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1 Da exigência das seguradoras de apresentação das notas fiscais de origem das peças utilizadas na reparação de veículo sinistrado Lauro Laertes de Oliveira* 1. Tema controvertido nos Tribunais é a legalidade da exigência pelas seguradoras das notas fiscais de origem das peças utilizadas pelas oficinas na reparação do veículo sinistrado. Normalmente essa questão surge quando o veículo é levado para conserto em oficina mecânica não credenciada pela seguradora. A empresa faz os reparos e apresenta nota fiscal dos serviços prestados, mas se nega a exibir as notas fiscais da origem das peças utilizadas. Por conseguinte, a seguradora se recusa a pagar pelos serviços, fato que deflagra a lide. Há entendimentos dos Tribunais pátrios condenando a seguradora a pagar, mesmo sem a exibição das notas fiscais de origem das peças, e outros em sentido diverso afirmando que a cobrança é indevida ante a falta de apresentação daqueles documentos fiscais. Sou adepto da segunda corrente. 2. A relação entre a seguradora, que autoriza a prestação de serviços, e a oficina mecânica prestadora dos serviços se cuida de relação de consumo e está sujeita às regras do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que a seguradora atua por sub-rogação do segurado (dono do veículo). Nesse sentido já decidiu o STJ: AgInt no AREsp 1252057/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020. 3. Dispõe o art. 21 do CDC (Lei 8.078, de 11-9-1990), que: “No fornecimento de serviços que tenham por objetivo a reparação de qualquer produto considerar- se-á implícita a obrigação do fornecedor de empregar componentes de reposição originais adequados e novos, ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante, salvo, quanto a estes últimos, autorização em contrário do consumidor.” Dessa maneira, um primeiro aspecto a observar é que a oficina mecânica deverá utilizar peças originais e novas na reparação do veículo, salvo se o consumidor – 2 aqui considerada a seguradora e o dono do veículo -, concordar expressamente na utilização de peças não originais ou já utilizadas. 4. Cláudia Lima Marques, Antonio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem lecionam: “Quanto ao dever de adequação do serviço e, portanto, das peças utilizadas, originais ou não, é um dever geral a ser obedecido por qualquer fornecedor de produtos ou de serviços no sistema do Código de Defesa do Consumidor. A norma do art. 21 refere-se, deste modo, ao dever de utilizar componentes originais e novos. A única possibilidade de, o fornecedor de serviços de reparação, afastar este novo dever é informando ao consumidor, de maneira prévia, que irá utilizar outras peças (não originais ou já utilizadas) e, conseguindo a “autorização” expressa do consumidor neste sentido, como dispõe o art. 21, in fine.” (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 4. ed. -- São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021 – Pág. RL-1.7 - E-book disponível em https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/codigos/72654266/v7/page/RL- 1.7). 5. Rizzato Nunes em comentários ao art. 21 do CDC ensina: “A norma é dirigida ao prestador de serviços que faz consertos. Por exemplo, a concessionária de veículos ao fazer reparos, mecânicos, elétricos, de lataria etc.; as oficinas de assistência técnica de eletrodomésticos e eletroeletrônicos etc. Componentes originais. Por componentes de reposição (peças, pedaços de peças, fios elétricos, parafusos etc.) originais há de entender aqueles que contêm o selo de garantia e/ou qualidade do fabricante do produto que está sendo restaurado. Por exemplo, as peças de reposição originais vendidas pelas montadoras de veículos. A norma nesse aspecto deu importância maior ao aspecto formal (isto é, à marca e carimbo de qualidade) que ao relevante elemento material de qualidade intrínseca do produto. Ou, dizendo em outros termos, a peça original é aquela que está autografada, autorizada com “aval” de qualidade pelo fabricante, o que nem sempre garante que ela será de qualidade adequada, já que todo e qualquer produto pode apresentar vícios de fabricação. Na prática, inclusive, tal https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/codigos/72654266/v7/page/RL-1.7 https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/codigos/72654266/v7/page/RL-1.7 3 característica, por vezes, implica custo para o consumidor, já que, via de regra, peças originais são mais caras. E acontece que, por exemplo, o amortecedor “original” vendido por uma montadora tem o mesmo fabricante que o amortecedor sem o selo de original. De qualquer maneira, como dito, o legislador preferiu assegurar-se de que, pelo aspecto formal, ele estaria garantindo ao consumidor a mesma qualidade que o fabricante deu ao produto que está sendo reparado.” (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Saraiva, 8ª edição, 2015 – E-book disponível em https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:580867). 6. Como se pode observar, a regra é a utilização de peças originais e novas na reparação do veículo sinistrado. Por conseguinte, também existe o dever de aquisição de produtos de procedência regular, que possuem nota fiscal de origem, e incumbe à prestadora dos serviços exibi-la quando exigida. 7. Vale citar e rebater alguns argumentos da corrente jurisprudencial favorável a condenação da seguradora ao pagamento dos serviços sem a apresentação das notas fiscais de origem das peças utilizadas. Argumenta-se que o fato de a oficina mecânica trabalhar com o comércio de varejo de peças e acessórios novos para veículos, a emissão de nota fiscal do serviço prestado e das peças utilizadas supriria a necessidade de apresentação das notas fiscais de origem. Com a devida venia, esse argumento não me convence. Ora, se a oficina não é a fabricante das peças, obrigatoriamente, necessita de nota fiscal de entrada da mercadoria em seu estabelecimento para comprovar a origem lícita. A nota fiscal de entrada é obrigatória, trata-se de um documento fiscal que formaliza o ingresso da mercadoria no estoque do estabelecimento de maneira legal e lícita. O fato de a ré poder emitir nota fiscal de prestação de serviços e de saída de mercadorias não significa a legalização da origem das peças que não têm nota fiscal de entrada em seu estabelecimento. É inadmissível aventar a possibilidade de referendar a circulação e a utilização de peças objeto de receptação, ou desprovidas de regularidade fiscal. 7.1. Alguns julgados invocam a violação a boa-fé objetiva, com fundamento no art. 422 do Código Civil, para fundamentar a condenação das seguradoras ao https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:580867 4 pagamento dos reparos realizados, uma vez que o serviço teria sido prestado. Dispõe o referido artigo que: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa- fé”. Indaga-se: onde está a probidade e boa-fé do empresário que se recusa a exibir as notas fiscais da aquisição dos produtos que empregou no conserto do veículo? Esse dispositivo não pode ser invocado em benefício do empresário que se nega a exibir a nota fiscal de aquisição das peças, pois se trata de fato que transparece, até prova em contrário, a origem irregular ou ilícita das mercadorias, o que contraria o dever ético e moral da atividade empresarial. 7.2. Em regra, consta na aprovação dos orçamentos das oficinas a exigência das seguradoras da exibição das notas fiscais de origem das peças utilizadas no conserto do veículo sinistrado para a realização do pagamento. Entretanto, penso que é até irrelevante essa menção, pois a atuação em conformidade com as obrigações e exigências fiscais é dever inerente à atividade empresarial. O fato de a seguradora aprovar o orçamento para a realização dos serviços não significa que, por ocasiãodo pagamento, não possa exigir as notas fiscais das peças utilizadas. Com todo o respeito, a ausência da exigência na aprovação do orçamento não pode servir de pretexto para fomentar a circulação de peças objeto de receptação, ou desprovidas de regularidade fiscal. Não vejo qualquer comportamento contraditório das seguradoras e violação ao dever de lealdade a fim de configurar venire contra factum proprium. O que vejo é um subterfúgio utilizado pela oficina para prestar o serviço sem cumprir seus deveres empresariais. 7.3. Outro argumento utilizado é de que haveria o enriquecimento sem causa da seguradora, uma vez que os serviços foram prestados. Limongi França define enriquecimento sem causa “como o acréscimo de bens que se verifica no patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha um fundamento jurídico.” (Enciclopédia Saraiva do Direito, SP, Saraiva, 1987). Portanto, o enriquecimento sem causa exige falta de causa justificada, de fundamento jurídico. O caso em apreço se cuida de contrato bilateral que exige o cumprimento das obrigações pelas duas partes. A prestadora dos serviços tem 5 o dever legal (CDC, art. 21) de utilizar peças originais e novas, e, por conseguinte, de exibir as notas fiscais respectivas. Conforme já dito, trata-se de um simples consectário do dever inerente à atividade empresarial de atuar em conformidade com as exigências legais, e uma forma de coibir eventual crime de receptação e a sonegação fiscal. Dessa maneira, existe fundamento jurídico para não realizar o pagamento e, portanto, não se configura o enriquecimento sem causa. 8. Não se pode deixar de registrar que o brasileiro tem a fama de dar o “jeitinho”, de “levar vantagem”, a famosa “Lei de Gérson”, o que é péssimo para a imagem do País. São famosos os desmanches ilegais de carros no Brasil, a maioria dos veículos proveniente de furtos, cujas peças são comercializadas com oficinas no mercado ilegal. Tudo, evidentemente, sem nota fiscal, de origem criminosa, ou seja, produto de receptação ou de sonegação fiscal. Não se pode deixar de mencionar também que a comercialização de peças novas sem os devidos registros comerciais e os respectivos recolhimentos de impostos aos cofres públicos causam substanciosos prejuízos ao cidadão de bem, porque obsta o repasse desses valores no aprimoramento dos serviços prestados pelo Estado em prejuízo de toda coletividade. O Poder Judiciário não pode compactuar com situações que possam dar azo as referidas atitudes de natureza ilegal. A ausência de apresentação das notas fiscais das peças utilizadas na reparação do veículo segurado incentiva o mercado de peças de origem ilícita e criminosa. 9. As oficinas sabem que as seguradoras exigem notas fiscais das peças utilizadas, mas se negam a exibi-las e daí vão ao Poder Judiciário para receber pelo serviço prestado e pelas peças utilizadas. Se o Judiciário chancelar esse tipo de cobrança, as oficinas vão continuar se negando a apresentar as notas fiscais de origem das peças utilizadas, se é que existem, e se não existirem, iremos aprovar e estimular o ilícito, o imoral, o crime. 10. Num país sério não é necessário pedir nota fiscal das transações realizadas porque a expedição é automática. A prestadora de serviços, mesmo ciente de sua conduta faltosa, prefere assumir o risco e o tempo de uma demanda judicial, inclusive com os custos da contratação de um advogado, para cobrar os serviços 6 prestados, ao invés de cumprir uma simples obrigação acessória de exibição das notas fiscais de origem das mercadorias que utiliza. Evidente que não estamos diante de uma escolha proporcional, adequada e ética. 11. Não. Não podemos permitir que isso continue. O Brasil precisa mudar! É preciso estimular a conduta correta, transparente e ética do cidadão. Aprendi que a ética está em todos os meus atos e deve servir de exemplo para as gerações mais novas. Devo ser ético em tudo que faço, por exemplo, não posso deixar o carrinho do supermercado atravessado no meio do corredor atrapalhando os outros, não posso furar fila, devo obedecer às regras de trânsito. Assim como o industrial, o prestador de serviços, os comerciantes devem adquirir produtos de modo regular e emitir nota fiscal. Não é necessário pedir a sua emissão, é um dever fornecê-la. 12. Vejamos alguns julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo que afirmam a validade da condição de apresentação das notas fiscais da procedência das peças utilizadas, assim como a ausência de abusividade da referida condição. “Apelação. Ação de cobrança. Prestação de serviços à seguradora. Ausência de entrega das notas fiscais solicitadas para o pagamento dos serviços. Requisito não cumprido. - O documento cuja necessidade fora avisada antes da prestação do serviço pela demandante é de simples obtenção já que se restringia à apresentação da nota fiscal de aquisição das peças utilizadas na reparação do veículo, mormente quando considerado que a seguradora é corresponsável por eventual falha na prestação do serviço, frente ao seu segurado, que mesmo tendo emitido termo de quitação em relação aos reparos no veículo, pode futuramente alegar vício oculto em relação à qualidade das peças empregadas no conserto, razão pela qual, justificável a exigência feita. - Tendo em vista que a apelada não apresentou o documento solicitado para comprovar os gastos havidos na aquisição das peças para a realização do conserto do veículo segurado pela apelante, inviável o pagamento pretendido sem o cumprimento do requisito solicitado para pagamento. Recurso provido.” (TJSP - Apelação Cível 1005998- 7 83.2019.8.26.0189 - 30ª Câmara de Direito Privado - Rel. Maria Lúcia Pizzotti - DJ: 25-11-2016; Data de Registro: 03-04-2020). “Apelação. Ação de cobrança. Prestação de serviços de reparo de automóvel. Sentença de procedência. Ré que se recusou a efetuar o pagamento à oficina pelo reparo de automóvel de segurado diante da ausência de apresentação das notas fiscais que demonstrem a genuinidade das peças empregadas. Razão assiste à seguradora diante de previsão contratual. Observância do artigo 21 do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes desta corte. Sentença reformada. Inversão dos ônus sucumbenciais. Recurso provido.” (TJSP -Apelação Cível 1049367-67.2018.8.26.0576 - 28ª Câmara de Direito Privado - Rel. Cesar Luiz de Almeida - DJ 07-01-2020 - Data de Registro: 07-01-2020). 13. A 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, em duas ocasiões, já julgou no mesmo sentido: Apelação Cível nº 0042863-23.2019.8.16.0021, de Cascavel – 1ª Vara Cível - Relatora: Juíza Vania Maria da Silva Kramer – julgado em 23-3-2022 e Apelação Cível nº 0014706-06.2020.8.16.0021, da 1ª Vara Cível de Cascavel, de minha relatoria, julgado em 19-5-2021. 14. Em conclusão, vislumbro que a solução mais justa e adequada para as demandas dessa natureza se pauta na necessidade da exibição das notas fiscais de aquisição/entrada das peças utilizadas na reparação do veículo sinistrado pelas oficinas para viabilizar a condenação da seguradora ao pagamento pelos serviços prestados. Só existem duas razões para a oficina mecânica não exibir as notas fiscais de entrada das peças: a origem é ilícita do produto ou a sonegação fiscal. E com isso o Poder Judiciário não pode compactuar! Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná.
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