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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO - UPF PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO CURSO DE MESTRADO EM DIREITO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: RELAÇÕES SOCIAIS E DIMENSÕES DO PODER A RESSOCIALIZAÇÃO DOS APENADOS COMO FORMA DE INCLUSÃO SOCIAL LETÍCIA COSTA PIZOLOTTO Passo Fundo – RS, maio de 2017. UNIVERSIDADE DO DE PASSO FUNDO -UPF PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD 2 CURSO DE MESTRADO EM DIREITO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: RELAÇÕES SOCIAIS E DIMENSÕES DO PODER A RESSOCIALIZAÇÃO DOS APENADOS COMO FORMA DE INCLUSÃO SOCIAL Letícia Costa Pizolotto Dissertação submetida ao Curso de Mestrado em Direito, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Profª Drª. Karen Beltrame Becker Fritz Passo Fundo – RS, maio de 2017. 3 AGRADECIMENTOS Cada etapa de nossas vidas é uma experiência nova que traz consigo a dor do crescimento, pois a evolução, seja ela intelectual, espiritual, emocional ou física, traz necessariamente a dor de sair da zona de conforto e buscar o além daquilo que já está consagrado no dia-a-dia. Entretanto, quando a superação é alcançada, a dor é substituída por sentimentos nobres de gratidão e alegria. Ingressar no Programa de Mestrado foi não só uma superação intelectual, mas uma superação pessoal apoiada ao confronto de muitos ideais. A convivência com pessoas especiais, que, porém, pensavam de forma muito contrastante foi um convite à reflexão interior e aceitação. Ninguém conhece o interior do outro tão profundamente ao ponto de saber os seus motivos e intenções; pensamos que sabemos, julgamos muito, mas o ser humano é tão complexo que jamais poderia ser explicado por qualquer teoria. É uma mutação constante. Indubitavelmente saio um ser humano diferente, a evolução intelectual propiciada pela pesquisa e estudo junto a grandes Mestres e colegas me possibilitou agregar conhecimento, mas certamente, a maior mudança foi conceitual, ou talvez, a desconstrução de conceitos prontos e definitivos acerca das pessoas e das coisas que envolvem este mundo. De tudo, o que fica é a gratidão por momentos tão marcantes e a alegria de levar comigo o aprendizado. Brilha a convicção de que todos os esforços foram válidos, de que a nossa alma, sabe aonde quer ir, e exatamente o que precisa enfrentar, basta que nos deixemos guiar pela completude do universo, pois ao final, teremos tido a completa entrega de uma força superior que nos brinda com a lucidez de um momento inexplicavelmente evolutivo. Gratidão a todos que se fizeram presentes nesta construção de um novo ser que me tornei. Interiormente, cada um sabe a sua importância na vida do outro! Gratidão! 4 À equipe de professores e funcionários do PPG de Direito da UPF, que contribuíram para a minha trajetória até a conclusão deste trabalho, em especial à minha Orientadora Professora Drª. Karen Beltrame Becker Fritz, muito obrigada pelo apoio, incentivo e paciência! Os levo em meu coração! À minha família, por serem minha base, meu suporte mais firme nos momentos de maior precisão. O amor se revela na certeza de estarmos sempre uns ao lado dos outros, formando um elo, não perfeito, mas completo. “Quão bom e suave é quando vivemos em união”. Amo-os infinitamente! A Deus, simplesmente, por tudo! 5 Dizem que o que procuramos é um sentido para a vida. Penso que o que procuramos são experiências que nos façam sentir que estamos vivos. J. Campbell 6 RESUMO A presente pesquisa busca examinar a estrutura penal brasileira, especialmente do sistema de execução penal. Para tanto, faz-se uma reflexão acerca da função do Direito e dos seus mecanismos assecuratórios, tanto à sociedade (segurança pública), como ao indivíduo (direitos humanos), apoiados no exercício da função estatal. Discute-se a ineficiência da política criminal brasileira, que, apesar dos altos índices de encarceramento, não tem conseguido dar uma resposta satisfatória à violência. Analisa-se a opressão que muitos sofrem e a sua vinculação com a exclusão social e com a criminalidade, trazendo a proposta de uma nova perspectiva ao cárcere, apoiada na capacitação (capability) dos apenados, objetivando a sua ressocialização. A cultura punitivista, que tende a tratar o delinquente como estorvo social, tem refletido o descaso com a figura do apenado e com a garantia dos seus direitos, ao mesmo tempo em que, demonstra-se como uma forma ineficiente de combate à criminalidade. De forma que, objetiva-se expor as deficiências da política criminal brasileira diante do seu fim ressocializador, propondo, em contrapartida, um entendimento fraterno do mundo e das limitações do outro, por meio de ações que atendam aos anseios da sociedade e do indivíduo. Palavras-chave: Política criminal. Exclusão social. Ressocialização. Capacitação (capability). 7 ABSTRACT This research seeks to examine the Brazilian criminal structure, especially the criminal enforcement system. In order to do so, a reflection is made on the role of law and its mechanisms of law, both to society (public security) and to the individual (human rights), supported in the exercise of state function. It discusses the inefficiency of the Brazilian criminal policy, which, despite high levels of incarceration, has not been able to respond satisfactorily to violence. It analyzes the oppression that many suffer and its connection with social exclusion and crime, bringing the proposal of a new perspective to the jail, supported in the capacitation of the prisoners, aiming at their resocialization. The punitive culture, which tends to treat the delinquent as a social obstacle, has reflected the disregard for the figure of the grieving and the guarantee of their rights, at the same time that, in order to expose the deficiencies of criminal policy Brazilian society in the face of its resocializing purpose, proposing, on the other hand, a fraternal understanding of the world and the limitations of the other, through actions that meet the longings of society and the individual. Keywords: Criminal policy. Social exclusion. Ressocialização. Capability. 8 SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................ 6 ABSTRACT ........................................................................................................ 7 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 1 POLÍTICA CRIMINAL E OS DIREITOS INDIVIDUAIS ................................. 13 1.1 Dos direitos do indivíduo e da sociedade ................................... 30 1.2 Prisões: um mal necessário à garantia da paz social ................ 41 2 A INEFICIENTE MAXIMIZAÇÃO DO DIREITO PENAL ............................... 54 2.1 Inconsistência e desordem do sistema prisional brasileiro ...... 66 2.2 A opressão sistêmica e a libertação dos oprimidos ................... 78 3 A AMPLIAÇÃO DAS CAPACIDADES COMO FORMA DE RESSOCIALIZAÇÃO ....................................................................................... 97 3.1 A ressocialização por meio do autorreconhecimento dos apenados como integrantes da estrutura social ....................................... 107 3.2 O empoderamento dos apenados .............................................. 110 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 120 REFERÊNCIAS ..............................................................................................125 9 INTRODUÇÃO Liberdade, provavelmente o maior anseio humano seja a liberdade transcendental, que não se limita ao que é tido como livre por uma determinada sociedade, mas que é expressa pela liberdade interior de cada ser humano, revelando a plenitude e os desejos de cada indivíduo. A totalidade do sistema tende a inibir as ações humanas, tolhendo o ser humano natural para impor uma sistemática de condutas que devem ser observadas. As limitações não necessariamente devem ser entendidas como prejudiciais ao indivíduo, já que servem para preservar os direitos dos demais integrantes e assim também garantem os seus direitos na mesma medida. O conjunto de regramentos é importante para a convivência no grupo, tanto para o asseguramento dos direitos individuais como coletivos. As normas passam a ter uma conotação negativa na medida em que há um desequilíbrio legislativo tendencioso a favorecer determinados interesses pessoais, prejudicando um grupo populacional que vive à margem das oportunidades e escolhas políticas. A exclusão social é produto da minimização ou eliminação de direitos, sendo incumbência do Estado dirimir as desigualdades através de políticas públicas que criem condições equânimes a todos os indivíduos. A criação e aplicação normativa são os mecanismos que possibilitam a manutenção da estrutura estatal, o conjunto de regramentos que compõe a sociedade é a essência da ordem social, de forma que o Estado se utiliza das normas para assegurar os direitos da população. Nesse campo, o direito penal é o poder de ultima ratio ao dispor do Estado, que se estabelece como uma ferramenta auxiliadora na construção da ordem harmônica necessária ao convívio em sociedade, atuando como um mecanismo polifuncional que busca prevenir, retribuir e ressocializar os criminalizados frente à inobservância das normas pactuadas. Em que pese a essencialidade do direito penal como mecanismo coercitivo, observa-se uma metodologia crescente na criminalização de 10 condutas, o que, todavia, não tem refletido na minimização da violência enfrentada pela sociedade, restando prejudicada a finalidade do direito penal, que tem por objetivo a efetiva proteção dos bens socialmente considerados essenciais. A ineficiência penal se torna ainda mais evidente diante do elevado índice de agentes que, após o cumprimento da sanção penal, reincidem no cometimento de delitos. Busca-se com a pesquisa estabelecer um dialógo entre a política criminal brasileira que vem sendo desenvolvida e os direitos que devem ser preservados aos indivíduos sujeitos ao enfrentamento da execução penal. Demonstra-se a necessidade da aplicação penal como uma forma de controle social ao enfrentamento dos crimes graves que expõem a coletividade ao risco e, ao mesmo tempo, evidencia-se o dever estatal de preservar os direitos legalmente assegurados aos indivíduos, ainda que na condição de apenados. Evidenciada a necessidade da estrutura penal mínima, analisa-se a maximização da criminalização das condutas e os efeitos negativos que o enrijecimento penal tem trazido para a sociedade. O crescimento da população carcerária conjuntamente com o aumento da insegurança causada pela multiplicação da criminalidade, evidenciam os prejuízos que a opressão sistêmica, amparada por políticas que alargam a exclusão social, como a privação de liberdade sem o incentivo estatal na construção de políticas púbicas inclusivas, projeta na sociedade. Por meio da teoria de Enrique Dussel1, filosofia da libertação, estabelece-se um diálogo entre a opressão sentida por determinada parcela populacional e a criminalidade, interligando-se os efeitos que a imposição do pensamento central lança nos indivíduos que não compartilham deste mesmo grupo de poder, por estarem compreendidos nas periferias sociais, e a 1 DUSSEL, Enrique D. Filosofia da Libertação na América Latina. São Paulo: Edições Loyola, 1977. 11 manifestação da criminalidade. Analisam-se os reflexos da exclusão social frente ao sentimento de não vinculação com as ideais centrais, e o desejo de contrapor os objetivos impostos pela ideologia de centro que não defende as necessidades dos que sofrem os efeitos da opressão. No mesmo sentido, discutem-se os efeitos da nova projeção econômica difundida pelo ideal capitalista através do consumo extremo, que segundo Bauman2, é a nova forma de medir o quão bem-sucedida é uma vida, o que, associado com a diminuição do Estado de bem-estar social, faz com que uma parcela da população sinta os efeitos da exclusão social e encontre na criminalidade uma forma de se inserir na sociedade, usando dos meios que dispõem, ainda que sejam ilegais. Para a caracterização das dificuldades de inclusão social que o atual modelo de execução penal brasileiro apresenta, aborda-se a estrutura das entidades prisionais do país e a sua inadequação enquanto ferramenta auxiliadora para a ressocialização dos apenados, tendo em vista que o sistema prisional é tido como “estado de coisas inconstitucionais”, frente às condições desumanas a que são submetidos os apenados. Pretende-se demonstrar que os efeitos da exclusão social são sentidos não só pelo indivíduo excluído, mas pela sociedade também, que passa a conviver com a violência, um dos reflexos da exclusão social. Com a finalidade de apresentar possíveis soluções à criminalidade, objetivando projetar a ressocialização dos apenados e, assim, superar os efeitos negativos sentidos pelo cárcere, aborda-se a teoria de Amartya Sen3, desenvolvimento como liberdade, como uma nova postura a ser adotada pela política criminal brasileira, por meio da capacitação (capability) dos apenados. 2 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 3 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de Bolso, 2015. 12 Salienta-se a importância da criação de políticas públicas que propiciem aos apenados condições de ampliarem as suas capacidades, por meio de incentivos educacionais e profissionalizantes. Vislumbra-se a possibilidade de ressocialização dos apenados, diante do cumprimento da pena, por meio do empoderamento destes indivíduos ao desenvovlimento de atividades lícitas que lhes possibilitem o sustento e a valorização de suas vidas. Ainda, através da Teoria da Nova Defesa Social, difundida por Marc Ancel4, defende-se a prática de um direito penal humanitário, que não preze pela aplicação penal como forma de vingança, mas que se preocupe essencialmente em criar no agente delituoso o instinto de coletividade e respeito aos direitos alheios, o que é possível mediante a garantia dos direitos dos seus direitos, estabelecendo-se um círculo de valores e respeito mútuo. 4 ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. Rio de Janeiro: Forense, 1979. 13 1 POLÍTICA CRIMINAL E OS DIREITOS INDIVIDUAIS A política criminal enquanto conjunto de opções administrativas adotadas pelo Estado acerca do posicionamento frente à criminalidade precisa estabelecer um consenso entre a aplicação penal para a proteção da coletividade e a preservação dos direitos individuais dos apenados. As normas são a expressão da cultura e da época na qual está inserida a população que as observará, são criadas pelo homem com a finalidade de organizar os comportamentos na sociedade e reafirmar os valores que precisam ser respeitados. A finalidade essencial do direito é garantir a convivência pacífica entre os distintos seres que compõem a coletividade, estabelecendo assim, direitos e deveres aos membrosdo conjunto social5. A vida em sociedade necessita da existência de normas que regulem esta convivência, pois cada indivíduo é livre para exercer suas ações, conforme entende mais adequado, de forma que se não existissem normas provavelmente se estabeleceria o caos social. As normas elencam os limites da atuação humana, com a finalidade de resguardar direitos socialmente importantes. Aristóteles6 afirma que a formação da sociedade é um acontecimento natural, pois o homem sempre busca a convivência com os demais, ao passo que não o precisando, ou resolvendo diferentemente, significa se tratar de um deus ou de um bruto. A regra é o convívio social, porém, a interação entre as pessoas nem sempre resulta em ações positivas. 5 MACIEL, José Rodrigues. Formação humanística em direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 24-25. 6 ARISTÓTELES. A política. Disponível em: <http://baixar- download.jegueajato.com/Aristoteles/A%20Politica%20(170)/A%20Politica%20-%20- Aristoteles.pdf>. Acesso em: 20/06/2016, p.12. 14 Nos primórdios da humanidade havia a predominância dos usos e costumes, sem a existência de regras expressas, vivia-se sob um estado de anomia (ausência de normas). Com o passar do tempo e a evolução social se tornou impossível a permanência do estado primitivo, surgindo a necessidade de uma transformação social que conseguisse captar as condições peculiares dos indivíduos e assim criar um ambiente no qual fosse possível a convivência de todos, sob uma ordem social na qual prevalecesse o comum acordo7. Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente. Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social.8 De acordo com ROUSSEAU, a sociedade evoluída já não comportava uma ausência total de normas, mas exigia um mecanismo regulatório no qual todos os integrantes da comunidade regida pelo pacto social estivessem vinculados. A renúncia de parcela da liberdade refletiria uma condição na qual também haveria a previsão de benefícios ao associado, ao ponto que, todos os indivíduos estariam sujeitos a entregar a mesma parcela de direitos, e ter a mesma parcela de direitos assegurados. Originando, assim, um interesse mútuo na preservação do pacto. Portanto, para o Estado poder exercer o seu poder coator, ele deve, em contrapartida, assegurar os direitos individuais dos seus administrados. O constrangimento à liberdade de um infrator somente estará legitimado diante do asseguramento anterior ao cometimento do delito dos seus direitos sociais legalmente previstos, na mesma proporção que também necessitam estar de 7 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. E-book. Disponível em: <www.jahr.org>. Acesso em: 15/08/2016, p. 23. 8 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. E-book. Disponível em: <www.jahr.org>. Acesso em: 15/08/2016, p. 24. 15 acordo durante o cumprimento penal, e, após o cumprimento na condição de egresso. É importante a presença de um poder regulador para que as vontades distintas dos integrantes do conjunto social se harmonizem, na mesma medida que também são importantes instrumentos que façam com que os preceitos estabelecidos pelo grupo sejam observados. O pacto social entre os homens representa as convenções criadas para a construção da igualdade moral e legítima frente às desigualdades físicas que a natureza impõe aos indivíduos, transformando as desigualdades quanto à força ou ao talento, iguais por meio das convenções e do direito9. Os pactos tidos entre os homens acabam por restringir a liberdade no seu sentido lato. Diante da limitação externa o indivíduo passa a observar determinações estabelecidas pela razão. Renunciar a algum direito é, de certa forma, privar-se da liberdade íntegra, no entanto, imperioso destacar que se todos os homens fossem usufruir da sua liberdade total, sem que houvesse limitações, esta mesma liberdade não seria segura, ao ponto que se tornaria impossível viver com segurança por todo o tempo que a natureza física permite10. As Leis, portanto, são criações que buscam estabelecer a linha pela qual o indivíduo deve se guiar de forma imperativa, no entanto, sabe-se que as palavras por si só não possuem o poder de doutrinar. Há duas maneiras de fazer com que os homens respeitem às regras pactuadas coletivamente: pelo orgulho de demonstrar socialmente que se é um seguidor das normas (cunho moral) ou então pelo receio da punição que a inobservância pode gerar. Eis o 9 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. E-book. Disponível em: <www.jahr.org>. Acesso em: 15/08/2016, p. 35. 10 HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã: matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. E-book disponível em: <https://saudeglobaldotorg1.files.wordpress.com/2013/08/te1-hobbes-leviathan.pdf>. Acesso em:10/04/2016, p. 48. 16 princípio basilar do direito penal, assegurar o cumprimento das normas por meio da imposição de sanções penais para os transgressores11. As normas estabelecidas pelo poder regulador procuram projetar a organização da sociedade e a proteção dos bens essenciais. Como apregoa BECCARIA12, o homem, cansado de uma falsa liberdade, na qual convivia com a insegurança e o temor, preferiu sacrificar uma parte desta liberdade para poder usufruir com maior tranquilidade de sua vida diante da segurança advinda do poder Estatal, formando-se assim, perante a entrega parcial da liberdade individual, a soberania da nação, sendo aquele responsável pela criação e administração das leis. No entanto, de acordo com o autor13, as penas previstas como medidas de coação devem salvaguardar efeito dúplice: causar no espírito público a impressão de justiça aplicada ao caso concreto diante do mal causado pelo transgressor, bem como, atingir da maneira menos cruel o corpo deste culpado. O direito penal estabeleceu seus alicerces legitimadores na preservação da humanidade, visto que o tratamento diferenciado aos inimigos ou estranhos é autorizado com a finalidade de assegurar que os perigos sejam neutralizados. A infração às normas estabelecidas é uma agressão real, portanto o poder punitivo é utilizado como resposta14. O poder-dever de punir do Estado se insurge como consequência da supressão da autotutela – vingança privada, sendo, portanto, as instituições 11 HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã: matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. E-book disponível em: <https://saudeglobaldotorg1.files.wordpress.com/2013/08/te1-hobbes-leviathan.pdf>. Acesso em:10/04/2016, p. 51. 12 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf>. Acesso em: 18/07/2016, p. 9-10. 13 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf>. Acesso em: 18/07/2016, p. 30. 14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.83-84. 17 estatais as legitimadas para desempenhar a função persecutória e condenatória em relação aos crimes cometidos. Diante do conflito social se faz necessária a prestação de uma resposta, no entanto, o poder estatal não é puro arbítrio, mas um poder condicionado, sendo o devido processo penal a forma de limitar a atuação arbitrária15. Se por um lado há um direito penal material que visa assegurar as condutas proibidas e assim imputar sanções penais frente ao cometimentoda ação tida como criminosa, por outro lado, o direito processual penal serve ao acusado, para que a atuação do Estado seja limitada pelas garantias do devido processo legal. De acordo com Franz v. LISZT, o direito penal ao mesmo tempo em que prevê punição à conduta que se deseja reprimir, também protege o indivíduo que “só poderá ser punido sob os pressupostos e dentro dos limites legais”16. É importante para a estruturação da sociedade a delimitação das condutas penalmente puníveis, representando segurança jurídica para a convivência social. A fixação das normas penais evita a penalização de condutas através de critérios sociais e políticos, dando efetivamente ao direito penal a posição de ciência jurídica, diante “da análise conceitual das regulamentações jurídico-positivas e da sua ordenação no sistema”17. A estrutura penal tem como medida a proteção dos valores ético- sociais extremos defendidos pela sociedade, diferenciando-se das demais instituições que também atuam no fortalecimento dos princípios defendidos pela coletividade (como escola, família, igreja) justamente pela caracterização do comportamento desviante (conduta tipificada). O direito penal enquanto 15 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 26. 16 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 2-3. 17 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 12. 18 ciência jurídica possibilita a constatação da infração e legitima a aplicação da pena mediante o devido processo penal, o encadeamento dos três elementos (norma, processo e sanção) constitui a base da administração da justiça penal e da sua missão ao controle social18. É função do Estado atuar diante dos conflitos sociais para garantir a segurança dos indivíduos que compõem a sociedade, enquanto titular do poder-dever de punição o Estado está não só autorizado, mas obrigado a agir diante do descumprimento das normas, especialmente as normas penais, que integram as normas de Direito Público19. Entretanto, a interferência estatal deve estar pautada pela observância dos direitos inerentes aos indivíduos, independentemente da conduta praticada, pois os direitos individuais são indisponíveis. Na medida em que o direito material possui o condão de reprimir atuações incondizentes com as pactuadas pela normatividade, representando um direito dos interesses da coletividade e da pacificação social. O direito processual penal é a limitação expressa à imposição das sanções sem antes haver o devido processo legal, sendo este basilar à condenação. É a forma de impor condutas pautadas pelo respeito técnico, ético e personalíssimo, limitando o exercício arbitrário do poder punitivo por parte do Estado. Constitucionalmente há a previsão de garantias tidas como mínimas que visam proteger a dignidade da pessoa humana. Nesta seara, a leitura constitucional estabelece o direcionamento político do processo, que impõe restrições – caráter negativo – por meio de princípios e regras que expressam 18 HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la criminología y al derecho penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989, p. 115. 19 CAMPOS, Pedro de. Direito penal aplicado: parte especial do código penal (arts. 121 a 361). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.104. 19 aquilo que está vedado ao processo penal, como limitação do poder punitivo estatal, frente ao Estado Democrático de Direitos20. De acordo com HASSEMER e CONDE21, a materialidade penal tem sua fixação como sendo de incumbência estatal, a qual deve se dar em conformidade com o aculturamento da população a que as leis irão servir, ou seja, o direito penal é a esfera material na qual o Estado estabelece as condutas típicas que serão passíveis de sanção frente ao cometimento do ilícito, em conformidade com os interesses das pessoas as quais as normas servem. Já o processo penal se estabelece “como um conjunto de atos necessários ao exercício da atividade jurisdicional”22. O processo penal é a ferramenta necessária à aplicação do direito penal material, é a única forma pela qual o Estado pode estabelecer a imposição de uma sanção penal. Por meio do processo penal se evita a imposição arbitrária da pena e ao mesmo tempo se proporciona ao réu o direito de se defender na presença de um juiz imparcial à lide. E por fim, superado o direito penal (matéria penal tipificada) e a estrutura do direito processual penal (mecanismo jurisdicional que atende ao devido processo legal penal), há a estrutura pela qual as normas penais são efetivamente aplicadas nos casos em que há condenação diante do processo penal, que compreende a execução penal23. 20 DIVAN, Gabriel Antinolfi. Processo penal e política criminal: Uma reconfiguração da justa causa para a ação penal. Elegantia Juris: Porto Alegre, 2015, p. 119-120. 21 HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la criminología y al derecho penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989, p. 122. 22 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 253. 23 HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la criminología y al derecho penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989. P. 122. 20 A execução penal é a imposição da pena propriamente dita, é a aplicação da sanção prevista na esfera material penal após a confirmação da culpabilidade do agente pelo devido processo penal. O sistema carcerário integra o conjunto de execuções penais frente às penas privativas de liberdade. É importante estabelecer ainda uma diferenciação entre o direito penal, criminologia e a política criminal. Como já mencionado o direito penal é a tradução das regras definidas socialmente, enquanto que a criminologia investiga o próprio fenômeno da delinquência e o infrator. A política criminal, por fim, tem como objetivo o estudo dos mecanismos de controle da criminalidade, transitando entre os campos jurídico e sociológico da pena e de todas as ferramentas que venham a possibilitar a eliminação do crime24. A política criminal busca direcionar a atuação do Estado tanto na prevenção ao crime como na repressão25. Entende-se como o conjunto de estruturas que busca prevenir e reprimir a criminalidade. Ou seja, são as ferramentas que se propõem a combater a criminalidade, mas que não necessariamente estejam vinculadas ao campo jurídico. A política criminal se trata de uma escolha política ao enfrentamento da criminalidade, é a postura adotada tanto no campo jurídico, como na seara sociológica para criar soluções à violência e à atuação criminosa26. Na execução da pena, o Estado direciona a maneira como irá impor o cumprimento da sanção, que, em regra, para crimes graves, é a privação de liberdade. O sistema carcerário brasileiro trabalha a execução penal através da exclusão e do isolamento, o que repercute negativamente na vida dos apenados. “O isolamento da pessoa, excluindo-a da vida social normal” 24 MENDES, Nelson Pizzotti. A nova defesa social: verificação da obra de Marc Ancel. Revista Justitia. Disponível em: <http://www.revistajustitia.com.br/revistas/6b6wzc.pdf>. Acesso em: 07/06/2016, p. 11. 25 HAUSER, Ester Eliana. Política criminal. Ijuí: UNIJUI, 2010, p. 10. 26 HAUSER, Ester Eliana. Política criminal. Ijuí: UNIJUI, 2010. p. 8. 21 provoca danos irreparáveis no “ciclo normal de desenvolvimento de uma pessoa”27. O convívio social é importante para a assimilação das regrasentre os indivíduos através da necessidade de respeitar os direitos dos demais integrantes do conjunto, além do mais, é através da convivência que os seres adquirem habilidades e se desenvolvem, sendo o isolamento uma forma de punição que não projeta o desenvolvimento na personalidade do agente. A prisão por si só dificilmente possibilita a ressocialização dos apenados, tanto que a pena de prisão tem se demonstrado falível frente ao elevado índice de reincidência criminal no Brasil, projetando a necessidade de uma reconstrução da atual política criminal. O direito penal é importante ao controle social, no entanto, a sua atuação excessiva e sem o apoio de outras políticas que efetivamente apresentem oportunidades para a recondução das atitudes dos apenados, acaba sendo um mero simbolismo de proteção, mas que efetivamente não consegue resguardar os bens essenciais28. O direcionamento adequado da política criminal é importante para o desenvolvimento da Nação. Quando os planos e estratégias estatais conseguem refletir ações que levam em consideração as peculiaridades da população e as necessidades dos apenados, criam-se condições ao desenvolvimento pessoal de cada indivíduo, o que acaba por agregar valor à comunidade como um todo. Na mesma medida em que a manifestação punitiva por parte do Estado é necessária para o controle das ações humanas, como forma de limitar as condutas delituosas e coibir maiores prejuízos por parte dos infratores, ao 27 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 167. 28 MARTINELLI, João Orsini; BEM, Leonardo de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 51. 22 restringir a liberdade através da imposição da pena privativa de liberdade, os direitos fundamentais necessariamente precisam ser assegurados pelo Estado. É obrigação estatal assegurar um tratamento digno a todos os integrantes da comunidade, preocupando-se com o indivíduo, que independentemente de suas falhas e defeitos precisa ter assegurados seus direitos individuais diante da estrutura do Estado democrático de direitos, devendo haver equilíbrio entre os direitos da coletividade e dos indivíduos, não sendo tolerável a mitigação dos direitos mínimos do indivíduo em nome da sociedade. O Estado precisa buscar uma resposta eficaz à sua dupla função: prevenir o crime por meio de uma estrutura sólida de segurança pública; e resguardar os direitos dos infratores, concomitantemente à aplicação da sanção penal com fins ressocializadores, repercutindo assim, na segregação da reincidência criminal. A sanção penal é um meio coercitivo que o Estado detém para impelir o cumprimento das regras, porém, de acordo com o princípio da ultima ratio, vigente no direito penal brasileiro, a atuação do legislador precisa ser limitada à real necessidade de proteção jurídica, sendo passíveis da tutela do direito penal somente os bens jurídicos que necessitam maior proteção, em decorrência de ser o poder mais agressivo em face do indivíduo. De forma que “a intervenção do Direito Penal somente pode se dar em último caso”29. A aplicação penal, por refletir características nocivas diante dos efeitos que o isolamento traz para o apenado, além de estar revestida por um caráter de essencialidade, sendo aplicada somente em casos que a sanção penal é imprescindível, deve também repercutir efeitos positivos nos receptores, de forma a agregar valor tanto para o indivíduo como para a coletividade, que 29 LIMA, Alberto Jorge C. Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75. 23 mediante a progressão de regime do apenado poderá conviver com um agente ressocializado e que não irá reincidir no cometimento delituoso. De forma que, a incumbência do Estado de penalizar os infratores deve cumprir com a sua tríplice função, o que inclusive é sustentado pelo Supremo Tribunal Federal30. A imputação penal deve inicialmente servir à prevenção da prática delituosa, com a qual o objetivo é evitar que os indivíduos pratiquem determinada conduta mediante a tipificação penal diante do cometimento do delito previsto, impondo no agente o receio pela prática, é uma função anterior ao próprio delito, agindo na mente dos indivíduos, trabalhando com o elemento medo da sanção. Em segundo lugar, a aplicação penal deve responder à função retributiva, diante do descumprimento da limitação imposta pela lei penal, o agente incorre no tipo penal previsto, e assim, o Estado está autorizado (diante do devido processo legal) a impor o cumprimento da sanção penal, ou seja, retribuir o mal perpetrado pelo indivíduo. E por fim, completando a característica polifuncional das normas penais, a função ressocializadora possui o condão de, posteriormente ao cumprimento da pena, entregar à sociedade um indivíduo apto ao convívio harmonioso, função que representa a maior defasagem no desempenho da atual política criminal, consideradas “as instâncias retributivas e as da reinserção social”31. A prisão como se encontra hoje acaba não propiciando o desenvolvimento pessoal dos integrantes, pelo contrário, muitas vezes reforça valores negativos do que se espera de um cidadão, tendo em vista que a 30 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo 604. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/’informativo/documento/informativo604.htm>. Acesso em: 11/05/2016. 31 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo 604. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/’informativo/documento/informativo604.htm>. Acesso em: 11/05/2016. 24 convivência e a troca de experiências entre os apenados, que possuem códigos de valores distintos dos que a sociedade valoriza, reafirmam a inserção na criminalidade32. De forma que, contrariamente do que prevê a legislação e os órgãos judiciários, a política criminal atual não tem conseguido perfectibilizar a ressocialização dos integrantes do sistema penitenciário. A estrutura penal reforça a estigmatização social, na qual os apenados sentem e convivem com o peso da exclusão sem que lhes sejam possibilitadas condições dignas de conviver com a realidade do cárcere. Não há uma aplicação humanitária da pena, tão somente se busca a retribuição do mal cometido, sem, contudo, avaliar que a ênfase na exclusão somente acaba por reforçar o sentimento de que o delinquente não pertence à estrutura social, o que acaba promovendo a reincidência delitiva. Ou seja, a ausência de mecanismos, que ofereçam a capacitação para que quando o indivíduo retorne ao convívio social esteja apto a desenvolver alguma atividade a fim de lhe prover o sustento e proporcionar uma condição de vida digna, reflete na perpetuação da criminalidade. Não só as prisões deixam uma vasta população à margem social, mas o sistema estatal, enquanto gerenciador dos processos internos que visam à capacitação da população, é falho. O papel exercido pelo Direito precisa ser abordado criticamente em face da cultura globalizante que vem circundando a sociedade que, abarcada por uma lógica competitiva prioriza as fusões entre os poderosos e a exclusão das grandes massas, sendo que estes jamais conseguem se inserir entre a alta classe capitalista, e consequentemente 32 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 26. 25 sofrem com a desigualdade social, a precarização do trabalho e o desemprego33. O sistema de execução penal, enquanto ferramenta de aplicação do Direito, precisa estar em sintonia com os direitosdos indivíduos e com a melhoria da sociedade. A escolha da política criminal a ser implementada na sociedade deve trabalhar com a percepção de que os criminosos são integrantes do conjunto social, e que o desenvolvimento pessoal destes indivíduos não é uma opção estatal, mas sim um dever. O Estado não deve priorizar um determinado grupo da população, mas deve reforçar a aplicação dos direitos a todos os indivíduos. Percebe-se uma utilização indevida do exercício do poder por parte de alguns entes políticos, que governam em favor de interesses particulares, desvirtuando completamente a finalidade da máquina pública, que deveria garantir a efetividade dos direitos de todos, indistintamente. Forma-se um “capitalismo de laços” entre os poderosos e governantes, concentrando-se a riqueza nas mãos de alguns, e por outro lado, existe uma camada populacional que está sempre a depender do auxílio governamental para que consigam minimamente se alimentar 34. O Estado, portanto, tem se mantido como um dos instrumentos da luta de classes, perante o qual a classe dominante tem acesso privilegiado à sua estrutura burocrática com a finalidade de preservar o seu poder de dominação econômica. O Estado do bem-estar social se originou como uma forma de conter as insatisfações do operariado, já que diante das condições de vida sem 33 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 23-26. 34 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 30-31. 26 perspectivas de um futuro promissor, a insatisfação deu origem às revoluções socialistas, que passaram a ser contidas com o welfare state35. A minimização do Estado Providência tem consequências completamente diferentes em países que já passaram por toda uma construção estrutural mediante a intervenção estatal, para aqueles países, que assim como o Brasil, não oportunizaram o Estado de Bem-estar social de forma a atingir todo o contingente populacional, propiciando a provisão somente para uma camada da sociedade. A divisão do país em duas espécies de pessoas: o sobrecidadão que dispõe do sistema a seu favor, mas a ele não se subordina; e o subcidadão, que depende do sistema para a sua sobrevivência, mas a ele não tem acesso, acabam por reafirmar a segregação social36. O tratamento seletivo prolifera a desigualdade social e acentua a criminalidade. De forma que a atuação estatal, assim como a política criminal adotada, para desempenhar efetivamente um papel preventivo, repressivo e ressocializador, precisa abordar a criminalidade no seu contexto mais amplo, ou seja, através de uma política que não busque somente proteger os indivíduos alheios à criminalidade (sociedade), mas que também se preocupe com a forma como a sanção irá atuar na vida do receptor (criminoso). Não é suficiente uma política criminal voltada para a repressão massiva, que venha a tratar o criminoso como inimigo. O Direito Penal do inimigo compreende o infrator da norma como inimigo do Estado, de forma que assim o sendo, “não é tratado como pessoa, mas como inimigo a ser eliminado e privado do convívio social”37. Tal postura tem se demonstrado ineficiente, enfatizando o contexto de exclusão social em que determinada parcela 35 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 20. 36 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 27-29. 37 CAMPOS, Pedro de. Direito penal aplicado: parte especial do código penal (arts. 121 a 361). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 104. 27 populacional já se inseria mesmo antes da privação da liberdade, caracterizando, portanto, um mecanismo prejudicial ao indivíduo e à coletividade que também sente os efeitos da proliferação criminal. Além do que, trabalhar com o enfoque de eliminação dos criminosos é também inconstitucional. A Constituição enquanto norma fundamental dá o norte a todas as demais normas infraconstitucionais, fazendo do sistema normativo uma unidade. O sistema constitucional de direitos fundamentais é o guia hermenêutico de todo o ordenamento jurídico38. Tem-se, na Constituição, a estrutura do Estado democrático de Direito, sendo que as demais normas, bem como os poderes que representam a estrutura estatal – executivo, legislativo e judiciário – devem respeitar os preceitos constitucionais e basear as suas condutas para a execução e aprimoramento dos direitos assegurados pela Carta Magna. As normas constitucionais preveem a igualdade de todos perante a lei, referindo-se à paridade de armas na seara jurídica, de forma que as condições econômicas privilegiadas não podem eximir o agente do cumprimento legal, da mesma forma que os menos favorecidos economicamente não podem ser prejudicados em virtude da sua renda. Nesse sentido, o princípio da igualdade autoriza, ao aplicador da norma jurídica, a instrumentalização da igualdade na aplicação da norma aos casos concretos por meio da reprodução de desigualdades materiais, a fim de que se origine uma situação equânime. Neste aspecto, para além do cumprimento da legislação penal (aplicação da norma), o papel da política criminal é compreender que os casos levados ao judiciário estão circundados por fatores do mundo real, muitas vezes, circunstâncias adversas que conduziram o agente delituoso ao cometimento do ilícito, as quais devem ser sopesadas na aplicação penal, a fim 38 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Perspectivas e tendências atuais do estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 20-21. 28 de que sejam projetados resultados que possam ser sentidos pelo receptor da sanção, e também pela sociedade, que passa a presenciar os efeitos de uma política criminal ressocializadora mediante a redução da violência. As injustiças enfrentadas pela parcela social excluída das oportunidades de crescimento pessoal influenciam o direcionamento que estes indivíduos dão às suas vidas. Existem claramente injustiças que circundam a sociedade, pois fundadas em iniquidades e sujeições pelas quais os indivíduos passam, sendo que o diagnóstico da injustiça parece ser o ponto de partida ao questionamento, com o propósito de serem corrigidas. Contudo, o senso de justiça deve sempre estar amparado por um exame crítico acerca dos fatos analisados, desenvolvendo a racionalidade e a razoabilidade um importante papel na compreensão do que seria justo ou injusto39. Para que a justiça realmente se efetive, o modo de julgar deve prever a redução das injustiças e a promoção da justiça. De fato, o conceito de justiça não é algo que deságua em uma única resposta, já que as ciências humanas não se cercam de certezas absolutas como as ciências exatas, é possível que se tenham diferentes concepções acerca do que representa a justiça, estando o conceito amplamente relacionado com o modo como as pessoas vivem40. A ideia de que criminosos são inumanos ou inferiores, não projeta um sistema de justiça, pelo contrário, desconsidera o sofrimento do outro e os fatores reais ocultos que conduziram ao cenário criminoso, fruto de relações assimétricas e opressivas de um poder dominante. O modelo ideal de justiça é aquele que visa dissipar essas desigualdades e não fazer da condição mais um motivo para a exceção. A aplicação da justiça deve levar em consideração as desigualdades sociais e ao mesmo tempo deve operar no sentido de eliminá-las tanto pelo 39 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: LeLivros, 2009, p. 7-8. 40 SEN, Amartya. Aideia de justiça. São Paulo: LeLivros, 2009, p. 8-9. 29 emparelhamento judicial (equidade), como também pela eliminação primária das injustiças, ou seja, nas bases em que se desenvolvem, propiciando aos criminalmente condenados oportunidades de desenvolvimento individual. As liberdades políticas têm um papel fundamental no fornecimento de incentivos e informações acerca das necessidades que assolam determinados conjuntos sociais e que privam os indivíduos de usufruir de uma vida pela qual tenham apreço 41. Os direitos políticos civis (a manifestação política de todos os integrantes do conjunto social, e não somente daqueles que controlam a máquina pública por meio dos três poderes) possuem uma importância direta na ampliação das capacidades básicas dos indivíduos, diante da participação política e social, assim como também possuem um papel instrumental na repercussão da opinião dos demais integrantes da sociedade no meio político, fazendo com que seja atingido por fim, o papel construtivo na conceituação das necessidades que imperam a sociedade e que precisam ser tratadas pelo poder público42. A política criminal brasileira, enquanto escolha política de prevenção e repressão à criminalidade, necessita estabelecer as suas bases em mecanismos que efetivamente reproduzam a ressocialização dos apenados. Uma política voltada para a inclusão dos apenados no sistema social através do desenvolvimento individual propicia a evolução do indivíduo encarcerado, e ao mesmo tempo, ao ser reinserido no convívio social, este egresso do sistema penitenciário terá ferramentas para que possa desenvolver a sua vida que não seja através da criminalidade. A garantia dos direitos individuais de cada apenado, além de ser previsão constitucional, é o meio pelo qual a diminuição da criminalidade é 41 SEN, Amartya. Identidade e violência. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2015, p. 195. 42 SEN, Amartya. Identidade e violência. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2015, p. 195. 30 possível. A política de repressão baseada na exclusão social tem repercutido negativamente, na medida em que os apenados convivem com a realidade da exclusão. Tendenciosamente, o sentimento de não pertencimento ao grupo faz com que, ao saírem do contexto de apenados, coloquem-se novamente contra a sociedade, já que não se sentem incluídos, incorrendo na reincidência criminal. A execução penal assentada na garantia dos direitos individuais dos apenados, acrescida de meios que possibilitem o seu desenvolvimento, garante a efetividade dos preceitos normativos e dá forma a uma sociedade harmônica e produtiva. Uma política criminal voltada para a observância dos direitos individuais dos integrantes do sistema penitenciário gera efeitos positivos para os reeducandos e para a sociedade. 1.1 Dos direitos do indivíduo e da sociedade A construção dos direitos dos indivíduos, assim como dos direitos da sociedade, foi evoluindo com o passar do tempo mediante a identificação de direitos que deveriam ser protegidos. A fixação pelo legislador de direitos que devem ser assegurados é uma forma de controle social e, também, de atingir a harmonia da convivência no grupo. A convivência em grupo necessita estar pautada pelo respeito mútuo, de forma a assegurar direitos mínimos às partes integrantes da sociedade. Os direitos humanos, vinculados ao princípio da dignidade humana, são os ditos direitos essenciais. Já que todos os seres humanos, ainda que com inúmeras diferenças físicas, culturais e étnicas, merecem igualmente o respeito por parte dos integrantes do conjunto social43. 43 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13. 31 A construção histórica dos direitos humanos não é um acontecimento uníssono e linear, mas é algo que foi e continua se moldando com o passar dos anos e se adequando ao perfil dos indivíduos para os quais as normas se originam. Nem mesmo no relato bíblico da Criação o mundo surgiu de forma pronta e acabada, mas na medida em que o tempo vai se passando as criaturas passam a interagir e formar o conjunto social, definindo a vida como uma constante evolução44. Nesse caminho evolutivo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é o grande marco, a título internacional, com relação ao que se deve buscar na convivência em grupo, afirmando a necessidade de respeito e garantia a direitos considerados mínimos ao indivíduo. A grande importância deste documento, com caráter universal, consiste no fato de que a lei escrita como regra geral se aplica a todos os indivíduos integrantes da sociedade organizada, tornando possível não só a validade, mas a eficácia do sentido de igualdade em essência para todos os indivíduos. Registra-se de forma expressa o ensinamento de que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos"45. Os direitos humanos têm ampliado suas vertentes, porém, ainda não são unanimidades sociais, existindo inúmeros fatores a serem enfrentados para a sua efetividade na estrutura social, especialmente nos presídios brasileiros, que concentram problemas estruturais e sociais. Conforme o princípio basilar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos ali previstos são destinados a todos os seres humanos sem qualquer discriminação. 44 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 17. 45 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 24. 32 Artigo II – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição46. Os direitos humanos são, portanto, previsões mínimas asseguradas em âmbito universal, que buscam assegurar condições de uma vida digna aos indivíduos. Caracterizam-se por elementos comuns a todos os seres humanos, por serem direitos inerentes à vida, independentemente de classe social, religião, opção política, raça, etnia. (...) o traço básico que marca a origem dos direitos humanos na modernidade é precisamente seu caráter universal; o de serem faculdades que deve reconhecer-se a todos os homens sem exclusão. Convém insistir neste aspecto, porque direitos, em sua acepção de status ou situações jurídicas ativas de liberdade, poder, pretensão ou imunidade existiram desde as culturas mais remotas, porém como atributo de apenas alguns membros da comunidade (...). Pois bem, resulta evidente que a partir do momento no qual podem- se postular direitos de todas as pessoas é possível falar em direitos humanos. Nas fases anteriores poder-se-ia falar de direitos de príncipes, de etnias, de estamentos, ou de grupos, mas não de direitos humanos como faculdades jurídicas de titularidade universal. O grande invento jurídico-político da modernidade reside, precisamente, em haver ampliado a titularidade das posições jurídicas ativas, ou seja, dos direitos a todos os homens, e em conseqüência, ter formulado o conceito de direitos humanos47. De tal forma, os direitos humanos traduzem posições jurídicas que reconhecem direitos a todos os indivíduos em nível internacional e independentemente de estarem vinculados a uma determinada ordem constitucional, visto que expressam direitos essenciais. A Constituição Federal 46 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos:adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da assembleia geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Brasília: UNESCO no Brasil, 1998, p. 2. 47 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Perspectivas e tendências atuais do estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 24-25. 33 brasileira também tutela os direitos dos indivíduos, que são denominados direitos fundamentais, ainda que em alguns momentos sejam divulgados como sinônimos, didaticamente carregam conotações distintas dos direitos humanos, visto que a terminologia “direitos fundamentais” se refere aos direitos reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de cada Nação48. Os direitos fundamentais compreendem as normas que visam à “proteção da estrutura física, psíquica e moral da pessoa”. Há ainda posicionamentos divergentes no tocante à necessidade de previsão no texto constitucional. A teoria positiva afirma que os direitos fundamentais existentes estão “escritos ou positivados no sistema legal”; enquanto que a teoria naturalista defende que “os direitos fundamentais são direitos ínsitos à condição humana”, e, portanto, “existem independentemente de previsão normativa”, fundamentando o seu entendimento com base na primeira parte do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados...”49. De qualquer forma, ambas as teorias trazem a normatividade dos direitos fundamentais ligadas à Constituição de um país. Os direitos humanos, enquanto espécie de moral jurídica universal, quando reconhecidos e positivados nas Constituições passam a compor o rol de direitos fundamentais assegurados aos membros deste ente público concreto. Salienta-se, porém, que os direitos humanos não integram automaticamente a ordem jurídica interna de um país, e, portanto, precisam da cooperação dos Estados individualmente. No entanto, existem mecanismos 48 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 29-33. 49 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 234-235. 34 internacionais de controle que, de alguma forma, acabam impelindo ao cumprimento das normas de garantia internacional. Há, ainda, a distinção entre os “direitos do homem”, que são os direitos naturais não positivados, que quando passam a serem positivados internacionalmente, adquirem a denominação de direitos humanos50. Os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988, no seu título II, preveem que todos os indivíduos, independentemente de quaisquer distinções, têm direitos considerados mínimos e que precisam ser observados. De acordo com SARLET51, a história dos direitos fundamentais culmina no moderno Estado constitucional, que possui por fim precípuo o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, sendo, de certa forma, a história dos direitos fundamentais a história da limitação do poder. Com o surgimento do Estado moderno, em resposta aos abusos sofridos por uma parcela populacional excluída e marginalizada (pessoas que vivem à margem dos direitos assegurados internacional e constitucionalmente, sem acesso a oportunidades e condições sociais dignas), o Estado constitucional adveio abarcado por um amplo instinto defensivo dos direitos mínimos ao ser humano, tendo estabelecido os direitos fundamentais a nível constitucional diante da importância da personalidade de cada integrante do conjunto frente à definição de humanidade, que passou a ser revelada internacionalmente. Os direitos fundamentais tutelados pela Constituição Federal brasileira de 1988, que regem a estrutura jurídica e social do país, residem sua razão de ser no reconhecimento e na defesa da dignidade da pessoa humana, 50 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 30-34. 51 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 36. 35 corroborando o grau de zelo do legislador diante da previsão legislativa no artigo 1º da Carta Magna, no seu inciso III, como sendo um dos fundamentos da República52. A Constituição Federal, enquanto norma máxima de um Estado, direciona as demais normas infraconstitucionais que devem estar em consonância com os seus regramentos. Assim como a Constituição prevê o respeito à dignidade da pessoa humana de forma indistinta, todas as demais normas, inclusive as normas penais (material, processual e de execução), devem respeito à dignidade humana. A vinculação ao sistema constitucional é característica dos ordenamentos jurídicos modernos, o que garante segurança jurídica na aplicação do direito tanto para os aplicadores, como para os destinatários, permitindo, por meio da sistematicidade, a aplicação do direito – inclusive dos direitos fundamentais – com conhecimento e interpretação fundados em critérios precisos e rigorosos, e não em uma aplicação jurídica ao mero acaso53. A ideia de regularidade que circunda o sistema jurídico permite conceber os direitos e liberdades como uma unidade, sendo que cada direito fundamental integrante da Constituição deve ser observado por todo o sistema normativo. De tal forma, a Constituição necessita ser interpretada sistematicamente, trazendo valor e sentido a cada preceito de forma harmônica com as demais leis infraconstitucionais 54. Diante da previsão constitucional da dignidade da pessoa humana, como sendo o fundamento do Estado Democrático de Direitos, associada ao 52 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 36. 53 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Perspectivas e tendências atuais do estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 18. 54 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Perspectivas e tendências atuais do estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 18-19. 36 objetivo de promover o bem de todos, sem qualquer discriminação, previsto no artigo 3º da Constituição Federal, entende-se que a promoção e a garantia à dignidade dos apenados são medidas impositivas que devem ter o cumprimento assegurado pelas normas vinculadas à execução penal. Os direitos fundamentais possuem caráter de essencialidade justamente por representarem o conjunto mínimo de direitos que qualquer indivíduo necessita para a sua sobrevivência enquanto ser humano, nesse sentido, a relativização dos direitos dos apenados é inconstitucional. Os direitos fundamentais surgem juntamente com o nascimento dos indivíduos, e desde então passam a ter como características “a intransmissibilidade, a indisponibilidade, a irrenunciabilidade, a inexpropriabilidade, a imprescindibilidade e a vitaliciedade, além de sua natureza absoluta”. São direitos que são criados frente aos interesses e necessidades da população a que servem, mas que continuam em constante variação, acompanhando a história da humanidade55. De fato, nem mesmo a condição da privação da liberdade pode extinguir ou diminuir o acesso aos direitos essenciais. A pena privativa de liberdade tão somente repercute na sanção de restringir a liberdade do indivíduo, sendo que o tolhimento de qualquer outro direito representa uma mitigação dos direitos mínimos, e consequentemente, uma ofensa à Lei. De acordo com CANOTILHO56, os direitos individuaismarcam a era moderna do constitucionalismo como os “direitos do homem” e, assim, são considerados direitos inerentes à própria natureza humana, logo, inalienáveis e intransigíveis. Projeta-se, a partir deles, a evolução progressiva da sociedade 55 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 240-243. 56 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Revista Livraria Almedina, 1993, p. 41. 37 em busca de valores universais que repercutem em uma condição de vida melhor e condizente com o novo estado. Os direitos do indivíduo representam os direitos de segunda dimensão. A construção dos direitos da sociedade (coletivos e individuais) pode ser dividida em três momentos. Inicialmente frente ao clamor público pela liberdade da vida individual, a população não queria mais a intervenção excessiva do poder público nas suas relações privadas, instituindo-se a primeira dimensão dos direitos do indivíduo, na qual o Estado passa a respeitar a esfera dos interesses individuais. É o eixo primordial do surgimento dos direitos da população, que inicialmente teve reconhecidos os seus direitos de liberdade frente à atuação do poder estatal57. Os direitos fundamentais de primeira dimensão passaram a demarcar uma limitação à atuação do Estado, selando os direitos de caráter “negativo”, o dever de abstenção dos poderes públicos58. Como refere BONAVIDES59, são os direitos civis e políticos. Já em um segundo momento, viu-se que era insuficiente um Estado que somente se abstivesse, havendo claramente a necessidade de participação estatal na manutenção dos indivíduos, de forma que se originaram os direitos de segunda dimensão, que prezam pela atuação estatal no sentido de promover o bem-estar social dos seus administrados. Passa a ser dever do Estado assegurar os direitos que se reportam à individualidade – assistência social, saúde, alimentação, educação, trabalho, entre outros, como a finalidade de realização do princípio da igualdade, visto que as liberdades (direitos de 57 CASTILHO, Ricardo. Direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 175. 58 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 45-46. 59 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 517 apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 47. 38 primeira dimensão) se mostram inócuas frente ao indivíduo que não dispõe de condições para aproveitá-las60. E por fim, há a institucionalização dos direitos de terceira dimensão, que projetam interesses para além do indivíduo – transindividuais –, são interesses que demandam o coletivo, o bem social e, nesse ponto, destaca-se a importância das políticas que visem ao engajamento dos grupos relegados que sentem o peso da exclusão. O Estado passa a agir em prol de uma postura solidária/ fraterna, os direitos de terceira dimensão compreendem os direitos difusos ou coletivos, portanto, direitos que se dirigem à humanidade, como a preservação do meio ambiente, o direto à paz, ao desenvolvimento, à qualidade de vida. São elementos transnacionais61. A definição legal dos direitos, tanto da sociedade como do indivíduo, representa uma importante evolução no contexto humanitário. Historicamente, o poder estatal em muitos momentos esteve sob o domínio de pessoas desconectadas do senso de coletividade, o que culminou na eliminação de muitos direitos da população. A construção histórica dos direitos humanos e dos direitos fundamentais representa um marco importantíssimo, sendo o meio pelo qual as minorias e os desfavorecidos têm os seus direitos mínimos preservados. Ao mesmo tempo em que as normas jurídicas são importantes para a efetivação prática dos direitos da população, é necessário que estejam imersas em um conjunto agregador, com um sentido fundamentado na sociedade prática. A normatização, por si só, é prejudicial ao conjunto social. A crítica é fundamental para que se possa acompanhar a evolução social e compreender 60 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 355. 61 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 48-49. 39 quais são os direitos que efetivamente a sociedade precisa que sejam protegidos. O senso crítico evita a manipulação de normas com fins voltados aos criadores das normas, ou seja, protege a sociedade da abusividade normativa, que se destina a servir determinados interesses da parcela social detentora do poder, comprometendo direitos básicos de outros cidadãos. Muitas vezes, as leis, as quais os indivíduos são compelidos a respeitar, não passam de opções políticas de determinados representantes do poder e, que antes de qualquer intenção, refletem os fatores reais do poder, formando uma convenção de interesses determinados pelas influências de cada cidadão na composição legislativa62. Em resumo, as normas são convenções entre as partes que compõem a comunidade. As regras que orientam a construção do direito são alternativas escolhidas e assim positivadas em determinada época e local, podendo ser substituídas de acordo com as novas exigências sociais63. O que se deve evitar, portanto, é a legiferação desconectada dos interesses da sociedade e voltada aos interesses pessoais de quem cria as normas. A elaboração de leis impositivas e abusivas acaba gerando no indivíduo a não aceitação do contexto que lhe é imposto, a dominação então se converte em repressão, repercutindo nos efeitos da violência diante da intenção de se libertar. O discurso dominador apresenta à sociedade inúmeros motivos para que as regras sejam aceitas como o correto. Cria-se no imaginário da criança, desde o início de sua educação, bem como no homem adulto, que passa a respeitar as leis impostas pelo Estado, que o cidadão de 62 LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 10-11. 63 HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas: sistema jurídico e codificação: a vinculação do juiz à lei. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 289-290. 40 bem é aquele que se reprime ao ponto de aceitar as normas definidas por uma parte da sociedade que diz defender os direitos de todos64. Tanto os direitos como os deveres impostos pelas normas precisam estar em conexão com o que a sociedade de forma geral busca, sem que sejam garantidos direitos somente a uma determinada parcela da sociedade, dando-se assim embasamento para a solidificação de normas fortes, pois vinculadas ao instinto de toda a população que as seguem. No mesmo sentido, as normas penais devem pautar os interesses da sociedade quanto aos bens que se busca proteção, e por outro lado, as normas processuais penais e de execução penal visam assegurar a manutenção de direitos mesmo àqueles que tenham cometido práticas delituosas. O direito penal exerce função limitadora às atuações nocivas aos direitos essenciais, enquanto que o processo penal atua como ferramenta proibitiva da punição arbitrária. As normas de imputação penal significam aquilo que a comunidade decidiu convencionar como atentador ao que julgam bens a serem protegidos, repercutindo assim um determinado grau de segurança jurídica para as ações humanas que forem consideradas incompatíveis com os princípiosque regem o Estado, que também representa uma construção humana, com o objetivo de gerir a população 65. Conforme BECCARIA66, os princípios aceitos nas sociedades derivam em geral de três fontes: da revelação, da lei natural e das convenções sociais, sendo que este tripé busca um único fim, que é o estabelecimento de uma 64 DUSSEL, Enrique D. Filosofia da Libertação na América Latina. São Paulo: Edições Loyola, 1977, p. 60-61. 65 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p.208. 66 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf>. Acesso em: 18/07/2016, p. 5-7. 41 condição de felicidade aos homens na terra. No entanto, o autor revela que a tendência humana é acumular entre poucos a felicidade e o poder e, contrariamente, deixar à maioria miséria e fraqueza. O princípio universal da dignidade da pessoa humana reprime atuações degradantes e ofensivas a questões mínimas que precisam ser observadas pelos administradores da máquina estatal. A dosagem na tipificação penal e a observância dos direitos dos detentos são ações que se esperam do Estado, sendo afastadas arbitrariedades incondizentes com democracia estabelecida. É de suma importância que os direitos do homem, que passaram por uma construção melindrosa, sejam preservados, aclamados e respeitados por todos os indivíduos e, principalmente, pelos representantes do povo que constituem a estrutura do poder estatal. Os direitos do homem, os direitos humanos e os direitos fundamentais, são conjuntos que expressam, cada um com suas especificidades quanto à sua definição, direitos mínimos a serem garantidos aos indivíduos. Ainda que o indivíduo ao qual se requeira o direito seja um apenado, não se aplica a discriminação dos direitos, haja vista serem direitos que acompanham os indivíduos desde o seu nascimento e, portanto, não podem ser suprimidos ou relativizados. A aplicação da pena de prisão somente justifica a limitação à liberdade, sendo que todos os demais direitos continuam válidos. 1.2 Prisões: um mal necessário à garantia da paz social O princípio da “utilidade penal” justifica a imputação de sanções a determinadas condutas diante do dever estatal de resguardar os bens que representam os direitos mais expressivos a serem protegidos individual e socialmente, tendo a pena a função de prevenir a ofensa destes bens essenciais. Ou seja, o direito penal não se legitima frente à proibição de 42 condutas meramente imorais, mas tão somente para acautelar bens de extrema relevância67. O poder se entrelaça com a força e a competência. O poder é representado pela força, e é exercido na sociedade, podendo ser bifurcado em suas formas de atuação: a dominação impositiva por meio da força caracteriza o poder de fato que se vale dos meios de dominação material; já a dominação estruturada na competência e no consentimento caracteriza o poder de direito, o qual resume basicamente as estruturas modernas, que tendem a buscar a aprovação da coletividade, fazendo do poder a representação da vontade do povo – democracia68. A atuação do poder punitivo estatal encontra dois alicerces limitadores. O primeiro é o princípio de necessidade ou de economia das proibições penais, que define que por ser a intervenção punitiva a que mais afeta a liberdade e a dignidade dos cidadãos, somente é justificável ao controle de ações que objetivem lesionar os demais integrantes do conjunto social de forma extrema, servindo a imposição penal para tutelar os indivíduos e minimizar a violência entre ambos69. O segundo limite à imposição penal se verifica justamente pela bifurcação entre os campos da moral e do direito, persistindo a necessidade penal somente à tutela de bens fundamentais que não poderiam ser garantidos de outra forma se não por meio do direito penal70. 67 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 372. 68 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 133. 69 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 373. 70 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 373. 43 O direito penal é, portanto, “uma técnica de definição, de individualização e repressão da desviação”71. A definição ou também proibição consiste na classificação dos comportamentos ditos desviantes, limitando a liberdade de ação das pessoas. À medida que pratiquem condutas tipificadas, sofrerão a imposição do direito penal, visto que a individualização corresponde à sujeição coercitiva do agente infrator aos efeitos do poder penal. E por fim, a efetiva repressão ou punição: no caso de serem julgados culpados deverão enfrentar os efeitos da sanção penal prevista 72. A legitimidade estatal conferida pelo direito penal para o exercício do poder de punir é a manifestação mais violenta, e que ataca mais profundamente os direitos do cidadão, de forma que a justificação da aplicação penal se confunde com o garantismo penal73. A justificação do direito penal perpassa por três estruturas: a pena em si, a classificação dos delitos e o procedimento processual penal. Considera-se que tais estruturas necessitam corresponder de forma satisfatória às necessidades da sociedade frente aos questionamentos: “se, como, quando e por que punir, se, como, quando e por que proibir, se, como, quando e por que julgar” 74, ou seja, as respostas estão intimamente vinculadas com a relevância e a necessidade da formação do sistema penal. Necessário que sejam claras essas respostas de justificação da aplicação penal, afinal, a imposição de uma penalidade não deve servir a um mero simbolismo de ordem, mas é imperiosa a compreensão de que a pena de prisão é uma medida extrema que somente se justifica frente a uma conduta 71 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 167. 72 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 167. 73 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 169. 74 FERRAJOILI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 169. 44 grave, quando a reparação do dano não seja possível por meio de outra imposição menos severa do que a restrição à liberdade. Não só a aplicação da sanção penal em si é extremamente prejudicial ao acusado, como o próprio processo penal é deturpador da imagem e da integridade do indivíduo, somente se justificando em face de indivíduos que realmente apresentem perigo social, caso não o seja assim, há que se prever outras medidas mais eficientes e menos deturpadoras da individualidade. O que traz a conclusão de que processo penal, bem como a aplicação penal, somente se justificam em uma perspectiva de mecanismo último, sendo uma ferramenta importante a serviço do poder dever de punibilidade estatal. O desvio de conduta, dos comportamentos previamente pactuados entre sociedade e Estado, obviamente gera insegurança e medo na coletividade. De tal forma, é imprescindível que o Estado disponha de estruturas que possam assegurar a manutenção dos valores vigentes, especialmente nas sociedades complexas contemporâneas, que são marcadas pela pluralidade de interesses e entendimentos, o que acaba muitas vezes dando vazão aos conflitos
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