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JUVENTUDES e n t r e A & Z PORTO ALEGRE 2020 Mauricio Perondi Gislei D. R. Lazzarotto Tanise Baptista de Medeiros Wesley Ferreira de Carvalho (Organizadores) Copyright © Editora CirKula LTDA, 2020. 1° edição - 2020 Organizadores da Obra: Mauricio Perondi, Gislei D. R. Lazzarotto Tanise Baptista de Medeiros e Wesley Ferreira de Carvalho Edição, Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles Revisão: Mauro Meirelles Capa: Luciana Hoppe Tiragem: 500 exemplares para distribuição on-line Editora CirKula Av. Osvaldo Aranha, 522 - Loja 1 - Bomfim Porto Alegre - RS - CEP: 90035-190 e-mail: editora@cirkula.com.br Loja Virtual: www.livrariacirkula.com.br CONSELHO EDITORIAL Mauro Meirelles Jussara Reis Prá José Rogério Lopes César Alessandro Sagrillo Figueiredo CONSELHO CIENTÍFICO Alejandro Frigerio (Argentina) André Luiz da Silva (Brasil) Antonio David Cattani (Brasil) Arnaud Sales (Canadá) Cíntia Inês Boll (Brasil) Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) Dominique Maingueneau (França) Estela Maris Giordani (Brasil) Hermógenes Saviani Filho (Brasil) Hilario Wynarczyk (Argentina) Jaqueline Moll (Brasil) José Rogério Lopes (Brasil) Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) Leandro Raizer (Brasil) Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) Lygia Costa (Brasil) Maria Regina Momesso (Brasil) Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) Mauro Meirelles (Brasil) Simone L. Sperhacke (Brasil) Silvio Roberto Taffarel (Brasil) Stefania Capone (França) Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) Wrana Panizzi (Brasil) Zilá Bernd (Brasil) O que é O CIeSS? ApreSentAçãO 18 AnOS AbAndOnO eSCOlAr ACOlhImentO InStItuCIOnAl I ACOlhImentO InStItuCIOnAl II AdOleSCer AlegrIA AlertA AmIgA AmOrA brAnquItude I (um InCômOdO) brAnquItude II - prátICAS AntIrrACIStAS CAnetA CentrO dA Juventude (CJ) CIberCulturA COnflItO COm A leI COrpO COrre COtAS Su m á r io 13 15 21 25 30 34 38 42 46 50 52 55 59 63 67 72 76 80 84 87 COtAS-rupturA COvId-19 COzInhAr CuIdAdO CulturAS JuvenIS defenSOrIA defICIênCIA denúnCIA dIreItOS humAnOS drOgA eduCAçãO - eSCOlArIzAçãO eduCAçãO de JOvenS e AdultOS – eJA eduCAçãO SOCIAl eduCAdOrA(Or) SOCIAl embOlAmentO enSInO médIO eSCutA eSqueCer eStAtutO dA Juventude etnIA 93 97 102 108 112 116 118 122 124 128 132 136 140 146 153 157 162 164 168 172 experImentAr fAmílIA femInISmO femInISmO negrO flOr frAu (COm) frAu funk futurO gArAntIA de dIreItOS gênerO tem nOme? gênerO genOCídIO gerAçãO hOmOSSexuAlIdAde hOrárIO ImAgem InfeCçõeS SexuAlmente trAnSmISSíveIS JuStIçA reStAurAtIvA JuStIçA JuvenIl 177 180 185 188 194 198 201 203 207 211 215 218 222 226 231 234 238 241 244 248 JuvenICídIO JuventudeS Juventude IndígenA Juventude pArA CrIAnçAS kIt lAdAIA lIberdAde mAIOrIdAde penAl mArIelle mASCulInIdAdeS I mASCulInIdAdeS II mAternAr medIdA SOCIOeduCAtIvA memeS merItOCrACIA e enSInO SuperIOr mImImI mOrte(S) mOvImentOS nAmOrAr I nAmOrAr II 252 255 260 263 267 270 273 278 282 287 290 295 299 303 307 309 313 317 321 326 nASk negrItude OCupAr OfICInAS SOCIeduCAtIvAS pArAISópOlIS pAternIdAde pretA perfOrmAtIvIdAde pOder pOetIzAr prOfISSIOnAlIzAçãO prOJetO de vIdA queer quIlOmbO rAçA rACIAlIzAr reCOrtAr-Se reSIStIr ruA rurAlIdAdeS SAúde mentAl 330 333 336 337 340 344 347 350 353 355 359 365 368 372 376 381 385 388 393 396 SexuAlIdAde SlAm SOCIAl SOrA/SOr teStemunhO trAbAlhAr trAbAlhO trAnSgenerIdAdeS unIverSIdAde vIOlênCIA COntrA mulhereS vIdA vOz WhAtSApp x dA queStãO YuppIe zOeIrA 400 405 409 410 413 417 421 426 431 435 440 443 448 453 457 460 Juventudes: entre A & Z 13 O Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioe- ducação (CIESS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é um órgão Auxiliar da Faculdade de Educação que visa a promoção e a realização de ações de ensino, pesquisa e extensão em educação social e socioeducação. Suas ações buscam a promoção da formação acadê- mica; a execução de medidas socioeducativas; a concepção de pesquisas e produção de conhecimento; as atividades de educação permanente para estudantes, professores/as e ou- tros/as profissionais; a realização de protocolos de coopera- ção, convênios e intercâmbio acadêmico, técnico e científico com instituições congêneres nacionais e internacionais. O CIESS é aberto às participações de docentes, discen- tes e técnicos/as que tenham interesse em desenvolver pes- quisas, programas e ações educativas nas áreas de Educação Social, Educação em Direitos Humanos e Socioeducação. Também é um espaço aberto a parcerias e a participação de outras unidades da UFRGS, de outras universidades e insti- tuições realizadoras de projetos nas áreas abrangidas. O trabalho do CIESS é orientado pelo agir em rede, desenvolvendo atividades em articulação com centros de juventude, coletivos de educadores/as sociais, grupos ju- venis, movimentos sociais, trabalhadores/as da socioedu- cação e redes de políticas públicas. Acreditamos que esta forma articulada possibilita melhores resultados e maior conexão entre saberes e práticas. Um exemplo é a produ- ção desse livro, que foi elaborado através dessas redes, co- nectando, jovens, educadores/as, pesquisadores/as, comu- nidades e as políticas públicas. O que é o CIESS? Juventudes: entre A & Z 14 ContAto Av. Paulo Gama, s/nº Prédio 12201 CEP 90046-900 Porto Alegre RS Brasil E-mail: ciess@ufrgs.br Equipe do CIESS 2020 CoordenAdorAs/es de Projetos AlIne CunhA gIAnCArlA brunettO kArIne SAntOS mAgdA OlIveIrA mArIA dO CArmO mAuríCIO perOndI OrIAnA hAdler WAgner mAChAdO ColAborAdorAs/es AnA ClAudIA gOdInhO Alex vIdAl brunA rOSSI kOerICh CAmIlA bArbIerI ChIApettI CArmem m. CrAIdY gISleI d. r. lAzzArOttO bolsistAs AdrIene mACIel AnnA luIzA OlIveIrA gAbrIelA CAStrO de AzevedO JéSSICA SOuzA ketlIn AgASSIS lAYS Ieglle lAurA beCker mArIélI lApInSkI mOnIque pAdIlhA henrIque luIS engel mAtheuS CIrInO tAnISe medeIrOS thAYná rAmOS vAnderSOn SOAreS vItórIA lOpez Juventudes: entre A & Z 15 A de abandono, alegria, acolhimento, amiga, alerta, amora, alguns dos termos que iniciam nosso vocabulário para contar experiências com jovens a partir do trabalho rea- lizado pelo Centro Interdisciplinar de Educação Social e So- cioeducação (CIESS), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contemplamos todos os “as” que a experiên- cia juvenil produz? Não, ao contrário, trata-se do início de um movimento de pensar com as infinitas possibilidades de sentido que as experiências compartilhadas com jovens pro- duzem. Assim, nesta publicação, abordamos a experiência de uma universidade com jovens e com uma rede de rela- ções que trabalham com políticas públicas e juventudes: jo- vens universitários/as; jovens de diferentes comunidades de Porto Alegre; equipes de serviços de atendimento público à infância e juventude em assistência social, educação, cultu- ra, direitos humanos, saúde; pesquisadores/as. O contexto das escritas contorna experiências de algu- mas cidades brasileiras, mas há uma centralidade nas pro- Apresentação [Juventudes e letras: a proposta pluriversa de escrever com jovens] Gislei D. R. Lazzarotto Pesquisadora colaboradora no Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioeducação - CIESS da Faculdade de Educação/UFRGS. Maurício Perondi Professor da Faculdade de Educação/UFRGS, Área de Educação Social/Departamento de Estudos Especializados, membro do Observatório da Socioeducação CIESS/UFRGS, membro do PPSC/ CIESS/UFRGS. E-mail: mauricioperondirs@gmail.com Juventudes: entre A & Z 16 duções realizadas com a rede de trabalho de Porto Alegre. Entretanto, pensamos que as situações narradas podem dialogar com as experiências de diferentes locais de outros locais do Brasil e até mesmo da América Latina, pois exis- tem muitos aspectos que transversalizam a territorialidade deonde estamos inseridos. A partir de um mundo digital que cada vez mais nos conecta, as distâncias são cada vez menores e o conhecimento produzido localmente pode se articular com experiências e sentidos de outros espaços. A ideia de propor um vocabulário “entre A e Z” acolhe o sentido múltiplo e diverso que ultrapassa as letras do alfa- beto e o saber acadêmico instituído, compondo uma publi- cação que dialoga com diferentes formas de expressão que toma forma através da escritura. Esta forma de organização do livro tem como inspiração a obra “Medidas Socioedu- cativas: Entre A&Z” (Disponível em: https://lume.ufrgs.br/ handle/10183/115265), publicado em 2013 pelo Programa de Prestação de Serviços à comunidade (PPSC), que hoje in- tegra o CIESS. Seguimos abordando a socioeducação, mas agora ampliamos nossa lente para/com as juventudes que encontramos na experiência com a rede de nosso trabalho de ensino, pesquisa e extensão. Assim, a temática “juventu- des” é guiada pelo fio das políticas públicas, pois é através delas que chegamos a esses e essas jovens e eles e elas a nós. Por que juventudes? Porque nas últimas duas décadas a conceituação e a tematização sobre a pessoa jovem mudaram significativa- mente. Deixamos de abordar a juventude no singular para expressá-la através do plural “juventudes”. Isso se deve ao fato de que não temos uma juventude universal, pois jovens de diferentes lugares, contextos e situações vivenciam essa fase da vida de maneira diferenciada. Por isso, a análise de classe, gênero, raça/etnia, nível de escolaridade, localização territorial, acesso às políticas públicas, são fundamentais Juventudes: entre A & Z 17 para compreendermos as trajetórias e vivências de diferen- tes sujeitos jovens. Vários motivos tem sido destacados para enfatizar o porquê de os/as jovens estarem mais em pauta do que em outros momentos históricos, entre os quais se destacam: o maior número de jovens da história do país (mais de 51 mi- lhões de pessoas); o surgimento de uma cultura especifica- mente juvenil que, geralmente é desconhecida dos adultos; o aumento dos fenômenos de violência social que repercu- tem na vida dos/as jovens; o mundo da cibercultura e as pes- soas jovens sendo identificadas como nativas digitais, com vivências e práticas muito diferentes de outras gerações; os novos desafios pedagógicos decorrentes de todos os aspec- tos anteriores. A prática juntos aos diversos projetos com jovens tem apontado outro fenômeno que não podemos ig- norar na atualidade, a questão da saúde mental. Temos pre- senciado e acompanhado diferentes situações de crises de ansiedade, automutilação, depressão e até suicídio juvenil; manifestações de sofrimento psíquico que nos levam a pro- blematizar os modos de viver de nosso tempo e de como acolhemos essas demandas. No contexto brasileiro é preciso considerar que as ex- periências juvenis enunciam consequências da desigualda- de social vivida no país, tais como: mais de metade da popu- lação com até 25 anos não concluiu o Ensino Médio, grande parte da população jovem não acessa os serviços básicos de saúde, o desemprego atingiu o recorde histórico para esta faixa etária em 2019, a maior taxa de mortalidade por ho- micídio no país é referente a jovens pobres e negros. Esses dados sinalizam a premência de políticas públicas voltadas para jovens e desenvolvidas juntamente com eles e elas para o enfrentamento das dificuldades deste momento his- tórico. Cabe destacar que esta necessidade se articula a cada vez maior participação de jovens em diversos movimentos Juventudes: entre A & Z 18 que mobilizam a agenda social de demandas vinculadas a afirmação da negritude, dos direitos sexuais e de gênero, do exercício da vida na cidade para todos/as. Na articulação entre estudos, políticas públicas e mo- vimentos sociais, se faz necessário ampliar a visibilidade das criações com e das juventudes. Nessa direção este vocabu- lário buscou a participação direta de jovens integrantes de projetos em que estamos em rede, acolhendo a multiplici- dade de sentidos com termos conceituais e com as expres- sões do cotidiano juvenil, numa perspectiva educativa que conversa com os diferentes modos de produzir saberes. Esta conversa diz respeito à forma como orientamos nossa inter- venção com educadoras e educadores em diferentes áreas de atuação: “fazer com jovens”. A proposta foi exatamente a de promover uma escrita em que conceitos, teorias e sabe- res das experiências cotidianas conversassem a partir de um vocabulário diverso, tanto na composição de sua autoria, como na poética da escrita. Ao iniciarmos o projeto desta publicação, definimos as modalidades de textos, o número de autores/as para cada termo, o tamanho e formatação do verbete. Entretanto, no decorrer da organização apareceram outras possibilidades buscando a singular expressão do que o convite a escrever gerava. E o que gerava: vontade de usar as próprias palavras e definições produzidas com jovens; criação conjunta entre profissionais de diferente áreas e jovens, em que se afirma- va a autoria coletiva com três, quatro, cinco, dez autores/as; textos que tomavam forma de poesia, carta, conversas de whatsapp. O movimento de organizar essas expressões di- versas nos levou a compor com essa multiplicidade de op- ções, afirmando a escuta de diferentes vozes e a abertura ao diálogo entre a ciência e a cultura, a escritura e a vida co- tidiana. Imaginamos jovens, pesquisadores/as, educadores/ as, professores/as, mães, pais, lendo este livro, encontrando Juventudes: entre A & Z 19 e desencontrando suas vozes, buscando conversar e incluir seus verbetes ao serem provocados/as pelo que estas mais de cento e cinquenta pessoas escreveram compondo em 114 verbetes. Assim, “Juventudes: entre A&Z” oferece aos espaços educativos uma caixa de palavras, palavras que contém conceitos, perturbações, teorias, injustiças, alegrias, dores, opressões, lutas, incertezas e orientações. São pistas para provocar a conversa e o exercício ético de como é viver a juventude e de como acompanhamos esse tornar-se jovem. Nesse movimento encontramos a dimensão que Paulo Frei- re nos ensina, de que conhecer é uma ação que implica um exercício de liberdade com o que se vive. Uma forma de pro- duzir conhecimento que convoca a leitora e o leitor a dialo- gar com diferentes saberes e exercitar sua própria composi- ção, exercitando sua posição ética. Por fim e início compartilhamos que ao recebermos muitos dos verbetes para nossa leitura e análise, fomos inva- didas e invadidos pela mudez. Afetos que não tem nomea- ção em palavra, mas sim a grandeza do sentido que pousa no coração apertado, nos olhos marejados, na pele arrepia- da. Ao mesmo tempo, foi a palavra que nos possibilitou ali chegar e experimentar as expressões em letras com os jo- vens e as jovens que viemos a conhecer através da extensão acadêmica. Essa é nossa aposta: parar, escutar, conversar, escrever e compartilhar, sermos um pouco deste nós que afirma o desejo de vida com juventudes que são oprimidas e mortas, que gritam e transformam, exercitando a liberdade de aprender para construir um outro horizonte. Este é o primeiro livro da “Coleção Juventudes”, inte- grante do Selo CIESS/UFRGS, a partir da qual outras produ- ções sobre adolescentes e juventudes serão lançadas futu- ramente. Além disso, outras coleções serão criadas a partir de temas abordados no CIESS, tais como, Educação Social, Juventudes: entre A & Z 20 Socioeducação, Práticas Educativas. Você está convidado/a a nos acompanhar nessas produções, leituras e ampliação de olhares. Os direitos de publicação desta escrita estão reservados para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pois a obra foi produzida a partir dos projetos desenvolvidos na univer- sidade. Esta versão digital do livro estará disponível gratuita- mente a todos/as que quiserem dialogar com o coletivo que deu forma a este livro, aumentandoo tamanho de nossa caixa de palavras ao conversar com outras experiências. Agradecemos a Universidade Pública, em específico a Universidade Federal do Rio Grande do Sul por apostar e investir recursos neste projeto, a toda a equipe do CIESS, pelo empenho e envolvimento na produção do livro, as au- toras e aos autores que compartilharam suas experiências, conhecimentos e afetos na criação dos verbetes, a você, que está nos lendo e compondo este fazer educativo para uma sociedade que valorize ainda mais as expressões e as parti- cipações juvenis. Juventudes: entre A & Z 21 O que pode um jovem aos 18 anos? O Código Civil estabe- lece o que significa a maioridade para todas brasileiras e to- dos brasileiros: “a menoridade cessa aos dezoito anos com- pletos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil” (BRASIL, 2002). Entende-se, então, que existem situações permitidas e proibidas, de acordo com a idade. O aviso +18 significa que determinado conteúdo não é recomendado para menores de 18 anos. Ou seja, atingir a maioridade é, judicial e socialmente, um marco importante. Laura, um dia após completar 18, se matriculou em um Cen- tro de Formação de Condutores – CFC. Estava ansiosa em poder dirigir e entrar em festas sem autorização, por escrito, de seus pais. Para Magnum, atingir 18 anos tem outro sig- nificado. Recebeu uma carta (um ofício, para dizer melhor) dias depois de seu aniversário, que anunciava “motivo de desligamento: alcançou a maioridade”. Para ele e para ou- tras e outros jovens que vivem em serviços de acolhimento 18 anos Amanda Cappellari Psicóloga (UNISC), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: amanda.cappellari@gmail.com Lílian Rodrigues da Cruz Psicóloga, Pós-Doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Doutora em Psicologia (PUCRS), docente do Instituto de Psicologia – Departamento de Psicologia Social e Institucional – e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucio- nal (UFRGS). E-mail: lilian.rodrigues.cruz@gmail.com Juventudes: entre A & Z 22 (abrigos ou casa-lar), ser “de maior” implica em ter que sair da instituição. Ao se tornar habilitado à prática de todos os atos da vida civil, também é exigido de Magnum, que mora em serviço de acolhimento desde os 11 anos, que tenha au- tonomia e responsabilidade para “tocar sua vida sozinho”. Ele não terminou o Ensino Médio, não aprendeu a cozinhar, nunca precisou acordar com o despertador porque alguém o chamava para ir para a escola. Foi jovem aprendiz e conse- guiu guardar algum dinheiro para quando saísse da institui- ção de acolhimento, no entanto, nunca precisou ir ao mer- cado ou farmácia, não sabe quanto dinheiro irá gastar. Ele precisa de um lugar para morar, mas como poderá pagar o aluguel sem ter um emprego? “Não posso voltar para a casa do meu pai, tia”. A maioridade de Laura e de Magnum estão atravessadas por experiências singulares, os movimentos possíveis a partir de seus aniversários são outros. Completar 18 anos morando em uma instituição de acolhimento é um acontecimento que convoca jovens a habitar outros lugares – simbólicos e concretos. Mesmo que se saiba que aos 18 anos se deve sair do acolhimento institucional, a chegada da carta que anuncia o desligamento provoca surpresas e an- gústias: quanto tempo posso morar aqui? Devo fazer contato com algum familiar? Quanto gastar com aluguel? Tenho como pagar aluguel? Preciso tentar uma vaga em República? Quem pode me ajudar? O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) orienta que os serviços de acolhimento institucional fomentem preparação gradativa para o desligamento, no entanto, esse processo, que deveria ser investido por varia- dos serviços que compõe a rede de proteção de crianças e jovens, ainda é frágil. Este momento delicado, para que não figure como ruptura ou violência, deve ser antecedido por movimentos de alargamento das relações sociais, criação de novos vínculos, facilitação de acesso aos espaços comunitá- rios, culturais e artísticos dos territórios, costurando outros Juventudes: entre A & Z 23 laços sociais. Para algumas e alguns, sair da instituição ao completar 18 anos não é uma possibilidade, principalmente quando possuem necessidades especiais. Nesses casos, re- correm judicialmente ao direito de proteção, conseguindo permanecer sob tutela do Estado até 21 anos. Há possibi- lidade, ainda, de acolhimento social em Repúblicas, desti- nadas a “proteção, apoio e moradia subsidiada a cidadãos entre 18 e 59 anos, em estado de abandono, situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social” (TEIXEIRA, 2014, s. p.). Esse alargamento de tempo possibilita que jovens se for- taleçam para a construção de vida fora de instituições. Cabe, ainda, pensarmos nas diferentes nomenclaturas usadas no cotidiano para dizer desse processo: desligamento, desaco- lhimento, desabrigamento. Desunir1. Repelir2. Tirar o abrigo3. Como construir um percurso de desligamento institucional, em conjunto com as e os jovens, que seja potente e prolifere vida? Como fazer com que seja isto, um percurso, e não uma ação pontual que signifique perda de abrigo, reiteração de abandono? Judith Butler (2018) ressalta que ali, onde a vida não tem chances de florescer, é que devemos investir nossos esforços. Então, contrariando as nomenclaturas costumeira- mente usadas, que o desligamento institucional por maiori- dade possa estar encharcado de acolhimento. Referências BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. 1 Desligar. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/desligar. 2 Desacolher. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/desacolher. 3 Desabrigar. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/ desabrigar. Juventudes: entre A & Z 24 BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. TEIXEIRA, S. República completa um ano de acolhimen- to social. Prefeitura de Porto Alegre, 2014. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_no- ticia=172462&REPUBLICA+COMPLETA+UM+ANO+DE+A- COLHIMENTO+SOCIAL . Acesso em: 30 nov. 2019. Juventudes: entre A & Z 25 A concepção de abandono escolar proposta neste verbe- te fundamenta-se no conhecimento expresso na ordem do experimentado por adolescentes, situados em um con- texto de sala de aula, em um espaço de privação de liber- dade, a partir de uma escola inserida em uma unidade de internação socioeducativa. O conhecimento prático desses adolescentes pode ser percebido como um fenômeno cog- nitivo, relacionado ao pertencimento social, às implicações afetivas e normativas, às interiorizações das experiências, das práticas, dos modelos de conduta e de pensamento, socialmente inculcados ou transmitidos pela comunicação social que aí estão ligados (JODELET, 1993). Esta análise re- sulta de um recorte de dados da pesquisa de mestrado de Bastos (2019), que investigou os fenômenos representativos de adolescentes privados de liberdade em relação às aulas de língua materna, escolarização e abandono escolar. Con- sideramos que lugar e o modo de saber desses jovens, ou seja, de onde sabem e como sabem o que expressam, se configura na ação social (HALL, 1997), pois o significado não está na ação por si mesma, mas em relação aos múltiplos Abandono Escolar Sabrina Cecília Moraes Bastos Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística Apli- cada da Unisinos. E-mail: scmbastos@gmail.com Cátia de Azevedo Fronza Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Linguísti- ca Aplicada da Unisinos. E-mail: catiafronza@gmail.comJuventudes: entre A & Z 26 sistemas de significados que as pessoas utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regu- lar sua conduta uns em relação aos outros. Assim, identifi- camos em Bastos (2019) três fatores que favorecem o aban- dono escolar: o envolvimento com o tráfico, a modalidade das relações interpessoais numa adolescência vinculada ao território de vulnerabilidade social e violência e o fracasso escolar, materializado em sucessivas reprovações. Para José e Lucas, dois dos adolescentes que participaram da pesqui- sa de Bastos (2019), o envolvimento com o tráfico, de modo geral com a “criminalidade”, foi determinante para que aban- donassem a escola. Em vista de seu comprometimento com facções criminosas, corriam risco de serem alvejados pelas facções inimigas no percurso da escola, ou na própria esco- la, já que esta pode ser tomada pelas facções como um lu- gar onde o adolescente poderia ser facilmente encontrado. Conforme disse José, “Nossos contra que o cara tem né, dona? O cara tá dando mole no colégio e vem o cara armado e pega o cara de mochilinha”. Lucas apresenta relato semelhante: “Quando eu ia pra escola um dia os cara que são meu contra iam lá pra me pegá. Eles sabiam onde eu estudava, se eu fos- se pro colégio eles iam me pegá lá”. Há também o fato de os adolescentes se envolverem com outros jovens atuantes no ponto de tráfico. De acordo com João, “Nem sei... porque eu via os guri ali na frente na biquera e eu ficava na volta, aí me envolvi com os guris dali e parei de estudá”. Da mesma forma que João, Lucas disse: “Impedia porque eu ficava com os guris na boca, né, dona?”. Os argumentos de João e Lucas para o abandono escolar demonstram uma outra modalidade das relações interpessoais na adolescência, cujas preocupações e interesses partem dos companheiros, condicionando ne- cessidades afetivas e condutas de grupo e afastamento da escola. Essas relações contribuem para determinar necessi- dades e tendências afetivas da personalidade, assim como Juventudes: entre A & Z 27 podem ser uma motivação para parar de estudar. Portanto, é na dimensão das relações interpessoais que os adolescentes se envolvem com o tráfico, com o consumo de drogas e com outros jovens que compartilham dos mesmos interesses, em uma relação intersubjetiva (LAGO, MOZER e VALDEZ, 2015, p. 227). Estes elementos estão associados ao fracasso esco- lar e à sensação de não pertencimento às relações escolares. Tiago assim diz: “Eu saí da escola, não por causa do crime. Eu saí mesmo, porque eu ia e nunca aprendia nada. Nunca saía da mesma série, eu via aquelas criancinhas, me sentia mal, vinha, estudava cada vez mais criança pequenininha; eu larguei da escola, e como eu larguei da escola, o cara vai se envolvendo na rua”. Da mesma forma, comenta André: “eu parei de estu- dá, porque eu não saía mais do quinto ano. Rodei três vezes no quinto ano”. Mateus foi alfabetizado em uma de suas passa- gens na instituição de atendimento socioeducativo. Em uma nova passagem, já no sexto ano, apresentava diversas lacu- nas de aprendizagem e grandes dificuldades nas práticas de leitura e escrita, não tinha fluência em leitura nem em escrita e já estava com 16 anos de idade. “Eu parei de estudá, né, dona? Desde os dez ano. Aí, no caso, eu não tava aprendendo nada, nada, aí eu, bah! Mas, na real, a escola não é pra mim, vô soltá de vez e soltei e entrei pra vida do crime”. “[...] Já andava no meio da vagabundagem, já ficava com os cupinxa na esqui- na, aí cada cara já falava pro outro: O cupinxa tá estudando, o cupinxa tá de loco! Quando vê o cara pah, na real, nem vai estudá mais... já era, larguei o estudo. Aí, quando caí na inter- nação, vi que o bagulho não era assim, não sabia nem lê nem escreve, fui aprendê, né?... aí foi que gostei de português, mate- mática, várias eu gosto agora”. Há um processo de negligên- cia conjunto, que se inicia na família e na escola, passando pelas políticas públicas de proteção juvenil, pois não propor- cionaram a estrutura necessária para que esse adolescente tivesse o adequado desenvolvimento na infância. Mateus, Juventudes: entre A & Z 28 ao afirmar que, “na real, a escola não é pra mim”, ratifica o fato de não estar aprendendo nada, por também considerar que a experiência escolar não pertence a ele. Entretanto, quan- do conseguiu aprender, em outro espaço escolar, passou a gostar de disciplinas. O cotidiano de vulnerabilidade social favorece a exposição da juventude à violência, pois se confi- gura por meio de carências de ordem educacional e cultural, que contribuem com o agravamento dos problemas que a juventude enfrenta na atualidade. A falta de alternativas de lazer e de ambientes escolares incentivadores são exemplos de fatores que contribuem para o desenvolvimento dessa carência (GADEA et Al., 2017, p. 268). Portanto, o abandono escolar de adolescentes não pode ser percebido por meio de relações de causa e consequência, pois resulta de uma multiplicidade de significados e sentidos que as vivências que motivaram tal abandono representam para esses jovens em seus mundos de vida. Referências BASTOS, S. C. M. “Na escola, o cara tinha que ficá quieto, olhando pro quadro e escrevendo. na rua, eu fazia o que eu queria”: fenômenos representativos de adolescentes em conflito com a lei sobre as Aulas de Língua Materna, Escolarização e Abandono Escolar, Brasil. [Dissertação de Mestrado]. São Leopoldo: Unisinos, 2019. GADEA, C. A. et Al. Trajetórias de jovens em situação de vul- nerabilidade social: sobre a realidade juvenil, violência inter- subjetiva e políticas para jovens em Porto Alegre – RS. So- ciologias, Ano 19, n. 45, pp. 258-299, 2017. HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, v. 2, n. 22, pp. 15-46, 1997. Juventudes: entre A & Z 29 JODELET, D. Représentations sociales: um domaine em ex- pansion. In: JODELET, D. (Org.). Les Représentations so- ciales. Paris: PUF, 1989, pp. 31-61. [Tradução: Tarso Bonillha Mazzotti. Revisão Técnica: Alda Judith Alves-Mazzotti. UFRJ – Faculdade de Educação, dez. 1993. Uso escolar, proibida a reprodução]. LAGO, M. P.; MOZZER, G.; VALDEZ, D. Universal, Singular e Ex- cluído: a construção do lugar do adolescente pobre na so- ciedade brasileira. Inter-Ação, v. 40, n. 2, pp. 213-233, 2015. Juventudes: entre A & Z 30 O que será de nós todos logo mais, se não dilatar- mos nossos corações ao infinito? (HILST, 2015). Quando recorremos aos dicionários para entender a defini- ção de acolher, encontramos significados que se referem a receber ao outro em sua casa, agasalhar, agir com hospita- lidade, oferecer abrigo... Acolher implica, necessariamente, no encontro com o outro. Aqui desejamos pensar o ato de acolher para além de sua definição conceitual, então pre- cisamos de Clarice Lispector. Em Paixão Segundo G. H., a personagem solicita “dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais” (1998, p. 24). Acolher é um pouco disso, estender a mão quando a realidade do outro dói, ser pre- sença pulsante em momentos delicados. A questão que se formula para nós é a seguinte: como acolher na realidade do acolhimento institucional? Os serviços de acolhimento ins- Acolhimento Institucional I Amanda Cappellari Psicóloga (UNISC), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: amanda.cappellari@gmail.com Lílian Rodrigues da Cruz Psicóloga, Pós-Doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Doutora em Psicologia (PUCRS), docente do Instituto de Psicologia – Departamento de Psicologia Social e Institucional – e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucio- nal (UFRGS). E-mail: lilian.rodrigues.cruz@gmail.com Juventudes: entre A & Z 31 titucional recebem crianças e jovens que nãotiveram seus direitos garantidos e precisaram ser afastados do convívio familiar. Conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), só devem ser encaminhados aos ser- viços de acolhimento institucional aqueles que já tiveram os demais recursos de cuidado e proteção esgotados, ou seja, trata-se de uma medida excepcional. Além disso, deve ser transitório, onde as equipes precisam investir no fortaleci- mento de vínculos com a família de origem ou com a família extensa. Ainda, o ECA assegura que pobreza não é motivo para acolhimento institucional. Nos cotidianos de traba- lho, contudo, observa-se que a pobreza, quando associada a outras situações, continua sendo decisiva para a medida de acolhimento. Nesse sentido, é um campo que está em permanente disputa e requer nossa atenção. O acolhimento institucional existe em quatro modalidades, de acordo com as Orientações Técnicas: serviços de acolhimento institucio- nal (CONSELHO..., 2009): - Abrigo institucional, que oferece moradia pro- visória para crianças e jovens em situação de abandono ou que suas famílias não estejam, tem- porariamente, capazes de exercer seu cuidado. O abrigo deve estar inserido na comunidade e não se distanciar em demasia da família de origem da/o acolhida/o. São atendidas crianças e jovens de 0 a 18 anos, e o número máximo de acolhidos por equipamento deve ser de 20. - Casa-lar, modalidade que se difere do abrigo, es- pecialmente, por contar com uma pessoa ou um casal que trabalha como cuidador residente, ou seja, os cuidadores “moram” na instituição. O ob- jetivo dessa modalidade é que as relações sejam mais próximas e o mais parecido possível com um ambiente familiar. Sugere-se que o número máxi- Juventudes: entre A & Z 32 mo de residentes em casa-lar seja de 10 crianças e/ ou jovens. - Famílias acolhedoras, que se responsabilizam pelo cuidado de crianças e adolescentes afastadas da família de origem, visando a reintegração fami- liar e, quando isto é impossível, encaminhadas para adoção. As famílias acolhedoras são volun- tárias, mas podem receber subsídios materiais ou financeiros para suprir as necessidades das aco- lhidas e dos acolhidos. Cada família deve acolher uma única pessoa, a não ser quando se trata de grupos de irmãos. Essa modalidade ainda é pouco difundida no Brasil. - República, pensadas especialmente para jovens em situação de desligamento institucional. Obje- tiva-se a construção de autonomia e independên- cia, para tanto, as normativas sugerem idade entre 18 e 21 anos, e número máximo de 6 jovens por equipamento. Independente da modalidade de acolhimento institucional para a qual a criança ou jovem seja encaminhado, é um pro- cesso que requer cuidado e investimento. É preciso saber acolher nos serviços de acolhimento. Se os vínculos familia- res já estavam fragilizados em função das situações de vio- lência, chegar em um novo espaço, com regras específicas e pessoas desconhecidas pode reiterar sofrimentos. Propomos, apoiadas em Safatle (2016), que haja produção de uma revo- lução na sensibilidade... que a mão desconhecida, solicitada pela personagem de Clarice Lispector, possa tocar aquela ou aquele que chega aos serviços mencionados, oferecendo cuidado, respeito e presença sensível aos que doem. Acolher, sobretudo, na realidade do acolhimento institucional. Juventudes: entre A & Z 33 Referências CONSELHO Nacional de Assistência Social (CNAS). Orienta- ções Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Brasília, 2009. HILST, H. Em frase de destaque na exposição Ocupação Hilda Hilst, no Itaú Cultural. 2015. LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. SAFATLE, V. Quando as ruas queimam: Manifesto pela Emergência. São Paulo: Editora n-1, 2016. Juventudes: entre A & Z 34 Dizem que nós temos tudo no Lar, mas a gente não tem a nossa família perto e nem a liberdade de caminhar na rua (V.S.). Essa escrita inicia com a fala da Educanda V.S., pois foi a par- tir dela que importantes reflexões sobre a vida de crianças e adolescentes em acolhimento institucional passaram a fazer parte dos meus dias. V.S é uma adolescente de 14 anos, tímida, meiga e que quase nunca fala de seus sentimentos. Lembro- -me bem do dia em que estávamos somente nós duas na sala dos adolescentes no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e ela manifestou a vontade de caminhar na rua. Eu a olhei e disse que sim, que seria possível. Ela abriu um sorriso e envergonhada disse que era somente no SCFV que ela e seus colegas em acolhimento tinham a possibilidade de sair andando pela rua, pois iam da Casa Lar para o SCFV e para escola de micro-ônibus. Assim, a conversa começou a fluir e co- meçamos falar sobre sua rotina, atividades, objetivos, quando ela disse - referindo-se a equipe da Casa Lar -: “Dizem que nós temos tudo no lar, mas a gente não tem a nossa família perto e nem a liberdade de caminhar na rua” (V.S.). Essa afirmação me pegou desprevenida, fiquei por um instante sem reação e refletindo sobre isso. Em seguida falei que a compreendia, mas que lá ela estava protegida e em segurança. No final do dia segui para casa pensando no que V.S havia dito. O acolhi- mento institucional ocorre sempre que os direitos reconheci- Acolhimento Institucional II Tatiane de Oliveira Educadora Social, Licenciada em Educação Física (Feevale) e Espe- cialista em Educação (IFSUL). E-mail: tatiolive90@gmail.com Juventudes: entre A & Z 35 dos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) fo- rem ameaçados ou violados por omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, ou por sua própria conduta. Nesse sentido, o acolhimento da criança e adolescente acontece visando sua proteção integral e bem-estar. Todavia, refletindo sobre processo de retirada do contexto familiar até o acolhimento institucional e a adapta- ção à nova rotina, observei o quanto esse movimento é vio- lento e marca as trajetórias desses sujeitos. V.S narrava a sua retirada familiar, juntamente com as demais irmãs, com uma expressão de raiva, por vezes chegava a morder os lábios ma- nifestando esse sentimento. Essa situação piorou com a sus- pensão das visitas da mãe a Casa Lar. V.S não compreendia o que motivou tal decisão e no fundo sabia que isso indicava uma possível destituição familiar e um consequente processo de adoção. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Bra- sil, 1990) em seu artigo 101, § 1º afirma que: O acolhimento institucional e o acolhimento fa- miliar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reinte- gração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. Frente a isso, entende-se que a reintegração familiar sempre será privilegiada, todavia depois de esgotadas as tentativas de trabalho com a família visando o retorno da criança e ado- lescente, essas serão colocadas em família substituta. Esse era o maior medo de V.S., pois sabia que as chances de ser ado- tada juntamente com as irmãs eram mínimas. Recordo que durante uma atividade em que os/as educandos/as deveriam escrever sobre seus sentimentos, ela escreveu sobre o sofri- mento em ser mais velha e ter que carregar sobre os ombros a responsabilidade de ser o suporte de suas irmãs. Refletindo Juventudes: entre A & Z 36 sobre suas narrativas, percebi o quanto a condição para sua existência era violenta. Certamente, em seu contexto familiar conviveu com situações violentas, todavia estava tão imer- sa nesse meio que se quer dava-se por conta das violações de seus direitos, inclusive, naturalizando-os. Contudo não se pode negar que na Casa Lar, mesmo sendo um espaço de pro- teção, há o sentimento de não se perceber pertencente a uma família e consequente violência simbólica constituinte dessa experiência. Há, ainda, os relatos onde a adolescente detalhaas “medidas” que deve cumprir em caso de indisciplina. Aliás, a palavra medida faz parte da narrativa de todas as crianças e adolescentes em acolhimento institucional que frequentam o SCFV e pode ser descrita na fala de um educando: Acho que quem ler isso (medida) pensa que é uma alguma medida de comprimento, largura, altura. Mas para mim isso significa outra coisa, pelo me- nos no abrigo que eu estou há uns oito meses. Lá já ganhei duas medidas. Medida então, significa para todos que moram no abrigo, uma palavra que deriva de punição, castigo, pelos atos incer- tos. Neste tempo em que estou lá (abrigo) ganhei duas medidas. A primeira foi quando eu inferni- zei a vida de uma educadora que estava conosco naquele dia. Fiquei uns quarenta plantões dela de medida, limpando o chão. A outra medida foi quando incomodei no quarto com outro cupin- cha, mas por bom comportamento minha medida terminou mais cedo do que eu esperava, e não de- sejo ganhar outra tão cedo (E.L. 12 ANOS). Assim, destaco que é preciso assumir e refletir que o acolhi- mento institucional mesmo sendo uma medida de proteção e garantia de direitos para crianças e adolescentes, acaba por reproduzir violências, pois a retirada do convívio familiar e comunitário, a mudança de território e o rompimento das Juventudes: entre A & Z 37 relações estabelecidas nele, a inserção em um espaço com- partilhado com demais pessoas, o ingresso em outra escola é um processo violento. Posto isso, é primordial tencionar as condições de funcionamento dessas instituições para aco- lher e adaptar essas crianças e adolescentes que se encon- tram numa condição de fragilidade. Carvalho et Al. (2015) trazem importantes considerações sobre a forma como o cuidado subjetivo se apresenta no acolhimento institucio- nal, especialmente através do trabalho do/a Educador/a Social. O estudo revela que as instituições tendem a margi- nalizar esses sujeitos; que os/as educadores/as possuem um papel fundamental em seu desenvolvimento, contudo pou- cos participam de programas de qualificação do trabalho; que os efeitos adversos do acolhimento não se encontram somente pelo fato da separação da mãe, mas também pela qualidade da instituição que acolhe. Destarte, é preciso es- tar atento para que a lógica de trabalho não acabe por pro- duzir violações de direitos. Enfim, encerra-se essa reflexão com muitos questionamentos, pois acredito que somente através da reflexão sobre a ação é que se pode mudar a rea- lidade e tornar a vida dessas crianças e adolescentes digna de ser vivida. Referências BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990. CARVALHO, C. F. et Al. Acolhimento institucional: considera- ções sobre a forma como o cuidado subjetivo se apresenta no cotidiano de trabalho dos educadores sociais. Aletheia, n. 47-48, pp. 51-63, 2015. Juventudes: entre A & Z 38 A adolescência é lembrada como uma fase da vida do ser humano em uma condição peculiar e, em especial, do de- senvolvimento. Um período constante de alterações em competências cognitivas, sociais, psíquicas e emocionais. Etapa conhecida por transitar entre as fases da vida ado- lescente. Adoles-ser. O ciclo pode ser entendido como uma fase específica do desenvolvimento, um tempo de morató- ria e de maturação do corpo. Definido e entendido, muitas vezes, pelo caos hormonal. O sujeito não é mais uma criança, tampouco um adulto. Um limbo entre as brincadeiras infan- tis, as expectativas para a vida e a realização dos ideais de in- dependência e de autonomia, considerados típicos da vida adulta. A época é evidenciada pelo período de crise e confu- são em que o sujeito se encontra com um número excessivo de possibilidades numa dinâmica própria de construção de identidade. Entre a infância e a vida adulta uma passagem, um período ou uma etapa com contornos imprecisos ou de- limitados pelo que ainda não se é, mas que pode vir a ser. As transformações, nessa perspectiva, impõem a necessidade de construir novas respostas para questões nada simples, cobrando algo de novo do sujeito que não mais reconhe- ce seu corpo, os novos interesses e seus desejos, por vezes, conflitantes. É também um tempo que fica perceptível a variação de humor, da voz, dos contornos, das curvas, das formas e volumes. Pêlos pelo corpo. O tempo do adoles-ser circunscreve uma passagem turbulenta, exigindo, simulta- Adolescer Wesley Ferreira de Carvalho Trabalha com as juventudes. Assistente Social, Mestre em Educa- ção, Residente em Saúde Mental Coletiva. E-mail: eu_wesley@yahoo.com.br Juventudes: entre A & Z 39 neamente, equilíbrio e maturidade para situações em que deve responder diante as exigências sociais que idealizam o seu amadurecimento e a sua constituição, como sujeito de identidade própria, que se apropria desse novo corpo e se posiciona perante o desejo sexual. Momento que causa inquietação ao vivenciar as transformações do corpo, fase que (pode) provoca(r) sofrimento. A adolescência é um tempo de receber julgamentos dos adultos e de possibili- dade efetiva de experimentar, de crescer e de escolher ca- minhos. Não se pode negar, também, os desafios daqueles que acompanham essas transformações desse sujeito cam- biante, já que os “de maior” por vezes tem dificuldade em sustentar tais diferenças e questionamentos. O sofrimento também atravessa o mundo adulto nessa relação, frente às dificuldades geracionais ao para compor com as tecnologias e as novas formas do comunicar-se adolescente pela música, pela poesia, pela imagem, pelas tatuagens, pelas roupas e pela estética do corpo que se metamorfoseia: aborrescên- cia, tempo da incomodação, mas, tudo bem é adolescen- te... daqui a pouco passa! A palavra adolescência deriva do latim adolescere, sendo composta pelo prefixo ad (para) mais olescere (crescer) – crescer para. Um dos sentidos mais usuais compreende a adolescência como etapa constitutiva do ciclo vital humano, preparatória à fase adulta. É curioso que a palavra adolescere guarde proximidade com o termo addolescere – que significa adoecer. O termo vem sendo utilizado desde os séculos I e II, quando delimitava apenas um período, específico, da vida dos cidadãos de acordo com a hierarquia patriarcal, que organizava a vida social. Nessa época, não havia separação entre as dimensões pública e privada – como haveria na Modernidade –, uma vez que, moral, sexualidade e política articulavam-se num todo úni- co, em dada ordem, compreendida como natural do univer- so. Muitos são os autores brasileiros que estudam as ado- Juventudes: entre A & Z 40 lescências e as juventudes e destacam a complexidade em defini-las ou conceituá-las, apesar de o senso comum codifi- cá-las como homogêneas, até porque, nem todos vivenciam com a mesma intensidade as refrações desse processo. Do ponto de vista político administrativo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define a adolescência como a população entre a faixa etária dos doze aos dezoito anos e a juventude dos dezoito aos vinte e quatro anos de idade. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), existe a divisão em três fases: a pré-adolescência (dos 10 aos 14 anos), a ado- lescência (15 aos 19 anos incompletos) e a juventude (15 aos 24 anos). A fixação de critérios relativos à compreensão da juventude pode se alargar até os 29 anos, conforme Estatuto da Juventude (SINAJUVE, 2013). Outro aspecto interessante é o uso dos plurais visto que viver tais experiências variam de acordo com os modos como são estabelecidas as rela- ções sociais em seus diversos contextos, sejam os familiares, sejam os escolares ou os comunitários. A despeito das dife- renças conceituais optou-se pelo que ambos os conceitos guardam de comum, usando-os não como sinônimos, mas dialógicos, ao pensar a adolescência como uma porta de en- trada para este outro movimento da vida, que chamamos de juventude. O discurso contemporâneo sobre o jovem, ou sobre o adolescente, é ainda pouco generosoe acolhedor. Por exemplo, reduzir a condição do adolescer e do ser jovem ao caos hormonal, vinculando os comportamentos, os im- passes e os movimentos tomados como típicos dessa etapa exclusivamente ao biológico, é recorrente, apesar de cons- tituir-se como impossibilidade conceitual e ética. Ao retirar o sujeito do jogo da linguagem, do encontro com o outro e com a cultura, lhe é outorgado um lugar de objeto. A supo- sição do adolescente como sujeito de direito, com status de proteção integral na letra da lei, mostra sua fragilidade no discurso social. Os tempos atuais revelam tensões e interpre- Juventudes: entre A & Z 41 tações sobre o tema evidenciando que os direitos positiva- dos ainda não se encontram, de fato, efetivados, na medida em que explicita a importância de compreendermos que os adolescentes (d)enunciam com atenção ao modo como designamos este momento e porque associamos a violência ou o risco de violência quando tratamos do adolescer. Referências BRASIL. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das polí- ticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Ju- ventude – SINAJUVE. Lei Nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Juventudes: entre A & Z 42 Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. (Adélia Prado, 2002) Quem tá alegre?! Ah, quem tá alegre vai bem mais longe. (Endrius Rodrigues - Jovem do Centro da Juventude Restinga) O que permanece em nós daqueles com quem encontra- mos? O que transmitimos? Como somos lembrados? A mim parece que a alegria é o efeito mais marcante de uma relação de contágio com a juventude. Memórias e momentos parti- lhados em que os sorrisos são largos e impossíveis de con- ter, fazendo-nos cúmplices, na experiência de compartilhar uma intensidade que nos percorre e nos expande. Quando estamos alegres, somos gigantes. Propor-se a um trabalho com juventudes – especialmente, em condições de vulne- rabilidades e violações de direitos – é ser encontrada, inevi- tavelmente, por um discurso muito distante da potência de vida que a alegria carrega. Um discurso que diz da morte, da estatística, da violência e da falta de expectativa de futuro. Os encontros, contudo, vão diluindo os discursos preestabe- lecidos, dando passagem para a experiência de estar com jovens e sentir-se viva. Testemunhar alegria de quem ensaia Alegria Ana Paula Genesini Psicóloga em transformação constante pelos encontros potentes e alegres com as juventudes. Mestre em Psicologia Social e Institu- cional. Técnica Social do Centro da Juventude Restinga. E-mail: anagenesini@gmail.com Juventudes: entre A & Z 43 viver, ainda que em arranjos sociais que podem produzir a legitimidade do morrer. Assim, compartilho no decorrer des- ta escrita conversas que constituíram minha escrita de dis- sertação (GENESINI, 2018) e afetam este verbete: - Cara, eai, algo mais que tu queira dizer? - Sora, sim. Eu tô feliz. Hoje eu chorei... mas, finalmente, foi de alegria... nunca na minha vida eu pensei que fosse ter o amor de família, que eu tenho agora!”. A alegria compartilhada nos contagia, impulsiona e trans- forma. Preenche de leveza e sentidos o cotidiano, propor- cionando pequenos deslocamentos diários, que vão nos tornando outras e outros: sujeitos mais apropriados de sua singularidade e diferença. Para dizer da experiência da ale- gria, voltamo-nos ao corpo. Quando estamos alegres, nosso corpo é percorrido por essa intensidade que Espinosa deno- mina afecto (SILVA, 2013). Tal intensidade é capaz de produzir um pensamento em ato, criativo e sensível, conectado com a experiência de afetar e ser afetado. A alegria é afecto que nos expande, ampliando nosso potencial de agir sobre nós mes- mos, nossas relações e nosso modo de ser e estar, existir. Essa torção de um cotidiano desafetado, entristecido e com pou- cas perspectivas e escolhas, para uma vida implicada com a alegria é capaz de atualizar nosso posicionamento ético-es- tético-político em relação à formação, ao trabalho, à vida, aos relacionamentos, nos possibilitando criar uma relação mais próxima com práticas de cuidado e exercícios de liberdade. Alegria e tristeza são afectos primários, do qual derivam to- dos os outros. Experimentamos alegria quando aumentamos nossa potência de ser e agir no mundo. A alegria nos dá a compreender o que é bom. Tal experiência, face à um modo de viver e conviver em sociedade, que nos coloca tantos im- passes e dureza, é um refúgio. A experiência da alegria não se resume a uma variação de potência - ora triste, ora alegre Juventudes: entre A & Z 44 - mas indica a posse plena de tal potência: podemos ser ale- gres, nosso corpo pode alegria. E quando podemos alegria, ela não permanece restrita aos limites de nosso próprio cor- po, mas cria redes de conexão afetiva: - Sora, tu tá sempre assim contente? - Como as- sim? - Bah, não sei sora, eu te vejo sempre feliz, pra cima aqui com a gente...parece que tu quer mes- mo estar aqui...isso anima o cara, sabe?” O conheci calado. Emudecido e solitário. Corpo que se arrastava pelos corredores, como se a vida lhe fosse sugada, a cada passo. Alto, muito ma- gro, pálido...cabelos longos e muito pretos...olhos atentos...toca na cabeça, independente da tempe- ratura (que agonia, menino). Quando me dei con- ta, era outro...tão outro...tão risonhamente e ex- pansivamente notável que se fazia certa saudades dos dias que calava mais. “Hoje tá difícil, Rael”. Nos saiu à namorador...beijos na recepção, nos corre- dores, no refeitório...passo por eles e lhes faço cara de “nojinho”... Eles riem e se abraçam ainda mais forte, ainda mais perto. Quando conheci sua mãe, me disse que antes Rael não saia do quarto...hoje, não para em casa. Quando vem, a tardinha...traz até um amigo, pra escrever poesia. Ainda que a experiência com jovens seja encontro com inúmeras violências, preconceitos, criminalização, mortes, exclusão – denúncias do modo social que vivemos, impres- so em nossos corpos – é como se algo operasse constante embate com o pesar e a dor, em reação pela potência ati- va de viver, de querer viver. Resistência que transforma as dores e cria possibilidade de coexistência e paradoxo: ser alegre, ainda que... Alegre na luta, na celebração da cultura, na reverência a ancestralidade, na arte enquanto exercício de vida. Estar com jovens evidencia que este algo que opera constante embate é a alegria: uma alegria sentida, vivida e Juventudes: entre A & Z 45 compartilhada, que transborda em risos e gargalhadas, fa- las altas que ecoam nos espaços, danças e músicas que di- zem de que viver tem ritmo e balanço, abraços de encontro, pra percorrer espaços e caminhos acompanhados. Quando afirmamos que a alegria é capaz de transformar a nós mes- mos e a nosso pensar, não a restringimos a uma vivência da ordem do individual, pois compreendemos que os afectos de que somos capazes também dizem dos afectos que são possíveis, na sociedade que vivemos, portanto, são políticos. É preciso assumir, com eles este compromisso, encontran- do formas e abrindo espaço para sua transmissão e expe- rimentação. Se quanto mais um corpo é capaz de afecções e alegria, mais também a mente é consciente de si (SILVA, 2013), afirmar este caminho é fazer resistência a um modo desafetado e desvitalizado de viver e de pensar. Modo este que a juventude ensina: é preciso criar, pois a alegria não é apenas possível, mas necessária. Existir em potência de multiplicidade e reinvenção produz desejo e vida singular e pulsante, nos ritmos de encontros de afetar e ser afetado, que se embalado por sorrisos, vão certamente, mais longe. Referências GENESINI, A. P. Percursos entre Afectos e Corpos: a criação de arquivos de experiência através de encontros narra- tivos com a juventude. [Dissertação de Mestrado]. Porto Alegre: UFRGS, 2018. PRADO, A. Poesia Reunida. São Paulo: Arx, 2002, p. 11. SILVA, C. V.Corpo e pensamento: alianças conceituais en- tre Deleuze e Espinosa. Campinas: Unicamp, 2013. Juventudes: entre A & Z 46 Atualmente, o mundo comporta 4 bilhões de pessoas usan- do algum serviço conectado à internet, e até 2021 seremos 5 bilhões. O escândalo da Cambridge Analytica - empresa privada que combinava mineração e análise de dados com comunicação estratégica para processos eleitorais – reve- lou o uso de dados de redes sociais sem autorização. Perce- bemos que os dados não identificados dessas redes, mais as imagens de câmeras de vigilância, GPS, buscas em pla- taformas como Google, Amazon, Instagram, lojas virtuais, etc. alimentam gigantescos bancos de dados e são trans- formados em capital e gerenciados por inteligência artifi- cial. O Brasil é o segundo país do planeta em tempo de co- nexão, em uma média de nove horas por dia por habitante, sendo que 133 milhões de brasileiros/as seguem perfis po- líticos nas redes sociais. Assim como juventude, a palavra rede também guarda em si uma multiplicidade de sentidos e de inserção na esfera filosófica, tecnológica e política: podemos pensar as redes como espaço de conexões entre pessoas, como espaços de acolhimento e como aparelhos de captura. O que me traz aqui a escrever diz respeito a um câmbio de sentido da palavra “rede social”. No ano de 2002 defendi a dissertação “Autopoiese e sociedade: a rede integrada de serviços do bairro Restinga na teoria dos sis- temas vivos” e, cinco anos mais tarde, foi produzida a tese de doutorado em sociologia “Redes sociais e micropolíticas Alerta Fabio Dal Molin Psicólogo, psicanalista associado da APPOA, professor da Univer- sidade Federal de Rio Grande-FURG. E-mail: dalmolinorama@gmail.com Juventudes: entre A & Z 47 da juventude”. Ambos os trabalhos tiveram o mesmo obje- to de estudo: as estratégias de organização de entidades sociais (estatais ou não) e movimentos sociais utilizando como tecnologia social o conceito de rede. Em suma, como as redes sociais são configuradas na esfera pública sendo entendidas como modos de fazer política e micropolítica entre atores e instituições. As transformações tecnopolíti- cas nas últimas duas décadas provocaram uma conversão radical do campo semântico da expressão “rede social”. Nos arquivos de minhas dissertação e tese, ainda estão o termo “rede social” operando os algoritmos de busca, con- tudo, ocorreu uma metamorfose no território subjetivo do pesquisador. Em 2019, quem procurar as palavras chaves associadas “rede” e “social” vai encontrá-las nos dois traba- lhos, mas não encontrará o que procura, e considero funda- mental pensar sobre essa dissonância. Atualmente, chama- mos de rede social plataformas de conexão mediadas por uma tecnosfera de computadores, smartphones, satélites, antenas de celular, navegadores de internet, e algoritmos de processamento de informação: Facebook, WhatsApp, Twitter, Instagram etc. Na antiga acepção da rede social, os movimentos lançavam mão de tecnologias informáticas e telemáticas (celular, e-mail, blog, página) como instru- mentos de comunicação e de compartilhamento e arma- zenamento de informações. Grosso modo, as conclusões da época de meus estudos evidenciavam que o desejo de formar redes dizia respeito a um modo de relação solidário e organizativo que usava a tecnologia como ferramenta. O explosivo e colorido caldeirão social de nossos dias, con- forme abordo no verbete movimentos, apresenta como grande característica o uso das tecnologias digitais algo- rítmicas para comunicar, mobilizar e expressar. Ou seja, se antes o objetivo era ampliar a comunicação, hoje elas passaram a constituir um modo de nos comportarmos e Juventudes: entre A & Z 48 esse funcionamento nos faz questionar: Há diferença entre nos comunicarmos e nos relacionarmos? Sim e não. Como essa conexão – comunicação e relação - está produzindo as vidas juvenis que já nasceram sendo enunciadas em redes sociais para o mundo? Desde que aprendemos a falar a lín- gua materna percebemos que a linguagem forma e é for- madora do pensamento e da subjetividade. Hoje qualquer um de nós pode escrever textos, organizar grupos, publicar vídeo e música em plataformas de streaming, gritar por so- corro, denunciar, amar, odiar, sem passar pela edição das grandes empresas de comunicação... Mas, ALERTA!!!!! Na fluidez virtual da internet proliferam as “fake news”, que, em bom português, chamamos de difamações, mentiras, calúnias, boatos, que desencadeiam os “linchamentos vir- tuais”. Nada mais exemplar que um linchamento para ilus- trar porque o filósofo Giorgio Agamben (2007) chama nos- so contemporâneo de “Estado de Exceção”. Afinal, mesmo que o direito tente acompanhar os avanços tecnológicos, no espaço entre a ofensa cometida e o devido processo le- gal, ocorre um dano moral, político, afetivo e até mesmo físico de difícil reparação. O Big Other é um trocadilho que tem anteparo no livro de George Orwell “1984” no qual a sociedade é toda ela controlada, observada e regulada por um único líder que tudo vê, que inclusive criou o próprio partido de oposição: o Big Brother (que obviamente inspi- rou a franquia de Reality Shows holandesa muito famosa no Brasil). Segundo Shoshana Zuboff (2018), mesmo não estando conectados, estamos imersos no mundo digital. Aqui o Big Other está calcado no que a autora de “compor- tamento mediado pelo computador” destaca ao proble- matizar que o termo informática: denota ao mesmo tempo informar e formatar. E aqui entra o grande perigo, aquilo que constitui o que chamo de “subjetividade hackeada”, ou seja, quando somos conduzidos por uma dinâmica fria e Juventudes: entre A & Z 49 impessoal, na ausência de laço social e do reconhecimen- to dos sujeitos (como do Big Other), em que prevalece a reprodução do/a seguidor/a como única verdade sobre fatos e pessoas. Afinal, Leonel Brizola dizia que cinco famí- lias dominam os meios de comunicação no Brasil, pois a comunicação social sempre esteve sob o poder econômi- co e políticos das mesmas elites que nos governam e opri- mem e práticas de monopólio e oligopólio. Como eu disse no início, atualmente, cinco grandes empresas dominam o mercado virtual mundial. Em um universo onde tudo está conectado a tudo, onde todos estamos conectados a re- des virtualmente infinitas de conhecimento mediadas por controles algorítmicos, onde tudo encontra seu lugar, até mesmo a transgressão, onde sobrará espaço para o novo, o revolucionário, o utópico? Referências ZUBOFF, S. Big Other: capitalismo de vigilância e perspec- tivas para uma civilização da informação In: BRUNO, F.; CARDOSO, B.; KANASHIRO, M.; GUILHON, L.; MELGAÇO, L. (Orgs.) Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da mar- gem. São Paulo: Boitempo, 2018 AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. ORWELL, G. 1984. São Paulo, Companhia das Letras, 2019. Juventudes: entre A & Z 50 Quem durante a sua infância não queria ter uma amiga ou até mesmo uma melhor amiga? Aquela com a qual se cochichava pelos cantos, dava risadinhas e se tinham uma lealdade do tamanho do oceano atlântico. Na escola se andava de mãos dadas com a amiga, se contava segredos. Amiga é uma expressão até mesmo genérica para se cha- mar pessoas próximas, mas a amiga aqui é sobre algo mui- to difícil de colocar em palavras, acredito que seja porque cada pessoa tem a sua relação única com a amizade e com a sua amiga. Dá para se pensar e sentir várias coisas quan- do se fala em amiga. É ela que eu convido para sair, para compartilhar, para ser mais leve, pois a vida anda dura, não sei se é essa coisa de virar adulto e encarar esse mundo cão ou se a gente que fica cada vez mais sério. Pois bem, amiga também está aí para lembrar que a vida não precisa ser levada tão a sério e principalmente, não se precisa levar a sério o tempo todo a nós mesmos. Isso é sobre leveza e sobre sentir o efeito do afeto, como já dizFlora Matos. É da amiga que se ganha o melhor abraço do mundo. É se divertir com pouco, ser criativas juntas, cair na gargalha- da, não olhar as horas e ouvir música até de madrugada. Chamar alguém de “amiga” é um carinho, é saber que se pode contar com ela, porque quem tem amiga, tem ajuda. A amiga te conhece, sabe quando precisa dar um ombro, apoiar mesmo que sem palavras. Amiga é sobre respeito Amiga Francisca Shelley Dilger Psicóloga graduada pela UFRGS e incansável na tentativa de colo- car afetos em palavras. E-mail: franciscadilger@hotmail.com Juventudes: entre A & Z 51 e cumplicidade, porque é entrelaçar caminhos para acom- panhar. Esses tempos, eu recebi uma carta de uma grande amiga, que dizia que se aprende tanto com uma amizade, com o simples e ao mesmo tão complexo estar em amigas. Certamente, estar entre amigas é fazer circular o saber de todas, é beber e respirar da vida da outra. Duas amigas que se acompanham são aquelas que mostram detalhes, mo- mentos e abrem os olhos uma da outra que sozinhas não poderiam ver, sentir. É como uma cabra das montanhas que leva um peixe para ver o horizonte e sentir o vento das alturas, ou um peixe que leva sua amiga cabra para mergu- lhar no mar e sentir o frescor salgado. Esses dias, também reli uma carta de uma amiga mais antiga e percebi que ter uma amiga é contar com coragem, é ouvir de uma pessoa que te conhece tão bem coisas que nem sempre são bem vindas, mas que servem pra te dar aquele empurrãozinho, às vezes te sacudir e te dizer: a vida está na tua frente! O que tu estás esperando? Toma coragem e vai! Às vezes es- tar com uma amiga é como entrar em uma cachoeira: é re- carregar energias para seguir. Juventudes: entre A & Z 52 Amora não é uma coisa sobre a qual se possa simplesmente pensar – e está logo feito. não, não se trata disso. A amora é um fruto silvestre? É um processo? É uma coisa que leva tempo? De certa forma, sim. A amora é um “sim”? De cer- ta forma, sim. Amora é amor que acontece à medida que o bater (des)compassado do coração coincide com o ges- to. Portanto, amora é ação que se orienta pelo batimento cardíaco, pelo calor que toma os ventres, pelas mãos de mulheres que insistem no próprio enlace: ser uma mulher e amar outra mulher me parecem duas coisas (talvez ineren- temente) revolucionárias. A amora vai ditando seu próprio ritmo, sua própria dança improvisada; vai nos acontecendo sem ensaio, de forma única e irrepetível. Mas há algumas tendências, claro: a amora gosta de ser em clima temperado subtropical, e em solos úmidos - ainda que deteste os propí- cios a encharcarem; a amora é forte. e gosta de ser em solos profundos, o que é só outra maneira de dizer que ela prefe- re habitar o fundo do fundo do fundo do fundo do fundo; a amora vai abrindo espaço em nós, da mesma forma que o mercúrio vai se espalhando, irremediavelmente, quando o vidro do termômetro (aquele da poeta matilde campilho) se quebra; a amora precisa ter muita coragem para ser, des- de antes de nascer; isto é, a amora precisa de muita cor e de muito coração. A amora precisa de muito corpo para se dizer, para se expandir, para se afirmar, para ser. Outras tendên- Amora Sthefany Lacerda Graduanda em Psicologia na Universidade Federal de Pelotas - UFPel. E-mail: sthefanylaccc@gmail.com . Juventudes: entre A & Z 53 cias recentemente encontradas mediante rápida pesquisa sobre amora: a amora gosta de ser em condições primave- ris: a frutificação começa a ocorrer em setembro, quando a vontade de viver regressa ao mundo humano; e, é preferí- vel mantê-la sob temperatura quente, entre 24 e 28 graus. Informação (nova) que me faz arregalar os olhos: tu sabias que a amora possibilita os fios de seda? Tu sabias o bicho da seda come as folhas de amora e, de barriguinha cheia, se põe a tecer seus casulos, dos quais se extrairá, mais tarde, os fios de seda. O absurdo é sempre tão real. Parece certo afirmar que, enquanto o bicho tece, enquanto sua artesania atravessa os dois lados da costura, a amora cresce, impulso de vida vindo de dentro da amoreira - e continua. A amora pressupõe uma continuação. Trata-se de um amor cujo cul- tivo se faz de modo muito – especialmente – singular: se aprende como cuidar do fruto enquanto se cuida dele. Não há quem ensine esse cuidado. Não há. Não há porque se- quer se fala sobre a possibilidade de cultivar amora. sequer se fala. Com a poeta Angélica Freitas pergunto: piri qui? piri qui ni si fili im amiri? Mas estou tentando, Angélica. Es- tou. Estou tentando falar, mesmo tendo, desde o começo, a nítida impressão de que, para falar sobre amora, é pre- ciso uma outra coisa, uma outra coisa além da palavra. Eu diria que é preciso uma demora diante dela; que é preciso (a)guardar-se dentro dela - apesar do medo; que é preciso permitir que ela nos percorra o corpo e que é preciso per- corrê-la, também; que é preciso sentir sua superfície irregu- lar, seu corpo híbrido, composto por vários pequenos frutos agregados; que é preciso sentir a grandeza do seu tamanho miúdo e a acidez que a torna, inexplicavelmente, doce. Eu diria, portanto, que amora é uma coisa formada por mui- tas outras coisas. e que isso requer da gente um olhar aber- to, atento, disposto, diverso, entregue. São inesgotáveis as amoras (da escritora Natália Borges Polesso): há as grandes Juventudes: entre A & Z 54 e sumarentas; há as pequenas e ácidas. Com isso quero di- zer que são infinitas as amoras possíveis. e que são infinitas as amoras que existem em uma única amora (tô arriscando usar palavras grandes, como deves ter percebido: possível, infinito). Não é em vão. Uso essas porque, por mais parado- xal que pareça, sinto que não poderia, ao falar sobre amo- ra, usar palavras pequenas). Eu diria que é preciso permitir que a amora nos escorra, nos adentre, nos desestabilize, nos amedronte, nos assuste, nos maravilhe, nos aconteça. No mais, não há muita coisa possível de ser dita – seja ela grande ou pequena. não que se esgote o assunto, muito pelo contrário: não tem como dar conta de tanto, porque afinal nem se sabe até onde a amora vai, até onde se des- dobra, de que forma, em quanto tempo, e se conseguire- mos colhê-la quando parecer a hora. Por isso, não acredito que haja qualquer instrução a ser seguida, além da de que é preciso ir. Sim, é preciso ir. É preciso atravessar o quintal, é preciso se deter diante da improvável amoreira que figura na calçada, é preciso buscá-la pelo pomar de Dinda Lena. Aí é preciso chegar ao pé da fruta, esticar os dedos – e apa- nhá-las, um punhado de amoras roxas, vermelhas, pretas. E, ao segurá-las nas mãos, nos acontece algo. Nos aconte- cem vários pequenos frutos coloridos, formados por várias outros pequenos frutos – e isso nos atordoa. Nos acontece um aglomerado de aglomerados – o absurdo é sempre tão real, repito – que nos colore a palma da mão, a carne que circunda as unhas, as cutículas. Amora é amor que acontece quando se decide afirmar a vida, quando se decide a revo- lução pelo gesto. Amora é palavra - e gesto. Juventudes: entre A & Z 55 BRANQUITUDE I (Um Incômodo) Bruna Moraes Battistelli Doutoranda no PPGPSI/UFRGS, bolsista CAPES, mestra em Psico- logia Social E-mail: brunabattistelli@gmail.com Cara professora, Este era para ser o trabalho final da disciplina, mas acabou ga- nhando o formato de carta, que é como eu melhor me expres- so. Vou falar de um tema que tratamos bem rápido em aula: a branquitude. E vou aproveitar para lhe escrever sobre algu- mas coisas que me incomodaram no semestre. Espero que a senhora entenda. E entenda também meu modo de escrever. Tentei usar as referências, mas isso é sempre uma dificuldade de fazer certinho como as regras mandam. A senhora falou em aula sobre o texto da Maria Aparecida Bento (Branqueamento e branquitude no Brasil). Um texto que me ajudou a me olhar e tentar ver quando eu tinha me percebido enquanto uma pessoa que tinha raça também. Me descobribranca muito tarde, preciso dizer. Quando já estava na faculdade: tipo com 20 anos. Antes, eu só assistia a essas discussões sobre as cotas e não entendia. Eu achava que quem se esforçava era quem tinha chances. Minha mãe e meu pai sempre disseram isso: “se tu te esforçar tu vai conseguir ter uma vida boa”. Aí veio a universidade. E as cotas. Entrei pelas cotas de escola pública. Não entendia por que tinha para negros e indígenas. Ouvi das minhas professoras do colégio que cota era mimimi de quem não se esforçava. Por que eu lhe escrevo? Preciso te dizer que fiquei incomodada com o que a senhora disse em aula: “Tem que fazer por merecer para estar na faculdade! Tem gente que Juventudes: entre A & Z 56 ganhou a vaga”. Fiquei dias me perguntando o que a senhora quis dizer com isso. E principalmente, porque disse isso no dia que estudamos sobre branquitude na aula. Eu vou colar um trecho grande do texto da Maria Aparecida, ele me ajudou a entender o meu incômodo com sua fala: Evitar focalizar o branco é evitar discutir as dife- rentes dimensões do privilégio. Mesmo em si- tuação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate sobre raça analisando apenas a classe social é uma saída de emergên- cia permanentemente utilizada, embora todos os mapas que comparem a situação de trabalhado- res negros e brancos, nos últimos vinte anos, ex- plicitem que entre os explorados, entre os pobres, os negros encontram um déficit muito maior em todas as dimensões da vida, na saúde, na edu- cação, no trabalho. A pobreza tem cor, qualquer brasileiro minimamente informado foi exposto a essa afirmação, mas não é conveniente conside- rá-la. Assim o jargão repetitivo é que o problema limita-se à classe social. Com certeza este dado é importante, mas não é só isso (BENTO, 2002, p. 03). Eu entendo que a senhora é de uma outra geração. Que foi ensinada de outras formas, mas não dá para a gente ficar re- petindo as coisas sem pensar um pouco melhor. Ainda mais uma professora! Uma professora branca tem que saber que não basta se dizer uma pessoa branca, é preciso ir além de dizer que tem privilégios. Desculpa a forma de lhe dizer essas coisas, mas foi duro ouvir os colegas (principalmente as/os es- tudantes negras/negros) falando das suas dificuldades e das vezes que sofreram racismo na escola e do como as pessoas tratam as cotas como esmola. A senhora conhece a música “Cota não é esmola” da Bia Ferreira? Cotas não são esmolas, são ações afirmativas em um país onde a desigualdade tem Juventudes: entre A & Z 57 cor. A disciplina de relações étnico-raciais me ajudou muito a entender isso. Pobres também se beneficiam do privilégio da brancura. Quando a senhora falou de merecimento foi muito complicado, parecia que não tínhamos lido o texto que discutimos. A Maria Aparecida Bento (2002) mostra de muitas formas como o privilégio e a noção de merecimento é algo colado a branquitude. Merecimento é a manutenção dos privilégios, professora! E nós, pessoas brancas, temos que ir para além do incômodo. Uma colega de aula me indicou um texto que mexeu bastante comigo: Branquitude para além do incômodo da Schuma Schumaher (https://www.geledes.org. br/branquitude-para-alem-do-incomodo/). Esse portal, o Geledés, é muito bom para encontrar materiais sobre raça, mulheres, racismo e branquitude. Tenho estudado bastante por ali, e sugiro que a senhora dê uma olhada por ali. Estudar é uma coisa importante se a gente quer ser mais conscien- te da nossa racialidade branca e de como nos beneficiamos de todo um sistema racista. Primeiro dói, depois a gente vai vendo como se movimenta. Importante é se movimentar! Sei que a senhora é mais velha e que eu sou só uma estu- dante de 21 anos. Já ouvi muito que jovem se acha, que jo- vem acha que sabe e pode tudo. Eu tenho aprendido muito com as colegas e com os colegas. Uma coisa que aprendi quando cheguei na universidade é que não posso esperar que os outros digam que sou racista ou que preciso discutir minha branquitude e nem posso fazer as/os colegas negras/ os de google para saber o que estudar sobre raça, racismo e branquitude. Por que estou lhe dizendo essas coisas? Me incomodei com sua pouca empatia com as/os colegas. Elas/ eles falavam sobre suas dificuldades e a senhora mal deixou eles terminarem e falou em merecer a vaga na universidade, em se esforçar. E pior ainda, me usou como exemplo. Não faça mais isso, por favor. Eu sei que incomoda ser cutucada nas nossas certezas, mas permita-se ouvir de forma menos Juventudes: entre A & Z 58 violenta os colegas. Escute o que a gente tem a lhe dizer. Dói a gente sair do nosso lugar de privilégio (sair não é bem a palavra). Falo de uma pessoa branca para outra pessoa bran- ca: não silencie o conflito quando ele aparecer! Racismo não pode ser um assunto só para pessoas negras. Fomos nós, pessoas brancas, que inventamos isso, portanto é nossa res- ponsabilidade transformar a posição que ocupamos. É nossa responsabilidade pensar em nossas atitudes e em como modificamos as mesmas para que possamos participar e sermos atuantes em uma cultura antirracista. Uma cultura antirracista precisa ser pensada nas relações do cotidiano. O que a senhora acha? Um abraço, sua aluna. Referências BENTO, M. A. S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, I.; BENTO, M. A. S. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Pe- trópolis: Vozes, 2002. Pp. 25-58. Juventudes: entre A & Z 59 Branquitude II - Práticas Antirracistas Bruna Moraes Battistelli Doutoranda no PPGPSI da UFRGS, bolsista CAPES, Mestra em Psi- cologia Social. Email: brunabattistelli@gmail.com Professora, Tomo a liberdade de seguir lhe escrevendo. A senhora diz que ficou incomodada com alguns pontos da minha carta e pede que eu seja mais clara sobre o que é possível uma pessoa (prin- cipalmente uma professora) branca fazer. Assim, vou continuar a compartilhar um pouco do que tenho feito. Não adianta falar que não é racista ou que é antirracista. É preciso mais, é preci- so mostrar nas atitudes cotidianas como estamos modificando nossas práticas. Vou trazer um trecho do texto que falei na ou- tra carta (Branquitude para além do incômodo); seguem umas perguntas que a escritora se faz (ela, uma mulher branca, con- vidada a falar sobre feminismo e branquitude): Mas incômodo não era o suficiente para me li- vrar do privilégio de ser branca. Como desna- turalizar o que parecia natural desde que eu me entendia por gente? Como ter consciência de que, muitas vezes, eu mesma, era beneficiária do racismo? Como ter consciência crítica dessa vio- lência? Como ser solidária com a dor do outro/a? Como determinar a dor que não sentimos? Como descrever, intensificar, medir, aquilo que a/o outra sente? (SCHUMAHER, 2017, sp.). Somos beneficiárias do sistema racista. A senhora me enten- de? Esse é um ponto importante. E a senhora precisa lidar com Juventudes: entre A & Z 60 os sentimentos que podem aparecer nesse processo. Isso é importante! Raiva, culpa, vergonha, negação: são alguns dos que surgem no processo de pensar sua branquitude. Impor- tante é não “jogar” eles para cima de outras pessoas (princi- palmente pessoas negras). Assim, se quiser saber um pouco mais sugiro retornar ao texto da Maria Aparecida Bento (cons- ta na nossa primeira carta) e o artigo de Lourenço Cardoso (2010) intitulado “Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial e o branco antirracista”. Ele analisa o quanto a branqui- tude não é uma identidade racial única, sendo múltipla e fa- zendo-se necessário uma discussão desta para pensarmos a constituição de uma pessoa branca antirracista. O autor e Lia Schucman (2014) apontam questões importantes que dizem da constituição do Brasil como uma nação que tem “precon- ceito de ter preconceito” (Lourenço Cardoso cita esta frase de Florestan Fernandes) e
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