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Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 Metabolismo do Ferro O ferro faz parte do grupo heme Sendo um metal pesado, o ferro livre é quase insolúvel e bastante tóxico, e por isso durante todo o seu ciclo metabólico está sempre ligado a proteínas de transporte ou funcionais Mais de dois terços do conteúdo de ferro do organismo encontra-se incorporado à molécula de hemoglobina. Assim, a hemoglobina é a principal forma funcional de ferro no organismo e também seu principal depósito, e por isso a anemia é a manifestação clínica mais proeminente da carência de ferro. No homem, cerca de 2 g de ferro estão presentes na hemoglobina, enquanto que, em mulheres, esse valor corresponde a 1,7 g. A mioglobina tem uma estrutura muito semelhante à hemoglobina, sendo no entanto um monômero e não um tetrâmero, e funciona como uma proteína para depósito de oxigênio nos músculos, de onde o O2 é liberado durante o exercício Presente em todas as células dos músculos esquelético e cardíaco, o organismo humano contém um total de cerca de 300 mg de ferro na mioglobina. As demais formas de ferro funcional nos tecidos (citocromos e enzimas) representam 0,5% do total de ferro do organismo Além da hemoglobina, o organismo armazena ferro em diferentes tecidos sob formas de ferritina e hemossiderina. A ferritina, proteína presente no citoplasma da maioria das células, tem importante papel na estocagem do ferro. É composta por 24 subunidades, com dois subtipos denominados H (cromossomo 11q) e L (cromossomo 19q). A ferritina H é um pouco maior que a ferritina L e tem ação ferroxidase importante. A maior parte da ferritina sintetizada é usada na estocagem do ferro, entretanto pequena quantidade é secretada e liberada no soro (feritina sérica), quantidade essa que se correlaciona com o estoque total de ferro no organismo. Por isso, a dosagem de ferritina plasmática é um exame importante para avaliar os depósitos de ferro no organismo A hemossiderina, corresponde a um agregado heterogêneo de ferro, componentes do lisossomo e outros produtos da digestão intracelular. Ela restringe- se aos macrófagos da medula óssea, do fígado e baço. O ferro do depósito e aquele liberado pela destruição das hemácias são reutilizados para síntese de hemoglobina O deposito de ferro na medula óssea revela um a três grânulos no citoplasma de eritroblastos (denominados “sideroblastos”). Esses depósitos medulares e os sideroblastos desaparecem por completo na deficiência de ferro Principais proteínas envolvidas no metabolismo do ferro Dieta e absorção de ferro Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 Em geral é absorvido 0,5-2,0 mg/dia, quantidade que compensa as perdas, principalmente resultantes da descamação de células, crescimento e, no caso das mulheres, das perdas sanguíneas menstruais A facilidade com que o tubo intestinal absorve o ferro depende da forma como ele está presente no alimento. O ferro na forma heme, presente em carne e fígado, representa um terço do ferro da dieta, sendo muito mais facilmente absorvido. Essa absorção é realizada por uma proteína HCP1. Já a absorção do ferro dos vegetais (ferro inorgânico ou ferro não heme) é menos eficiente, dependendo bastante de vários fatores, como a presença de outras substâncias (fosfatos, oxalatos, aminoácidos livres) e produção de ácido clorídrico pelo estômago Uma dieta bem equilibrada contém 10-20 mg de ferro por dia, dos quais cerca de 10% é absorvido O ferro é absorvido na borda em escova das células epiteliais dos vilos intestinais do duodeno. Para sair do lúmen intestinal e atingir o plasma, o ferro precisa atravessar duas membranas da célula epitelial: a membrana apical e a basolateral. O transporte do ferro pela membrana apical do enterócito é realizado pelo DMT1, capaz de transportar outros metais divalentes (zinco, cobre, cobalto). Como o ferro inorgânico está primariamente presente na dieta na forma oxidada (Fe3+, ferro férrico) não biodisponível, para ser transportado pelo epitélio intestinal necessita ser reduzido a Fe2+ (ferro ferroso) pela DcytB (Duodenal cytochrome B), redutase férrica associada à membrana apical do enterócito Uma vez no citoplasma do enterócito, o ferro tem dois possíveis caminhos a seguir: pode ser armazenado como ferritina na própria célula ou pode atravessar a membrana basolateral para chegar até o plasma. A proporção de ferro que segue cada uma das vias (absorção para o plasma ou armazenamento no enterócitos como ferritina) é deter minada quando a célula é formada nas criptas do epitélio intestinal. Nas células das criptas, a proteína HFE e o receptor de transferrina (TfR) formam um complexo HFE-TfR que modula a capacidade absortiva do enterócito que futuramente irá migrar para os vilos intestinais e se tornar uma célula de absorção **Quando a dieta é rica em ferro, e consequentemente a quantidade de ferritina no interior do enterócito está elevada, o complexo HFE-TfR inibe a capacidade absortiva de ferro do enterócito. Esse fenômeno é conhecido como bloqueio mucoso Anternativamente ao caminho descrito a cima, o ferro do citoplasma do enterócito pode atravessar a barreira basolateral, pela ação cooredenada da ferroportia e a hefaestina, duas proteínas de membrana. A ferroportina é o único exportador celular de ferro, tem papel central na homeostase sistêmica desse metal e está presente na mucosa duodenal, nos macrófagos, hepatócitos e trofoblastos sinciciais da placenta A hefaestina, tem a função de oxidar o Fe2+ a Fe3+, permitindo seu transporte pela transferrina A absorção de ferro é regulada em três pontos principais: Modulação da absorção provocada pela quantidade de ferro ingerida, chamada bloqueio mucosos **No entanto, com grandes doses de ferro, como doses farmacológicas ou intoxicações exógenas, esse bloqueio é Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 superado, e a quantidade absorvida é proporcional à ingerida. Regulação pelo estoque de ferro pela hepcidina (peptídeo secretado pelo fígado). Essa regulação se faz pelo controle de expressão da ferroportina. A ligação da hepcidina à ferroportina resulta na internalização desta última e perda de sua função **Sobrecarga de ferro reduz a absorção, enquanto que a carência promove maior absorção de ferro **Assim, em situações de sobrecarga de ferro ou inflamação, observa-se a elevação da hepcidina, e a liberação de ferro a partir de enterócitos, fígado e macrófagos encontra-se reduzida, pois muita ferroportina será internalizada e perdera sua função. Por outro lado, a presença de deficiência de ferro, anemia ou hipóxia, situações em que a hepcidina encontra-se diminuída, a expressão de ferroportina estará aumentada e ocorrerá mais liberação de ferro das células intestinais Regulação hematopoética, ou seja, a absorção é modulada de acordo com a necessidade de eritropoese **A eritropoese acelerada aumenta a absorção de ferro, independentemente do depósito corporal de ferro. Esse processo parece ser mediado pela Eritropoetina (Epo) e pelo GDF15 (Growth Differentiation Factor 15). A Epo suprime a expressão da hepcidina pela regulação negativa das vias STAT3 e SMAD. O GDF15 também tem ação supressora da expressão da hepicitina Transporte de ferro Após atravessar o enterócito, o ferro chega ao plasma onde se liga à transferrina. A transferrina pode receber ferro dos enterócitos e dos depósitos, e pode liberá-lo para os depósitos, para os eritroblastos, para o músculo, para a síntese de mioglobina, ou para diferentes tecidos para a síntese de enzimas e citocromos. A captação do ferro ligado à transferrina é intermediada pelo TfR, que pode ocorrer de duas formas: TfR1 ou TfR2. OTfR1 é amplamente expresso na maioria das células, enquanto o TfR2 é restrito a hepatócitos, células da cripta duodenal e células eritroides, sugerindo que o TfR2 desempenhe um papel mais especializado no metabolismo do ferro Entrega do ferro aos tecidos A ligação do TfR1 com a transferrina carregada de ferro desencadeia a invaginação da membrana celular, mediada pela clatrina, e formação de endossomos contendo o complexo transferrina/TfR1, seguida de alterações conformacionais das proteínas, liberação e redução do ferro para Fe2+. O Fe2+ é então transportado através da membrana endossomal pela DMT1. No citoplasma, o ferro é incorporado à protoporfirina para síntese do heme (nos eritroblastos) ou retido na forma de estoque (ferritina/hemossiderina nas células não eritroides). Nesse meio tempo, os endossomos retornam as proteínas, apotransferrina e TfR1, à superfície celular para serem reutilizadas. Excreção e perdas de ferro Não existe mecanismo fisiológico de excreção de ferro, que é conservado pelo organismo com grande eficiência Aproximadamente 1 mg de ferro (menos de 1 milésimo do total do organismo) é perdido diariamente, por via fecal (ferro presente nas células descamantes do epitélio), descamação da pele, do epitélio urinário e perspiração. Em mulheres, a menstruação normal leva à perda de 30-60 mL de sangue por mês, correspondentes a cerca de 15-30 mg de ferro por mês. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 Anemia por deficiência de Ferro De acordo com a Organização Mundial da Saúde, anemia é um problema de saúde pública global, que afeta o estado de saúde, a capacidade laborativa e a qualidade de vida de cerca de 2 bilhões de pessoas, cerca de um terço da população mundial. Epidemiologia A deficiência de ferro (DF) é responsável por 75% de todos os casos de anemia Estima-se a prevalência de DF em até 45% das crianças até cinco anos de idade, e de até 50% nas mulheres em idade reprodutiva Cerca de 500 milhões de mulheres e até 60% de gestantes apresentam anemia por deficiência de ferro É muito mais prevalente em estratos sociais mais baixos, nos grupos de menor renda, e na população menos educada Etiologia Fisiopatologia O corpo de um indivíduo adulto bem nutrido e saudável contém de 3 a 4g de ferro. O éritron (órgão descontínuo, porém único, formado pelo somatório de eritroblastos, reticulócitos e hemácias) é o maior compartimento funcional de ferro do organismo, contendo de 60 a 70% do total de ferro. O restante do ferro corporal está distribuído nos hepatócitos e nos macrófagos do sistema reticuloendotelial (SRE), que atuam como órgão de depósito. **O SRE é responsável por fagocitar células senescentes, catabolizar Hb para restaurar o ferro e devolve-lo à transferrina para nova utilização. A deficiência de ferro surge a partir do desequilíbrio entre a ingesta, absorção e situações de demanda aumentada ou perda crônica (anemia ferropriva) Anemia ferropriva é bastante frequente em recém- nascidos, crianças, adolescentes e mulheres em idade fértil, gestantes e lactantes. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 O ferro dietético consiste de ferro heme e não heme. Ferro heme está presente em alimentos de origem animal e é excelente para ser absorvido. O ferro não heme é encontrado em produtos de origem vegetal e não é muito bem absorvido. Quadro Clínico As queixas costumam ser leves, pois a anemia se instala de maneira insidiosa, gerando adaptação, e há pacientes completamente assintomáticos. Pode-se observar Palidez cutaneomucosa Fadiga Baixa tolerância ao exercício Redução do desempenho muscular Perversão alimentar ou pica (desejo de comer gelo, sabão, terra, argila) Baqueteamento digital Coiloníquias (unhas em colher) Atrofia das papilas linguais Estomatite angular Disfagia (formação de membranas esofágicas ou síndrome de Plummer-Vinson) Diagnóstico Hemograma. Disponível para rastreio da anemia ferropriva, mas incapaz de detectar DF sem anemia. Frequentemente observa-se: hipocromia, icrocitose, aumento do RDW e plaquetose Coloração do tecido medular pelo corante de Perls. Padrão ouro. Avalia estoques de ferro na medula óssea. É um exame invasivo Mielograma. Observa-se hiperplasia eritrobácita com displasias morfológicas Dosagem de Ferritina Sérica. Está diretamente relacionada com a concentração de ferritina intracelular e, portanto, com o estoque corporal. **Deficiência de ferro é a única condição que gera ferritina sérica muito reduzida. Valores normais ou elevados não excluem DF, pois a ferritina é uma proteína de fase aguda. Transferrina. Tem capacidade de ligas, simultaneamente duas moléculas de ferro. Sua produção é regulada pelo ferro corporal, aumentando quando os estoques estão exauridos. Pode ser dosada diretamente ou por avaliação da Capacidade total de Ligação de Ferro Tratamento O tratamento da DF consiste na reposição oral ou venosa. No entanto, é mandatória a investigação da causa e sua pronto correção Com doses adequadas de ferro suplementar observa-se recuperação rápida da anemia por DF na maioria dos pacientes. O sinal mais precoce da resposta é o aumento da contagem de reticulócitos, que atinge seu pico entre o 5º e o 10º dia de tratamento Oral Dose ideal: 180 a 200mg de ferro elementar/dia para adultos e 1,5 a 2mg de ferro elementar/dia para crianças, dividida em 3 a 4 tomadas, preferencialmente de estômago vazio, ou 30 minutos antes da refeição. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 **Forma Ferrosa é a mais bem absorvida que a férrica **Pacientes em uso de antiácidos e inibidores da bomba de prótons recomenda-se a reposição com doses maiores por mais tempo A prevalência de efeitos colaterais é de até 30%, notadamente no TGI: pirose e dor epigástrica, náuseas, vômitos, empachamento, dor abdominal em cólica, diarreia e obstipação. O paciente deve ser informado de que é esperada mudança de cor nas fezes, e que os efeitos colaterais melhoram com o tempo Recomenda-se manter doses terapêuticas por cerca de quatro meses após a resolução da anemia Parenteral Deve ser indicada em situações especiais Carência de Folatos ou Vitamina B12- Anemias Megaloblásticas As alterações morfológicas do sangue e da medula óssea são similares, sendo conjuntamente conhecidas pela denominação de anemias megaloblásticas. Embora a anemia seja a manifestação mais proeminente, essas doenças têm em comum uma redução seletiva na síntese de DNA e, consequentemente, as alterações se estendem a outras linhagens hematopoéticas como leucócitos e plaquetas, e a outros locais com grande proliferação celular como intestino delgado, língua e útero Fisiopatologia A hematopoese normal compreende intensa proliferação celular, que por sua vez implica a síntese de numerosas substâncias como DNA, RNA e proteínas; em especial, é necessário que a quantidade de DNA seja duplicada exatamente. Tanto os folatos como a vitamina são indispensáveis para a síntese da timidina, um dos nucleotídeos que compõem o DNA, e a carência de um deles tem como consequência menor síntese de DNA Os folatos participam dessa reação na forma de N5- N10-metilenotetraidrofolato, que cede um radical - CH3 (metil) à desoxiuridinamonofosfato (dUMP), transformando-a em timidinamonofosfato (dTMP) que, por sua vez, será incorporada ao DNA. A vitamina B12 participa indiretamente nesta reação, funcionando como coenzima da conversão de homocisteína em metionina, transformando simultaneamente o 5- metiltetraidrofolato em tetraidrofolato, a forma ativa de folato que participa da síntese de timidina Resumindo!! O folato participada síntese de timina que é incorporada no DNA e, para isso, o folato precisa estar em sua forma ativa. A vitamina B12 funciona como coenzima para tornar esse folato ativo Na ausência de vitamina B12, o folato vai se transformando em 5-metiltetraidrofolato, uma forma de transporte do folato, inútil para síntese da timidina e do DNA. A síntese inadequada de DNA tem como consequência modificações do ciclo celular, retardo da duplicação e defeitos no reparo do DNA. Por outro lado, **a síntese de RNA não está alterada, pois a timidina não é necessária para sua síntese; não há, portanto, redução da formação de proteínas citoplasmáticas e do crescimento celular O quadro morfológico do sangue periférico e da medula óssea é idênticos nas deficiências de folatos ou de vitamina B12: dissociação de maturação nucleo- citoplasmática, produzindo células de tamanho aumentado e com alterações morfológicas características. No entanto, uma parcela considerável dessas células morre na própria medula óssea, antes de completar o desenvolvimento Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 Manifestações Clínicas A principal manifestação clínica é a anemia; apesar de plaquetopenia e neutropenia ocorrerem com frequência. A deficiência da síntese de DNA afeta a divisão celular em outros tecidos em que há rápida multiplicação, em especial os epitélios do tubo digestivo, originando queixas de diarreia, glossite (ardência, dor e aparência vermelha da língua, “língua careca”), queilite e perda do apetite. **Pode ser encontrada discreta a moderada esplenomegalia. A deficiência de vitamina B12 determina ainda uma degeneração do cordão posterior da medula espinhal. O quadro resultante, denominado “degeneração combinada subaguda da medula espinhal”, inclui sensações parestésicas dos pés (formigamento ou picada de agulhas), pernas e tronco, seguidas de distúrbios motores, principalmente dificuldades de marcha, redução da sensibilidade vibratória, comprometimento da sensibilidade postural, marcha atáxica, sinal de Romberg, e comprometimentos das sensibilidades termoalgésica e dolorosa “em bota” ou “em luva”. Tríade clássica de deficiência de B12: Fraqueza Dor na língua Parestesias São também comuns manifestações mentais **A deficiência de folato não causa envolvimento do sistema nervoso, mas a deficiência durante a gravidez aumenta a incidência de defeitos de tubo neural em recém-nascidos Causas de Carências Como a anemia por carência de ferro, as anemias por deficiências de folatos ou vitamina B12 resultam de uma disparidade entre a disponibilidade e a demanda. A anemia é o ultimo estádio das deficiências nutricionais, surgindo quando as reservas orgânicas esgotaram-se em virtude do balanço negativo No caso da vitamina B12, os depósitos são suficientes para manter eritropoese por 2 a 5 anos após haver cessado a absorção, enquanto que as reservas de folatos são suficiente apenas para 3 ou 4 meses. As causas de carência podem ser classificadas em: Menor ingestão de nutriente Menor absorção intestinal Defeitos do transporte ou metabolismo Aumento da excreção ou das perdas Aumento das necessidades fisiológicas ou patológicas Causas de carência de vitamina B12 Dieta. Dieta. A vitamina B12 existe primariamente em alimentos de origem animal, não sendo encontrada em frutas e vegetais. As necessidades diárias são ínfimas (0,5-2 g/dia) Absorção. A absorção de vitamina B12 ocorre predominantemente no íleo terminal e depende de uma glicoproteína produzida pelas células parietais da mucosa gástrica, denominada “Fator Intrínseco” (FI). O complexo de vitamina B12/FI é captado pelos receptores das células epiteliais do íleo e a vitamina B12 é absorvida. O tipo mais comum de carência de vitamina B12 é representado pela Anemia Perniciosa, doença de natureza provavelmente imunológica, em que ocorre atrofia e inflamação crônica da mucosa gástrica (gastrite atrófica), levando à ausência concomitante de fator instrinseco e da secreção de ácido clorídrico, com consequente má absorção da vitamina B12. O diagnóstico de anemia perniciosa implica a presença de anemia megalobástica por carência de vitamina B12 associada a gastrite atrófica, demostrada por exame anatomo-patológico obtido por biopsia endoscópica. Existem dois tipos básicos de gastrite: gastrite do tipo A (autoimune), que envolve o fundo e o corpo do estômago, poupando o antro, associada à anemia perniciosa; gastrite do tipo B (não imune), que compromete o fundo, o corpo e o antro. A gastrite do tipo A, além de estar associada à anemia perniciosa, envolve a presença de anticorpos contra células parietais e contra fator intrínseco, acloridria, níveis séricos reduzidos de pepsinogênio e níveis elevados de Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 gastrina. Por outro lado, na gastrite do tipo B, geralmente causada pela infecção pelo Helicobacter pylori, não ocorrem os fenômenos de autoimunidade e os níveis de gastrina são reduzidos pela destruição das células do antro Transporte e metabolismo. No plasma, a vitamina B12 é transportada conjugada a duas proteínas denominadas transcobalamina I e II. A maior parte da vitamina B12 do plasma (cerca de 80%) está ligada à transcobalamina I, que tem um turn-over muito lento, sendo essencialmente inacessível aos tecidos; por isso, deficiência congênita de transcobalamina I e associada a baixos níveis séricos de vitamina B12, sem manifestações clínicas. Por outro lado, a pequena percentagem de vitamina B12 ligada à transcobalami II tem um turn-over muito rápido, e sua ausência congênita produz uma forma rara de anemia megaloblástica Outas causas. Gastrectomia total, Pacientes com obesidade mórbida, tratada cirurgicamente com curto- circuito gástrico, pessoas idosas, etc Causas de carência de folatos A causa mais comum de carência de folatos é representada por dieta inadequada, por vezes associada a uma condição em que aumentam as necessidades diárias, habitualmente a gravidez ou o crescimento. De fato, a anemia megaloblástica da gravidez e a anemia megaloblástica do lactente são os dois tipos mais frequentes dessa deficiência Outras causas comuns são alcoolismo, idade avançada, doenças intestinais associadas à má aborção, pobreza e desnutrição. Em geral, deficiências de folato são resultantes da associação de mais de um mecanismo. Dieta. As principais fontes de folato na alimentação são os vegetais frescos, fígado e frutas; o cozimento excessivo pode remover ou destruir grande porcentagem do folato dos alimentos. As necessidades mínimas diárias são cerca de 50 g na criança e 100 g no adulto, e a quantidade mínima recomendada na dieta do adulto é de 400 g A carência alimentar do folato é observada em grupos de risco, como em indivíduos que subsistem com dietas inadequadas devido à pobreza e desnutrição, sendo geralmente acompanhadas de deficiência de ferro e proteína, em alcoólatras, em idosos, principalmente os institucionais, que se alimentam apenas de chás e bolachas, em indivíduos que se submetem a dietas rigorosas, e em crianças, em especial entre 2 a 18 meses de idade. Absorção. A má absorção de folatos pode ser causada por doenças intestinais crônicas com diarreia, como a doença celíaca, o espru tropical e a enterite regional, drogas como os anticonvulsivantes (difenil- hidantoínas, primidona, carbamazepina, fenobarbital) e álcool. Aumento das necessidades. A demanda de ácido fólico aumenta em pessoas com intensa proliferação celular e a síntese de DNA, tais como: portadores de dermatites crônicas exfoliativas, anemias hemolíticas crônicas, neoplasias, gravidez e nos dois primeiros anos de vida. **Excluindo a má nutrição em crianças, a causa mais comumde anemia megaloblástica é a deficiência de folatos da gravidez, que ocorre em geral no 3º trimestre Erros inatos. Os erros inatos do metabolismo do folato são raros e compreendem a má absorção do folato Diagnóstico de Anemia Megaloblástica O diagnóstico é feito com base nas alterações características do sangue periférico e da medula óssea. Para o diagnóstico correto, em geral, três são as abordagens nesses pacientes: A primeira é reconhecer se a anemia megaloblástica está presente A segunda é distinguir entre as deficiências de vitamina B12 e folato; A terceira é a determinação da causa. As manifestações megaloblásticas das deficiências de vitamina B12 e de folatos são clinicamente indistinguíveis a não ser pela história recente (ao redor de seis meses) na deficiência de folato e mais prolongada (três anos ou mais) na deficiência de B12. Além das manifestações de anemia (fraqueza, palidez, dispneia, claudicação intermitente) são importantes os sintomas gastrintestinais e as alterações da boca e língua. Graus variados de palidez, com pele cor de limão (combinação de palidez com leve icterícia) são comuns. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 Uma das manifestações clássicas da anemia perniciosa é a perda de papilas da língua, que fica lisa, brilhante e intensamente vermelha (“língua careca”). **O quadro neurológico que acompanha a deficiência de vitamina B12 auxilia na diferenciação Avaliação Laboratorial Sangue periférico. Os principais achados são anemia macrocítica, leucopenia, trombocitopenia, acompanhados de anisocitose (eritrócitos de tamanhos diferentes), macrocitose com macro-ovalócitos, poiquilocitose (aumento do número de hemácias de formato anormal), e granulócitos polissegmentados. A contagem de reticulócitos é normal ou baixa, mas o cálculo do índice de reticulócitos corrigido indica anemia hipoproliferativa Resumindo!! Pancilopenia (diminuição das três linhagens de célula) associada a macrocitose. As principais alterações no esfregaço do sangue periférico são: Eritrócitos: Macro-ovócitos, poiloquilocitose com esquistócitos, dacriocitos, corpúsculos de Howwel Jolly, anel de Cabot, eritoblastos, e até megablastos Granulócitos: Hipersegmentação nuclear, com presença de neutrófilos segmentados Leucócitos: Leucopenia com neutropenia, podendo os leucócitos chegar até abaixo de 2.000/μL Plaquetas: Trombocitopenia com 30.000 a 100.000 plaquetas/μL Medula óssea. Há intensa hiperplasia da medula óssea, com acentuada hiperplasia da linhagem eritroide, que é composta por megaloblastos: eritroblastos mais volumosos que o normal, com núcleos com estrutura mais granular e menos condensada. Além disso, há grandes quantidades de aberrações citológicas, como megaloblastos gigantes ou com núcleos polilobulados, binucleado As alterações na série branca são representadas principalmente por mielócitos e metamielócitos de volume aumentado, contendo núcleo gigante. O ferro medular está aumentado em virtude da eritropoese ineficaz e geralmente há grande número de sideroblastos, mas só raramente há sideroblastos em anel. Dosagem de Vitaminas. Dosagem das vitaminas. Esses testes compreendem as dosagens de vitamina B12 sérica, folato sérico e folato eritrocitário. Na deficiência de folatos, tanto o folato sérico quanto eritrocitário estão diminuídos, enquanto que os níveis de vitamina estão normais ou aumentados. Na deficiência de vitamina B12 os níveis de cobalamina estão geralmente baixos e os de folato normais. Entretanto, níveis subnormais ou mesmo normais de vitamina B12 podem ocorrer em indivíduos com carência, em especial idosos. Identificação da causa. A forma mais direta e simples, atualmente, de identificar a anemia perniciosa é a realização de endoscopia gástrica com biópsia nos pacientes em que se revela uma anemia megaloblástica com baixos níveis de vitamina B12. **Se houver sinais de gastrite atrófica, o diagnóstico provável é de anemia perniciosa O teste de Schilling avalia indiretamente a absorção de vitamina B12 e consiste na ingestão oral da vitamina B12 marcada, seguida de medida da vitamina radiativa excretada na urina no período de 24 horas após a ingestão oral: baixa excreção significa que pouca vitamina foi absorvida. Tratamento A mais importante medida no tratamento dessas anemias consiste em identificar a causa e removê-las, se possível. Nos casos em que há concomitância com carência de ferro, o tratamento deve ser simultâneo, caso contrário não haverá recuperação completa dos níveis de hemoglobina. Tratamento da carência de vitamina B12 A anemia perniciosa deve ser tratada com vitamina B12 por via parenteral por toda a vida, uma vez que o defeito de absorção é irreversível **Por exemplo, injeções de 5 mg semanais no primeiro mês, seguidas de injeções de 5 mg mensais Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 **Pacientes idosos com atrofia gástrica e má absorção por dificuldade de dissociação da vitamina B12 do alimento e vegetarianos beneficiam-se preventivamente com doses orais da vitamina em torno de 50 g/ dia (doses maiores podem ser usadas sem efeitos indesejáveis) Tratamento de Carência de Folato Correção da dieta, aumentando a ingestão de verduras Ácido fólico por via oral na dose de 5 mg/dia até que a causa da carência tenha sido removida. Resposta ao tratamento A melhora subjetiva acontece em 48 horas, com o restabelecimento da hematopoese normal A contagem do reticulócitos aumenta até atingir o pico no 5o-8o dia, e sua elevação é proporcional ao grau de anemia. A hemoglobina e o hematócrito começam a melhorar já na primeira semana, e a hemoglobina deve atingir o seu valor normal em cerca de um mês Anemia Falciforme A anemia falciforme é um exemplo clássico de uma alteração mínima na estrutura de hemoglobina capaz de provocar, sob determinadas circunstâncias, uma singular interação molecular e drástica redução na sua solubilidade. Eritrócitos “peculiarmente alongados e em forma de foice” foram descritos pela primeira vez por Herrick, em 1910, no sangue de um indivíduo anêmico de origem africana. No Brasil, o primeiro registro de anemia falciforme foi em 1933 Explicação Genética A alteração molecular primária na anemia falciforme é representada pela substituição de uma única base no códon 6 do gene da globina , uma adenina (A) é substituída por uma timina (T) (GAG GTC). A mutação pontual GAG→GTG (6-GluVal) cria o gene ß S . Todo ser humano possui duas cópias (alelos) do gene da ß-globina. Somente aqueles que são homozigotos para o gene ß S (isto é, os dois alelos são do tipo ß S ) desenvolvem a “doença” anemia falciforme. Indivíduos que herdam apenas uma cópia do ß S em associação a outro alelo qualquer possuem o que se chama de “variante falcêmica” (heterozigotos para o gene ß S ). Relação com a malária: A elevada prevalência do ßS em certas populações é explicada pelo processo de seleção natural: quando em heterozigose com o gene ß normal (traço falcêmico), ele confere uma vantagem biológica ao proteger o indivíduo contra as formas graves de malária! Quando o Plasmodium invade a hemácia portadora do traço falcêmico, a HbS presente nessa célula se desnatura de forma extremamente rápida. Tal fenômeno se acompanha de uma modificação antigênica na membrana plasmática: agregação da proteína banda 3. Autoanticorpos anti-banda 3, fisiologicamente presentes na circulação, opsonizam a superfície externa das hemácias parasitadas, aumentando a taxa de eritrofagocitose (remoção de hemácias pelo baço). O rápido clearance dessas células impede o surgimento de altos níveis de parasitemia Epidemiologia Estima-se que entre 8-10% dos negros norte- americanos possuam pelomenos uma cópia do gene ßS; No Brasil, os dados são menos precisos, e variam conforme a região (fato explicado pelas diferentes participações do negro africano na formação da sociedade de cada local): a anemia falciforme incide em 1 a cada 500 nascimentos na Bahia, 1 a cada 1.200 no Rio de Janeiro e 1 a cada 8.000 no Rio Grande do Sul. Fisiopatologia A substituição do ácido glutâmico por valina na posição 6 ocorre na superfície da molécula, sem provocar alterações significativas na sua conformação global. A hemoglobina S na conformação oxi é isomorfa à hemoglobina normal, sugerindo que a estrutura das duas moléculas (exceto pela substituição do aminoácido) são similares. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 A polimerização da hemoglobina S é o evento fundamental na patogenia da anemia falciforme, resultando na alteração da forma do eritrócito e na acentuada redução de sua deformabilidade Todas as hemácias contendo predominantemente hemoglobina S podem adquirir a forma falciforme clássica após a desoxigenação, em decorrência da polimerização intracelular da desoxi-Hb S, processo normalmente reversível após a reoxigenação. No entanto, a repetição frequente desse fenômeno provoca lesão de membrana em algumas células, fazendo com que a rigidez e a configuração em foma de foice persistam mesmo após a reoxigenação. Assim, esses eritrócitos, denominados genericamente “células irreversivelmente falcizadas” ou células densas, retêm permanentemente a forma anormal, mesmo na ausência de polimerização intracelular de hemoglobina Em decorrência da sua acentuada rigidez, as células irreversivelmente falcizadas tem vida-média reduzida e contribuem significativamente para anemia hemolítica dos pacientes. O quadro clínico depende da ocorrência de lesões orgânicas causadas pela inflamação e da obstrução vascular e das chamadas “crises de falcização”. Nos períodos entre as crises, a “fase estável”, os pacientes evoluem praticamente assintomáticos, a despeito da anemia persistente, com níveis de hemoglobina variáveis, mas, em geral, ao redor de 8 g/dL. Vaso-Oclusão Capilar Atualmente, acredita-se que o fenômeno vaso-oclusivo compreende um processo com várias etapas que envolve interações de hemácias, leucócitos ativados, células endoteliais, plaquetas e proteínas do plasma. A liberação intravascular de hemoglobina pelas hemácias fragilizadas, além da vaso-oclusão recorrente e dos processos de isquemia e reperfusão, leva a dano e ativação das células endoteliais da parede do vaso. Como consequência há indução de uma resposta inflamatória vascular e adesão de células brancas e vermelhas à parede dos vasos sanguíneos. Tal fato, associado a uma redução na biodisponibilidade de Óxido Nítrico (NO) no interior do vaso e ao estresse oxidativo, pode ocasionar, em alguns casos, uma redução no fluxo sanguíneo e, finalmente, a vaso- oclusão. Acredita-se que existam duas etapas sucessivas: 1. Adesão de hemácias ao endotélio das vênulas pós- capilares (em geral formas jovens de hemácia, como os reticulócitos), lentificando o fluxo sanguíneo local; 2. Impactação e empilhamento de hemácias a montante, inicialmente as ISC (mais viscosas e menos deformáveis) e posteriormente hemácias não afoiçadas. A estase sanguínea subsequente produz hipóxia e acidose, o que faz o afoiçamento se generalizar criando a obstrução microvascular propriamente dita, que culmina em isquemia tecidual. A adesão de hemácias ao endotélio pode ocorrer espontaneamente, mas sabemos que ela é modulada por fatores exógenos como infecções, desidratação, exposição ao frio e diversas outras formas de “estresse” (incluindo o estresse emocional). Tais fatores não só aumentam a chance de polimerização da HbS como também estimulam diretamente a resposta inflamatória, sobrepondo-se ao estímulo inflamatório crônico promovido pela hemólise intravascular constante. A agudização do estado inflamatório crônico “ativa” ainda mais as células endoteliais, aumentando transitoriamente a exposição de moléculas adesiogênicas em sua interface com o sangue – um verdadeiro “estopim” para que um grande número de hemácias fiquem presas na microcirculação! A isquemia tecidual evidentemente irá produzir focos de necrose nos órgãos envolvidos. A disfunção orgânica na anemia falciforme apresenta um curso crônico e progressivo, pois a vaso-oclusão capilar constante somam-se episódios intermitentes de agravamento. Curiosamente, a isquemia localizada também estimula a disfunção endotelial sistêmica: mediadores inflamatórios, liberados pelos tecidos infartados, exercem efeitos sistêmicos (à distância) que modificam a biologia vascular de todo o organismo! Assim, podemos afirma que a vaso-oclusão repetitiva da microvasculatura é um fator adjuvante que, junto à hemólise intravascular ininterrupta, produz inflamação sistêmica e disfunção endotelial! Manifestações clínicas Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 Apenas quando os níveis de HbF declinam significativamente aparecem os primeiros sinais e sintomas da doença, em geral após os seis meses de idade. Os pacientes com doença falciforme apresentam períodos sem manifestações clínicas, que pode ser interrompida por manifestações agudas, denominadas crises de falcização: Crises vaso-oclusivas. Frequência e a gravidade das crises variam. Os fatores desencadeantes incluem infecção, desidratação e tensão emocional de qualquer natureza. As crises dolorosas são mais frequentes na terceira e quarta décadas de vida, e a taxa de mortalidade é mais alta em adultos que as apresentam com maior frequência. A forma mais comum de crise álgica é a “crise esquelética”. As crises dolorosas típicas atingem principalmente ossos longos, articulações e região lombar. Outras regiões podem também ser afetadas, como couro cabeludo, face, tórax e pelve. Episódios agudos de dor e inchaço de mãos e pés (síndrome das mãos e pés ou dactilite) são frequentes em crianças entre seis meses e dois anos de idade, e extremamente raras após os sete anos de idade. A “crise abdominal” é causada por isquemia/microinfartos no território mesentérico, geralmente evoluindo com resolução espontânea e sem maiores complicações, mas pode simular abdome agudo (descompressão dolorosa). O tratamento é sintomático e, se os sinais persistirem, é importante afastar o diagnóstico de osteomielite. A eliminação completa da dor é um objetivo irreal. Aplásticas. Queda acentuada nos níveis de hemoglobina, acompanhada de níveis de reticulócitos reduzidos, caracterizando insuficiência transitória da eritropoese. Em geral, desencadeada pelo parvovírus B19 e ocorre, em 68% dos casos, em crianças. Em adultos são mais as infecções por Streptococcus pneumoniae, salmonelas e pelo vírus Epstein-Barr, além de necrose medular óssea extensa, com febre, dor óssea, reticulocitopenia e reação leucoeritroblástica. Crise megaloblástica. A insuficiência medular pode resultar da deficiência de ácido fólico, especialmente durante a gravidez. Há queda da hemoglobina acompanhada por um aumento do VCM (macrocitose). Costuma ser causada pelo esgotamento das reservas endógenas de folato, que duram poucos dias nos estados hemolíticos crônicos se o paciente não ingerir quantidades suficientes. Às vezes existe também um componente de deficiência de B12, em particular nos indivíduos que apresentam outros motivos. O tratamento é feito com hemotransfusões simples conforme a necessidade, aliada à reposição da vitamina deficitária. A profilaxia é feita com ácido fólico 1 mg/dia. Crise de sequestro esplênico. Episódio agudo caracterizado pelo acúmulo rápido de sangue no baço. É definida pela queda nos níveis basais de hemoglobina de pelo menos 2 g/dL, hiperplasiacompensatória de medula óssea e aumento rápido do baço. Ocorre, em geral, após o sexto mês de vida, e torna-se menos frequente após os dois anos de idade. O baço de um falcêmico adulto é absolutamente atrófico e fibrosado, sem condições de albergar uma crise de sequestro. Cerca de 30% das crianças falcêmicas vão desenvolver sequestro esplênico. Em até 15% das vezes o episódio inicial é fatal. A taxa de recidiva é de 50%. Após o primeiro episódio, já se indica a esplenectomia cirúrgica profilática. O tratamento agudo das crises de sequestro consiste na reposição volêmica com hemotransfusão. Crises hemolíticas. Também denominadas de crises hiper-hemolíticas, derivam de um incremento brusco na taxa de hemólise. Esse tipo de crise é raro e aparentemente está relacionado a infecções por Mycoplasma, deficiência de G6PD ou esferocitose hereditária associadas. A principal crise hiper- hemolítica da AF é a Reação Hemolítica Tardia. As manifestações clínicas podem incluir agravamento da anemia e acentuação da icterícia. No entanto, antes de fazer o diagnóstico de crise hemolítica, devem ser afastadas outras causas mais frequentes de elevação dos níveis de bilirrubinas, como obstrução por cálculo de vesícula, hepatite ou falcização com colestase intra- hepática. Diagnóstico 1. Queda leve a moderada da hemoglobina e do hematócrito; 2. Reticulocitose (entre 3-15%); 3. Hiperbilirrubinemia indireta; 4. Aumento de LDH; 5. Queda da haptoglobina. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 A reticulocitose provoca um aumento “artificial” do VCM se o portador não apresenta VCM “normal alto” ou francamente alto, deve-se suspeitar da coexistência de ferropenia. As hemácias falcêmicas são normocrômicas (hipocromia também sugere ferropenia). Esperam-se contagens de leucócitos e plaquetas aumentadas, além de elevação dos “marcadores de fase aguda”. O esfregaço de sangue periférico é relativamente específico, sugerindo o diagnóstico no contexto apropriado. Observam-se: Hemácias irreversivelmente afoiçadas – as ISC; Policromasia – indicativo de reticulocitose; corpúsculos Howell-Jolly – sinal de asplenia; Hemácias “em alvo” – indício genérico de que existe uma hemoglobinopatia. Geralmente é confirmado por meio da eletroforese de hemoglobina. Outros exames capazes de confirmar o diagnóstico são a Cromatografia Líquida de Alta Performance (HPLC) e a análise genética. Os testes de afoiçamento e de solubilidade da hemoglobina não diferenciam entre AF e as variantes falcêmicas, logo, só podem ser usados como testes de rastreio. Rastreio Pré-natal: Nas gestações onde existe risco de HbSS no concepto pode-se realizar o diagnóstico por meio da biópsia de vilo coriônico, coletada entre 8-10 semanas de gestação e submetida à análise genética. Neonatal: teste do pezinho Tratamento Todos os pacientes com anemia falciforme devem ser acompanhados por um médico hematologista. Existem quatro condutas básicas que comprovadamente diminuem a morbimortalidade. Tal conjunto de medidas é denominado Terapia Modificadora de Doença e está embasado por evidências científicas robustas: Profilaxia contra o pneumococo; Reativação da síntese de HbF; Hemotransfusão; Uso de quelantes de ferro. Com exceção da profilaxia contra o pneumococo, nem sempre os outros três serão indicados Profilaxia contra Pneumococo. A principal causa de óbito em crianças falcêmicas (entre 1-3 anos) é a infecção por germes encapsulados, com destaque para o Streptococcus pneumoniae (pneumococo). São indicados a vacinação antipneumocócica e o uso profilático de penicilina. Reativação da Síntese de Hemoglobina Fetal. Por um mecanismo desconhecido, a Hidroxiureia (HU) – um quimioterápico inibidor da ribonucleotideo-redutase – aumenta os níveis de HbF. Hematologicamente, ocorre melhora da anemia e queda na contagem de reticulóticos, leucócitos e plaquetas. Clinicamente, diminui a frequência de crises álgicas, incluindo os episódios de síndrome torácica aguda, além de haver uma redução na necessidade de hemotransfusão. Principais indicações: 2 ou mais crises álgicas por ano com necessidade de internação; presença de disfunção Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Hematologia Tutoria 1 orgânica relacionada à AF; anemia profunda com reticulócitos >250.000; paciente com indicação de hemotransfusão crônica que apresente aloimunização importante; prevenção secundária da STA Hemotransfusão. Existem duas modalidades básicas de hemotransfusão na AF: (1) transfusão simples; (2) transfusão de troca parcial (exsanguinitransfusão parcial). Ambas podem ser realizadas de maneira episódica, mas quando é necessário transfundir cronicamente o paciente indica-se apenas a transfusão de troca parcial, já que com este procedimento o risco de sobrecarga de ferro é menor. Os alvos de Hb e Ht são os mesmos: 10 g/dl e 30%. No entanto, além de aumentar Hb e Ht, a transfusão de troca possui uma vantagem adicional: redução na quantidade de HbS circulante. Neste procedimento, objetiva-se manter a proporção de HbS < 30%. As principais complicações transfusionais são a aloimunização, a sobrecarga de ferro e as infecções virais hemotransmissíveis. Quelação do Ferro. Indivíduos que necessitam de hemotransfusões repetitivas ao longo da vida estão sob risco de desenvolver sobrecarga de ferro (hemocromatose secundária). A hemocromatose, ao danificar múltiplos órgãos e tecidos (ex.: cirrose hepática, miocardiopatia dilatada, insuficiência pancreática) reduz a expectativa de vida. Seu tratamento, baseado no uso de quelantes de ferro. Os principais quelantes de ferro disponíveis são: (1) deferoxamina – utilizada pela via endovenosa ou subcutânea; (2) deferasirox – utilizado pela via oral. Indicações: ferritina sérica > 2.000 mcg/l; Fe hepático >2.000 mcg/g de peso a seco; história de transfusões por > 1 ano; RNM cardíaca e/ou hepática positiva para excesso de Fe. Terapias Adjuvantes Reposição de Folato e Outras Vitaminas. Reposição contínua de 1 mg/dia de ácido fólico (dose profilática). Existem evidências crescentes de que os falcêmicos talvez se beneficiem da reposição das vitaminas A, C, D e E, além de outros agentes imunoestimulantes e antioxidantes como zinco e acetilcisteína. Flebotomia. Nos raros pacientes que apresentam espontaneamente uma Hb ≥ 9,5 g/dl, um protocolo de flebotomias quinzenais pode ser instituído, visando à redução da hiperviscosidade. A conduta consiste na retirada de 10 ml de sangue/ kg de peso em 20-30min (com reposição de igual volume de salina isotônica), repetindo-se o procedimento até que um alvo de Hb entre 9-9,5 g/dl seja atingido Eritropoietina/Darbopoietina. É possível que haja benefício nos casos que apresentam Hb < 9 g/dl e contagem de reticulócitos < 250.000/ml (o que na AF configura uma reticulocitopenia relativa). A dose deve ser titulada até que se obtenham níveis de hemoglobina em torno de 10 g/dl (acima disso existe risco de hiperviscosidade). Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas. O transplante de células-tronco hematopoiéticas representa a única chance de CURA da AF. O transplante, no entanto, não é indicado de rotina devido à dificuldade em se obter doadores compatíveis e também – principalmente – devido à elevada morbimortalidade do procedimento em si. O transplante pode ser indicado nas crianças HbSS que têm fenótipo mais agressivo, com anemia profunda refratária à HU e múltiplas disfunções orgânicas precoces. A fonte das células-tronco pode ser a medula óssea ou o cordão umbilical de um doador HLA- compatível. Decitabina. Evidências preliminares sugerem que talvez seja útil até mesmo em pacientes refratários à HU Inibidores da Desidratação de Hemácias. Antiplaquetáriose Anticoagulantes. Ácido Ômega-3. Terapias Experimentais. Uso de inibidores da adesão eritrocitária ao endotélio (ex.: imunoglobulina antiPSGL), estimulantes da síntese de óxido nítrico (ex.: glutamina) e fitoterápicos de mecanismo incerto, para os quais há relatos anedóticos de benefício (ex.: Niprisan).
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