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A Anemia Sideroblástica (AS) representa um grupo de desordens heterogêneas que possuem como característica comum, além de anemia, a presença de depósitos de ferro nas mitocôndrias dos eritroblastos. A mitocôndria "carregada" de ferro assume localização perinuclear nessas células vermelhas jovens, que recebem, por isso, o nome de sideroblastos em anel. Esses distúrbios resultam de defeitos na biossíntese do anel porfirínico do heme ou no metabolismo do ferro que ocorrem no interior das mitocôndrias. Já foram descritas formas hereditárias e adquiridas da anemia sideroblástica. Embora esses distúrbios se manifestem frequentemente como anemia microcítica e às vezes hipocrômica também, os pacientes acometidos podem exibir eritrócitos normocrômicos e normocíticos. Embora as anemias sideroblásticas adquiridas sejam relativamente raras, elas são muito mais prevalentes que as formas hereditárias. A verdadeira incidência da anemia sideroblástica adquirida não é conhecida, em parte por causa da heterogeneidade das causas e das apresentações clínicas. As anemias sideroblásticas hereditárias ligadas ao X geralmente se manifestam na infância ou no início da idade adulta. A patogênese dessa anemia tem como base um distúrbio da síntese do heme, desde que não seja a carência de ferro. O heme é formado pela incorporação do ferro (no seu estado de íon ferroso, ou Fe+2) à protoporfirina IX. Todo esse processo, desde a síntese da protoporfirina até a incorporação do ferro, ocorre no interior da mitocôndria dos eritroblastos. Deficiências enzimáticas ou defeitos mitocondriais podem prejudicar a síntese do heme. Duas consequências surgem nesse momento: o prejuízo à síntese de hemoglobina, levando à hipocromia e anemia; o acúmulo de ferro na mitocôndria. Fisiologicamente, o heme inibe a captação de ferro pelo eritroblasto (um tipo de feedback negativo) – como pouco heme é formado, o ferro continua se acumulando cada vez mais na célula, culminando com a formação dos sideroblastos em anel. O ferro mitocondrial acumulado é potencialmente lesivo ao eritroblasto, eventualmente levando à sua destruição na própria medula (eritropoiese ineficaz). Isso explica o encontro de uma leve hiperplasia eritroide na medula óssea, sem elevação da contagem de reticulócitos periférica. A redução da síntese do heme, em conjunto com a eritropoiese ineficaz, estimula a absorção intestinal de ferro. Após vários anos, o paciente evolui com um estado de sobrecarga de ferro (hemossiderose ou hemocromatose). Para diferenciar da hemocromatose primária e da secundária a múltiplas transfusões, este tipo de sobrecarga corporal de ferro é denominada Hemocromatose Eritropoiética (mesmo fenômeno que ocorre nas talassemias). FATORES GENÉTICOS MUTAÇÃO: ALA sintase Ligado ao cromossomo X. Há uma mutação na primeira enzima da síntese protoporfirínica – a ALA sintase. Essa enzima catalisa a reação limitante do processo: a síntese do ALA (ácido aminolevulínico), a partir da glicina e do succinil-CoA. Essa enzima tem como principal cofator a vitamina B6 (sob a forma de piridoxal 5-fosfato). O mutante da ALA sintase só “funciona” quando altas doses (suprafisiológicas) de vitamina B6 são oferecidas ao paciente. Estas mutações podem afetar a afinidade da enzima pelo fosfato de piridoxal ou a sua estabilidade estrutural, sítio catalítico ou suscetibilidade às proteases mitocondriais. MUTAÇÃO: PROTEÍNA hABC7 Existe ainda um tipo de anemia sideroblástica hereditária causada por uma mutação na proteína hABC7 (proteína transportadora que se liga ao ATP), que auxilia a enzima ferroquelatase a incorporar o ferro ao heme. OUTROS Além das duas causas ligadas ao X, também já foram descritas formas autossômicas dominantes e recessivas da anemia sideroblástica hereditária. Entretanto, os mecanismos exatos envolvidos nesses distúrbios não são conhecidos. EXPOSIÇÃO A DROGAS OU TOXINAS ALCOOL A forma mais comum de anemia sideroblástica adquirida resulta de deficiência nutricional ou da exposição a drogas ou toxinas exógenas, sobretudo ao álcool. Embora a anemia sideroblástica não seja um achado comum no alcoolismo, o consumo abusivo de álcool observado nas culturas ocidentais é responsável pela sua alta incidência. O álcool inibe diretamente a eritropoiese, mas em geral a anemia sideroblástica só é vista nos casos de alcoolismo associado a deficiências nutricionais. ETANOL O etanol pode interferir na interação entre a piridoxina (vitamina B6) e a ALA sintase, inibir diversas enzimas da síntese protoporfirínica e promover disfunção mitocondrial. DEFICIÊNCIA DE COBRE A deficiência de cobre provoca anemia sideroblástica, provavelmente pelo fato da enzima mitocondrial que converte Fe +3 em Fe+2 (citocromo oxidase) conter cobre em sua composição. As principais causas de deficiência de cobre na prática médica são nutrição parenteral total, gastrectomia e reposição desnecessária de sais de zinco. O excesso de zinco induz à formação de uma proteína intestinal (metalotioneína) capaz de quelar todo o cobre da dieta. OUTROS Outros casos bem documentados de anemia sideroblástica associada a drogas incluem a exposição à isoniazida, ao cloranfenicol e à cicloserina. A anemia sideroblástica também foi atribuída à exposição ao chumbo, mas não há dados suficientes que sustentem esse vínculo. FORMA IDIOPÁTICA A causa importante de anemia sideroblástica adquirida é a idiopática associada a síndromes mielodisplásicas. A. REFRATÁRIA COM SIDEROBLASTOS EM ANEL caracteriza- se pelo encontro de anormalidades nas três linhagens de células hematopoéticas, além da presença de sideroblastos em anel. ANEMIA SIDEROBLÁSTICA PURA apresenta uma associação menor com as anormalidades citogenéticas e caracteriza-se pela presença de displasia somente das células progenitoras da linhagem eritroide e ausência de citopenias, com exceção da anemia. Não se conhece bem onde está o distúrbio na síntese do heme. Contudo, há fortes indícios de que mutações no DNA mitocondrial (lembre-se de que a mitocôndria também contém ácido nucleico) prejudicam a ação de uma enzima que converte o íon férrico (Fe+3) em íon ferroso (Fe+2). O íon férrico não consegue ser incorporado à protoporfirina IX. Tais mutações podem determinar outras consequências nas células hematopoiéticas da medula, provocando uma síndrome mielodisplásica. Em virtude da natureza heterogênea das anemias sideroblásticas, muitas das manifestações clínicas variam de acordo com a causa fisiopatológica subjacente. Na maioria das vezes, essa anemia é moderada a grave, e os níveis de hemoglobina entre 4 a 10 g/dL. FORMA HEREDITÁRIA O grau de anemia é variável, podendo ser leve, moderada ou grave (Hg < 7 g/dl). A anemia é microcítica (o VCM podendo chegar na faixa entre 50-60 fL) e hipocrômica, com intensa anisocitose (aumento do RDW) e poiquilocitose. CASOS LEVES E MODERADOS Os casos leves a moderados podem ser descobertos somente na idade adulta, já quando existe hemossiderose, representada por hepatoesplenomegalia ao exame físico. CASOS GRAVES Os casos mais graves podem evoluir com as lesões orgânicas da hemossiderose (cardiomiopatia, cirrose hepática, hiperpigmentação, diabetes mellitus secundário). Mulheres heterozigotas podem apresentar uma leve anemia ou apenas uma curva de anisocitose “bífida” no hemograma. FORMA IDIOPÁTICA Estes pacientes geralmente são adultos de meia- idade ou idosos (raramente jovens e crianças), sem preferência de sexo. A anemia é leve a moderada, lentamente progressiva até um grau de estabilidade (o paciente mantém aquele hematócrito por longos anos). Também existe hemocromatose eritropoiética, justificando oachado de hepatoesplenomegalia em 1/3 a 1/2 dos casos. ESFREGAÇO DE SANGUE PERIFÉRICO Pode ser encontrado dois tipos de eritrócitos: o um hipocrômico e microcítico o outro normocítico e, eventualmente, macrocítico. A isso denominamos dimorfismo eritrocitário. Esse dimorfismo (ou bimorfismo) pode ser identificado por um RDW aumentado. Na forma herdada de doença, predominam os micrócitos (típica redução do VCM), enquanto que, na forma adquirida, geralmente predominam os macrócitos (aumento do VCM). Os macrócitos são decorrentes da eritopoiese acelerada dos eritroblastos não afetados pela doença, por estímulo da eritropoietina. Como há um estímulo à absorção intestinal de ferro, ele se acumula no organismo (hemocromatose eritropoiética). Como consequência, teremos: o ferro sérico alto (> 150 μg/dl) o ferritina sérica normal ou alta (> 100-200 ng/ml) o TIBC normal o saturação de transferrina alta (30-80%). Devemos suspeitar de anemia sideroblástica sempre quando houver a coexistência paradoxal de hipocromia com ferro sérico alto, saturação da transferrina elevada e ferritina elevada. Em alguns pacientes com AS, as hemácias circulantes podem reter as mitocôndrias sideróticas por um breve período. Nesses casos, um esfregaço de sangue periférico identifica precipitados de ferro conhecidos como corpúsculos de Pappenheimer (inclusões basofílicas de ferro que formam conglomerados na periferia da célula). A confirmação do diagnóstico se dá pelo aspirado da medula óssea, com o uso do corante azul da Prússia, que evidencia o ferro. Essa coloração revela a presença de siderossomos verde-azulados anormalmente grandes e numerosos no interior de no mínimo 15% dos eritroblastos, o que dá a essas células a aparência característica em anel. ASPIRADO DE MEDULA ÓSSEA A confirmação do diagnóstico se dá pelo aspirado da medula óssea, com o uso do corante azul da Prússia, que evidencia o ferro. Essa coloração revela a presença de siderossomos verde-azulados anormalmente grandes e numerosos no interior de no mínimo 15% dos eritroblastos, o que dá a essas células a aparência característica em anel. TRATAMENTO DA DOENÇA SUBJACENTE A maioria das formas de anemia sideroblástica não possui um tratamento específico voltado para o mecanismo subjacente. As exceções são aqueles tipos causadas pelo álcool ou por drogas, para as quais a remoção do agente agressor geralmente leva à resolução, ou pelo menos à melhora, da anemia. A abstinência de álcool geralmente reverte as alterações da biossíntese do heme em 1 a 2 semanas, conforme evidenciado pelo desaparecimento dos sideroblastos em anel da medula. A piridoxina melhora de maneira significativa os casos relativamente raros de deficiência nutricional, que na maioria das vezes estão associados ao alcoolismo, e algumas formas de anemia sideroblástica hereditária ligada ao X nas quais há um defeito na ligação da piridoxina com a ALAS-2. Nos casos em que há resposta, ocorre reticulocitose em 2 a 3 semanas, e o nível de hemoglobina melhora com o passar dos meses. Foi constatado que, em alguns pacientes com anemia sideroblástica ligada ao X, a administração de piridoxina em altas doses leva a uma superação do defeito na atividade da ALAS-2, mas o tratamento prolongado com altas doses dessa substância pode estar associado a neuropatia periférica. TRANSFUSÃO As transfusões de hemácias ainda são a base do tratamento para a maioria das anemias sideroblásticas graves. Por causa dos riscos da terapia transfusional a longo prazo, esse tratamento deve visar à obtenção de um bom estado geral, e não de um nível de hemoglobina específico predeterminado. Os depósitos de ferro devem ser monitorados regularmente, e a terapia de quelação do ferro deve ser utilizada nos casos de sobrecarga de ferro. ERITROPOETINA A terapia com eritropoietina, acompanhada ou não de fator estimulador de colônias de granulócitos (G-CSF), beneficia uma pequena porcentagem de pacientes com anemia sideroblástica adquirida resultante de mielodisplasia. Depende diretamente do mecanismo causador da anemia sideroblástica, sendo as formas adquiridas através de drogas ou toxinas, geralmente o prognóstico é favorável com a retirada do fator causador. Entretanto, na anemia sideroblástica vinculadas a mielodisplasias, geralmente o prognóstico é ruim, por causa da coexistência frequente de pancitopenia e incidência elevada de progressão para leucemia aguda.
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