denuncia r a lend a de qu e a Vontade de potência consti -
tuiri a a "obr a filosófic a capital " d e Nietzsche . E se u maio r
defeit o — apesa r d e nã o se r ess a a intençã o d o edito r —
consisti u e m reforça r a image m d o filósof o qu e ess e mesm o
livr o divulgou .
14 . Foi , então , incisivo : "bast a folhea r ess e conjunt o par a
ve r qu e o s texto s reunido s (n a Vontade d e potência),
embor a póstumos , despertara m interess e considerável .
Deve-s e refleti r aind a mai s sobr e o fato , quand o s e per -
ceb e qu e a maio r part e desse s texto s impresso s se m a
autorizaçã o d e Nietzsch e nã o concord a co m a textur a
do s manuscritos : a Vontade d e potência nã o è um a obr a
póstuma " (" A lend a e seu s amigos" . In Lê Cãs Nietzsche,
traduzid o d o alemã o po r Andr é Coeuroy , Paris , Galli -
mard , 1960 , p . 123) .
A TERCEIR A MARGEM DA INTERPRETAÇÃ O 1 9
Vei o a público , po r fim , a ediçã o crític a da s obra s
completa s d e Nietzsche , organizad a po r Giorgi o Coll i e Maz -
/m o Montinari . Frut o de um trabalh o de fôlego , desenvolvid o
iio long o de ano s co m extrem o cuidad o e rigor , conto u co m a
colaboraçã o decisiv a d e Muller-Lauter . D e iníci o parceir o de
Montinar i ness e empreendimento , el e acabo u po r substituí-lo ,
depoi s de su a mort e em 1986 , passand o a coordena r e dirigi r
,is tarefa s editoriai s relativa s ao s póstumo s Q à s carta s d e
Nietzsche. 15 Imprescindíve l par a a pesquis a internaciona l acer -
c a d a obr a d o filósofo , est a ediçã o crític a acumul a mérito s
inquestionáveis : torno u acessíve l ao s estudioso s a totalidad e
do s escrito s de Nietzsche ; busco u recupera r os texto s de acor -
do co m o s manuscrito s originai s ordenado s cronologicamente ;
procuro u depura r da s deformaçõe s e falsificaçõe s qu e sofrera m
a obr a publicada , a s anotaçõe s inédita s e a correspondência ;
inclui u imens o aparat o histórico-filológic o d e valo r inestimá -
vel . Contudo , ante s d e el a vi r a público , grave s equívoco s
fora m gerado s pela s ediçõe s qu e a antecederam . Alguma s
dentr e elas , se m dúvida , també m contribuíra m par a a s dife -
rente s apropriaçõe s ideológica s da s ideia s d o auto r de Zara-
tustra.
No iníci o do século , na Europa , muito s considerava m
Nietzsch e u m pensado r do s mai s revolucionário s e , n a Espa -
nha , chegava m a vê-l o com o u m "anarquist a intelectual" . Pas -
sada s pouca s décadas , porém , tomaram-n o com o u m do s pila -
re s d o nazism o n a Alemanh a e dele s e apropriara m com o um
15 . Nã o s e deté m a í a atividad e editoria l d e Muller-Lauter .
Alé m d e responde r durant e algu m temp o enquant o dire -
to r d e Theologia Viatorum, u m do s mai s importante s pe -
riódico s n a áre a d e teologi a filosófic a e filosofi a d a reli -
gião , fundo u e m 197 2 o s Nietzsche-Studien. At é be m
recentemente , fo i u m do s editore s responsávei s dess a
publicaçã o anual , que , po r su a qualidade , conquisto u
u m luga r ímpa r n a cen a filosófic a mundial .
20 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
pensado r d e direit a n a França. 16 Po r certo , houv e que m de -
nuncio u a tram a qu e ligav a o nom e d e Nietzsch e a o d e Hitler .
D e 1935 a 1945, vário s intelectuai s — dentr e eles : Bataille ,
Klossowski , Jean-Wahl , qu e s e reunia m e m torn o d a revista
Acéphale — empenharam-s e e m desfaze r o equívoco .
N o fina l d a décad a d e 1960 , a extrema-esquerd a fran -
ces a fe z d o filósof o o suport e d e sua s teorias . E intelectuai s d e
peso , durant e a s dua s última s década s n a França , privilegia -
ra m a vertent e corrosiv a d o se u pensamento . Incluíram-n o a o
lad o d e Mar x e Freu d entr e o s "filósofo s d a suspeita" ; e enten -
dera m a filosofi a com o "exercíci o infinit o d a desconstrução" .
Be m mai s recentemente , algun s pensadores d a nov a geraçã o
pretendera m rompe r co m Nietzsch e atravé s d e u m acert o d e
conta s co m o s nietzschiano s francese s d e hoje . E voltara m
contr a seu s mestres , Foucault , Deleuze , Derrid a e outros , a s
arma s qu e este s lhe s ensinara m a manejar. 17
Est e fat o ilustr a be m o s mau s feito s d a apropriaçã o
16 . A títul o d e exemplo , cf . o artig o "Nietzsch e contr a Marx" ,
publicad o e m 193 4 po r Drieu-la-Rochelle , e m Socialis-
me fasciste.
17 . Cf . BOYER , Alai n et alii. Pourquoi nous ne sommes pás
nietzschéens, Paris , Bernar d Grasse t & Fasquelle , 1991 .
D e mod o geral , o livr o pec a po r falt a d e reflexã o filosó -
fic a e excess o d e estado s psicológicos , relato s autobio -
gráficos . Mas , par a alé m d a aparent e catarse , te m u m
objetiv o polític o muit o preciso : demarca r território , con -
quista r espaç o n o cenári o intelectua l francês . E , par a
tanto , nad a mai s eficient e qu e a polémica . S e a obr a
possu i a qualidad e d o panfleto , ist o é , a veemência , se u
maio r defeit o resid e e m manifesta r a alergi a po r Nietzsche ,
co m o ímpet o d e contrapor-s e ao s nietzschiano s france -
ses . Lançad o n o Brasi l co m o títul o Po r qu e nã o somos
nietzschianos (Sã o Paulo , Ensaio , 1994) , esperemo s qu e
nã o venh a apena s substitui r u m equívoc o po r outro s
tantos , mai s grave s e numerosos .
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃ O 2 1
ideológica . Reivindicand o " a exigênci a ancestra l d a racionali -
dade" , algun s pensadore s d a nov a geraçã o frances a quisera m
pensa r co m Nietzsch e contra o nietzschianismo ; melho r ainda ,
contra determinad a utilizaçã o da s ideia s d o filósofo . E pensa r
co m Nietzsche , e m princípio , deveri a significa r leva r a séri o
sua s afirmações . Ma s o propósit o qu e declarava m persegui r
nã o impedi u qu e fizesse m recorte s arbitrário s no s textos 1 8 o u
s e apoiasse m e m citaçõe s extraída s d a Vontade d e potência,
se m leva r e m cont a qu e est e fo i u m livr o inventad o pel a irm ã
d o filósofo. 1 9 D e fato , combatend o o qu e julgara m se r um a
apropriaçã o ideológica , a d e apresenta r Nietzsch e com o o mes -
tr e d a suspeita , limitaram-s e a substitui r um a image m su a po r
outra . E co m a agravant e d e qu e est a nov a imagem , n a verda -
de , reedito u outra s be m mai s antigas : a d e Nietzsch e racist a e
anti-semit a ou, na melho r das hipóteses , a de Nietzsch e com -
prometid o co m o pensament o tradicional .
É co m determinaçã o qu e Múller-Laute r s e empenh a
e m desmascara r a s leitura s ideologizante s d a obr a d o filósofo .
E m se u artig o " O desafi o Nietzsche" , el e fa z ve r co m clarez a
com o "ideologia s tê m frequentement e relaçõe s própria s d e
reciprocidade". 20 Mostr a com o s e construi u a image m marxist a
d e Nietzsch e num a reaçã o à image m nacional-socialist a forja -
d a n o Terceir o Reich . E apont a que, par a tanto , e m muit o con -
18 . É o cas o d o artig o d e Andr é Comte-Sponvill e " A besta -
fera , o sofist a e o esteta : ' a art e a serviç o d a ilusão' "
(n a ediçã o brasileira , p . 37-96) .
19 . É o qu e ocorr e n o text o d e Pierre-Andr é Taguief f " O
paradigm a tradicionalista : horro r d a modernidad e e an -
tiliberalismo , Nietzsch e n a retóric a reacionária " (n a edi -
çã o brasileira , p . 213-94) .
20 . Traduzid o num a primeir a versã o po r Ernan i Chave s e
n a versã o definitiv a pel a Comissã o Editoria l d a revista ,
in discurso (21) , 1993 , p . 21 . Est e fo i o primeir o text o d e
Múller-Laute r qu e co m grand e satisfaçã o logramo s pu -
blica r n o Brasil .
22 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
correu o trabalho de Georg Lukács. Recorrendo à sociologia,
o autor de A destruição da razão pretendeu explicar as coloca-
ções do filósofo como resultantes de determinada posição ideo-
lógica que vinha em defesa da burguesia imperialista na Ale-
manha. Embora suas ideias fossem nebulosas, suas afirma-
ções confusas e sua reflexão eivada de contradições, ao seu
pensamento garantia coesão o conteúdo social nele expresso.
E este consistia na luta contra o socialismo.
Mas Múller-Lauter pergunta: "Pode-se demonstrar me-
lhor o irracionalismo de Nietzsche do que quando se lhe nega
toda coerência de ideias e se encontra sua unidade pura e
simplesmente na irrazão ideológica da fundamentação do
imperialismo?"21 Não é por acaso que o livro de Lukács foi
determinante na antiga República Democrática da Alemanha;
ele contribuiu para a maneira pela qual lá passaram a encarar
Nietzsche. Julgaram que seu pensamento se propunha a fazer
a roda da história girar para trás; entenderam, por exemplo,
que a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo esta-
vam na base da visão de mundo que alimentava todas as
cruzadas anticomunistas.22
E a nós surpreende que também no Brasil ainda haja
quem partilhe tais preconceitos. Entre nós, muito cedo as ideias
de Nietzsche despertaram interesse. Já no início do século,
sua obra deixava marcas na literatura anarquista. Poucas dé-
cadas depois, seguindo o espírito da época, o filósofo passou
a ser tomado como pensador de direita. E quando chegava ao
auge a sua difamação, António Cândido tomou a sua defesa.
No ensaio "O portador", publicado em 1946 no Diário de São
Paulo, conclamou a que se levasse em conta "sua técnica de
21. Idem, ibidem, p. 21.
22. Múller-Lauter menciona o último livro sobre Nietzsche
que veio a público na República Democrática da Alema-
nha. Trata-se de Zur Philosophie Fríedrich Nietzsches
de Heinz Malorny lançado em 1989, em Berlim.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 23
pensamento, como propedêutica à superação das condições
individuais", e concluiu: "recuperemos Nietzsche".
Por furtar-se a enfrentar seu pensamento, há quem
pretexte os efeitos políticos desastrosos que ele teria causa-
do. Se hoje há quem declare que seus escritos são monstruo-
sos, é porque não quer ver as deturpações de que foram obje-
to. Assim reaviva-se a imagem de Nietzsche precursor do na-
zismo, fruto de uma leitura ligeira e superficial.
Por desprezar sua reflexão, há quem sustente que o
filósofo não fornece instrumentos para analisar as questões
políticas. Se hoje há quem assegure que, no Brasil, é inútil ler
seus textos, é porque deles espera respostas imediatas para
os nossos problemas. Assim divulga-se a imagem de Nietzsche
desnecessário e inoperante, fruto de um modo de pensar prag-
mático e utilitarista.
Para desvalorizar suas ideias, há quem argumente
que o autor de Zaratustra é um fenómeno episódico da história
da filosofia. Se hoje há quem afirme que sua obra não deixou
marcas, é porque desconhece a gama de escritos e debates
que ela continua a ensejar. Assim difunde-se a imagem de
Nietzsche sem escola ou seguidores, fruto de uma abordagem
precipitada e cheia de prevenção.
Em suma, se entre nós ainda hoje há quem alerte
para os perigos do contágio Nietzsche ou por ele manifeste
alergia, argumentando que é um pensador contraditório e irra-
cionalista, éporque não se dispõe a enfrentar, sem intermedia-
ções, sua fala: corrosiva, mas também construtiva.
Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de
nosso tempo, deixou uma obra polémica que continua no cen-
tro da discussão filosófica. Mas, na verdade, dele sempre se
disse o que se quis. Nos cem anos que nos separam do mo-
mento em que interrompeu sua produção intelectual, as mais
24
variadas imagens colaram-se à sua figura, as leituras mais
diversas juntaram-se ao seu legado.
Logo depois da crise de Turim, a súbita repercussão
da obra trouxe em seu bojo o exorcismo de sua filosofia. Num
primeiro momento, o interesse despertado pela biografia e a
ênfase dada ao estilo atenuaram a força de suas ideias. Epi-
sódios de sua vida — como a estada em clínicas psiquiátricas
— atraíam a atenção e aguçavam a curiosidade. Genialidade
e loucura eram termos indissociáveis nos "círculos nietzschia-
nos", que começaram a proliferar em toda a Alemanha na
passagem do século. Tudo se passava como se a crise em que
o filósofo mergulhara o envolvesse numa aura de mistério,
conferindo a afirmações suas o peso das proclamações de um
profeta.
Era na literatura mais do que em qualquer outro cam-
po que se exercia a sua influência. Nele se inspiraram autores
naturalistas e expressionistas menos conhecidos e, também,
escritores de renome como Stefan George, Thomas Mann e,
mais recentemente, Robert Musil e Hermann Hesse. Muitos
partiam do princípio de que Nietzsche não elaborou um progra-
ma, mas criou uma atmosfera: o importante era respirar o ar
de seus escritos. Fascinados por sua linguagem, nele redesco-
briam a sonoridade pura e cristalina das palavras, a correspon-
dência exata entre nuanças de sons e sentidos, a nova perfei-
ção da língua alemã. Mas viam-no sobretudo como um fino
estilista e abandonavam quase por completo o exame de suas
ideias.
Entre 1890 e 1920, biografia e estilo ficaram em pri-
meiro plano; com os anos, porém, começaram a surgir as mais
diversas interpretações da filosofia de Nietzsche. Alguns fize-
ram dele o defensor do irracionalismo; outros, o fundador de
uma nova seita, o guru dos tempos modernos. Houve os que o
consideraram um cristão ressentido e os que viram nele o
inspirador da psicanálise. Houve ainda os que o tomaram por
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 25
precursor do nazismo e os que o encararam como o crítico da
ideologia, no sentido marxista da palavra.
E multiplicaram-se as interpretações de suas ideias.
Alguns tentaram esclarecer os textos partindo de uma aborda-
gem psicológica. Entendiam as possíveis contradições neles
presentes como manifestação de conflitos pessoais;23 perce-
biam suas ideias como uma "biografia involuntária de sua alma";24
compreendiam, em particular, sua concepção de além-do-
homem como fruto de uma "filosofia de temperamento".25 Ou-
tros, apoiando-se na psicanálise, diagnosticaram seu pensa-
mento como expressão de uma personalidade neurótica. En-
caravam a doutrina da vontade de potência como tradução
filosófica do jogo de seus mecanismos inconscientes;26 rela-
cionavam essa mesma doutrina com seu sentimento de
inferioridade;27 tomavam as teses da morte de Deus e do sur-
gimento do além-do-homem como o ponto de chegada de um
processo que remontava às origens da consciência moderna.28
23. Cf. ANDRÉAS-SALOMÉ, Lou. Friedrich Nietzsche In
seinen Werken, Frankfurt am Main, Insel Verlag, 1983;
em português, Nietzsche em suas obras, São Paulo,
Brasiliense, 1992. O propósito do livro é esclarecer o
pensador através do homem; o pressuposto de que par-
te é o de que, em Nietzsche, obra e biografia coincidem.
24. Cf. WOLFF, Hans. Friedrich Nietzsche. Der Weg zum
Nichts, Berna, A. Francke Verlag, 1956.0 autor procura
mostrar como o empenho de Nietzsche em conhecer
condenou-o ao niilismo.
25. Cf. JANKÉLÉVITCH, S. Révolution et Tradition, Paris,
Janin, 1947. O objetivo do livro reside em fazer ver que
o pensamento de Nietzsche é uma "filosofia de atmos-
fera".
26. Cf. JUNG, Cari Gustav. Úberdie Psychologie dês Unbe-
wussten, Zurique, Rasher Verlag, 1951.
27. Cf. DELAY, Jean. Aspects de Ia Psychiatrie moderne,
Paris, PDF, 1956. O autor dedica uma parte desse estu-
do à interpretação de algumas teses de Nietzsche.
28. Cf. ADLER, Gerhard. Études de Psychologie Jungienne,
26 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
A repercussão de seus escritos acabou por fazer-se
sentir nas mais diversas áreas: na literatura, nas artes, na
psicanálise, na política, na filosofia. É inegável que seus tex-
tos deixaram marcas indeléveis em nossa cultura. Sensível ao
impacto causado por Nietzsche nos últimos cem anos, Múller-
Lauter afirma: "A história de sua influência, que não se limitou
nem à Alemanha, nem à Europa, já foi diversas vezes escrita
sob diferentes pontos de vista". E acrescenta: "Com resulta-
dos consideráveis, foi inserida no conjunto de experiências de
sucessivas gerações de nosso século".29
Antes de tudo, Nietzsche não queria ser confundido.
Para sua surpresa e horror, tanto anti-semitas quanto anar-
quistas se diziam seus adeptos. Ao longo de décadas, porém,
será evocado por socialistas, nazistas e fascistas, cristãos,
judeus e ateus. Pensadores e literatos, jornalistas e homens
políticos terão nele um ponto de referência, atacando ou de-
fendendo sua obra, reivindicando ou exorcizando suas ideias.
No mais das vezes, vão operar recortes arbitrários em seu
pensamento visando a satisfazer interesses imediatos. Dessa
perspectiva, quem julgou compreendê-lo equivocou-se a seu
respeito; quem não o compreendeu julgou-o equivocado.
Uma coisa é denunciar as utilizações indevidas que
se fez do autor de Zaratustra; outra é apontar as dificuldades
de compreensão que seus escritos colocam. Atento a estas
duas ordens de questões, Múller-Lauter adverte: "À primeira
vista parecem ser supérfluas indicações acerca de como se
Genebra, Librairie de 1'Université, 1957. Consagra uma
parte do trabalho ao esclarecimento de ideias de
Nietzsche, a partir de teses de Jung.
29. "O Desafio Nietzsche", loc. cit., p. 7. E Múller-Lauter
refere-se ao livro de Hermann Rausching, Masken und
Metamorphosen dês Nihilismus (Frankfurt/Viena, 1954),
em que, a partir da iminência do niilismo antecipada por
Nietzsche, o autor distingue três fases de sua influência.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 27
deve ler Nietzsche. Nenhum filósofo alemão escreveu textos
tão acessíveis como ele".30 É bem verdade que, neste caso, o
leitor não se arrisca a defrontar-se com um escrito hermético
e impermeável a toda abordagem. É certo, porém, que corre o
risco de julgar, iludindo-se, apreender com justeza o que pare-
ce facilmente acessível. Mais grave é este perigo que tem de
enfrentar: o de deter-se onde é instado a prosseguir investi-
gando, o de abandonar arbitrariamente a busca e apegar-se
ao já conhecido. E nada mais avesso ao espírito nietzschiano
que cristalizar convicções.31
No entender de Múller-Lauter, o filósofo lança mão de
diversos recursos "para induzir seus leitores a um trato pene-
trante com seus textos". E todos contribuem para incitá-los a
portarem-se enquanto filólogos.32 Recorre a expedientes vá-
rios para atraí-los, provocá-los e levá-los a toda espécie de
tentações. E todos concorrem para instigá-los a ruminar seus
pensamentos.33 É desta forma que quer ser lido; lentamente,
30. "Uma filosofia para ruminar", Folha de S. Paulo, 9 de
outubro de 1994, Caderno Mais, p. 7. Sob esse título
veio a público a primeira parte do texto "Úber den Um-
gang mit Nietzsche" (Sobre o trato com Nietzsche) na
tradução de Oswaldo Giacóia Júnior. E este foi o segun-
do texto de Múller-Lauter que pudemos trazer para o
leitor brasileiro.
31. Lembremos do aforismo 483 de Humano, demasiado hu-
mano, onde se lê: "As convicções são inimigas mais
perigosas da verdade que as mentiras".
32. Cf. nesse sentido Ecce homo, Porque escrevo livros tão
bons, § 5: "Que, nos meus escritos, fala um psicólogo
sem igual, é talvez a primeira constatação a que chega
um bom leitor — um leitor tal como mereço e que me lê
como os bons filólogos de outror liam Horácio".
33. Cf. nessa direção A genealogia da moral, prefácio, § 8:
"É certo que, a praticar desse modo a leitura enquanto
arte, é necessário algo que precisamente em nossos
dias mais se desaprendeu — e por isso exigirá tempo
28 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
com cuidado e consideração. Do leitor ideal espera coragem e
curiosidade; exige uma leitura compromissada.
Acerca da questão "como ler Nietzsche?", Deleuze e
Lyotard tomaram posição no Colóquio de Cerisy.34 Entende-
ram que ele não se presta a comentários, como Descartes ou
Hegel. Nele, a relação com o exterior não é mediada pela
interioridade do conceito ou da consciência; as palavras não
valem como significações, representações das coisas. E que-
rer comentá-lo, revelar o sentido de seu discurso, implica to-
mar o partido da interioridade e da representação. É preciso,
ao contrário, fazer uma leitura intensiva do filósofo; no dizer de
Deleuze, conectar o texto com a força exterior pela qual ele faz
passar algo ou, no de Lyotard, produzir novas, diferentes in-
tensidades. Com isso, o autor desapareceria no texto e este,
nos leitores.
Naquela ocasião, Deleuze,35 Lyotard36 e também
até que meus escritos sejam 'legíveis' — para o qual se
deve ser quase vaca e de modo algum 'homem moder-
no': o ruminar..."
34. Em julho de 1972, o Colóquio de Cerisy congregou pen-
sadores franceses e alemães, na sua maioria, para debater
o tema "Nietzsche hoje?" Os trabalhos então apresenta-
dos foram publicados sob o título Nietzsche aujourd' hui?
em dois volumes na coleção 10/18 (Paris, UGE, 1973),
que reuniu 24 comunicações, geralmente seguidas pela
reprodução das discussões, e duas mesas-redondas. A
partir desse material, organizamos o volume Nietzsche
hoje? (traduzido do francês por Milton Nascimento e Sô-
nia Salzstein Qoldberg, São Paulo, Brasiliense, 1984),
que trouxe a público nove trabalhos seguidos das discus-
sões que então ensejaram. O critério de nossa seleção
consistiu em oferecer ao leitor brasileiro a máxima diver-
sidade, diversidade de temas, abordagens e perspectivas.
35. Cf. "Pensée nómade". In Nietzsche aujourd'hui?, volu-
me 1, p. 159-74; "Pensamento nómade". In Nietzsche
hoje?, p. 56-76.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 29
Klossowski37 pareciam atentos àquilo que o discurso nietzschia-
no suscitava; nortearam-se menos pelas ideias do filósofo que
pela perspectiva que acreditavam apontar. Em 1964, no Coló-
quio de Royaumont, Foucault aproximara "Nietzsche, Marx,
Freud".38 Não se tratava de examinar os pensadores para con-
trapor concepções suas ou de lançar mão de um deles para
demolir o outro, mas de relacioná-los justamente porque, em
vez de multiplicar os signos do mundo ocidental, teriam criado
nova possibilidade de interpretá-los. Em 1972, Deleuze, Klos-
sowski e Lyotard insistiram em atribuir a Nietzsche lugar privile-
giado. A ele recorreram para refletir sobre política, arte, cultura,
psiquiatria; tomaram-no como referência para pensar seques-
tros e justiça popular, ocupação de fábricas e squattings, insur-
reições e comunidades antipsiquiátricas, happenings e pop art,
a música de Cage e os filmes de Godard. Segundo Lyotard, só
Nietzsche permitia um discurso de intensidades máximas; para
Deleuze, ele operava uma decodificação absoluta, enquanto Freud
e Marx apenas recodificações.
É com prudência e cautela que Múller-Lauter se posi-
ciona diante da leitura proposta pelos franceses e, em parti-
cular, por Deleuze. Antes de mais nada, busca situá-la no espa-
ço em que conflitam as diversas apropriações ideológicas do
autor de Zaratustra. No artigo "O desafio Nietzsche", mostra
que à imagem nacional-socialista do filósofo construída no Ter-
ceiro Reich veio opôr-se a marxista, que via seu pensamento
como expressão da luta da burguesia contra o socialismo.
36. Cf. "Notes sur lê retour et lê kapital". In Nietzsche
aujourd'hui?, v. 1, p. 141-57; "Notas sobre o retorno e o
Kapital". In Nietzsche hoje?, p. 44-55.
37. Cf. "Circulus vitiosus". In Nietzsche aujourd'hui?, v. 1, p.
141-57; "Circulus vitiosus". In Nietzsche hoje?, p. 91-103.
38. In Nietzsche, Cahiers de Royaumont — Philosophie ne VI,
Paris, Minuit, 1967, p. 183-92.
30 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
E, a partir do início da década de 1970, a esta última imagem
intelectuais franceses contrapuseram outra, a que tomava sua
filosofia justamente como aliada no combate ao emburguesa-
mento. Foi nessa direção que caminhou Michel Foucault. Gran-
de foi o impacto do texto que apresentou no Colóquio de Royau-
mont. Aproximando Nietzsche, Freud e Marx, seu trabalho ser-
viu, por um lado, como ponto de partida para as reflexões que
Deleuze, Lyotard e Klossowski vieram a desenvolver acerca da
atualidade do pensamento nietzschiano. E, por outro, provocou
reações imediatas da parte dos ideólogos na antiga República
Democrática da Alemanha. Insurgindo-se contra a ideia de colocar
Nietzsche e Marx lado a lado, eles sustentaram que não era
possível nem legítimo pretender que ambos tivessem algum pon-
to em comum.
Por não ater-se ao passado, Deleuze não se preocupou
com a utilização indevida que fascistas e nazistas fizeram dos
escritos de Nietzsche; entendeu que com ela Jean-Wahl, Klos-
sowski e Bataille já haviam acertado as contas. Por voltar-se
para o futuro, empenhou-se em ressaltar o caráter ativo das
ideias do autor de Zarafusfra; julgou que nelas se manifestava
grande força revolucionária. Seguindo em vários pontos a inter-
pretação de Foucault, considerou que, se a "trindade" Nietzsche,
Marx e Freud se achava na aurora da modernidade, o primeiro
nome que a constituía deveria ocupar posição de destaque. As
ideias de Freud e as de Marx concorreram para desmontar os
códigos sociais estabelecidos; o marxismo e a psicanálise, en-
quanto "as duas burocracias fundamentais", voltaram a normali-
zar a vida pública e a privada. E assim operaram recodificações.
Contra a "cultura burguesa", de que acreditava fazer parte inclu-
sive o pensamento marxista, Deleuze procurou utilizar a filosofia
nietzschiana. Contra a construção da imagem marxista do filóso-
fo, que só pôde condenar o estilo aforismático que ele adotou em
vários de seus textos, o pensador francês quis resgatar o aforis-
mo como instrumento de luta.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 31
Mas, pondo em relevo o caráter transgressor da filo-
sofia de Nietzsche, não acabou Deleuze por atribuir-lhe "um
pathos social que lhe é estranho"? Mais até, não acabou por
ler os escritos do filósofo "de uma maneira particularmente
descompromissada"? É justamente o que pensa Muller-Lau-
ter. "Impõe-se a questão de saber", diz ele, "se a corrente de
força, com a qual Deleuze penetra de fora no interior dos afo-
rismos nietzschianos e de novo volta para fora, enriquecido
pelo seu conteúdo, não acaba por estabelecer um tratamento
arbitrário dos textos do filósofo, tratamento que excede a aber-
tura já concedida por Nietzsche a seus leitores". E conclui:
"Tal pergunta deve ser respondida afirmativamente".39
Ainda a propósito da questão "como ler Nietzsche?",
Karl Lòwith defende este ponto de vista: Não são as leituras
que constituem um texto filosófico; ele permanece o que é,
independentemente delas. Há, portanto, leituras corretas e er-
radas. O critério que se impõe é o de compreender o autor
como ele mesmo se compreendeu — nem mais, nem menos.
E, no caso de Nietzsche, as dificuldades não são grandes,
uma vez que ele reexaminou seus escritos nos prefácios de
1886 aos livros já publicados e ainda na autobiografia. "Nietzsche
é o tipo de pensador que sempre tentou, ele próprio, fazer o
balanço de seu pensamento", afirma Lòwith;"no Ecce Homo,
visão retrospectiva da obra, constata, surpreso, que teve ideias,
mas ignorava sua unidade e era inconsciente de sua coerên-
cia, que só lhe aparecia no fim".40
Outra é a posição de Múller-Lauter. Tomando distân-
cia em relação a Lòwith, ele entende que, na autobiografia
mais do que em qualquer outro texto, Nietzsche desafia o leitor
a compreender seu pensamento. Tanto é que já no prólogo
39. "O Desafio Nietzsche", loc. cit., p. 24.
40. In Nietzsche aujourd'hui?, volume 2, p. 227; Nietzsche
hoje?, p. 159.
32 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
clama que não o confundem.41 Mas, se no primeiro parágrafo
faz essa exigência, logo no seguinte apresenta-se como uma
natureza antagónica.'12 E, no seu caso, é preciso levar em
conta não só os antagonismos que tem fora de si mas também
aqueles que traz em si. É por essa razão que "não há o único
entendimento correio do pensamento de Nietzsche em um sen-
tido definitivo e conclusivo", assegura Múller-Lauter. "Isso por-
que não apenas ele próprio é inconcluso, mas, segundo pres-
supostos a ele inerentes, também tem que permanecer incon-
cluso".43
Nos dois artigos publicados no Brasil, não passam
despercebidas as inquietações de Múller-Lauter diante da ques-
tão "como ler Nietzsche?". Na verdade, ele se dedica a des-
mascarar as apropriações ideológicas da obra do filósofo e
empenha-se em lidar com as peculiaridades de sua maneira
de expressar-se. Se é preciso impedir desvios e deturpações
propositais de seu pensamento, também é necessário evitar
mal compreender suas ideias. E, no limite, os dois procedi-
mentos vêm juntos; num caso e noutro, trata-se de desfazer-
se de hábitos, abandonar comodidades, renunciar à segurança.
Numa palavra, trata-se de impedir a adoção de crenças, evitar
41. É o que se lê nas últimas linhas do primeiro parágrafo
do prólogo de Ecce homa "Nessas circunstâncias há
um dever, contra o qual se revolta, no fundo, meu hábi-
to, e mais ainda o orgulho de meus instintos, ou seja, de
dizer: Ouçam! Pois eu sou tal e tal. Não me confundam,
sobretudo!"
42. Cf. as primeiras linhas do segundo parágrafo do prólogo
de Ecce homcr. "Não sou, por exemplo, nenhum bicho-
papão, nenhum monstro de moral — sou até mesmo
uma natureza oposta (eine Gegensatz-Natur) à espécie
de homem que até agora se venerou como virtuosa.
Entre nós, parece-me que precisamente Isso faz parte
de meu orgulho".
43. "Uma filosofia para ruminar", loc. cit., p. 7.
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 33
a defesa de convicções. Não é por acaso que, no entender de
Nietzsche, seriam justamente estes os requisitos essenciais
do espírito livre.44
Alguns não hesitam em falar do mal-estar que hoje
lhes provocam os escritos do filósofo; outros, da sedução que
ainda exercem. No Colóquio de Cerisy, Eugen Fink45 reconhe-
ceu que sua obra literária não mais influenciava escritores de
talento como outrora; o encanto produzido pela perfeição de sua
linguagem era coisa datada. Também Lõwiíh'16 admitia que a
embriaguez provocada por suas metáforas, parábolas e aforis-
mos pertencia ao passado, quando Assim falava Zaratustra,
verdadeira bíblia, acompanhava os voluntários da Primeira Guer-
ra. Contudo, a aversão ou o fascínio, que porventura os textos
de Nietzsche ainda podem causar, não devem ofuscar o olhar
do comentador. Ele deseja, por certo, um leitor atento — e não
preconceituoso ou entusiasta.
De diferentes maneiras, ao longo dos anos, os histo-
riadores da filosofia interpretaram a sua obra. Alguns procura-
44. Vale lembrar esta passagem notável da Gaia ciência:
"Onde um homem chega à convicção fundamental de
que é preciso que mandem nele, ele se torna 'crente';
inversamente seria pensável um prazer e uma força de
autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que
um espírito se despede de toda crença, de todo desejo
de certeza, exercitado, como ele está, em poder man-
ter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo
diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o
espírito livre par excellence" (§ 347).
45. Cf. "Nouvelle expérience du monde chez Nietzsche". In
Nietzsche aujourd'hui?, v. 2, p. 345-64; "Nova experiên-
cia do mundo em Nietzsche". In Nietzsche hoje?, p.
168-92.
46. Cf. "Nietzsche et 1'achèvement de 1'athéisme". In
Nietzsche aujourd'hui?, v. 2, p. 207-22; "Nietzsche e a
completude do ateísmo". In Nietzsche hoje?, p. 140-67.
34 A DOUTRIN A DA VONTAD E DE PODE R EM NIETZSCHE A TERCEIR A MARGE M D A INTERPRETAÇÃ O 35
ram aponta r o s referenciai s teórico s qu e el e adoto u e apro -
funda r os conceito s co m qu e trabalhou ; outro s buscara m si -
tuá-l o em se u moment o históric o e reinscrevê-l o na atmosfer a
cultura l de su a época . U m do s primeiro s a desenvolve r um
trabalh o d e conjunt o sobr e o se u pensament o fo i Charle s
Andler. 47 Lançado s entr e 192 0 e 1931 , os sei s volume s de
se u estud o fora m criticado s po r outro s comentadores . Henr i
Lefebvre 4 8 nele viu um afrancesament o da s ideia s de Nietzsch e
e Jea n Granier 49 nel e responsabilizo u o acúmul o de documen -
tos acessório s pel a penúri a da anális e do s tema s propriamen -
te filosóficos . O trabalh o d e Andle r teve , porém , grand e rele -
vância : aponto u as influência s a qu e Nietzsch e fo i suscetível ,
refe z a tram a conceitua i d e seu s escrito s e empenhou-s e em
reintroduzi-l o na tradiçã o cultural . Kar l Lõwith , po r su a vez ,
publico u e m 194 1 um estudo, 50 em qu e tentav a reinseri-l o no
pensament o alemã o d o sécul o XIX , e ante s disso , e m 1935 ,
outro, 51 em qu e se detinh a n o exam e da doutrin a do etern o
retorno . Em 1936 , Kar l Jaspers 52 escreve u um trabalh o siste -
mátic o sobr e a vid a e obr a do filósofo . Vint e ano s mais tarde ,
Walte r Kaufmann 53 troux e a públic o important e estud o em lín -
gua inglesa , consagrando-s e sobretud o à anális e da teori a da
vontad e de potência . Ness a época , em texto s de 1950 54 e de
47 . Cf . Nietzsche, sã vie e t sã pensée, Paris , Gallimard .
48 . Cf . Hegel, Marx, Nietzsche, Paris , Casterman , 2 - ed. , 1975 .
49 . Cf . L ê problème d e I a vérité dans I a philosophie d e
Nietzsche, Paris , Seuil , 1966 .
50 . Cf . Von Hegelzu Nietzsche, Zurique , EuropaVerlag , 1941 .
51 . Cf . Nietzsches Philosophie de r ewigen Wiederkehr dês
Gleichen, Hamburgo , Feli x Meine r Verlag , 3 - ed. , 1978 .
52 . Cf . Nietzsche — Einfúhrung in da s Verstândnis seines \ Berlim , Walte r d e Gmyte r & Co. , 1950 .
53 . Cf . Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist, No -
va York , Th e Worl d Publishin g Co. , 10 a ed. , 1965.
54 . Cf . Holzwege, Frankfurt , Vittori o Klostermann , 2 - ed. , 1952 .
1954, 55 Heidegge r apontav a a íntim a ligaçã o entr e a teori a da
vontad e d e potênci a e a doutrin a do etern o retorno ; em 1961, 56
permiti u qu e fosse m editado s seu s curso s sobr e a filosofi a
nietzschiana . U m an o depois , aparece u n a Franç a o trabaih o
de Gille s Deleuze, 57 qu e pô s e m relev o a noçã o d e valo r e
saliento u a importânci a d o procediment o genealógico . E m 1964 ,
no Colóqui o d e Royaumont , Miche i Foucaul t aproximo u
"Nietzsche , Marx , Freud" , entendend o que , n o sécul o XIX ,
ele s teria m inaugurad o um a nov a hermenêutica . E , e m 1972 ,
no Colóqui o d e Cerisy , encontr o internaciona l e m torn o d a
questã o "Nietzsch e hoje?" , Deleuze , Klossowsk i e Lyotar d ex -
plorara m e m outr a direçã o a trilh a abert a po r Foucault ; nã o
pretendera m pensa r a atualidad e ci o text o nietzschian o ma s
pensa r a atualidad e através dele .
Fo i pel a leitur a do s pensadore s franceses , em parti -
cula r de Foucaul t e Deleuze , que , recentemente , no iníci o da
décad a d e 1980 , o auto r d e Zaratustra ganho u outr a ve z des -
taqu e n o Brasil . A parti r d e Royaumont, Foucaul t encaro u
Nietzsch e meno s com o objet o d e anális e qu e com o gritle d e
lecture; relacionou-s e co m el e meno s com o o comentado r co m
se u interpretandum qu e com o o pensado r co m su a caix a de
ferramentas . E m Cerisy , Deleuze , qu e e m 196 2 havi a publica -
do u m comentári o exempla r d a obr a d o filósofo , questiono u o
qu e er a se r nietzschian o hoje : prepara r u m trabalh o sobr e
Nietzsch e o u produzir , n o curs o d a experiência , enunciado s
nietzschianos .
Amig o pessoa l d e Foucault , Gérar d Lebrun , qu e este -
ve entr e nó s po r mai s d e trint a anos , sempr e privilegio u pen -
sadore s com o Nietzsch e e Pascal . A ele s recorri a com o instru -
55 . Cf . VortrãgeundAufsàtze, Túbigen , GuntherNesk e Ver -
lag , 1954 .
56 . Cf . Nietzsche, 2vs., Berlim , GuntherNeskeVerlag' , 1961 .
57 . Cf . Nietzsche e t I a philosophie, Paris , PUF , 1962 .
3 6 A DOUTRIN A D A VONTAD E D E PODE R E M NIETZSCH E
mento s de trabalho ; com o operadore s utilizav a conceito s seus .
Fazend o da filosofi a um a históri a heterodoxa , nã o procuro u
reconstitui r sistema s de pensamento , tomando-o s isolado s un s
do s outros , ou determina r verdade s de doutrinas , substituindo -
a s uma s à s outras . Tampouc o pretende u coteja r sistema s filo -
sófico s o u compara r verdade s doutrinárias , apontand o sua s
afinidade s e divergências , seu s débito s e créditos . Rejeitand o
a técnic a d a contabilidade , trato u d e apreende r o s parti pris
velado s de um procediment o lógico , capta r as ideia s subjacen -
te s a um a obra , diagnostica r o não-dit o d e u m autor .
A Lebrun , e a muito s qu e el e formou , a genealogi a
nietzschian a permiti u desvenda r o ardi l do s filósofos , pratica r
a desconfianç a fac e à s mai s diversa s formaçõe s ideológicas ,
enfim , questiona r a vertent e clericalista , teológica , crist ã d e
noss o pensamento . Poi s com o escrev e o própri o Gérar d Lebrun :
Mas qu e outra coisa pretender, quando no s
propomos a ler Nietzsche hoje? Muito se en-
ganaria quem pretendesse travar conhecimen-
to com um filósofo a mais. Nietzsche não é
um sistema: é um instrumento de trabalho —
insubstituível. Em ve z de pensar o qu e el e
disse , importa acima d e tudo pensar co m
ele".58
Co m Lebrun , Muller-Laute r talve z se pusess e de acor -
do quant o a est e ponto : Nad a mai s estranh o a Nietzsch e que ;
o projet o d e enclausura r o pensamento , encerrá-l o no s limite s j
estreito s de um a dogmática . Nad a mai s distant e del e qu e o ;
propósit o d e coloca r a reflexã o a serviç o d a verdade , asfixia- 1
Ia so b o pes o d o incontestável . "Ta l unidad e (a d e su a obra)" , j
A TERCEIR A MARGE M DA INTERPRETAÇÃ O 37
escrev e Muller-Lauter , "nã o pod e se r encontrad a com o u m
ultim o substrat o d e 'verdades ' subjacente s a se u pensamento ,
ne m simplesment e extraída s de seu s textos". 59
Qu e Nietzsch e nã o se pretend a um pensado r sistemá -
tico , salt a ao s olho s d e que m entr a e m contat o co m su a obra .
E iss o nã o se dev e apena s a o estil o específic o qu e adot a ou
a o tratament o peculia r qu e d á a certa s questões . Deve-s e so -
bretud o à su a recusa , explícita , do s sistema s filosóficos . D e
fato , nã o sã o rara s a s veze s em qu e a ele s s e opõe. 60 Ma s o
pont o centra l d e su a crític a nã o resid e n o fat o d e apresenta -
re m um a unidad e metodológic a e si m d e fixare m um a dogmá -
tica . Tampouc o sã o rara s a s ocasiõe s e m qu e s e opõ e ao s
espírito s sistemáticos. 61 A o pretende r impo r a o pensament o
caráte r monolítico , ele s seria m levado s a desisti r d a busca ,
abandona r a pesquisa , abri r mã o da criatividade . Acreditand o
precisa r de amplo s horizonte s par a te r grande s ideias , Nietzsch e
nega-s e a encerra r o pensament o num a totalidad e coes a ma s
fechada . Pondo-s e com o u m pensado r assistemático , e mes -
m o anti-sistemático , manifest a su a dissonânci a fac e a cert a
concepçã o do saber , qu e identific a filosofi a e sistema .
Par a os estudioso s d o filósofo , desd e log o se impô s a
pergunt a acerc a d a existênci a o u nã o d e u m sistem a e m su a
obra . Na s primeira s década s dest e século , Charle s Andle r cons -
tat a que , embor a já haj a consens o quant o à existênci a de um a
58 . "Po r qu e le r Nietzsch e hoje? " In : Passeios a o léu. São ]
Paulo , Brasiliense , 1983 , p . 38 .
59 . " O Desafi o Nietzsche" , loc. cit, p . 13 .
60 . Nu m fragment o póstumo , afirma : "nã o so u limitad o o
bastant e par a u m sistem a — ne m mesm o par a me u sis -
tema... " ([255 ] 1 0 [146 ] d o outon o d e 1887) .
61 . N a Aurora assegura : "Exist e um a comédi a do s espírito s
sistemáticos ; querend o perfaze r u m sistem a e arredon -
da r o horizont e qu e o cerca , forçam-s e a pô r e m cen a
a s qualidade s mai s fraca s n o mesm o estil o da s qualida -
de s mai s forte s — quere m apresentar-s e com o nature -
za s inteira s e homogénea s e m su a força " ( § 318) .
3 8 A DOUTRIN A DA VONTAD E DE PODE R EM NIETZSCH E
filosofi a nietzschiana , aind a se duvid a de qu e el a poss a com -
porta r um sistema . N o se u entender , porém , a obr a de Nietzsch e
abrig a pel o meno s doi s sitemas , fruto s de dua s grande s intui -
ções : o do pessimism o estético , elaborad o entr e 186 9 e 1881 ,
e o do transformism o intelectualista , desenvolvid o d e 188 1 a
1888 . Parcialment e incoerente s entr e si , cad a um dele s revel a
perfeit a coerênci a e m s i mesmo . Po r outr o lado , Jasper s sus -
tent a qu e o filósof o nã o constró i um conjunt o intelectua l lógico .
Os esboço s d e sistema , presente s em seu s escritos , sã o ape -
na s apresentaçõe s provisória s de ideia s visand o à exposição ,
consequência s d e determinad a orientaçã o d e pesquis a o u re -
sultado s d a açã o qu e pretend e exerce r atravé s d a reflexã o
filosófica . Kauimann , po r su a vez , recorrend o à distinçã o pro -
post a po r Nicola i Hartman n em O pensamento filosófico e su a
história, s istení a qu e Nietzsch e nã o é um pensador-de-siste -
ma s (system-thinker), ma s u m pensador-de-problema s (pro-
blem-thinker}. Procurand o faze r experimento s co m o pensar ,
e! e lecorr e a o estil o aforismátic o e , ness a medida , est á d e
acord o co m o espírit o d a época , marcad o pel a insatisfaçã o
crescerú e co m o s modo s tradicionai s d e expressão . Po r enten -
de r "experimentar " com o "tenta r vive r d e acord o com" , a uni -
dad e do - se u pensamento , embor a po r veze s obscurecid a —
ma s nunc a obliterad a — pel a descontinuidad e d o experimen -
talismo , encontrari a garantia s n a unidad e d a própri a vida , o u
seja , repousari a num a "unidad e existencial" . Lõwith , po r fim ,
encar a o pensament o nietzschian o com o u m sistem a e m afo -
rismos . Su a produçã o aforismátic a apresent a um a unidade ,
ligada à d a própri a taref a filosófica , amba s sustentada s pel a
lógic a de cert a sensibilidad e diant e da filosofia .
Quant o a est e ponto , Múller-Laute r concord a em cert a
medid a co m Lõwith . S e Nietzsch e sustent a qu e o cao s se ach a
inscrit o no mundo , també m reconhec e qu e a orde m é indispen -
sáve l par a a vida . Tant o é qu e nã o pôd e furtar-s e — co m o se u
pensament o — a ordenar . E , malgrad o a crític a qu e dirig e ao s
A TERCEIR A MARGE M DA INTERPRETAÇÃ O 39
espírito s sistemáticos , tev e de reconhecer , em 1888 , qu e po r
veze s fo i co m esforç o qu e escapo u de se r um deles.62 Este s
sã o os argumento s qu e alinhava , par a entã o concluir :
S e s e levam e m conta, apesar d e todas a s
suas oposições, as conexõesimanentes do
pensamento nietzschiano, este não pode ser
simplesmente oposto à sistematicidade. 63
Ma s també m co m Kaufman n em cert a medid a concor -
da Múller-Lauter . S e Nietzsch e é um pensador-de-problemas ,
ne m po r iss o se deté m n o exam e d e questõe s isoladas . A o
contrário , sempr e vis a à unidade . S e procur a conecta r os pro -
blema s específico s co m u m todo , ne m po r iss o esper a torna r
su a reflexã o definitiva . A o contrário , que r continuament e pô r à
prov a sua s hipóteses . "El e experiment a co m o pensamento" ,
escrev e Múller-Lauter .
S e no s deixarmos levar po r seus questiona-
mentos, que no essencial ainda são os nos-
sos, poderemos ser enredados por suas refle-
xões, poderemos trilhar os caminhos que le-
vam ao âmago dos problemas e conjuntos de
seu filosofar? 4
62 . Cf . o fragment o póstum o (372 ) 1 1 [410 ] d e novembr o d e
1887/març o d e 1888 , a qu e Múller-Laute r s e refere : "NB .
Desconfi o d e todo s o s sistemático s e o s evito . A vonta -
de d e sistem a é , par a u m pensado r a o menos , alg o qu e
compromete , um a form a d e imoralidade.. . Talve z adivi -
nhe m atravé s d e u m olha r lançad o embaix o e atrá s des -
te livr o d e qu e sistemátic o el e própri o escapo u co m es -
forç o — d e mi m mesmo... "
63 . " O Desafi o Nietzsche" , loc. c/f. , p . 13 .
64 . " O Desafi o Nietzsche" , loc. cit,, p . 13 .
40 A DOUTRIN A DA VONTAD E DE PODER EM NIETZSCH E
Lówit h e Kaufman n insiste m n o fat o d e o filósof o te r
colocad o o estil o aforismátic o a serviç o de se u experimentalis -
mo . O s aforismos , tentativa s renovada s d e refleti r sobr e algu -
ma s questões , possibilitaria m experimento s co m o própri o pen -
sar . Mai s cuidadoso , Múller-Laute r julg a qu e nã o se dev e atri -
bui r a Nietzsch e um estil o aforismático , porqu e el e recorre u a
diverso s meio s estilísticos de expressão . Contudo , tant o Lówith
e Kaufman n quant o Múller-Laute r ressalta m o caráte r funda -
mentalment e experimenta l do pensament o nietzschiano .
De fato , sã o vário s os texto s em qu e o filósof o convi -
da o leito r à experimentação , sej a po r entende r qu e nós , hu -
manos , nã o passamo s d e experiência s ou po r acredita r qu e
não nos devemo s furta r a faze r experiência s com nós mesmos .
Em Assim falava Zaratustra, jamai s lanç a mã o da linguage m
conceituai ; as posiçõe s qu e avanç a tampouc o se baseia m em
argumento s ou razões ; assentam-s e em vivências. 65 E m Para
além d e be m e mal, refere-s e ao s filósofo s d o futur o com o
experimentadores , com o os qu e tê m o deve r "da s ce m tentati -
vas , das cem tentaçõe s da vida".66 E, num fragment o póstu -
mo , afirm a ignora r "o qu e seja m problema s 'purament e espiri -
tuais ' ",67 Co m isso , que r ressalta r qu e su a reflexã o e su a vid a
65 . Tant o é que , nu m determinad o momento , a personage m
centra l diz a um de seu s discípulos : "Po r que ? Pergunta s
por que ? Nã o sou daqueles a que m se tem o direit o de
perguntar por seu porque. Acas o é de onte m a minha
vivência ? Há muit o qu e vivencie i as razõe s de minha s
opiniões " ("Do s poetas") . Recusand o teoria s e doutrinas ,
rejeitand o a erudição , Zaratustr a sempr e apel a par a sua
experiênci a singular . É com o intuit o de reforça r est a atitu -
de que , repetida s vezes , recorr e à image m do sangue .
"De todo s os escritos", diz ele , "am o apena s o que al-
guém escreve com seu sangue" ("D o ler e escrever").
66. Cf. § 42.
67. Cf . o fragment o póstum o 4 (285 ) do verã o de 1880 ,
ond e se lê: "Sempre escrev i minha s obra s com tod o o
A TERCEIR A MARGE M D A INTERPRETAÇÃ O 4 1
se acha m intimament e relacionadas . É est a relação , ao qu e no s
parece , qu e defin e o caráte r experimenta i de su a filosofia .
Nest e contexto , encontr a luga r um a questã o centra l pa -
ra grand e part e do s comentadores : a de investiga r se Nietzsch e
é incoerent e ou não , se se u pensament o é contraditóri o ou não .
Jaspers , Kaufman n e Granier , entr e outros , alerta m par a a exis -
tênci a de contradiçõe s em seu s textos . Kar l Jasper s sustent a
que ela s não se deveriam , porém , ao privilégi o de um mod o de
expressão , mesm o porqu e a obr a nã o apresentari a um a form a
dominant e e abrigari a tant o o discurs o contínu o quant o o aforis -
mátic o ou polémico . A interpretaçã o teri a de busca r toda s as
contradiçõe s e, reunind o concepçõe s relativa s a um mesm o te-
ma , chega r à "dialética real", que levaria a esclarece r o projet o
nietzschian o e , co m isso , compreende r a necessidad e da s con -
tradições .
Walte r Kaufmann , po r sua vez , entend e que a maneir a
de pensa r e expressar-s e de Nietzsch e permitiri a que surgisse m
contradiçõe s no s seu s escritos , ma s ela s poderia m se r resolvi -
das, se considerados os "processos de pensamento" que o leva-
ra m a pensa r com o fez . O primeir o pass o par a apreendê-lo s
consistiri a em reexamina r a relaçã o entr e os fragmento s póstu -
mo s e os livro s publicados . A obr a póstum a comportari a um a
divisã o em trê s partes : O anticristo, Ecce homoe O caso Wagner,
trabalho s concluído s qu e só viera m a públic o depoi s da cris e de
1889 , deveriam ser tratados como livros publicados; as nota s
utilizada s par a as aula s na Universidad e da Basileia , apresen -
tand o um discurs o contínuo , nã o traria m maiore s dificuldades ;
enfim , a mass a de fragmentos , redigido s durant e as caminhada s
no s Alpe s e utilizado s ou nã o em trabalho s posteriores , seri a
revelador a do mod o pel o qua l o auto r chego u a sua s posiçõe s
finais, mas não poderia ser equiparad a aos livro s concluídos .
meu corpo e a minha vida; ignor o o que seja m proble -
mas 'purament e espirituais'".
42 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
Jean Granier, por fim, julga que as contradições que
a obra de Nietzsche comporta se tornariam compreensíveis,
se tomadas enquanto expressão da pluralidade de pontos de
vista do autor. Estes, no entanto, não se achariam linearmente
justapostos, mas estruturados em "andares", de modo que,
levando em conta a verticalidade das intuições nietzschianas,
seria possível detectar as linhas de ruptura responsáveis pela
clivagem dos diferentes pontos de vista e apreender, assim, a
dinâmica de seus "ultrapassamentos".
Preocupados com as contradições que emergem dos
textos de Nietzsche, Jaspers, Kaufmann e Granier propõem
três maneiras distintas de lidar com elas. Para Jaspers, uma
vez que quer chegar à "dialética real", elas são necessárias;
para Kaufmann, já que espera entender os "processos de pen-
samento", elas acabam por dissolver-se; para Granier, porque
pretende apreender a dinâmica dos "ultrapassamentos", elas
se tornam compreensíveis.
Ora, experimentalismo e perspectivismo têm ligação
estreita. Ao fazer experimentos com o pensar, Nietzsche per-
segue uma ideia a partir de vários ângulos de visão, aborda
um tema assumindo diversos pontos de vista, enfim, reflete
sobre uma problemática adotando diferentes perspectivas. Nes-
sa medida, as contradições que o confronto com os textos
traz à tona são necessárias, tornam-se compreensíveis e aca-
bam por dissolver-se. São necessárias, não por terem sido
colocadas por uma "dialética real", como quer Jaspers, mas
por emergirem da diversidade de ângulos de visão assumidos
na abordagem da mesma questão; tornam-se compreensíveis,
não por corresponderem a momentos que seriam em seguida
"ultrapassados", como pretende Granier, mas por surgirem
da pluralidade de pontos de vista tomados no tratamento do
mesmo tema; acabam por dissolver-se, não por se apresenta-
rem enquanto etapas preparatórias que levariam a posições
finais, como esperaKaufmann, mas por brotarem da multipli-
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 43
cidade de perspectivas adotadas na reflexão sobre a mesma
problemática.
Quando se trata de examinar as eventuais incoerên-
cias do autor de Zaratustra, as contradições eventuais de seu
pensamento, Múller-Lauter é taxativo: o que se coloca sob
nossos olhos é uma filosofia que vive de seus próprios confli-
tos. "A filosofia de Nietzsche vive de suas tensões imanen-
tes", assegura. "Somente delas se obtém a unidade de sua
obra".68 E esta é talvez a principal razão pela qual ele tem de
permanecer inconcluso, não pode almejar um termo de chega-
da para suas investigações. De fato, não é mais um sistema
filosófico o que propõe. O que faz é criar outra forma de con-
ceber a filosofia, outro modo de filosofar. Pondo em prática
sua "psicologia do desmascaramento", questiona preconcei-
tos, combate pré-juízos, denuncia convicções. Suas conside-
rações, audaciosas, ousadas, irreverentes, são por isso mes-
mo extemporâneas. Distanciando-se de Foucault, que toma o
filósofo como sua caixa de ferramentas, Múller-Lauter talvez
então dissesse que ele é antes de tudo um instrumento de
trabalho para si mesmo.
Mas, em seu ensaio A doutrina da vontade de poder
em Nietzsche, é sobretudo com Heidegger que Múller-Lauter
se propõe a discutir.69 Se com Foucault ele não chega a dialo-
68. "O Desafio Nietzsche", loc. c/f., p. 13.
69. É fato que deixa clara sua intenção, na primeira nota ao
texto, de nele levar em conta principalmente as obje-
ções que Weischedel ("A vontade e as vontades. Para
a discussão de Wolfgang Múller-Lauter com Martin Hei-
degger". InZeitschriftfurphilosophische Forschung27/'\,
1973, p. 71-6) e Kôster ("A problemática da interpreta-
ção científica de Nietzsche. Reflexões críticas a respei-
to do livro de Wolfgang Múller-Lauter sobre Nietzsche".
44 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
gar intensamente, com Heidegger se defronta várias e repeti-
das vezes.70 Em seu artigo "O desafio Nietzsche", constata
com razão que, "a despeito de seus aspectos discutíveis, a
interpretação heideggeriana de Nietzsche exerceu capital in-
fluência, que ainda perdura, não só sobre as leituras de Nietzsche
na Alemanha, mas também na França e nos Estados Unidos".71
In Nietzsche-Studien (2), 1973, p. 31-60) fizeram a seu
livro Nietzsche, Sua filosofia dos antagonismos e os an-
tagonismos de sua filosofia (Nietzsche. Seine Philoso-
phie der Gegensãtze und die Gegensàtze seiner Philo-
sophie, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1971). Contu-
do, as primeiras linhas do ensaio revelam que seu inter-
locutor privilegiado, embora oculto, é Heidegger.
70. Em seu livro Nietzsche — Sua filosofia dos antagonis-
mos e os antagonismos de sua filosofia, publicado em
1971, já apresenta refutação filosófica decisiva da inter-
pretação que Heidegger faz do pensamento nietzschi-
niano.
71. Loc. c/f., p. 9. O interesse particular, que Múller-Lauter
demonstra pela interpretação heideggeriana de Nietzsche,
ao contrapor-se a ela de maneira determinada e decidi-
da, torna-se ainda mais compreensível, se se levar em
conta a sua formação. Nas palavras de Oswaldo Gia-
coia Júnior: "Membro de uma geração de intelectuais
cuja formação transcorreu sob marcante influência de
filósofos como Martin Heidegger e Karl Jaspers, assim
como sob o impacto avassalador das consequências da
Segunda Grande Guerra, Múller-Lauter fez também par-
te do grupo dos jovens académicos que assumiu como
própria a tarefa de soerguer dos escombros aquilo que
restara do património universitário e do legado espiri-
tual da tradição alemã. Data, pois, de muito cedo sua
ocupação reflexiva com a obra de M. Heidegger, bem
como seu envolvimento — de início marcado por certa
disposição negativa — para com a filosofia de Nietzsche,
que — como é sabido — foi apropriada e deformada,
malgrado seu, para fins de propaganda e mistificação
ideológica nacional socialista".
A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO 45
No entender de Heidegger, a metafísica, não se colo-
cando a pergunta pelo Ser, encerra-se nos parâmetros exclu-
sivos do ser do ente.72 É nesse espaço que Nietzsche desen-
volve a reflexão filosófica. Seu pensamento apresenta cinco
termos fundamentais: a vontade de potência, o niilismo, o eter-
no retorno do mesmo, o além-do-homem e a justiça; através
de cada um deles, a metafísica revela-se sob certo aspecto,
numa relação determinada. A vontade de potência designa o
ser do ente enquanto tal, sua essência; o niilismo diz respeito
à história da verdade do ente assim determinado; o eterno
retorno do mesmo exprime a maneira pela qual o ente é em
totalidade, sua existência; o além-do-homem caracteriza a hu-
manidade requerida por essa totalidade; a justiça constitui a
essência da verdade do ente enquanto vontade de potência. A
partir daí, Heidegger empenha-se em mostrar de que modo o
pensamento nietzschiano fica enredado nas teias da metafísi-
ca. Procurando impor a própria reflexão como um movimento
antimetaf ísico, Nietzsche opera tão-somente a inversão do pla-
tonismo, pois "a inversão de uma proposição metafísica per-
manece uma proposição metafísica".73
Com a morte de Deus, o filósofo nomeia o destino
de vinte séculos da história ocidental, apreendendo-a como
o advir e o desdobrar-se do niilismo. Ao afirmar que "Deus
está morto", quer dizer que o mundo supra-sensível não tem
poder eficiente. Encarando-o como ilusório, é levado a con-
siderar verdadeiro o mundo sensível — e, nisto, segue a ins-
piração positivista da época. Ao passar do espírito para a
vida, pensa a metafísica até as últimas consequências, sem
72. Cf., entre vários outros textos, Kant und das Problem
der Meiaphysik, onde se lê: "a metafísica é o conheci-
mento fundamental do ente enquanto tal e em totalidade".
73. Cf. Sobre o humanismo, traduzido do alemão por Emma-
nuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1967, p. 47-8.
46 A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE
conseguir, porém, romper com ela.74 Sem chegar a desmon-
tar a estrutura fundamental do ente enquanto tal, a filosofia
nietzschiana continuaria a desenvolver-se no horizonte do "es-
quecimento do Ser".
Muller-Lauter poderia muito bem pôr-se de acordo com
Heidegger quanto a incluir Nietzsche na história da metafísica.
E com ele poderia também concordar quanto à necessidade de
outro começo para o pensar. Contudo, Heidegger julga que a
reflexão nietzschiana constitui o momento de completude da
metafísica ocidental, uma vez que, ao inverter o platonismo, a
ela propiciou esgotar suas possibilidades essenciais. E Muller-
Lauter entende que a empresa de Nietzsche consiste justa-
mente em proceder à destruição da metafísica a partir dela
mesma. Se, por vezes, o filósofo assume ares de metafísico,
(ao pensar, por exemplo, o eterno retorno como a suprema
aproximação entre o vir-a-ser e o ser75}, por trás das aparên-
cias que inventa para si a cada momento, leva a metafísica a
desmoronar, porque não se detém em momento algum em
suas investigações. "A significação completa desse aconteci-
mento", conclui Muller-Lauter, "só poderia ser adequadamen-
te interpretada no quadro de uma extensa discussão em que a
metafísica fosse problematizada na multiplicidade de suas
74. Heidegger conclui: "Enquanto simples inversão da me-
tafísica, o antimovimento de Nietzsche contra ela cai
irremediavelmente nas suas ciladas — e de tal forma
que a metafísica, divorciando-se de sua natureza pró-
pria, não pode mais, enquanto metafísica, pensar a pró-
pria essência" ("Nietzsche's Wort 'Gott ist tot'". In Holz-
wege, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2- ed.,
1952, p. 200).
75. Cf. o fragmento póstumo 7 (54) do final de 1886/ prima-
vera de 1887, onde se lê: "Que rudo retome é a mais
extrema aproximação de um mundo do vir-a-ser com o
do ser".
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camadas".76 Ora,

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