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LIMA, Manoel Ricado de - ARCADISMO no Brasil - Notas do professor

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Notas de aula – 08.03.2013
O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil
Você já aprendeu que bucolismo é um termo utilizado para assinalar uma espécie de poesia pastoral, que exalta as belezas da vida no campo e a natureza, que descreve a vida permeada por costumes rurais. Essa exaltação da natureza é a característica principal do Arcadismo, uma escola literária surgida na Europa em meados do século XVIII numa referência direta à Arcádia. A região campestre do Peloponeso, na Grécia, nomeada Arcádia, aparece sempre como ideal de inspiração poética. E isto você também já sabe. 
Geograficamente, a Arcádia é uma região e uma prefeitura da Grécia, localizada na península do Peloponeso, ao sul do país (o nome remete ao semideus Arcas, da mitologia grega, filho de Zeus e da ninfa Calisto). Era uma região de pastores dados à música e à poesia. Sua capital é a cidade de Tripolis. Mas, para a literatura (e esse dado é o que mais nos interessa aqui) a Arcádia se transformou no nome de um país imaginário, que foi descrito por diversos poetas e artistas, sobre tudo do Renascimento e do Romantismo. Neste lugar utópico governaria a felicidade, a vida simplicidade e bucólica, em um lugar habitado por pastores que vivem em comunhão com a natureza. Neste sentido possui quase as mesmas conotações que o conceito de Utopia, como vimos anteriormente. Assim, a Arcádia é apresentada como o resultado espontâneo de um modo de vida natural, ainda não corrompido pelo progresso. O termo também representa uma designação comum a sociedades literárias dos séculos XVII-XVIII que cultivavam o classicismo e cujos membros adotavam nomes de pastores na simbologia poética. Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e Wikipédia, a enciclopédia livre.
Um exemplo que vamos usar desta passagem da variação do contraste entre o campo e a cidade é algo dos poetas árcades brasileiros. No Brasil, o movimento árcade toma forma a partir da segunda metade do século XVIII, principalmente a partir do surgimento das nossas cidades e das suas respectivas modernizações, mesmo que ainda incipientes. Junto a isso, surgem os novos problemas trazidos pelos novos conglomerados urbanos, que discutimos um pouco no item anterior. Os poetas árcades promovem a primeira manifestação literária ligada à vida na Colônia, entre a metrópole colonizadora e a vida rural que se levava aqui, no Brasil. E no auge da Inconfidência Mineira, escolhem um verso de Virgílio, o poeta clássico e a referência maior da poesia bucólica, como lema: “libertas quae sera tamen”. Esta frase é retirada da primeira Bucólica de Virgílio. E se você não lembra, numa rápida pesquisa você vai encontrar este lema grafado na bandeira do estado de Minas Gerais. 
Para estes poetas é a natureza que recupera uma cena aparentemente mítica e ancestral, numa tentativa quase desesperada do resgate dos sentimentos mais primitivos, que para eles foram corrompidos pela idéia de civilização, de progresso, pela mercadoria e pelas novas cenas urbanas. E aqui não podemos esquecer de indicar um caráter fundamental nesta transformação: as perspectivas acerca do cotidiano, da vida doméstica, do dia-a-dia, da rotina, do hábito. A vida na cidade sugere outra percepção, outra forma de comportamento, outro lugar de acesso a estes mesmos sentimentos primitivos e a um estado ameno e contemplativo da relação do homem com a natureza. Por isso, a tarefa poética destes homens é simples: os poetas árcades queriam um ideal de vida comum, pleno, ou seja, idílico e bucólico, longe da agitação citadina que é a vida nas grandes cidades, porque a cidade assim se impõe.
Uma das perguntas que Jacques Le Goff se faz é: “Conseguiremos hoje reencontrar um tal ideal de comunidade urbana fraternal?” (LE GOFF, 1998, p. 91) E continua dizendo que foi a cidade medieval que reformou as nossas formas de vida e, podemos dizer, que a cidade reformulou as nossas formas de ser e estar no mundo, definitivamente. 
Entre os mais importantes poetas árcades brasileiros encontramos os nomes de Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Basílio da Gama. Assim, o que se segue é apenas um pequeno recorte de cada um deles para que isso possa nos ajudar a compreender como se deu a incorporação desse espaço natural, bucólico, de que estamos falando, como uma espécie de resistência, no trabalho poético de cada um desses autores. É claro que fica o convite para que dada um de vocês procurem conhecer um pouco mais dos principais poetas árcades brasileiros, aqui apenas citados rapidamente. 
Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810), autor de Marília de Dirceu e Cartas Chilenas. Nasceu em Porto (Portugal) em 1744 e faleceu em Moçambique, em 1819. Fez os primeiros estudos no Colégio dos Jesuítas, em Salvador (BA), e formou-se em Direito na Universidade de Coimbra (Portugal) em 1768. Depois viveu em Vila Rica (Ouro Preto-MG), onde passou a conviver com intelectuais e poetas, como Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa e Cônego Luís Vieira. É o autor de Cartas Chilenas, poemas epistolares satíricos, de oposição ao governador Luís da Cunha Meneses, que circularam em manuscritos anônimos na cidade, em 1786. Em 1792 foi publicada a primeira parte de sua obra poética Marília de Dirceu, em Lisboa (Portugal). Participou ativamente na Inconfidência Mineira. em 1789. A poesia de Tomás Antonio Gonzaga apresenta as típicas características árcades e neoclássicas: o pastoril, o bucólico, a Natureza amena, o equilíbrio, a busca do locus amoenus etc.
Vejamos um trecho de Marília de Dirceu, da parte III, a Lira V, em que o poeta-pastor, o cantor-pastor, que se diz não ser um pastor grosseiro, faz uso de um discurso próximo ao de Virgílio, com o recurso das mitologias de origem e da paisagem bucólica para cantar o seu amor e a sua aventura de seguir os deuses em busca desse amor e de uma vida feliz com ele cercado das sombras de um lugar tranqüilo:
Lira V
Eu não sou, minha Nise, pegureiro,
que viva de guardar alheio gado;
nem sou pastor grosseiro,
dos frios gelos e do Sol queimado,
que veste as pardas lãs do seu cordeiro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!
A Cresso não igualo no tesouro;
mas deu-me a sorte com que honrado viva.
Não cinjo coroa d'ouro;
mas Povos mando, e na testa altiva
verdeja a Coroa do Sagrado Louro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!
Maldito seja aquele, que só trata
de contar, escondido, a vil riqueza,
que, cego, se arrebata
em buscar nos Avós a vã nobreza,
com que aos mais homens, seus iguais, abata.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!
As fortunas, que em torno de mim vejo,
por falsos bens, que enganam, não reputo;
mas antes mais desejo:
não para me voltar soberbo em bruto,
por ver-me grande, quando a mão te beijo.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!
Pela Ninfa, que jaz vertida em Louro,
o grande Deus Apolo não delira?
Jove, mudado em Touro
e já mudado em velha não suspira?
Seguir aos Deuses nunca foi desdouro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!
Pretendam Anibais honrar a História,
e cinjam com a mão, de sangue cheia,
os louros da vitória;
eu revolvo os teus dons na minha idéia:
só dons que vêm do céu são minha glória
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!
Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), autor de Labirinto de amor, em 1753, Númerosos harmônicos, em 1753, Obras Poéticas, em 1768, Vila Rica, em 1773, entre outros. Nasceu em Vargem do Itacolomi (hoje Mariana-MG), em 5 de junho de 1729 e morreu em Vila Rica, em 4 de julho de 1789, foi um jurista e poeta luso-brasileiro. Tornou-se conhecido principalmente pela sua obra poética e pelo seu envolvimento na Inconfidência Mineira. Contudo, foi também advogado de prestígio, fazendeiro abastado, cidadão ilustre, pensador de mente aberta e mecenas do Aleijadinho. 
Segue um soneto de Cláudio Manuel da Costa. Nele você pode notar todo o tema pastoril vinculado à vida no campo como um contraponto a vida civil, na cidade. A vida no campo como uma ventura, uma riqueza de sentimentos, tomada porum ar mais nobre, mais perto da vida feliz. O poeta deixa claro que quem abandona o campo ou desconhece o rosto da violência ou nunca provou um retiro da alma pacificada:
Quem deixa o trato pastoril, amado, 
Pela ingrata, civil correspondência, 
Ou desconhece o rosto da violência, 
Ou do retiro a paz não tem provado. 
Que bem é ver nos campos, trasladado 
No gênio do Pastor, o da inocência! 
E que mal é no trato, e na aparência 
Ver sempre o cortesão dissimulado! 
Ali respira Amor sinceridade; 
Aqui sempre a traição seu rosto encobre; 
Um só trata a mentira, outro a verdade. 
Ali não há fortuna que soçobre; 
Aqui quanto se observa é variedade: 
Oh! ventura do rico! oh! bem do pobre!
 
Basílio da Gama (1741-1795), autor de O Uraguai, de 1769, que trata da guerra movida por Portugal aos índios das missões do Rio Grande do Sul (Sete Povos das Missões). Nasceu em São João del-Rei, em 1740 e morreu em Lisboa, em 1795. Filho de pai português e mãe brasileira. Ficou órfão e foi para o Rio de Janeiro. Entrou para a Companhia de Jesus em 1757. Dois anos depois, a ordem foi expulsa do Brasil e o poeta foi para Portugal e depois para Roma, onde foi admitido na Arcádia Romana.
Um dos trechos mais bonitos do poema de Basílio da Gama é A morte de Lindóia. E em todo o trecho você pode notar a descrição da paisagem natural como um lugar e uma atmosfera fecunda para a cena que se passa toda no campo:
			A morte de Lindóia
			
Um frio susto corre pelas veias
			De Caitutu que deixa os seus no campo;
			E a irmã por entre as sombras do arvoredo
			Busca com a vista, e treme de encontrá-la.							Entram enfim na mais remota, e interna
			Parte de antigo bosque, escuro e negro,
			Onde, ao pé duma lapa cavernosa,
			Cobre uma rouca fonte, que murmura,
			Curva latada e jasmins e rosas.				
Este lugar delicioso e triste,
			Cansada de viver, tinha escolhido
			Para morrer a mísera Lindóia.
			Lá reclinada, como que dormia,
			Na branda relva e nas mimosas flores,							Tinha a face na mão e a mão no tronco
			Dum fúnebre cipreste, que espalhava
			Melancólica sombra. Mais de perto
			Descobrem que se enrola no seu corpo							Verde serpente, e lhe passeia e cinge
			Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.							Fogem de a ver assim sobressaltados
			E param cheios de temor ao longe;
			E nem se atrevem a chamá-la e temem							Que desperte assustada e irrite o monstro,
			E fuja, e apresse no fugir a morte.
			Porém o destro Caitutu, que treme	
			Do perigo da irmã, sem mais demora
			Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
			Soltar o tiro, e vacilou três vezes
			Entre a ira e o temor. Enfim sacode
			O arco e faz voar a aguda seta,
			Que toca o peito de Lindóia e fere
			A serpente na testa, e a boca e os dentes
			Deixou cravados no vizinho tronco.
			Açoita o campo com a ligeira cauda
			O irado monstro, e em tortuosos giros
			Se enrosca no cipreste, e verte envolto
			Em negro sangue o lívido veneno.
			Leva nos braços a infeliz Lindóia
			O desgraçado irmão, que ao despertá-la
			Conhece, com que dor! no frio rosto
			Os sinais do veneno, e vê ferido
			Pelo dente sutil o brando peito.
			Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
			Cheios de morte; e muda aquela língua,
			Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
			Contou a larga história de seus males.
			Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
			E rompe em profundíssimos suspiros,
			Lendo na testa da fronteira gruta
			De sua mão já trêmula gravado
			O alheio crime, e a voluntária morte.
			E por todas as partes repetido
			O suspirado nome de Cacambo.
			Inda conserva o pálido semblante
			Um não sei quê de magoado, e triste,
			Que os corações mais duros enternece.
			Tanto era bela no seu rosto a morte!
Como já vimos, a principal característica desta escola é a exaltação da natureza e de tudo o que pode estar ligado a ela. É por essa razão que muitos poetas ligados ao arcadismo adotaram pseudônimos de pastores gregos ou latinos. O arcadismo, também chamado de setecentismo (do século XVIII, ou os "anos de 1700") ou neoclassicismo é o período que caracteriza principalmente a segunda metade do século XVIII, tingindo as artes de uma nova tonalidade burguesa. A primeira metade do século XVIII marcou a decadência do pensamento barroco – ou seja, a abundância de ornatos, a ousada elaboração formal, o uso de recursos retóricos tais como alegorias e metáforas, e os jogos de palavras, que eram reflexos da estética pertencente à Contra-Reforma católica –, para a qual colaboraram vários fatores: a burguesia ascendente, voltadas para as questões mundanas, passou a deixar em segundo plano a religiosidade que permeava o pensamento barroco; além disso, o exagero da expressão barroca havia cansado o público, e a chamada arte cortesã, que se desenvolvera desde a Renascença, atingia um estágio estacionário e apresentava sinais de declínio, perdendo terreno para a arte burguesa, marcada pelo subjetivismo. Surgiram, então, as primeiras arcádias que passaram a cultivar o classissismo, na busca pela pureza e pela simplicidade das formas clássicas.
Duas passagens de Arnold Hauser podem ilustrar bem as questões do bucolismo para concluirmos esta parte de nosso estudo. Na primeira, diz ele sobre as pinturas de Antoine Watteau (1686-1721), um pintor apaixonado pelo espetáculo da vida campesina e que se desdobrou para fazer ao jus ao lugar de um camponês entre os nobres; Watteau pintava aquilo que ele chamava de Fête Galante, uma reunião, festa campestre, que representava o divertimento da vida serena e despreocupada que se pode ter no campo, porém, Watteau os pintava com trajes elegantes e sofisticados, longe da vida da cidade e tocados por um ambiente natural: 
“O elemento predominante da fête galante, que é sempre uma festiva reunião campestre e retrata os divertimentos de jovens que levam uma vida despreocupada de pastores e pastores na linha de Teócrito, em meio à música, danças e cantos, é o bucólico. Descreve a paz dos campos, o abrigo seguro do grande mundo e a generosa felicidade dos apaixonados. Já não se trata, porém, do ideal de uma vida idílica, frugal e contemplativa que o artista tem no espírito, mas o ideal arcádico da identidade entre natureza e civilização, beleza e espiritualidade, sensualidade e inteligência. Esse ideal nada tem de novidade, é claro; trata-se meramente de uma variação em torno da fórmula dos poetas do Império Romano, que combinavam a lenda da Idade do Ouro com a idéia pastoral. A única novidade, em confronto com a versão romana, é que o mundo bucólico se apresenta sob o disfarce dos costumes peculiares de uma sociedade requintada, os pastores e pastoras vestem os elegantes trajes da época, e tudo o que resta da situação pastoril são as conversas dos amantes, a ambientação natural e o distanciamento da vida da corte e da cidade.” 
(HAUSER, 2003, p. 511/512)
Jovens Casais com Guitarra e Pastor
Procure ver mais imagens das fête galante, de Antoine Watteau. É importante para ampliar o seu conhecimento das expressões literárias acerca do campo. 
A segunda passagem problematiza a situação bucólica e a relação desta situação com a poesia pastoril e a com as pinturas de Watteau, recupera o começo a partir de Teócrito e nos lembra do quanto era importante para estes artistas uma reprodução aproximada da realidade da vida no campo. Esta passagem serve como nossa reflexão final, mas muito mais para que você possa pensar nos desdobramentos desta variante de expressões que são a pauta deste modo de uso da literatura e da arte a partir da vida no campo: 
“A situação bucólica em si constituía sempre mero pretexto, nunca o objetivo real da representação, a qual, em conseqüência, tinha sempre um caráter mais ou menos alegórico, nunca simbólico. Em outras palavras, a poesia pastoril tinha um propósito perfeitamente claro, que comportava uma única interpretação válida. Esgotava-se imediatamente, não guardava segredos e resultava, mesmo num poeta como Teócrito, num quadroalgo indiferenciado, embora extraordinariamente atraente, da realidade. Nunca pôde superar as limitações da alegoria e permaneceu frívola, jovial, carente de tensão e profundidade. Watteau é o primeiro a conseguir emprestar-lhe profundidade simbólica, e fá-lo, sobretudo, excluindo da tela todos aqueles elementos que não podem ser também concebidos como uma simples e direta reprodução da realidade.”
(HAUSER, 2003, p. 518)
Alguns termos e expressões importantes do bucolismo e do arcadismo:
- Fugere urbem (fuga da cidade) 
- Locus amoenus (lugar aprazível, ameno) 
- Aurea Mediocritas (mediocridade áurea - simboliza a valorização das coisas cotidianas focalizadas pela razão) 
- Inutilia truncat (cortar o inútil - eliminar o rebuscamento barroco) 
- Pseudônimos pastoris (fingimento poético para não revelar sua identidade) 
- Carpe diem (aproveite o dia)

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