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Copyright © 2016 by Paco Editorial Direitos desta edição reservados à Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. Coordenação Editorial: Kátia Ayache Revisão: Taine Fernanda Barriviera Assistência Editorial: Augusto Pacheco, Érica Cintra Capa e Projeto Gráfico: Renato Arantes Santana de Carvalho Assistência Digital: Wendel de Almeida Edição em Versão Impressa: 2016 Edição em Versão Digital: 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P149 Paiva, Jacyara Silva de. Caminhos do Educador Social no Brasil/Jacyara Silva de Paiva. - 1. ed. - eBook - Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2016. Recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Multiplataforma ISBN 978-85-4620-014-6 1. Educação social 2. Pedagogia social 3. Formação do educador social 4. Paulo Freire I. Paiva, Jacyara Silva de. CDD: 370 Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues (UNIVAS/MG) (Lattes) Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes) http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4771296D1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=S219507 Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna (UNESP/ASSIS/SP) (Lattes) Prof. Dr. Carlos Bauer (UNINOVE/SP) (Lattes) Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha (UFRGS/RS) (Lattes) Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa (FURG/RS) (Lattes) Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO/SP) (Lattes) Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira (UNICAMP/SP) (Lattes) Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins (UNICENTRO-PR) (Lattes) Prof. Dr. Romualdo Dias (UNESP/RIO CLARO/SP) (Lattes) Profa. Dra. Thelma Lessa (UFSCAR/SP) (Lattes) Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt (UNIPAMPA/RS) (Lattes) Prof. Dr. Eraldo Leme Batista (UNIOESTE-PR) (Lattes) Prof. Dr. Antonio Carlos Giuliani (UNIMEP-Piracicaba-SP) (Lattes) Paco Editorial Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 Telefones: 55 11 4521.6315 | 2449-0740 (fax) | 3446-6516 atendimento@editorialpaco.com.br www.pacoeditorial.com.br http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=N133032 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4784829U9 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4703614A6 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4700965H9 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=P468677 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4707925D1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4704828P6 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4780765Z3 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4763549E2 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4737948P1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4759425A1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4730996E0 mailto:atendimento@editorialpaco.com.br%0D?subject=Livro%20Teoria%20da%20Hist%C3%B3ria%20-%20Paco%20Editorial http://www.editorialpaco.com.br/ A todos os educadores sociais que caminham neste imenso território educativo chamado Brasil. Caminhos... De uma esperança que não estanca Que não expira mesmo espancada Que espreita triste e elucubrada Cada rua tão errante quanto errática A rua arranha minhas crianças Corrói seu sexo e seus sentidos A rua, entranha de matança Mas quem mais a oferecer abrigo?As cordas cortam minhas mãos Quando tento acudir meus meninos O Estado violenta e vomita nãos Só o interessa que não sejam vistos Mas não desisto!Educo a minha dor Para persistir no meu caminho Ofereço minha amorosidade E continuo construindo Meu espaço educativo Dialógico e afetuoso Minha esperança inextinguível Flávia Paiva Sumário Folha de Rosto Página de Créditos Dedicatória Epígrafe APRESENTAÇÃO PREFÁCIO INTRODUÇÃO 1. Histórias produzidas nos caminhos 2. Os filhos da pobreza e a escola 3. Os atravessamentos das ruas e de outros processos educativos na Pedagogia Social 4. Entre Caminhos: compreendendo outros espaços educativos Capítulo 1: No Caminho, o Encontro com a Pedagogia Social 1. A Pedagogia Social, Educação Social, Educador Social: que caminho é esse? 1.1 A Pedagogia Social em construção 2. Educação Social: como se faz? Capítulo 2: O que Pretendi nessa Andarilhagem: os questionamentos que pulsam dentro de meu ser 1. Educador Social de rua: os colaboradores 2. A Formação: Eixo fundante da profissão do Educador Social Capítulo 3: Categorias Freirianas Presentes no Trabalho do Educador Social 1. Ação-reflexão-ação – desvelando intencionalidades por meio da práxis 2. Amorosidade 3. Dialogicidade 4. A relação horizontal 5. Conhecimento 6. Anúncio/Denúncia 7. Incompletude 8. Leitura de Mundo/compreensão do cotidiano vivido pelo educando Capítulo 4: Teorias que se Desvelam no Caminho Capítulo 5: Os Di(Versos) Olhares da Pedagogia Social: Andarilhando... Filândia, Espanha, Angola 1. Andarilhando na Finlândia... 2. Andarilhando em campos espanhóis... 3. Andarilhando por Angola... Posfácio REFERÊNCIAS Paco Editorial APRESENTAÇÃO A publicação deste livro acontece no ano de 2015, ano que representa uma época que mexeu com o imaginário da sociedade. Muitas são as ilustrações, filmes e narrativas que tentavam descrever como seria o futuro com a chegada dos anos 2000. Muitas suposições e vontades acreditavam que o futuro seria de uma sociedade com acesso a uma alta tecnologia e também desenvolvida em todos os aspectos. No que diz respeito às relações sociais, movimentos pela liberdade de expressão e lutas pelos direitos e democracia também entendiam que estavam contribuindo para que o futuro fosse construído por uma sociedade justa, livre e mais feliz. Esses sentimentos, lutas e movimentos por um mundo melhor, acredita-se, foi o que moveu as ações dos sujeitos que atuaram no século XX rumo a um esperado século XXI. Enfim, o futuro tão esperado chegou e o que existe concretamente? No âmbito tecnológico realmente os avanços demonstram que já foi atingido um nível que condiz com certas imaginações passadas, no que diz respeito às relações sociais também apontam-se conquistas importantes. Destaca-se o avanço da democracia em diversas partes do mundo bem como a demarcação de identidades de grupos culturais e sociais que buscam por meio de muita luta alcançar e tornar reconhecidos seus direitos enquanto seres humanos que possuem suas peculiaridades e demandas. Os avanços na efetivação de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor poderiam colocar este livro como relato de uma pesquisa que serviria como registro histórico de um passado recente, mas as constatações presentes levam a considerar que as reflexões desta obra demarcam uma posição específica frente a um retrocesso das relações políticas, econômicas, sociais que estão ameaçando as liberdades e o processo democrático de existência dos sujeitos como atores em um processo político na relação que se estabelece entre Sociedade e Estado. Esta época futurista de retrocessos em várias partes do mundo, em que movimentos conservadores, retrógrados e truculentos parecem se fortalecer por meio de partidos políticos e movimentos específicos que buscam atingir justamente os grupos que conseguiram avançar pouco, mas estão se fazendo presentes nas relações sociais. Este livro ratifica que a base teórica que constitui a Pedagogia Social, que por sua vez norteia as práticas da Educação Social, deve pautar-se sim na defesa dos Direitos Humanos, utilizando referências críticas que possibilitem e indiquem possíveis alternativas, gerando ações concretas e não apenas nos discursos. Jacyara Silva de Paiva constrói uma trajetória pessoal de lutas, estudos, pesquisas que culminaram em um conjunto de vivências que inspiram as possibilidades de atos e posturas de Educadores quando estes se depararem com situações deviolência e repressão das liberdades, ou qualquer outra forma que afete a existência de um Ser Humano. A Educadora Social Orgânica, como passamos a adjetivar carinhosamente Jacyara, surge a partir de uma reflexão gramsciana sobre quem é o Intelectual Orgânico. Defende- se essa Educadora Social caracterizada como Intelectual que atua nos campos científico-filosófico, educativo-cultural e político. Esse envolvimento é possível de constatar nas linhas expressas na obra apresentada. Apresenta-se esta obra Caminhos do Educador Social no Brasil como uma contribuição significativa para a Pedagogia Social e Educação Social, pois historicamente essa área se desenvolve e se fortalece em contextos de crise buscando dar respostas aos problemas sociais. A lógica que segue o livro representa fielmente a maneira de existir e estar no mundo da autora Jacyara Silva de Paiva, o entrecruzamento entre as vivências práticas junto aos Seres Humanos e a busca incessante e incansável pela reflexão teórica para explicá-las, explicitam quem é e como age a Educadora Social Orgânica! A primeira parte dos escritos descreve os caminhos e caminhadas percorridos por Jacyara desde um plano individual até o seu envolvimento com comunidades. Esse trajeto demonstra como o interesse pessoal é conduzido ao interesse coletivo que posteriormente é levado ao interesse científico e completa o ciclo atuando no âmbito político na relação Sociedade e Estado. Seguindo seu caminho, a autora se depara com a Pedagogia Social e esse é o tema do segundo momento do livro, em que se aprofunda e se explica de maneira teórica, principalmente metodológica, como é possível articular as vivências de movimentos e luta por direitos. O terceiro aspecto abordado é referente ao que Jacyara pretendeu com suas andarilhagens e seus questionamentos que emergiram nesse caminho. É importante entender com esse relato como uma Educadora Social se constitui Pesquisadora e esse é um ponto significativo que está relacionado ao próximo aspecto relativo às categorias pedagógicas da teoria de Paulo Freire que estão imbricadas no Educador Social. A teoria de Paulo Freire é o fundamento principal da obra de Jacyara Silva de Paiva. Nessa parte, as categorias e as análises organizadas pela autora permitem duas interpretações. A primeira é que foi por meio das vozes e sentimentos dos Educadores Sociais que fizeram parte da pesquisa que permitiram relacionar e elencar as categorias, podendo, desta maneira, caracterizar quem são os Educadores e Educadoras Sociais. O segundo aspecto possível é que de maneira didática é possível, por meio das vozes categorizadas, orientar e indicar caminhos de atuação profissional para Educadores e Educadoras Sociais. Essa inclusive é uma demanda do contexto vivido pela Pedagogia Social e Educação Social no Brasil e em outros países, como demonstram algumas pesquisas da área. Caminhos do Educador Social no Brasil finaliza com novos caminhos percorridos pela Educadora Social Orgânica, pois o acúmulo de suas vivências, pesquisas e atuações políticas permitiu alçar não só caminhadas, mas também voos por lugares profundamente diferentes, como Finlândia, Espanha e Angola. O que é impressionante é que mesmo em realidades tão peculiares a voz de Jacyara ecoa nos corações dos ouvintes, mobilizando sentimentos e inspirando ações. Convidamos a todos e todas trabalhadores e trabalhadoras da educação em todos os espaços para conhecer o livro Caminhos do Educador Social no Brasil e acessar novos conhecimentos que possuem importância significativa para quem luta por um mundo mais justo para todos os Seres Humanos. Prof. Dr. Érico Ribas Machado Prof. Dr. da Universidade Estadual de Ponta Grossa PREFÁCIO “A menina que corre atrás da Pedagogia Social” Assim escolhi denominar Jacyara quando a conheci e fiquei vivamente impressionado com o empenho com que ela se dedicava a absorver os conhecimentos que estávamos começando a difundir no Brasil. Neste prefácio prefiro apresentar a autora e não a obra, pois considero que Jacyara é um daqueles talentos que a gente descobre – ou que chega providencialmente ao nosso encontro – e não desgrudamos mais. Nós nos imbricamos mutuamente de tal modo em redes de Educadores Sociais – ela na USP e eu na UFES/Estácio de Sá – que desde 2008 nossos caminhos se cruzam, se misturam, se completam e se confundem, portanto, caminhei parte deste caminho com Jacyara e continuaremos caminhando juntos tendo-a como madrinha de batismo da minha primeira filha, Ana Beatriz. De nossas primeiras interações na área surgiu o convite para eu assumir a coorientação de sua tese de doutoramento juntamente com o professor Dr Hiran Pinel, defesa realizada em 2011 na UFES. Isso demandou dela idas semanais de Vitória a São Paulo para participar da disciplina O Direito à Educação sob a Perspectiva da Pedagogia Social e esforços hercúleos para conhecer a realidade dos Educadores Sociais de Rua em Vitória, Salvador e Porto Alegre. Sua participação nas jornadas e nos congressos de Pedagogia Social, bem como a disponibilização do Centro Educacional Radier para organizar a primeira versão do que viria a ser a proposta curricular para formação do Educador Social no Brasil foram demonstrações inequívocas de que ela, graduada em Pedagogia e em Direito, havia encontrado uma área de conhecimentos que realmente saciava sua fome e sede de saber. Tal dedicação lhe rendeu o convite para integrar o Grupo de Pesquisa Pedagogia Social, da USP, e participar da primeira visita do grupo ao berço da Pedagogia Social, a Alemanha, em julho de 2011. A integração com o núcleo inicial da Pedagogia Social no Brasil resultou na sua indicação para compor a primeira diretoria da Associação Brasileira de Pedagogia Social e sua integração com o núcleo estrangeiro da Pedagogia Social a levou depois à Espanha, Finlândia e Angola. Como não poderia deixar de ser, esta relação de cumplicidade a levou a assumir a tarefa de levar a Pedagogia Social para sua própria terra, se propondo a sediar em Vitória o 5° Congresso Internacional de Pedagogia Social, em 2015, juntamente com sua rede de colaboradores da UFES, IFES e Estácio de Sá. Este breve relato, mais do que atestar veracidade e fidedignidade ao conteúdo da obra em questão, é o testemunho vivo do que é Pedagogia Social, de como se faz Educação Social e de como se forja o Educador Social no próprio campo de trabalho. Recomendo a leitura a todos quantos acreditam que outro mundo é possível, que outra Pedagogia e que outra Educação é possível. Jacyara é a prova viva disso. Cidade do Dundo, Angola, 11 de Maio de 2015. Prof. Dr. Roberto da Silva Livre Docente do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. INTRODUÇÃO Caminhos e Caminhadas No hay camiño, el camiño se hace camiñando. Apenas para lembrar que o caminho tem sempre um início, mas nem sempre, tampouco necessariamente, um final. Disse-me certa vez um andarilho em uma de minhas caminhadas, continuo enfim caminhando... (Paiva, 2010) 1. Histórias produzidas nos caminhos Histórias sempre me fascinaram, elas representam sempre algo em movimento, capacidade de ser, se envolver, enquanto humano, desvelado como ser político, ético. Nossa história é sempre desveladora dos fenômenos que atravessam nossos caminhos, de nossas escolhas, de nossa responsabilidade no mundo, desvela também o tamanho de nossa capacidade de sonhar e transformar o mundo em que vivemos, neste sentido Freire nos diz: [...] Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura toma parte é um tempo de possibilidades não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexoralidade. (Freire, 1999, p. 58) No dia 31 de dezembro de 2009, o professor Roberto da Silva1 encontrava-se em minha casa com sua família. Em dado momento, quando estávamos todos, família e amigos reunidos, ele passou a perguntar a cada um: qual a sua história? As pessoas olhavam-se espantadasinicialmente, mas aos poucos iam contando suas histórias pessoais, cheias de sentido e significados existenciais e cada um de nós que ouvíamos, o fazíamos cheios de silêncio, permitindo as revelações, o desvelar, o conhecimento de quem nos contava sua história. É Freire quem nos diz que a importância do silêncio no espaço de comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto a fala comunicante de alguém, procurando entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. (Freire, 1999, p. 132) Assim, o professor Roberto da Silva queria escutar a história de cada um que ali se encontrava, naquele instante pude sentir naquela roda de amigos uma situação educativa, provocada pelo professor, que naquela hora não era um professor, mas um ser humano que buscava conhecer, que queria ouvir pessoas contando suas vidas. Duarte afirma que para Arendt [...] contar uma vida era também a única forma de salvá-la do esquecimento. Biografar era conferir imortalidade terrena àquilo que, por sua própria natureza, é fugaz e perecível, a vida humana, arriscada a desaparecer para sempre na ausência de um poeta ou historiador, enfim, de um contador de histórias que possa imortalizá-la. Contar uma vida é uma exigência que se impõe em face da mortalidade humana, e aquilo que desta vida importa contar é justamente o seu entrelaçamento com o mundo em que ela foi vivida. (Arendt apud Duarte, 2007, p. 7-8) Diante disso, não poderia lançar-me a esse trabalho em que atuo basicamente ouvindo histórias sem contar-lhes a minha própria história, sem contar minha vida, talvez salvando-a, assim, do esquecimento. Nesse momento gostaria de roubar um pouco de sua solidão como leitor para que pudesse ser escutada enquanto sou lida, permitindo-me enfim desvelar-me. A rua, este lugar repleto de significados e processos educativos sempre foi significativa para mim. Quando criança ouvia sempre minha mãe se referindo a esse espaço público como seu ganha-pão. Era nas ruas de Vitória que ela vendia jornais, flores e até mesmo chegou a pedir esmola a fim de ajudar no sustento dos irmãos menores. Esses fatos eram relembrados com certa doçura, mas também com muita bravura, era como se fosse um soldado contando causos de guerra. A rua, para minha mãe, significava luta, sobrevivência, em nenhum momento esse seu labirinto era contado como o lugar do brincar. A rua era o lugar do trabalho. Naquele instante social e histórico, a rua não era vista somente como o lugar da violência, ou da dor. Entretanto, para ela – um ser sendo materno – que em alguns momentos paradoxalmente transformava-se no ser da da perda. Muitas ruas, labirínticas ruas. Uma perda! Minha mãe não conseguiu ficar na escola porque não conseguia aprender. Teria problemas de aprendizagem? Ora, ela tinha que acordar muito cedo para vender jornais e fazer entrega de roupas lavadas em hotéis. Não conseguia ficar sem dormir na escola. Ela não conseguia aprender, pois a dureza da experiência vivida era muito grande. Era sempre reprovada, e isso a levou a abandonar essa instituição chamada escola, a qual, a princípio, propunha – ontem como hoje – ensinar. Minha mãe viveu sua juventude nos anos 50 – século XX – um período marcado por mudanças positivas (música rock, cinema nacional, chanchada em franca popularidade, o poderio da Rádio Nacional e seus ídolos femininos – estes sim eleitos pelo voto direto, como Emilinha Borba e Marlene) e negativas (maior discriminação étnica, pois é negra – as fãs dos artistas de rádio, pela maioria ser negra, eram chamadas de macacas de auditório; guerra fria; governos populistas). Minha mãe, como bem destaca Heidegger, Binswanger e Boss (Hall; Lindsey, 1984) é um “ser-no-mundo” (Dasein ou existência humana), assim como todos nós! Ela era uma menina em situação de rua, nascida num dos morros da Grande Vitória, numa família de 12 irmãos, dos quais a metade morreu de desnutrição. Como filha mais velha, precisou das ruas para que os demais não morressem. Minha mãe vivia em meio à diversidade de conflitos advindos das injustiças e da miséria, desencontros e desencantos familiares, sentia na pele o que era ser pobre, mulher, negra e excluída economicamente da sociedade, mas lutava nas rugas da cidade, com toda a resistência e resiliência que fosse necessária para a sua sobrevivência. Uma vivência insistida! Por estar nas ruas (pre)ocupada com o sustento da família, ela não se recorda deste lugar como o lugar do lúdico. A rua significava trabalho, um desafio diário a ser enfrentado, um lugar que desgasta o ser sendo e provoca rugas – pela exposição ao ar, ao sol, à chuva, aos ruídos. A rua foi, enfim, o grande palco no qual se representou a infância e a adolescência desta pessoa pobre, mas que ainda assim procurou ser protagonista do seu tempo, nos papéis a ela permitidos pela ordem dominante. Tratava-se, portanto, de subverter a ordem estabelecida de maneira sistemática e cotidianamente. As histórias provenientes da experiência dela com a rua são até hoje escutadas por seus filhos e filhas, seus genros e nora, netos e netas. Ela conta com certo orgulho de quem esteve lá à beira do precipício e não caiu, ou caiu várias vezes e se levantou. Ela também tem orgulho de ter se formado em Pedagogia aos 65 anos de idade, mas isso é outra história! Minha experiência com a rua nasce das escutas atentas que sempre fiz junto aos causos maternos. O que apreendia junto à minha mãe era que a rua era um espaço ambíguo, provocante, provoca(dor). Imagino sempre os cenários descritos por ela quando estou na rua trabalhando, e embora os motivos para estar na rua sejam distintos, de toda forma apresentam alguma relação, mesmo que labiríntica. Afinal, somos ambas – ontem como hoje – mulheres no mundo! A rua foi, também para mim, o espaço de brincar de pique, de queimada, de cabra cega, de amarelhinha, de roda. Era um tempo gostoso compartilhado pelos vizinhos das noites em que faltava luz. Tempo kairós! Todos sentavam nas calçadas e começavam a contar casos e a cantarolar. Nesse espaço aprendíamos a viver em grupos, a (com)partilhar as brincadeiras, inventar estórias, criar brinquedos. Era a minha rua. Minha ruga! Era um espaço que parecia infinito para o meu ser sendo criança. Na rua eu corria e sorria. Era também o palco de constrangimentos devido a problemas familiares que se tornaram, eventualmente, públicos. Ela era para mim o lugar do sonho, mas também salpicado de pesadelos. Labirintos-ruas! Para não cair, pelo seu lado labirintítico, andava sempre de cabeça baixa! Foi à rua que recorri por duas vezes quando não aguentei os conflitos causados pelo alcoolismo de um membro da família. Achava que o lugar de tantos sorrisos, de tanto prazer fosse me acolher. Eu tentei permanecer indefinidamente na rua, afastando-me de casa, dos acolhimentos familiares! Entretanto, seus espaços pouco iluminados e a solidão sentida me fizeram temer e recuar (e retornar ao lar). Soturna noite- rua, essa que convida e ao mesmo tempo repele! Até hoje recordo a sensação de me sentir um grão de areia em meio a tantos caminhos- labirintos! A sensação foi a de que seria tragada pela solidão da rua, senti medo daquele espaço que para mim significava paz, alegria e retornei para a proteção que se chamava casa. Retirados os salpicos de pesadelo e dor, a rua continuava a me fazer sorrir, era meu chão de poesia que me permitia cantar, dançar e sonhar através dos blocos e escolas de samba que se apresentavam no carnaval. Ao entrar para a Igreja Batista – ao final de minha adolescência – a rua e as praças transformaram-se em templos. Nelas eu evangelizava, pregava, cantava com todo fervor de uma jovem de 17 anos de idade. A rua era, enfim, meu espaço significativo. Aos 18 anos de idade decidi ir para Recife (PE) cursar Teologia no Seminário Batista. Talvez estivesseem busca de outras rugas, lugar-tempo de resistir, enfrentar, solucionar memórias. Fui ater-me nas ruas de Recife. Meu trabalho consistia em evangelizar os seres vistos como sorumbáticos, as prostitutas das ruas. A proposta era evangelizar, catequizar. Elas deveriam optar pela Igreja. Entretanto, de certo modo – e tendo um outro olhar sentido acerca de mim naquele período – de certo modo penso que meu objetivo era o de desrualização. O trabalho, a princípio, era realizado apenas durante o dia. E era sob a luz do sol que encontrávamos algumas mulheres muito agitadas, pouco relaxadas e disponíveis. Penso que uma das representações sociais do “dia” é estar sem tempo. Então, resolvemos realizar os nossos trabalhos após as 22h. A intervenção era realizada em parceria com a ONG Visão Mundial que recebia financiamento de projetos internacionais, bem como da Igreja Batista da Concórdia localizada no centro do Recife. A Igreja decidiu evangelizar prostitutas devido ao grande número de mulheres que ficavam em sua porta enquanto a instituição se achava despreparada para lidar com tal fenômeno. Formamos então um grupo de jovens que de forma destemida (des)velava as ruas do Recife. Descrevo o termo destemida porque na década de 1980 a cidade já era conhecida como a Venérea Brasileira, devido ao alto índice de doenças venéreas segundo as estatísticas epidemiológicas. Destemidos. Quase inconsequentes. Nessa época, a cidade já era conhecida pelos altos índices de violência – uma violência alastrada em meio a insatisfações, desemprego, miséria, aumento das favelas, crime de colarinho branco, a seca que trazia à cidade os retirantes. Nas saídas pelas noites, nós, os educadores sociais, nos deparávamos com todo tipo de situação imaginável, inclusive tiroteios. Era um mundo paralelo que não conhecia, que amedrontava, mas que ao mesmo tempo me instigava, me desafiava ao extremo. A década de 1980 marca o desmantelamento do regime militar. Ao mesmo tempo a abertura política ganhava sentido devido às pressões populares, e ganhava corpo o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMr). Nessas noites de completa escuridão conheci vários grupos – e existencialmente provei do favo do seu mel – como ato sentido de envolvimento existencial, com o distanciamento reflexivo, e muita Ética. Comecei a trabalhar com as meninas que se denominavam entendidas (homossexuais femininas) e que viviam em espécies de guetos, pois a sociedade não fornecia outros espaços, nem em casa podiam ficar, terminavam por ser moradoras de rua, sobreviventes das noites. Presenciei os efeitos que as drogas causavam nas pessoas, uma existência tóxica e desnuda. Aprendi a ver outros seres no mundo que para mim não existiam – ou que existiam apenas nas descrições dos livros, revistas ou mostrados na TV. De qualquer modo, nesses casos, as descrições eram quase sempre feitas de modo caricato, que de nenhuma forma correspondia à realidade a mim desvelada na rua. Essas ruas me proporcionaram a oportunidade de enxergar o que não conhecia. Provocavam-me a ver coisas que jamais imaginaria. A cada prostíbulo que visitava, em cada zona de prostituição que eu adentrava sentia-me num inferno, fosse pelo descuido, fosse pela falta de camas individuais, pela fome, o fogão sem comida, pelo cheiro de urina. Era metaforicamente o inferno humano daqueles que não têm direito a ter direitos, daqueles que são tratados com indiferença, daqueles que não são considerados humanos. Andando pelos prostíbulos sujos e cheios de dor compreendia a presença daquelas pessoas nas ruas, do sentido de estar em um labirinto. Escutava o silêncio eloquente que por vezes parecia ensurdecedor. Eram grupos sem qualquer vínculo com a cidadania, pessoas que não interessavam ao poder público. Ninguém se interessava por elas. Parecia que elas não eram necessárias à sociedade oficial. Eram desqualificadas enquanto cidadãs, sem perspectiva de futuro. O prazer e desejo confesso, pouco sentiam ali! Mas como o humano é ambíguo. Diante deste cenário, percebendo a indiferença, inclusive da denominação religiosa da qual eu fazia parte, em relação à realização de um trabalho junto às prostitutas, aos viciados, decidi deixar o suntuoso Seminário Batista em estilo americano localizado no centro da cidade. Fui morar na zona de prostituição de Brasília Teimosa. Nome estranho? Nem tanto. Ele se devia ao fato do local ter a mesma idade de Brasília, ter nascido de uma invasão – em que os policias derrubavam todos os barracos à noite e no dia seguinte, lá estavam os barracos todos de pé. Gente resistente e resiliente em seus modos de ser sendo teimoso. Residir junto aos sujeitos do seu trabalho era uma atitude que se tornava cada vez mais corriqueira aos trabalhadores sociais, marcados pela pesquisa-ação e pesquisa participante. Ir morar com as prostitutas, entretanto, não significou que nos prostituíssemos, mas que, pela empatia, sentíamos a experiência (negativa-positiva) delas. Não fui só. Ainda bem que nas nossas ações mais extremas e no nosso jeito de ser sendo radical sempre há alguém do nosso lado. Eu e minha amiga Aneide fomos desafiadas a esta atitude. A indiferença da sociedade e o desafio das prostitutas estavam – com seus modos de ser no mundo – a nos dizer que queriam ver se nossas palavras continuariam as mesmas se morássemos em uma zona de prostituição, o lugar reservado social e historicamente para elas. Na verdade, nossa situação no Seminário já não era tão boa, uma vez que utilizávamos seus jardins para receber mulheres, que na verdade não possuíam o perfil do educando idealizado por eles. Na verdade éramos escuta(dores)! Ficávamos durante horas ali no jardim, mas aquela escola, na época sob a direção de educadores norte-americanos, não suportava a cena, pois ela transgredia a ordem estabelecida de uma estética, dir-se-ia, mais hollywoodiana, neste gesto eu estava a mostrar o meu ser sendo transgressora e ao mesmo tempo o meu ser sendo ingênua. Recebi uma carta de advertência. Fui chamada à reitoria do Seminário e convidada a pensar em minha vocação (leia-se: missão). Interrogaram-me: – Você deseja continuar aqui? Evidentemente era uma ameaça. Sai do internato junto com minha amiga e passamos então a ser alunas externas. Fui impelida a sair do internato, assim como um dia tentei sair de casa. Em ambas retornei por ruas sinuosas: prossegui meu trabalho de modo mais independente, os desafios e as dificuldades me faziam ser sendo forte. Moramos em um barraco de madeira em meio à zona de prostituição. A nossa casa era uma espécie de pronto-socorro socioeducativo. Nela atendíamos a qualquer hora do dia e da noite. Levávamos para hospitais, realizávamos primeiros socorros, no nosso ser sendo solidárias criávamos – de acordo com as demandas – cursos profissionalizantes. Acima de tudo escutávamos! Escutávamos, portanto, com a motivação de nosso sentir, pensar e agir profissionais naquele nosso espaço dentro de Brasília Teimosa. Após quase dois anos morando ali, nos mudamos para outra rua, agora não mais em meio à zona de prostituição, mas no mesmo bairro. Sentimos necessidade de um distanciamento maior, estávamos confusas, pois o ofício de educador social é extremamente desgastante. Percebíamos que o envolvimento existencial era o único que prevalecia, e, por diversas variáveis, não conseguíamos obter o indispensável distanciamento reflexivo. Além do mais, já não se fazia necessário provar mais nada nem para nós, nem para elas. Durante o período que passamos voltadas apenas para a população adulta, começamos a perceber que havia crianças nesse espaço demandando nossa atenção. Eram muitas crianças, filhos das mulheres que se prostituíam. Esses meninos e meninas iam para as ruas do Recife, pois o espaço ali já era pequeno para eles, seus projetos (e de suas mães). Foi então que a Igreja Batista iniciou outro projeto, chamado Novo Caminho. Entretanto, nem sempre o discurso era compatível com a prática. O objetivo com as mães era sempre religioso. O objetivo com as criançasera retirá-las da rua. A verdade sentida era a de que alguns membros da cúpula da Igreja não aceitavam essas pessoas em seu templo. Então se decidiu construir um pequeno templo no local mesmo das prostitutas e seus filhos. Era reproduzida a ideia de que aquela igreja era a igreja das putas. O pastor nomeado era um ex-viciado em drogas, o que não deixava de ser significativo. Após uma visita inesperada da mãe de Aneide ao local onde morávamos, a família da mesma avaliou que o local não era adequado para uma moça de família morar. A partir dessa avaliação e levada por pressões familiares, Aneide mudou-se para Rondônia. Minha família, por sua vez em Vitória, no Espírito Santo, não tinha noção exata de onde eu morava e o que fazia. Desse modo, não tive que me submeter ao mesmo tipo de pressão. Neste período terminei o curso no Seminário e iniciei o curso de Pedagogia, com o objetivo de que este me fornecesse um maior suporte para o trabalho que realizávamos. Alguns membros da igreja se opuseram terminantemente a que eu fizesse esse curso (e o futuro curso de Direito). Essas mudanças provocaram-me bastante. Engajei-me politicamente em alguns movimentos sociais e comecei a ter uma outra visão do trabalho. Vivi minha fase de Marxista ao extremo e passei a sentir/pensar/agir diferente dos modos religiosos tradicionais que tinha experienciado, comecei inclusive a questionar a própria religião, sobretudo a partir de leituras instigantes de filósofos como Sartre e Nietzsche em meu jeito de ser sendo curiosa e questionadora. Essa experiência foi uma aprendizagem significativa, isto é, de sentido para mim! Neste período, junto com outras forças da comunidade no meu ser sendo da ousadia e indo de encontro às orientações da igreja, auxiliei na invasão de um prédio que serviria de sede para um clube de mães formado por prostitutas e esposas de pescadores residentes no bairro. Consegui, junto com outras pessoas, juntar esses dois segmentos em torno de um objetivo. Esta foi para mim uma das experiências mais significativas que pude vivenciar. Uma experiência que marcou toda minha vida. Essa prática psicopedagógica coletiva – do tipo pesquisa-ação – foi amplamente divulgada nos jornais de grande circulação em Recife. O prédio estava abandonado e necessitávamos de espaço físico para realização de cursos e encontros. Nessa época fazíamos o acompanhamento de cerca de 300 crianças, filhos de prostitutas e pescadores. Mais uma vez o trabalho educativo nos permitia unir diferentes (e suas diferenças), estar juntos na diversidade e adversidade, embora mantendo as singularidades (nessa pluralidade). Os meninos e meninas não conseguiam aprender e se evadiam da escola. Eles eram marginalizados e rotulados na escola como “filhos da p...”. Chamá-los de “filhos da...” era uma coisa sentida como muito dolorosa e humilhante. Dentro desse contexto é que um dos nossos objetivos era inventar situações em que os meninos e meninas permanecessem ou voltassem para a escola formal. A relação entre mãe-filho nessa vivência impregnada de preconceito é, no mínimo, complexa. Ao mesmo tempo que as mães os abandonavam concretamente (por um curto período de tempo ou não) eles continuavam dependendo delas. A representação social de mãe como naturalmente boa é muito forte em todos nós, e principalmente entre os desamados de amor. Pode-se falar mal, xingar qualquer pessoa, menos a mãe. O desrespeito ao direito das pessoas com quem trabalhava despertou em mim a necessidade de cursar Direito – que sempre apreendi em mim como uma das táticas certeauneanas de enfrentamento (e de meu fortalecimento) e invenção de um poder (uma estratégia, portanto)! Assim é que aos 27 anos de idade ingressei no curso da Universidade Federal de Pernambuco. Eu trabalhava o dia inteiro, cursava Direito e Pedagogia à noite (estava terminando o curso de Pedagogia). Aos finais de semana ia para o interior realizar trabalhos da igreja. Ter passado no Curso de Direito em uma das mais tradicionais faculdades de Direito do país, responsável pela formação de nomes como Paulo Freire, por exemplo, para mim foi uma vitória importante em minha vida, em meu jeito de ser sendo insistente com o que queria. Após o término do curso de Pedagogia, decidi voltar a Vitória (ES), pois não conseguia mais realizar um trabalho de Educação Social tão ligado aos dogmas da Igreja. Essa proposta de converter (dentro de Educação Social) me incomodava profundamente. A essa altura eu já não servia à igreja (como missionária), minhas ideias tinham se ampliado e eram mostradas cotidianamente mais críticas – encontrei o sentido da vida, inventando táticas mais subversivas (e criativas). Mas ao abandonar o caminho dogmático proposto pela igreja, mantive outras mais úteis para mim. Contudo, a experiência com a igreja não é negada, se sou educadora social (de rua) ainda devo muito a essa experiência, é minha história. O trabalho que desenvolvi naquele período permanece, felizmente, de forma ampliada. Por meio de educadores sociais de formação mais política (e crítica) sem jamais desconhecer que “(...) o afeto conduz o conhecimento” (Pinel, 2001, p. 132). De volta a Vitória, prestei concurso público em Cariacica (ES), transferi o meu curso de Direito para a UFES, mas definitivamente para mim era difícil adaptar-me como profissional à escola formal, era tudo muito previsível e limitado para mim e isso me incomodava. Depois de um ano decidi deixar Cariacica. Exercia o cargo de pedagoga – e meu interesse era pelos discentes, por exemplo, os que faltavam às aulas e ficavam nas ruas do bairro, não foram poucas as vezes que saía em busca dos mesmos em uma rua que seduzia mais que a escola! O sair dos muros da escola, ir à casa dos meninos me empolgava e no meu jeito de ser sendo da transgressão estava sempre a buscar algo além. Prestei concurso para pedagoga em Vila Velha (ES), para o qual fui aprovada. Depois de um ano trabalhando em escola, recebi em 1993 um convite para trabalhar com Educação Social de Rua, convite este que foi aceito prontamente. Em menos de um ano a Secretaria de Educação me transferiu para a Ação Social – espaço onde tradicionalmente (mas não deveria sê-lo) se inserem os educadores sociais. Após julgar que o trabalho por mim realizado não era educativo (no sentido de conteúdo), fui avisada de que não conseguiria promoções ou qualquer tipo de vantagem (do plano de Cargos e Salários) estando na Ação Social. Preferi essas perdas (diga-se de passagem, impedidas pela burocracia e desinteresse pela Educação Social), pois a alma da rua falava mais alto. Por mais difícil que seja, acho que a ligação com a rua é quase visceral, não consigo mais fechar os olhos para esta necessidade que emerge a cada dia, é o espaço profissional socioeducativo que escolhi. Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira, citando as Ordenações: “Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”. A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei infólios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte (Barreto, 2006, p. 1). Na calmaria das noites, na sua “alma tranquila”, sinto-me autorizada a atuar como educa(dor)a. Essa alma da rua me inspira a escutar, a sereduca(dor)a que é uma ajuda(dor)a. Não há mais como fechar os olhos (que um dia se abriram) e desvelar a realidade daqueles que estão nas fronteiras, colocados à margem. 2. Os filhos da pobreza e a escola As escolas que hoje existem não foram pensadas nem criadas para todas as crianças e adolescentes, são diferentes de seu cotidiano vivido, por isso se estabelece o que Paulo Freire chama de pasmo pedagógico, algumas situações onde a escola não sabe o que fazer com elas. Compreendo que a ideia dicotômica que vem das palavras inclusão e exclusão não abarca a discussão dos direitos de todos os sujeitos, pois mesmo depois que tais sujeitos estiverem incluídos na escola o processo de libertação ainda continuará. Os conceitos de tratamento sócio-histórico serão melhor alocados na perspectiva freiriana da libertação ou emancipação. Talvez num ato de resistência as crianças simplesmente abandonem a escola; esse lugar que para elas não parece ter muito sentido, não quero com isso dizer que a resistência ou o desencanto com a educação escolar deva ser a única responsável pela evasão escolar da criança ou que é culpada de todas as mazelas sociais, mas também não eximo sua responsabilidade. Os Educadores Sociais de Rua, pelo que percebemos em seus diálogos, ainda sonham, e talvez essa seja uma de suas mais belas e intocáveis habilidades, sonhar com (im)possibilidades possíveis, com a escola pensada para todas as crianças brasileiras, como nos diz Freire “sonhar aí não significa sonhar a impossibilidade, mas significa projetar. Significa arquiteturar, significa conjeturar sobre o amanhã” (Freire, 2004, p. 293). Ser estratégico no sentido da palavra mesma, sonhar como se estivesse jogando pedagogicamente xadrez, essa é mais uma (in)conclusão. Olhe, eu não sei o que de tão trágico acontece com esses guris dentro da escola, posso até imaginar, mas eles não gostam da escola, não foi feita para eles entende? Aqui em Porto Alegre temos uma escola que no início foi pensada para as crianças e adolescentes que viviam nas ruas, inclusive nós educadores acompanhávamos todo o processo e tínhamos uma relação com as professoras que também iam às ruas, agora a coisa mudou um pouco, a escola ainda existe porque as pessoas que estão lá brigam para não fechá-la, mas já não é mais a mesma, se está certo ou errado ter uma escola assim eu não sei, o que posso te falar é que os guris gostavam de estar lá, eles precisam de uma escola diferente. (Educador Social/Porto Alegre) A criança e o adolescente, principalmente das camadas mais pobres de nossa sociedade, chegam com demandas urgentes, num mosaico que possui mil formas, portanto, elas deveriam ser olhadas e compreendidas pela escola de maneira única e singular, esse olhar contribuiria para a permanência dessa criança e adolescente na escola, que construiria junto com essa escola o seu saber, o saber de sua experiência, imbricado ao seu cotidiano, um saber empapado de desejo. É de Paulo Freire a reflexão de que o educador ou a educadora progressista, ainda quando, às vezes, tenha de falar ao povo, deve ir transformando o ao em com o povo. E isso implica o respeito ao saber de experiência feito. (Freire, 1993, p. 25) A evasão precoce o não aprendizado dos conteúdos são formas que essas crianças têm de falar que essa escola não consegue enxergar seu cotidiano, seus desejos, sua existência. A relação da escola com a criança e principalmente com a criança privada dos bens de consumo é perversa: essas crianças têm nos falado isso através do seu jeito de relacionar-se com o ambiente escolar. [...] eu até queria estudar, mas é muito chato, tia, só vou de vez em quando porque minha mãe obriga, se não perde o dinheiro do governo (bolsa escola) se não eu não ia não, tem muito pirralho e a professora é muito chata, eu quase não vou à escola e quando eu vou, ela vive chamando minha mãe na escola, não adianta nada, mas ela sempre chama para falar mal de mim, que não aprendo nada, não sei de nada [...] [F, 12 anos, nas ruas desde os 9 anos]. (Paiva, 2006) Essa fala me incomodou desde o momento que a ouvi e sempre que a releio, me incomoda por ser educadora antes de tudo, me incomoda por sentir nessa criança que, apesar de tantas pesquisas, de tantas leis garantindo o direito dessas crianças à escola, nós, educadores, dentro de um contexto educacional complexo, continuamos a expulsar crianças da escola, continuamos “falando mal” de nossas crianças, fatos como esse me (co)movem e o que aquieta meu coração é saber que mesmo em meio a tantas expulsões existem muitos educadores escolares e sociais tentando, sonhando, abrindo portas para que esses meninos não só permaneçam na escola mas para que essa escola seja a base de suas esperanças futuras. 3. Os atravessamentos das ruas e de outros processos educativos na Pedagogia Social Do ponto de vista jurídico, a criança e o adolescente se constituem no discurso como “sujeitos de Direito”. A Constituição Brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente corroboram esse pensamento, ao menos no papel, na “poesia das letras” – no imaginário ou no ideal – existem a criança e o adolescente pobres como sujeitos de direito. Contudo, saber que existe o texto legal em que estão postos os direitos não basta para que esses sejam exercitados. É necessário que haja Políticas Públicas para a implementação desses direitos, é necessário que haja desejo da sociedade para que estas políticas sejam de fato implementadas. Mancebo (2002, apud Barbosa, 2003, p. 53), nos seus estudos sobre a subjetividade, destaca que para o discurso neoliberal o Estado fracassou em suas obrigações na esfera pública e a livre iniciativa assumiu então a democracia, a economia e a sociedade. Nesse sentido, apreendemos que os pobres, penetrados e também penetrantes – numa subjetividade social, são os culpados pela pobreza; os desempregados pelo desemprego; as crianças e adolescentes de rua por estarem morando nas ruas; os chamados excluídos por não aceitarem a inclusão. Os perversos e intencionais mecanismos de um sistema capitalista globalizado, muitas vezes caracterizado como selvagem, alicerçado em injustiças e desigualdades sociais absurdas, atuam como produtores de um contingente significativo de miseráveis que não conseguem desfrutar de direitos humanos elementares: poder comer, dormir em casa, trabalhar, estudar e divertir-se minimamente (Justo, 2003). As crianças e os adolescentes que fazem das ruas seu lar são parte desse retrato sofrido de marginalização social e econômica, representam vidas postas à margem, nas fronteiras de não ser, donos de histórias não escritas, quase sempre vistas como chagas sociais. Uma ferida que não se ousa enxergar, pois é parte integrante do nosso próprio ser, mas que, num mecanismo de defesa, nega-se, ignora-se. No Brasil são várias as “ferramentas” normativas e jurídicas criadas para orientar o cotidiano da criança e do adolescente de rua. Destacamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se constitui em um ideal a ser atingido por todos os povos, uma conquista histórica que valoriza as diferenças, a liberdade, a solidariedade e impulsiona a seguir em frente aceitando o desafio e tendo esperança na luta. A Constituição de 1988, chamada pelos políticos constituintes de Constituição “cidadã”, traz parâmetros valiosos para o trabalho social: a construção de uma sociedade livre e justa, e a erradicação da pobreza. Os direitos e garantias elencados no artigo 5º falam exaustivamente acerca dos meios para realização plena da condição de ser humano. Nessa Constituição, há vários artigos destacados como direitos específicos da criança e do adolescente. O artigo 227, inclusive, constitui-se peça fundamental para o Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse artigo vem alertar que é Dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivênciafamiliar. A sociedade civil se organizou e conseguiu a inclusão, em processo legislativo, da proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente, instituída pela lei 8.069/90. Ferramentas normativas, portanto, não faltam. Sentimos falta de vontade política para fazer valer a lei que já existe. Quanto à escolarização das crianças e adolescentes, também garantida na Constituição do país, observamos que existe um direito que se revela em um não direito na medida que inexistem mecanismos pedagógicos e sociais que mantenha na escola aqueles que são pobres, que vivem à margem, e/ou vivem em situação de rua. Neste trabalho, estamos afirmando a importância da educação formal na vida das crianças e adolescentes em situação de rua. Contudo, refletimos sobre a realidade complexa vivida na escola, onde pensamos/sentimos que é universal e ao mesmo tempo não o é. Mas contraditoriamente a escola que faz desaparecer o sonho é a mesma que ainda se constitui como palco de esperança para os excluídos e é por ela que se luta, é para ela que se deseja que as crianças e adolescentes em situação de marginalidade retornem para que possa ocorrer um encontro de saberes. Não se está negando a importância da educação formal na minimização de diferenças sociais, que existem desde o início do Brasil colônia. A educação é um dos direitos que possui uma maior importância e maior abrangência, e devido a este fato precisa ser garantida às crianças e aos adolescentes que se encontram a margem do contexto educativo escolar. Neste processo humano/desumano de marginalização econômica e social em que o direito é algo cada vez mais inatingível, e muitas vezes é criado para ser fator expulsão da escola. Torna-se garantia de marginalização e pobreza. Nesse contexto estão inseridas também as crianças e os adolescentes em situação de rua que, às vezes, parecem ter nascido das entranhas da “grande mãe rua” que os (a)colhe sem impor muitas condições ou fazer questionamentos. Passado mais de um século da escravidão, essas crianças e adolescentes ainda carregam suas chagas e as feridas ainda estão expostas através da discriminação racial (já que em quase sua totalidade são afrodescendentes), do desemprego, da injustiça. Tais crianças deveriam estar na escola, mas se encontram na rua representando ora com resistência, ora com resiliência o papel de não cidadão, de inexistentes para as agendas de políticas sociais e para o Direito. Os direitos que são assegurados por lei às crianças e aos adolescentes são violados e ignorados sem causar espanto à sociedade. Chegamos ao final do século XX e entramos no século XXI com um sistema de educação formal precário e um processo de marginalização social e econômico crescente para as camadas populares (Leite, 1991, p. 174). O individualismo e a competitividade são estimulados nos alunos e alunas; só os mais aptos sobrevivem e possuem o privilégio de estar fora da roda da marginalidade (Garcia, 2000). Nesse processo, crianças e adolescentes em situação de rua passam quase que invisíveis. Se para as camadas mais pobres da população faltam agendas de políticas sociais, para as crianças e adolescentes em situação de rua essas por vezes parecem inexistir e em relação à educação eles terminam não entrando nem mesmo em dados estatísticos. Mesmo quando se tornam “estatística”, a situação desses jovens parece esbarrar na falta de vontade política para revertê-las, pois esses dados parecem não assumir importância relevante a ponto do motivar políticos a resolverem a situação. As crianças pobres vivem em uma escola que não foi pensada para elas, o aluno inventado no imaginário social não é o pobre. Em virtude deste fato, esta criança sente-se incapaz de atingir os objetivos propostos pela escola, por isso logo a abandona em busca de algo que é mais concreto: ganhar dinheiro para ajudar a família, ganhar liberdade, sentir-se aceito e incluído em algum lugar, valorizado no que se refere a seus talentos potenciais. Sobretudo, sentir que é capaz de aprender. A postura da escola – muitas vezes não reconhecendo a capacidade de aprendizagem desse aluno, desconhecendo sua realidade social, afastando- se do seu cotidiano – aliada a outros fatores, contribui para o ingresso prematuro da criança e do adolescente no mercado de trabalho. Mais tarde, esses se tornam viajantes nômades em sua própria cidade, adotam as ruas como sua escola e seu lar. Esses adolescentes não “aguentam” mais uma escola pública formal, porque sua experiência de vida geralmente é mais diversa e dinâmica que os conteúdos vivenciados pela escola, que muitas vezes parece não ter sentido, representando uma quebra em seu cotidiano. A escola termina por marcar essas crianças e adolescentes pobres com o símbolo do fracasso eterno, pois não conseguem se comportar, aprender de forma “harmônica” e “linear” como quer a escola pensada por adultos – por isto é que desconhece ou desconsidera a autenticidade, a legitimidade da vivência diversa dos discentes. As crianças e adolescentes em situação de rua, de uma maneira geral, contam uma história de fracasso no que se refere às exigências escolares – eles não conseguem “se enquadrar”. Quando chegam à escola as crianças precisam adaptar-se a ela, às normas estabelecidas, que não coincidem com aquelas vivenciadas no cotidiano dos meninos e das meninas das classes populares. “É outra escola que precisamos construir para os meninos de rua e para as classes populares de forma geral, uma escola em que lhes permita viverem, aprenderem e serem felizes” (Graciani, 1999, p. 14) Ao chegarem à escola as crianças pobres se descobrem em um mundo diferente daquele em que vivem, são geralmente rotulados de alunos “deficientes” ou com dificuldades de aprendizagem, pois na escola atual não há espaço para outros saberes se não os preestabelecidos e julgados como ideais. Enfim, Tudo na sociedade contribui para que os meninos pobres se julguem ignorantes e incapazes de aprender alguma coisa sem ajuda dos doutores. Afinal é preciso aprender com quem estudou e por isso detém o saber. (Graciani, 1999, p. 42) As crianças possuem o desejo de estudar, só não conseguem fazê-lo no modelo de escola que se apresenta a elas. A escola que os meninos e meninas de classes populares, pobres, necessitam é a escola que os ajude a se livrar de rótulos como o de incapazes, incompetentes, sem futuro. Precisamos considerar seu saber e sua experiência cotidiana. No modo de ser sendo otimista não achamos que seja esta uma escola impossível. Neste sentido Graciani (1999) diz que: A escola que deveria representar para as crianças um espaço de crescimento, promoção e realização, encontra-se deteriorada em sua proposta educacional, totalmente desarticulada e desorganizada, mas com trágicos objetivos violentadores, caracterizados de “massificação”, “coisificação” e “robotização” na transmissão do conhecimento. O maior abuso contra a criança e o adolescente ocorre quando sua personalidade é destroçada, pelo reforço da escola excludente, com sua cidadania tolhida e seus direitos desrespeitados e até aviltados e violados. (p. 140) A escola, assim, é mais uma instituição que é criticada pelos críticos- reprodutivistas por reproduzir o processo burguês de exclusão social, pelo viés da exclusão escolar, no entanto não é a única culpada por todas as mazelas sociais, ela é só mais uma instituição a contribuir direta ou indiretamente com a marginalização social de muitos alunos da classe popular. Os nossos alunos e alunas das classes populares, afro-brasileiros em sua maioria, são também jogados no mundo do não ser, do não saber, do fracasso. Como todos os diferentes, as exceções, os que erram, os que não correspondem ao modelo da normalidade e de acerto, farão parte do contingente dos terceiros excluídos. (Garcia, 2000, p. 123). A vivência contra todas as probabilidades de existência faz com que essas crianças mostrem competência, esperança, resiliência, ou, por que não dizer, resistência em relação aos padrões estabelecidos. A resistência as vocacionapara a vida, por isso se recusam a submeter-se a padrões rígidos, convencionais que desrespeitam e desconsideram a sua experiência, sua cultura. Desrespeito este expresso, por exemplo, numa sala de aula através do saber e não saber revelado nas avaliações quantitativas e antidemocráticas a que são submetidos. As crianças abandonadas nas periferias ou nas ruas terminam por encontrar uma forma diferente de ser ou existir e sentir nas ruas, esses nômades, vistos pela maioria da sociedade como “selvagens sociais”, possuem um “sentido na vida” que os fortalece, que os torna, algumas vezes, até mesmo “invencíveis” em seu híbrido jeito de ser “sendo”. Não conseguindo se adaptar aos padrões estabelecidos pela escola, não se sentindo importantes para esta instituição que ao mesmo tempo que abre sua porta de entrada, faz o mesmo com a porta de saída, os alunos passam a ter então condutas consideradas perturbadoras para a ordem da escola, condutas essas criadas talvez como um ato de resistência a todas as normas estabelecidas de forma ditatorial. Os meninos e meninas ao chegarem à escola se negam ao processo de conversão a uma instituição que por ora encontra-se desvinculada da vida social experienciada por eles; ao negar a diferença social de seus alunos marginalizados, rotulados, a escola termina por aprofundar mais e mais essa diferença. A realidade vivenciada por esses discentes não aparece na escola, que muitas vezes encontra-se estabelecida ao lado de sua casa. Ela não permite que o cotidiano e o saber das crianças e dos adolescentes ultrapassem seus muros. Nesta escola os meninos e meninas costumam não encontrar a brincadeira, o riso, o lúdico. As brincadeiras, o riso, possuem horário estabelecido (o recreio) para aparecer, e quando aparecem fora desse horário são vistas como transgressões que precisam de alguma forma de punição. O mundo da escola, enfim, é muito diferente do mundo vivido pelos meninos e meninas das classes populares. Tais fatores – aliados a outros tantos, como sanções, reprovações – são os responsáveis pela vivência do fracasso escolar deles; isso faz parte de uma dinâmica que corrobora a saída gradual da escola, e que levará a criança a buscar o novo, algo que lhe satisfaça, que no caso especifico das crianças e adolescentes em situação de rua, é a própria rua. Não pretendemos tecer um discurso de culpa á a escola , apontando-lhe seus erros. Sabemos que ela é mais uma instituição na sociedade e não pode ser responsável pela existência da injustiça social no Brasil. Existem muitos educadores que resistem e encontram estratégias para manter os alunos em suas salas de aula, contudo chamamos a atenção para a escola como uma importante instituição e que possui um papel relevante na vida desses meninos e meninas. Sem dúvida trata-se de uma instância educativa capaz de impulsionar mudanças e causar profundas transformações na dinâmica marginalizante que se institui, atualmente, na sociedade brasileira. Didaticamente, parte-se do macrocontexto (sócio-histórico) para o microcontexto do ser subjetivo criança e adolescente em situação de rua inserido nesse outro contexto (da Educação de Rua) e de outros contextos marcantes da sua vida como família, casa, rua, e outros espaços também educativos. Destaca-se o surgimento do que se está a denominar de Educação Social enquanto prática, alicerçada na Pedagogia Social como teoria, em que educação não é sinônimo de escola mas uma das possibilidades de processos educativos. A rua, para a existência dos meninos e meninas que ali vivem abaixo da linha da pobreza, trata-se de uma situação complexa, que abarca um doce e amargo paradoxo: além de ser o lugar onde se constroem feridas existenciais e onde o medo da morte é constante e perturbador, também é um lugar onde o educador social precisa estar, não para legitimar a rua como lugar de criança e adolescente, mas para agir como alguém que de alguma forma irá parar o processo de marginalidade que conduz essas crianças, alguém que irá lhes trazer esperanças de um mundo melhor. Não falamos aqui em inclusão ou exclusão por acreditarmos que mesmo as crianças abaixo da linha da pobreza, mesmo os que estão nas ruas, ao mesmo tempo que estão fora de uma sociedade de consumo, estão dentro de outras sociedades resistentes e resilientes, de alguma forma estão inseridas em seus grupos. A criança e o adolescente quando resolvem sair das favelas e chegam às ruas passam a vê-las e senti-las como a grande casa à deriva, que nem sempre navega a um porto seguro. É na rua que se drogam, comem, brincam, experimentam relações interpessoais significativas, praticam afetos, obedecem a um código ético próprio, com normas de controle criadas por aqueles que nela habitam, estão sempre a aprender conteúdos cada vez mais diversificados. Utilizam-na como banheiro, nela são vítimas e praticantes da violência, são solidários e fazem amor compondo a poesia fecunda de seu “existir insistido”. O olhar e o entendimento desses fenômenos nos fizeram enxergar o belo neste cotidiano marcado por desesperança, mas também por enfrentamentos. O olhar se faz necessário. Precisa-se aprender a ver, não para “contemplar“ o existir insistido das crianças e dos adolescentes que estão nas ruas, e sim para que de alguma maneira se pudesse intervir sobre o fluxo continuo de crianças e adolescentes submetidos às mais diversas forças e fenômenos que as puxam e empurram para as ruas. Mais uma vez sentimos que os problemas de ordem social não afetam só a criança e o adolescente que está nas ruas, destituída de seus modos de ser criança e adolescente, de sua cidadania, mas também a sua família, a sua comunidade e, de certo modo, a todos nós. A saída da favela e a aventura da rua torna esses meninos e meninas protagonistas de sua própria existência, em meio a um ciclo de situação de vida instável e perigoso, em meio a um estilo de vida caótico, pautado pela insegurança e pela tragédia cotidiana, um viver sem expectativas de melhora, são os “filhos de ninguém” nas ruas, fazendo brotar vida em seu cotidiano, renascendo das cinzas a cada queima e a cada dia. A academia brasileira de algum modo está, de forma sensível, abrindo- se para escutar e receber discursos/ações que vêm das “minorias” (nem sempre pequenas assim). Estudos sobre a Pedagogia Social e a Educação Social têm sido significativos, mostrando alternativas que podem ser efetivadas caso o Estado (e, por conseguinte, a sociedade) lute por implantar políticas públicas favoráveis à causa dos sujeitos. Neste sentido vários pesquisadores de diversas universidades têm se destinado a construir uma nova Pedagogia que dê conta da complexidade social em que vivemos. No Brasil de hoje, pouca coisa mudou desde o período colonial, quando as crianças pobres não eram vistas como crianças, os orfanatos eram tidos como depósitos, e o trabalho com crianças e adolescentes pobres como caridade. No atual momento histórico, trabalhar com crianças e adolescentes de rua é visto como “alimentar futuro bandido”, pois, afinal, a ideia que parece predominar na sociedade brasileira contemporânea é que as crianças e adolescentes estão nas ruas porque querem,estão no tráfico porque querem, abandonam a escola porque querem, são as culpadas! A sociedade parece esquecer que essas crianças e adolescentes vivem numa conjuntura histórica em que a existência insistente de crianças e adolescentes nas ruas dos centros urbanos do Brasil bem como cooptadas pelo tráfico nas grandes favelas reflete condições políticas e socioeconômicas precárias, não se constituindo, portanto, em obras do acaso. Paradoxalmente, esta sociedade procura mantê-los e, ao mesmo tempo, também tenta acabar com este problema social, procurando eximir-se da culpa, da sensação ruim de andar pelas ruas e ver o que acontece com a infância do Brasil (Kramer, 1993). Desde o Brasil colônia, a infância resiste nas ruas, infringe normas, resiste, insiste em viver, em ser sendo, se mostra para aqueles que não a querem ver/sentir, e apesar de tudo, transmiteesperança, luta a cada minuto por sua sobrevivência e expõe pelo seu corpo toda a miséria do país. São crianças e adolescentes resistentes, resilientes, que só se deixam derrotar quando sucumbem à morte. E, a todo o momento, inventam e reinventam modos de ser sendo (sobre)viventes, de uma forma que parece pré- concebida, marcada, como se fosse um “destino” que os persegue. A história das crianças e adolescentes em situação de rua do Brasil se funde e se confunde com a história da pobreza do país, da desigualdade social, ora velada, ora revelada pela multiplicação das favelas a cada dia. As crianças e adolescentes em situação de rua não pertencem às famílias de classe alta ou média, mas às famílias de miseráveis, e ganham as ruas para sobreviver, são frutos da perversa desigualdade social que assombra as famílias pobres cotidianamente. Das senzalas às ruas, os “filhos de Zumbi”, como nos diz Leite (2001, p. 57), seguem suas vidas resistindo nos quilombos, que ganham espaço debaixo das marquises, debaixo das pontes, nas calçadas. Na condição de vítimas impotentes, mas ao mesmo tempo onipresentes, pois estão cada vez mais em todo lugar, fazendo-se ver, ocupando uma posição sócio-histórica que ainda há de ser muito pensada, repensada e escrita; é sua forma de resistência de se negar a morrer na favela como menores. O termo “menor” surgiu, no contexto da sociedade brasileira, justamente para indicar um trato diferenciado para com as crianças e, por outro lado, para legitimar o poder do Estado sobre aqueles que se encontravam em situação de abandono e marginalidade. Esse termo vem carregado de inúmeros significados, indicando os estigmas lançados sobre aqueles que se encontram tutelados, marginalizados e inadaptados ao modelo burguês de criança (Araújo, 1996). Esse termo felizmente foi retirado do texto da Constituição de 1988, apesar de usualmente ainda ser utilizado por advogados, policiais e até mesmo juízes. Que criança real é esta que a escola não consegue alcançar? O problema estaria no fato das visões equivocadas dos adultos (que legitimam a hegemonia)? A escola é construída para uma criança que não existe (pois não a escuta)? Seria este o motivo da mesma ser deixada/abandonada pelas crianças e adolescentes que estão nas ruas ou no tráfico (reproduzindo assim o abandono sentido, de sua afecção)? Esses seres humanos que vivenciam esta situação de rua – em quase sua totalidade – já passaram pela escola e nela não conseguiram ficar. Jesus (2004) fala da necessidade que a escola tem, como organização, de repensar a sua função curricular, bem como a sua forma de gestão. Também destaca a urgência em refletir e (re)significar suas formas de aprendizagem a partir das inovações metodológicas e didáticas na organização das turmas, dos tempos e dos espaços da escola, a própria pedagogia escolar, com vistas a atender crianças e jovens provenientes de culturas cada vez mais diversificadas, nas complexas sociedades atuais. A escola que não cumpre essas tarefas – que dela se espera – produzirá meninos que dela escapam, alguns terminam por encontrar na rua uma ampla e descontrolada “sala de aula”, um outro espaço – que provoca, evoca e ensina. Eles aprendem. Nesse contexto, necessita-se de uma escola escuta(dor)a das crianças e dos adolescentes, para a partir daí ressignificar sua existência e relevância social, de uma escola que dê conta de uma práxis educativa social alicerçada em uma pedagogia social. As crianças e adolescentes em situação de rua vivenciam o resultado do vazio educacional, do qual eles apreendem uma escola sem sentido, imersa em um pasmo pedagógico freiriano. Criou-se um mito que mistura verdade e fantasia e poucos conseguem compreender, tratando-se de uma complexidade que precisa de descomplicação. Um mito (que se concretiza) que coloca as razões do fracasso – das políticas públicas, por exemplo – nas crianças e adolescentes, gerando uma culpa que desvalia, desprotege, humilha, impede. Esse mito se fortalece cada vez mais como resultado do silêncio do Poder Público no que se refere à implantação das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, pela própria Constituição de 1988 e pela Declaração de Salamanca – da qual o país é um dos signatários. Uma política pública social e econômica que não se efetiva pode ser definida, como diz Sawaia et al. (2001), como cínica, que maquia a marginalização e produz descrença em relação a essas mesmas políticas. Daí a importância da criação de novas políticas para a construção de novas subjetividades, políticas voltadas para as minorias que lutaram e que dessas políticas e projetos esperam resultados. Por isso é importante, entre outras coisas, existirem projetos sociais e educacionais (ou socioeducacionais) que permitam que esses meninos se sintam aceitos, integrados e tenham liberdade para falar, questionar, reivindicar (Leite, 2001, p. 66). A partir desse momento, a escola deve refletir sobre si mesma e no que ela anda inventando de rejeição e impedimento, desvelando-se uma “escola reflexiva”, como diz Alarcão (apud Jesus, 2004, p. 94). Conforme Pinel (2005), uma escola reflexiva “[...] produz sujeitos capazes de apreenderem o significado do experienciado no seu cotidiano” (p. 3). As crianças e adolescentes resistem o quanto podem, desejando ver e sentir seus projetos de vida serem reconhecidos e considerados nos currículos. Essas crianças são vistas como menores – menos quê – como não sujeitos de si no cotidiano do mundo. Os menores são considerados pela instituição escolar como capazes de serem submetidos, caso contrário, serão considerados incorrigíveis. Nesse sentido temos que nos referir mesmo a esse termo “menor”, uma palavra não mais recomendada e extinta da Carta Magna. Ao longo do tempo, “menor” passou de substantivo para adjetivo, referindo-se à qualidade de pequenos e pequenas pobres e com outros estigmas. Ainda segundo Carrara (1999), menor é também uma metonímia, porque toma a idade da pessoa como a pessoa por inteiro, ou seja, à parte do todo. Chamar alguém de menor, segundo ela, reduz a totalidade sobre essa pessoa: sexo, cor de pele, condição social, sua história. Alguns sociólogos apontam para a diversidade do que se considera hoje, no Brasil, “menino de rua”. Há pelo menos três categorias que emergem dessa experiência: I - O menino que vai às ruas para realizar algum trabalho e volta toda noite para casa e para sua família; II - O menino que vive nas ruas, sem elo contínuo com a família, mas que mantém com ela ainda algum contato; e III - O menino que está completamente nas ruas, sendo que já perdeu esses vínculos familiares (mais clássicos) e luta do modo como lhe é possível para viver ou sobre(viver) – por meio das mais diversas táticas para burlar o sistema perverso e opressor – realizando com frequência roubos, assaltos, usando drogas, mas ainda assim, mostrando suas inventividades de (sobre)viver. A situação das crianças e adolescentes em situação de rua se assemelha a uma ilha cercada de omissões por todos os lados, abrigando o sentimento de ficar à deriva, uma soltura não pedida, um clamor de cuidados. A criança e o adolescente de rua estão sem um porto seguro – social e historicamente representado, no Ocidente, pela casa e pela família. Estas crianças e adolescentes encontram-se sem família, sem escola, sem sua comunidade de origem: desmamados de seio e do afeto que a amamentação envolve. Na maioria dos casos, a única política pública que aparece, infelizmente, é a segurança pública feita pelo policiamento ostensivo e agressivo. Um mito (que se concretiza) que coloca as razões do fracasso das políticas públicas, por exemplo, nas crianças e adolescentes, gerando uma culpa que desvalia, desprotege, humilha, impede. Esse mito se fortalece cada vez mais, como resultado do silêncio do Poder Público no que se refere à implantação das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, pela própria Constituição de 1988 e pela Declaração de Salamanca – daqual o país é um dos signatários. Uma política pública de inclusão social e econômica que não se efetiva pode ser definida, como diz Sawaia et al. (2001), como cínica, que maquia a exclusão e produz descrença em relação a essas mesmas políticas. Daí a importância da criação de novas políticas para a construção de novas subjetividades, políticas voltadas para as minorias que lutaram e que dessas políticas e projetos esperam resultados, enfim, novas pedagogias que venham atender essas crianças e adolescentes, que com a universalização da escola nela entraram mas os educadores não souberam e não sabem o que fazer com elas. Retomamos Carrara (1999), para quem menor é uma metonímia. Chamar alguém de menor reduz a totalidade sobre essa pessoa. Isso retira os estilos de aprendizagem dos meninos, os despersonaliza (ou tenta isso). É uma tentativa de produzir uma subjetividade de ser inferior e humilhado. Como afirma Reich (apud Pinel, 2003, p. 6) “um Zé Ninguém, que carece ser escutado, mas não o escutam”. Nas ruas observa-se um número maior de meninos se comparados ao de meninas. Poucas meninas se lançam no caminho entre a casa e a rua, e as que o fazem são vítimas de um preconceito muito maior que o sofrido pelos meninos. A este respeito, Carrara (1999, p. 56) afirma que as meninas são vítimas de um preconceito muito maior, principalmente devido ao estigma de prostituta que carregam. Pinel (1989, p. 4) detectou que as meninas eram pouco detidas, por serem “protegidas” por agentes que deveriam de fato protegê-las, mas terminavam usando-as sexualmente. As crianças e adolescentes em situação de rua, paradoxalmente, são ao mesmo tempo invisíveis e onipresentes, invisíveis se tornam tanto aos governos quanto à sociedade, uma vez que ambos insistem em ignorar o problema. Para a sociedade, essas crianças, os menores de rua, fazem parte do cenário da cidade assim como as árvores, os bancos das praças, pombos; essa invisibilidade, ao mesmo tempo que os nega lhes dá a onipresença, pois ocupam cada dia mais espaço e, invisíveis ou não, resistem em todo lugar. A pobreza, a falta de recursos, o afastamento das condições mínimas para a manutenção de sua existência entre seus pares, são situações experienciais negativas que, de maneira cruel e geral (mas não determinante), destroçam seus modos de ser sendo. As ruas ganham vida com esses meninos e essas meninas, mesmo que não se possa crer nisso. Basta olhar sentindo cada expressão verbal e não verbal. Uma vontade de viver custe o que custar. Uma disposição para aprender. Vendo um menino correndo de perseguições (de policiais, dos colegas, dos pais), os educadores escolares não compreendem como esse corpo em jogo de vida não seja capaz de apreender as razões ensinadas na escola. Será que as escolas transmitem tais razões encarnadas, tal como são suas vidas? Serão as ruas melhores que as famílias? “Serão as estrelas suas protetoras?” O menino não tem condições mínimas para estar sendo no mundo de maneira digna, social e historicamente reconhecido como tal. Assim, a construção da subjetividade dos modos de ser sendo sofre enorme impacto diante da miséria e desproteção social, pois estas terminam por significar este modo de ser sendo, incompletos. Há resistentes, resilientes, mas há pessoas que se entregam ao desamparo! Há os que se entregam às drogas! Há os que se entregam ao tráfico! Os grupos sem vínculos com o mundo oficial e da cidadania, bem como aqueles que não têm direito a ter direitos e cujas potencialidades humanas encontram-se limitadas à luta pela sobrevivência, não interessam a ninguém, tampouco ao Estado. São supérfluos e desnecessários à vida social, são descartáveis, e podem ser eliminados das mais diferentes formas, ostensivas ou opacas, que ninguém os reclamará, “Os pobres são aqueles que não têm nome, não têm rosto, não têm identidade, não têm interioridade, não têm vontade e são desprovidos de razão” (Telles, 2001, p. 42). Esse ser desqualificado por não Ter – e ousar Ser – é subjetivado como o ser da falta. Logo esse ser sendo é no modo de ser sendo da não cidadania (que é seu direito). O aparato social e econômico quer retirar seu sentido (de vida), um ser que não encontra amor. Surge então para esse ser resiliente uma espécie de um “quê fazer” e ele sequer consegue sofrer com dignidade, pois o sofrimento produzido não é seu (e o é), e não cabe encontrar sentido da vida aí, mas enfrentá-lo como em um trabalho amoroso. O amor, segundo Frankl (1991, p. 29), é o condutor de um trabalho (que exige uma razão encarnada), de um enfrentamento. O ato sentido de enfrentar pode ser considerado como um ofício de quem é constantemente submetido, e ao mesmo tempo impõe amor a si mesmo no mundo. Trata-se de uma espécie de noção ou sentimento de que sobreviver traz perspectiva de ser sendo melhor socialmente. Telles (2001, p. 127), descreve o processo de exclusão social, dizendo que nele existem os direitos que recriam desigualdades. Aos pobres resta o espaço da assistência social, cujo objetivo não é elevar condições de vida, mas minorar a desgraça e ajudar a sobreviver na miséria. Esse é o lugar dos não direitos e da não cidadania, diz o autor. É o lugar no qual a pobreza vira “carência”, a justiça se transforma em caridade e os direitos em ajuda a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído. Com problemas na família e alienados pelos serviços sociais, as crianças e os adolescentes muito pobres veem seus laços com a sociedade cada vez mais enfraquecidos, e às vezes difíceis de ser subjetivamente enfrentados. As crianças e adolescentes em situação de rua podem até “refletir” que a sociedade não se importa com eles – apesar de haver grupos (minorias) de oposição ao estabelecido pelo poder dominante. Enfraquecimento dos laços familiares e a falta de investimento social na vida dessas crianças e adolescentes terminam por se tornar motivos fortes para sua ida às ruas. As crianças e adolescentes em situação de rua fazem parte de uma “massa” de pessoas que sofrem e carecem de um sistema público de eficiência social. Mas mesmo sem ter o apoio social necessário existem, resistem, são resilientes. Estão à margem das regras formais, fazendo-se visíveis num mundo que os quer invisíveis. Sujeitos da fronteira, mostrando das sombras sua existência. A casa e seu significado psicossocial de segurança e porto seguro aparece das sombras, num país onde nem todos têm casa, pelo menos os empobrecidos. A casa – para ser casa – precisa da rua, que é seu complemento; mas a casa não pode ser a própria rua. Damatta (2004, p. 23 - 31), diz que a Casa e a Rua se interagem e se completam num ciclo que é cumprido diariamente por homens, mulheres, velhos e crianças, ricos e pobres. Segundo ele, existe em nossa sociedade um sistema dividido em dois espaços sociais básicos: a casa e a rua. Um lugar público (rua). Um lugar privado (casa). Além de uns outros lugares híbridos, isto é, “públicos privados”. A casa congrega uma rede complexa e fascinante de símbolos que são parte da cosmologia brasileira. Ela recorta o espaço amoroso em que a harmonia deve reinar sobre a confusão, a competição e a desordem, há o supremo reconhecimento pessoal, é a casa que acomoda nossos desejos, acalenta nossos sonhos. A casa não é governada pelas leis escritas, tem uma referência mais sólida, a casa enfim, é a proteção da rua. O espaço Rua é o local de movimento, pois a rua não é fixa, move-se como um rio, num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas que se chama de povo e de massa. Em casa todos têm rosto (e alma); na rua, os indivíduos possuem apenas “cara” e corpos. A rua é o espaço da “massa” que povoa as nossas cidades e que até hoje remete à ideia de pobreza e exploração. Na rua são depositadas as perdas causadas pelas exclusões sucessivas e, no seu oco, a ausência ou precariedade dos dispositivos de proteção à vida, construídos pela cultura ao longo do tempo: a lei, a garantia de direitos e deveres, a ciência,
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