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1 Organização Mário Ribeiro dos Santos S237a Santos, Mário Ribeiro dos Acorda Povo e Bandeiras dos Santos Juninos: Pesquisa sobre o patrimônio cultural imaterial de Pernambuco/ Mário Ribeiro dos Santos. Recife: Edupe, 2020. 88 p.: il.;18 cm ISBN 978-65-86413-01-4 1. Acorda Povo. 2.Bandeiras dos Santos Juninos. 3. Festas Juninas. 4. Catolicismo. 5. Candomblé. Recife, Olinda. I. Título CDU 398 (81) Dados Internacionais da Catalogação-na-Publicação (CIP) Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU) Elaborada pela bibliotecária Neide M. J. Zaninelli - CRB - 9/884 Este livro foi submetido a avaliação do Conselho Editorial da Universidade de Pernambuco. UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE REITOR Prof. Dr. Pedro Henrique Falcão VICE-REITORA Profa. Dra. Socorro Cavalcanti EDITORA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – EDUPE CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Adriana de Farias Gehres, Prof. Dr. Amaury de Medeiros, Prof. Dr. Alexandre Gusmão, Prof. Dr. Álvaro Vieira de Mello, Profa. Dra. Ana Célia O. dos Santos, Profa. Dra. Aronita Rosenblatt, Prof. Dr. Belmiro do Egito e Prof. Dr. Carlos Alberto Domingues do Nascimento. GERENTE CIENTÍFICO Prof. Dr. Karl Schurster COORDENADOR Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura Abril 2020 Organização Mário Ribeiro dos Santos Pesquisa sobre o Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco Pesquisa sobre o patrimônio cultural imaterial de Pernambuco FICHA TÉCNICA COORDENAÇÃO DO PROJETO Mário Ribeiro dos Santos PRODUÇÃO Naara Santos PESQUISA DE CAMPO E DOCUMENTAL Alice Alves Ester Monteiro Déborah Callender ASSISTENTE DE PESQUISA Raquel Araújo TEXTOS AUTORAIS Alice Alves Ester Monteiro Déborah Callender Mário Ribeiro dos Santos FOTOGRAFIA Paulo Maia DESIGN Isadora Melo REVISÃO DE TEXTOS Vanessa Marinho AGRADECIMENTOS Alcidis Campelo Cavalcanti (Cid do Bonde) Célia Maria do Monte Silva Clésito José Genésio de Almeida (Kesinho) Dona Nenzinha Ladimir Ferreira da Silva Marcelo Varella Maria Antonieta Vidal Maria Cristina de Andrade Maria da Conceição de Andrade Silva Maria Helena Sampaio Mestra Ana Lúcia Wanessa Paula Conceição Quirino dos Santos SUMÁRIO Introdução Os grupos de Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos Juninos Escritos que transcendem os tempos: os primeiros registros das homenagens a São João em Pernambuco Nas fronteiras: aproximações e distanciamentos entre os Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos Juninos Entre festas e louvações, devoção aos Santos e Orixás – a prática religiosa nas Bandeiras dos Santos Juninos e nos Acorda Povo de Pernambuco Os símbolos da festa e as subjetividades do sagrado Quando a comida é muito mais do que um alimento: os sabores e os sentidos do comer no Acorda Povo A musicalidade da festa que faz o corpo dançar e louvar Algumas observações sobre a música nos grupos pesquisados Considerações Finais Fontes e Referências ................................................................ 10 ........... Mário Ribeiro dos Santos ............................. 16 ........... Mário Ribeiro dos Santos ............................. 18 ........... Mário Ribeiro dos Santos ............................. 24 ........... Ester Monteiro de Souza .............................. 30 ........... Déborah Callender..................................... 52 ........... Déborah Callender e Mário Ribeiro dos Santos ........... 62 ........... Alice Alves ......................................... 66 ................................................................ 72 ................................................................ 78 ................................................................ 80 ................................................................ 10 ........... Mário Ribeiro dos Santos ............................. 16 ........... Mário Ribeiro dos Santos ............................. 18 ........... Mário Ribeiro dos Santos ............................. 24 ........... Ester Monteiro de Souza .............................. 30 ........... Déborah Callender..................................... 52 ........... Déborah Callender e Mário Ribeiro dos Santos ........... 62 ........... Alice Alves ......................................... 66 ................................................................ 72 ................................................................ 78 ................................................................ 80 10 Introdução Reconhecer, valorizar e salvaguardar a diversidade do nosso patrimônio cultural - em especial as singularidades encontradas nas expressões de fé e nos atos festivos do São João de Pernambuco - são ações importantes e necessárias para manter vivas as nossas tradições, historicamente recriadas e transmitidas de geração em geração. Nas noites de junho do Recife e Região Metropolitana, as culturas do Acorda Povo e das Bandeiras dos Santos Juninos são testemunhos patrimoniais vivos, gestados por diferentes segmentos étnicos que aqui chegaram, foram trazidos ou migraram, criando novas maneiras de estar no mundo, novos símbolos, novas formas de comer, de cantar, de dançar, de rezar, de louvar e de agradecer. Um conjunto de práticas com múltiplas cores, texturas, sabores e sons, que flutuam entre o presente e o passado, não se resumindo ao tempo em que vivem. Nesse sentido, este trabalho torna pública uma pesquisa realizada durante oito meses com grupos sediados em Olinda (Peixinhos, Amaro Branco, Aguazinha, Águas Compridas e Santa Casa) e Recife (Água Fria, Areias, Casa Amarela, Santo Amaro, Torrões, Várzea e Brasília Teimosa), atribuindo a essas localidades referências identitárias que dão sentido de existência à vida de seus participantes. O contato empírico com os agentes dos bens culturais foi importante para nos aproximar das subjetividades, dos ritos, das músicas e dos elementos de comunicação barrocamente construídos, a exemplo dos andores, das bandeiras, das estrelas, entre outros códigos criados, que ultrapassam a dimensão material, plástica e sonora das formas de expressão. A presença desses símbolos nas madrugadas de junho dá um colorido diferente à vida de moradores dos subúrbios das cidades de Olinda e do Recife que, acordados, saem em procissão, dançando pelas ruas ao som de cantigas e toadas de coco em homenagens a São João 11 e a Xangô – santo e orixá do fogo, senhores da fartura, donos da festa, do vermelho e do branco. Longe de qualquer pretensão de expressar identidades globalizantes entre os grupos investigados, os textos apresentados aqui procuram nas particularidades de cada grupo de Acorda Povo e das Bandeiras, as redes de práticas e significados pelos quais as relações são tecidas, envolvendo, logicamente, momentos de tensão e de conflitos. Nesse sentido, os textos que seguem - elaborados por historiadores, antropólogos e etnomusicólogos - são o resultado de um trabalho gestado coletivamente, visando ao adensamento teórico-metodológico do tema pesquisado. São autores com larga experiência no campo das festas e expressões culturais do estado, vinculados a projetos institucionais de pesquisa e grupos culturais da região. Esses núcleos de irradiação forneceram a base necessária e a garantia para que o resultado desse trabalho chegue ao grande público com maior qualidade. Considerando as evidências apresentadas, o FUNCULTURA, ao publicar este trabalho, agrega valor às pesquisas sobre patrimônio cultural imaterial no Brasil, notadamente, aos processos criativos de segmentos sociais historicamente marginalizados e que encontram na arte meios de resistir, reexistir e assegurar a continuidade de suas práticas, seus saberes e fazeres. Por fim, desejamos que o conjunto de textos e imagens das páginas que se seguem possam aguçar a imaginação e os sentidos de cada um dos leitores, possibilitando trazer à tona o prazer de ouvir os cânticos e as rezas, sentir o cheiro do munguzá comcanela e o gosto abrasador do quentão e licor de jenipapo que aquecem as noites frias e animadas de junho. 12 Metodologia As manifestações culturais do Acorda Povo e das Bandeiras dos Santos Juninos são vivenciadas, significativamente, pelos moradores dos subúrbios do Recife e Região Metropolitana. Historicamente, esse segmento social teve suas histórias silenciadas e negadas pelas elites letradas, ocasionando uma lacuna considerável nos registros históricos referentes às expressões das culturas populares. Partindo desse pressuposto, escolhemos adotar uma metodologia de trabalho que nos colocasse em contato direto com as trajetórias individuais e coletivas dos agentes envolvidos com os bens em estudo, no intuito de compreender e interpretar as diferentes realidades vivenciadas. É importante destacar também que, antes desse trabalho, outros escritos (poucos, por sinal) foram produzidos sobre o Acorda Povo e sobre as Bandeiras dos Santos Juninos - em geral, escritos por folcloristas, os primeiros a se interessarem pelo registro do assunto. O nosso objetivo, com este trabalho, é apresentar uma nova leitura do tema. Não a mais correta, mas uma forma de analisar o assunto de outros ângulos, problematizando questões naturalizadas, que foram repetidas ritualisticamente a ponto de inculcar nas mentes que as manifestações culturais em foco tinham uma mesma origem e um único sentido para todos os agentes envolvidos. Dito isto, esta publicação assume, na atualidade, o documento que registra a representatividade do Acorda Povo e das Bandeiras dos Santos Juninos dentro da amplitude que compreende o patrimônio cultural brasileiro. Ela reúne documentos que historicizam as ações dos detentores do bem, atribuindo consistência e singularidade à pesquisa e maior fundamentação teórica ao conteúdo catalogado. Nesse sentido, considerando a dinâmica histórico-social e a subjetividade da temática, trabalhamos com uma equipe 13 formada por pesquisadores de diferentes áreas: Ester Monteiro (Antropologia), Alice Alves (Etnomusicologia), Déborah Callender e Mário Ribeiro (História), além da essencial presença da pedagoga e educadora social Raquel Araújo, detentora do bem, integrante do Acorda Povo do Bacnaré – Balé de Cultura Negra do Recife. O diálogo com a fotografia e a sensibilidade das lentes de Paulo Maia foram fundamentais para captar a diversidade dos bens analisados, ampliando a interpretação do que encontrávamos ao aproximar os diversos olhares dentro e em torno do objeto estudado. Uma vez formada a equipe, procuramos dividir o trabalho nas seguintes etapas: a) Identificação e mapeamento dos grupos de Acorda Povo e Bandeiras de Santos Juninos em atividade na capital e região metropolitana, bem como a divulgação da pesquisa aos respectivos grupos. Foram entrevistados 11 representantes de grupos, encontrados em diferentes localidades do Recife e Região Metropolitana: Água Fria, Areias, Dois Unidos, Várzea, Chão de Estrelas, Pina e Imbiribeira. Em Olinda: Sapucaia de Dentro e Amaro Branco. b) Levantamento de jornais, cartazes, fotografias, documentários, artigos, material bibliográfico e outras fontes disponíveis nos arquivos, bibliotecas, centros de pesquisa e redes sociais, no intuito de ampliar a compreensão dos bens, as reflexões da equipe e o diálogo com nossos interlocutores no momento das entrevistas. Importante registrar que o uso de fotografias também auxiliou os pesquisadores durante as entrevistas, estimulando a memória narrativa dos interlocutores durante o trabalho de campo. c) Elaboração de um questionário baseado no trabalho publicado pelo IPHAN (2016), intitulado Educação Patrimonial: inventários participativos - um instrumento de livre acesso, disponível nas redes sociais e que possibilita aos usuários o contato com os princípios da pesquisa de campo, técnicas básicas de levantamento documental, sistematização e interpretação de dados. 14 d) Realização de entrevistas com os representantes dos grupos mapeados e que se disponibilizaram a contribuir com o trabalho. Os nomes dos entrevistados foram escolhidos a partir do seu envolvimento com a manifestação, o tempo de relação e até mesmo o reconhecimento pelos seus pares. O método da história oral foi então indispensável, principalmente porque nos possibilitou agregar novos significados às formas de expressão em estudo. e) Delimitação do universo geográfico da pesquisa. Esta etapa foi realizada após dois momentos importantes: o levantamento preliminar dos grupos de Acorda Povo em atividade no Recife e Região Metropolitana e o acesso à programação do Desfile das Bandeiras dos Santos Juninos, promovido pela Prefeitura do Recife.1 f) Elaboração de um calendário de prioridades para o fotógrafo, de acordo com as especificidades das situações apresentadas pela equipe, entre as quais destacamos: rezas em louvor a Santo Antônio, no início e término da trezena em homenagem ao santo; o encontro oficial das Bandeiras dos Santos Juninos no Morro da Conceição; os rituais religiosos nos terreiros de Candomblé nos dias que antecedem a saída de alguns grupos de Acorda Povo; a saída dos grupos nas madrugadas de junho pelas ruas e ladeiras da cidade, o hasteamento e recolhimento das bandeiras, entre outros momentos registrados em aproximadamente 2.065 fotografias, algumas delas selecionadas para integrar a composição deste trabalho. g) Sistematização do material coletado e a escrita coletiva dos textos pelos pesquisadores, priorizando as afinidades temáticas de cada um. Desse modo, Ester Monteiro dedicou-se à escrita do capítulo sobre as diferentes formas de religiosidade presentes nos grupos pesquisados; Alice Alves debateu sobre os aspectos da musicalidade e suas especificidades; Déborah Calender e Mário Ribeiro escreveram sobre a historicidade dos bens, as continuidades e descontinuidades, os momentos de tensão envolvendo a Igreja e o Estado, os diferentes usos e sentidos dos símbolos, entre outras reflexões teórico- metodológicas que atribuem densidade ao trabalho. O formato 1 A Secretaria de Cultura do Recife, em parceria com a Fundação de Cultura Cidade do Recife realizam a programação cultural do São João da cidade, que retrata a pluralidade de manifestações culturais: o Concurso Pernambucano de Quadrilhas Juninas, a Feira de Culinária Junina, a Procissão das Bandeiras, a Caminhada do Forró, entre outras formas de expressão, fazem parte do calendário festivo do mês de junho. 15 de apresentação dos temas e a escolha da linguagem foram cuidadosamente analisados, resultando numa escrita simples e direta, com o objetivo de tornar a leitura prazerosa e atraente para os diversos públicos. h) Diagramação do conteúdo. i) Lançamento, por meio de Rodas de Debate. Ao folhear o produto impresso, ficamos satisfeitos com o resultado. Acreditamos que foi uma oportunidade para repensarmos o método de trabalho com as expressões culturais populares, reconhecendo seus limites, bem como seu potencial para uma escrita que democratiza saberes específicos e que põe luz sobre as experiências de vida de sujeitos, os quais resistem a partir do lugar político e social em que vivem e de onde observam e transformam o mundo. Procissão das Bandeiras dos Santos Juninos/Morro da Conceição 2018. 16 Os grupos de Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos Juninos Os grupos de Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos Juninos são duas formas de expressão vivas nas festas juninas de Pernambuco, que reúnem música, dança, ancestralidade e devoção a São João e a Xangô. Constituem os frutos de uma mistura de tradições religiosas protagonizadas por grupos sociais que pertencem, inicialmente, a contextos culturais diferentes. No Brasil, durante o processo de colonização europeia, marcado por uma realidade de violência, perseguições, extermínios, resistências e hibridismos de diferentes povos e culturas, diversos grupos sociais, nos diferentestempos e espaços, misturaram-se, trocaram experiências e inventaram novas maneiras de estar no mundo. Diante desse novo contexto histórico que brotava surgiram, também, novas formas de comunicação, novas receitas e sabores, outros modos de vestir, de diversão, novos espaços de sociabilidade, novas traduções do sagrado, orações, cânticos, festas, entre outras formas de expressão desenvolvidas e ressignificadas em um cotidiano notadamente mestiço. É nesse universo marcado pela diversidade que identificamos os grupos de Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos Juninos como práticas culturais que refletem a mistura das expressões de religiosidade de determinados grupos de africanos e europeus que aqui se encontraram. De algumas regiões da África ocidental herdamos modelos de cultos a divindades conhecidas no Brasil como orixás, principalmente Xangô – o terceiro Alafin (Rei) de Oyó – uma das cidades da Nigéria. Em Pernambuco, a palavra Xangô adquiriu sentidos variados: pode significar o nome da religião afro-brasileira, também pode representar o nome de uma das divindades do panteão africano, assim como remeter ao nome da casa onde se realizam os cultos. POR MÁRIO RIBEIRO DOS SANTOS 17 Do contato com os colonizadores portugueses conhecemos as tradições de celebrar os santos católicos, aqui apropriadas e reelaboradas. Essas apropriações culturais negam a pureza e a autenticidade que algumas lideranças das diferentes religiões que existem no Brasil defendem, por não aceitarem esses hibridismos. E essas misturas continuam se fazendo... SINCRETISMO Durante a pesquisa, deparamo-nos muitas vezes com o conceito de sincretismo, seja nos jornais analisados, na bibliografia consultada e nas falas de alguns entrevistados. Desde muito tempo, este tema é motivo de estudo para a Antropologia, a História e outras ciências. Em geral, é associado, exclusivamente, aos fenômenos religiosos, principalmente o sincretismo afro-católico. Mas será que apenas os fenômenos religiosos podem ser analisados como sincréticos? As artes, as festas populares como o Carnaval, o São João, as expressões culturais como o bumba-meu-boi, as escolas de samba, o frevo e outras, podem ser sincréticas? Para compreendermos melhor o assunto, é importante refletirmos sobre outros temas a ele relacionados, por exemplo: relações de poder, colonialismo, tolerância cultural, representações simbólicas, misturas, analogias entre fenômenos distintos, confrontos, ecletismo, fluxos culturais, mestiçagens, pureza cultural, enfim, são vários os caminhos que podemos percorrer durante o debate sobre o conceito em foco. O que podemos constatar é que o termo não possui um sentido único. Pelo contrário, seus vários sentidos resultam de construções históricas que, por sua vez, são constantemente reinterpretadas. Esse debate não se esgotou. Ele está vivo nas nossas práticas, faz-se presente no nosso cotidiano, dentro da nossa casa, entre os nossos familiares, vizinhos e amigos. Acreditamos que o tema ainda é motivo de muito estudo nas diferentes áreas do saber. PARA SABER MAIS 18 Escritos que transcendem os tempos: os primeiros registros das homenagens a São João em Pernambuco Os memorialistas e os folcloristas foram os primeiros intelectuais a se interessarem pelo tema das expressões culturais e registrá-lo em seus trabalhos. Em Pernambuco, merece destaque os estudos de Pereira da Costa, recifense nascido no Bairro de Santo Antônio, em 1851 que, ainda jovem, despertou o interesse pela leitura de temas da história e do folclore da região. Hábil pesquisador, frequentador assíduo dos arquivos estaduais e eclesiásticos, bom observador, anotava o que lia, via e ouvia falar durante as conversas com os mais velhos. Em 1908, publica o livro Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, no qual reúne informações sobre superstições, brinquedos infantis, poesias, romances, quadras populares, entre outros assuntos coletados em textos bibliográficos, manuscritos, jornais e entrevistas com diferentes pessoas. Trouxemos, para este trabalho, as práticas registradas pelo autor sobre as noites de junho em tempos de Colônia, quando era comum nos dias dedicados a São João, principalmente nos festejos do campo, encontrar “ranchos de homens e mulheres, coroados de capelas de flores e folhas, percorrendo alegres as estradas e ruas dos povoados.” De acordo com o pesquisador, as pessoas enfeitadas com as capelas, “na abençoada noite”, iam ao “milagroso banho”, cantando os “conhecidíssimos versos: Capelinha de melão / É de São João / É de cravo, é de rosa / É de manjericão.”2 No Recife, os capelistas percorriam, em animados bandos, as ruas próximas ao porto e “encaminhavam-se, de preferência, 2 COSTA, Francisco Augusto Pereira. Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. 2 ed. – Recife: CEPE, 2004.p. 200 POR MÁRIO RIBEIRO DOS SANTOS 19 para o banho na Cruz do Patrão, no istmo de Olinda, cujas águas, quer as do mar, de um lado, quer as do rio Beberibe, do outro, gozavam, na noite de São João, da particular virtude de dar felicidades e venturas.”3 Tomar banho na madrugada que antecedia o dia do nascimento de São João significava, para os devotos, purificar-se, dissolver os males, curar as tristezas, desintegrar as enfermidades, afastar a falta de amor, o desemprego e outras “mazelas” que atrapalhavam o desenrolar da vida das pessoas. Outro significado atribuído ao banho nas águas do rio, riacho ou mar, nas vésperas do dia de São João era também uma alusão ao batismo de Cristo nas águas do Rio Jordão. Em todos os sentidos, o que compreendemos é que o ato simbólico do banho é, portanto, o início de um novo ciclo, uma nova vida, agora regenerada, limpa, pronta para recomeçar. A prática do banho de São João se desloca no tempo e continua nas primeiras décadas do século XX, integrando a programação dos festejos do estado. As matérias do jornal Diário de Pernambuco de junho de 1946, ilustram essa realidade: 3 Idem, p. 201 Imagem à esq. extraída do Diário de Pernambuco, 4 de junho de 1946. Imagem acima extraída do Diário de Pernambuco, 5 de junho de 1946. 20 A caminhada, em procissão, dos devotos até o rio é chamada de barca pelos participantes e os devotos do santo batizados de marujos, “recrutados entre os moradores da cidade”. Todo o percurso seguia animado por danças embaladas pelos ritmos do coco e do samba. No tempo presente, as lembranças da infância da Mestra de Coco Ana Lúcia de Amaro Branco, nascida em 1944, aproxima- se desse contexto que relaciona o banho de São João com os pedidos de bênçãos pelos devotos: Meu pai já fazia o banho de São João. O Acorda povo é para o rio, só que não existe mais rio, você não pode se jogar ali dentro pra tomar um banho que tá contaminado, muito sujo, mas o rio era tudo limpo e tinha pouca casa. Eu nasci aqui, isso era mato e as casas distantes. E levava [os participantes do acorda povo] para tomar banho de rio lá pra Casa Caiada, levava pra Rio Doce. Saía cantando, fazia o coco. Aí saía cantando pra levar o andor com a bandeira para o rio. Quando chegava no rio, arriava a bandeira, o andor, todo mundo mergulhava, as pessoas de idade faziam os seus pedidos, as pessoas novas era [pedido de] casamento. E depois que terminava isso tudinho, o pessoal saía cantando com a procissão. Meu pai já deixava antes de sair de casa, pamonha, canjica, milho cozinhado, tudo, mais umas mesas que pareciam uns balcões enormes.4 O depoimento da mestra cirandeira e representante das Bandeiras de São João e São Pedro Cristina Andrade também se aproxima do pensamento de Ana Lúcia, acrescentando, em suas lembranças, a aproximação do Acorda Povo com as religiões afro-brasileiras: “saía o povo em forma de procissão, com batuque tocando e vai até a beira do rio, se banhar, cantando as músicas de São João que eu não sei, com manjericãoque benze o povo. Isso é coisa que sai do Xangô.”5 4 Mestra Ana Lúcia – Acorda Povo de Amaro Branco, Olinda-PE. Entrevista realizada por Alice Alves e Raquel Araújo. Olinda, 11 de junho de 2018. 5 Maria Cristina Andrade das Bandeiras de São João e São Pedro. Entrevista realizada por Déborah Callender. Recife, 06 de julho de 2018. 21 Essa relação do Acorda Povo com as práticas culturais afro- brasileiras é reforçada na fala da coordenadora da Bandeira de São João da Várzea, Antonieta Vidal: “Acorda Povo é uma manifestação popular de matriz africana, já a bandeira de São João é ligada mais à tradição católica”. A mesma explica que Anos atrás, ao iniciar o mês do mês de junho, a bandeira de São João era hasteada na frente da igreja [Igreja Matriz da Várzea - Paróquia Nossa Senhora do Rosário] e ali tinha as orações, os cultos a São João Batista, tinha todo esse ritual da igreja católica. E o acorda povo existia, só que separado, mais ligado ao Candomblé. Mas, quando terminava o cortejo da Bandeira de São João, que chegava na frente da igreja para ser entregue aos padrinhos, o grupo de acorda povo também entrava nessa festa e como [o Acorda Povo] era uma festa mais profana, tinha bebidas, tinha todas aquelas danças diferentes da procissão de São João, que só cantava músicas religiosas, e o acorda povo trazia toda essa festividade de alegria, de muita zoada, de muita dança ligada a Xangô, ao Orixá Xangô.6 As pessoas que outrora acompanhavam o Acorda Povo da Várzea pertenciam ao Terreiro da conhecida “Tia Zu”, Ialorixá já falecida, que residia na comunidade denominada Ambolê, localidade próxima ao bairro da Várzea. Segundo Antonieta Vidal, essa ligação com o Terreiro de Tia Zu surgiu porque uma das fundadoras da citada forma de expressão residia na mesma vila onde existia o Terreiro e quando a bandeira saía de sua casa em direção à Praça da Várzea, passava em frente ao Terreiro, onde recebia calorosa aclamação. Com saudosismo, Antonieta recorda: Quando a gente passava por lá a alegria era muito grande, a própria Tia Zu fazia oração de Xangô, fazia 6 Maria Antonieta Vidal – Bandeira de Santo Antônio da Várzea. Entrevista rea- lizada por Ester Monteiro. Recife, 08 de junho de 2018. 22 comparação de Xangô com São João Batista. Eu aprendi a fazer isso com ela, nas vezes em que eu fiquei à frente a bandeira. Um ano muito importante foi o ano de 2002 em que a bandeira pousou no Terreiro de Tia Zu, ficou de 2001 a 2002, que é um ano que a bandeira passa na casa da madrinha, e nesse ano se renovou todas as bandeiras. Foi muito bom porque as filhas do terreiro fizeram uma festa belíssima, Tia Zu se esforçou para fazer uma das festas mais bonitas que tivemos.7 Antonieta continua explicando que, no ano de 2003, a bandeira saiu do Terreiro de Tia Zu e foi para sua residência; ela mesma seria madrinha até o ano seguinte, então convidou a Ialorixá para abençoar a bandeira: Tia Zu veio, fez a benção de Xangô, no ano seguinte a menina que iria ficar com a bandeira teve um problema e não pôde ficar, então a bandeira permaneceu na minha casa, Tia Zu veio novamente e mais uma vez fez a bênção de Xangô, tanto que em 2005 voltou para a casa dela [para o terreiro] porque eu disse a ela: tia Zu eu preciso da sua ajuda senão a bandeira vai acabar, porque as pessoas se afastaram, esperavam lá em casa só a benção de São João Batista e aí a gente fez de São João Batista e de Xangô, por isso que eu mantenho até hoje essa bênção de Xangô, porque eu recebi essa luz né? Esse caráter festivo do Acorda Povo ressaltado na fala de Antonieta Vidal também se aproxima da concepção apresentada pelo folclorista Evandro Rabello, ao destacar que o Acorda Povo “é, talvez, a derradeira procissão religiosa do Brasil, onde, com a presença do povo, ainda se dança”9. Nesse momento, dançar para o santo é se fazer mais próximo a ele; faz parte do sacramento e da relação de devoção estabelecida entre o santo e o devoto. Uma prática herdada do tipo de Catolicismo 7 Idem. 8 Idem 9 Diário de Pernambuco, Recife, 18 de junho de 1975. 23 que se propagou pelas colônias portuguesas no Brasil, na qual os devotos se comunicavam com o sagrado por caminhos mais concretos, visíveis e palpáveis, a exemplo de festas, procissões dançantes, fogos de artifício, fogueiras, comidas, bandeiras estampadas com as imagens dos santos e altares montados no interior das casas barrocamente ornamentados com velas e flores de papel distribuídas nas cores do santo. Essa intimidade estabelecida entre o santo e os devotos nos remete a uma das toadas cantadas durante os cortejos. Nos versos que embalam os devotos nas ruas, São João cai n’água com as donzelas, num momento de confraternização e alegria que envolvia o ato festivo: “São João foi tomar banho Com vinte e cinco donzelas As donzelas caíram n’água São João caiu com elas” Só mesmo na nossa forma singular de devoção aos santos que São João cairia na água com vinte e cinco donzelas. Essas imbricações envolvendo religiosidade e muita animação nos impossibilita de estabelecer fronteiras que delimitem até onde vai o sagrado no interior dessas práticas culturais. Manifestar a sua fé é um ato totalmente subjetivo, que para uns pode se resumir ao recolhimento num ambiente silencioso, mas para outros quanto mais festa fizer mais irá demonstrar o seu respeito e admiração pela divindade. 24 Nas fronteiras: aproximações e distanciamentos entre os Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos Juninos Durante o processo de pesquisa, nas fontes bibliográficas, na imprensa e nas entrevistas com os detentores dos bens, identificamos que o Acorda Povo e as Bandeiras dos Santos são formas de expressões culturais distintas, embora a presença do símbolo bandeira esteja presente também no Acorda Povo, assim como o andor, em alguns grupos, encontra-se presente nas procissões das Bandeiras. Nos anos 1970, o folclorista Evandro Rabello fez uma distinção entre Bandeira de São João e Acorda Povo. Para o estudioso, “existe diferença, sim. A Bandeira é o cortejo religioso, que nas primeiras horas da noite percorre os bairros ao som de orquestras ou instrumentos de percussão, levando uma bandeira de pano, estrela e andor, enquanto que o Acorda Povo sai pela madrugada, sem organização, com zabumba, caracaxá e sem levar andor.”10 O depoimento de Evandro Rabello se aproxima da descrição realizada pelo pesquisador Pereira da Costa, no século XIX, sobre os préstitos das procissões de bandeiras em noites de celebração. Para o autor, o séquito era formado por: Duas extensas alas de moças e meninas, trajadas de branco, coroadas de capelas, e com brandão aceso, com lanterna de papel, marchando no fim as que levavam a bandeira, segurando-a pelas pontas; e às vezes, quando se queria imprimir maior solenidade ao ato, ia o estandarte hasteado em uma charola carregada por moças. No coice do préstito, marchava uma banda de música, que acompanhava os versos em cadência de marcha, tirados pelo grupo de moças que carregava a bandeira e por 10 Diário de Pernambuco, Recife, 18 de junho de 1975. POR MÁRIO RIBEIRO DOS SANTOS 25 outras que faziam como que a sua guarda de honra, e eram respondidos em coro por todo o acompanhamento.11 Considerando os deslocamentos de tempo e a dinamicidade das práticas culturais sujeitas às mudanças para atender as necessidades dos agentes envolvidos, os seguidores de hoje vestem-se de todas as formas. Alguns devotos, usam as cores do santo homenageado, geralmente, o vermelho e o branco, remetendo a São João e a Xangô. Outras, vestem estampas floridas ou xadrez. No tocante ao formato da procissão, existem Bandeiras que possuem duas formas de apresentação. Segundo a presidenta da Bandeira de Santo Antônio de Água Fria, uma religiosa na comunidade, integrando a programação dos festejos a Santo Antônio, e outra procissão “mais animada”, que ela chama de “profana”, a qualintegra o encontro com outras Bandeiras de Santos Juninos organizado pela Prefeitura do Recife. Segundo Conceição, referindo-se ao tipo de música que acompanha o préstito: “a dança é tipo forró, as músicas de São João toca e você vai dançando, mas não tem uma coreografia específica para aquilo, é uma dança aberta, só na profana. Quando sai a procissão mesmo, as músicas sendo religiosas, ela tem ritmo aí o povo dança. Só na Bandeira que é só marcha.”12 11 COSTA, Francisco Augusto Pereira. Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. 2 ed. – Recife: CEPE, 2004.p. 213 12 Entrevista com Maria da Conceição Andrade Silva. Realizada por Déborah Callender. Recife, 06 de julho de 2018. Bandeira Sto. Antônio de Água Fria. 26 No “coice do préstito”, marcha não mais uma banda de música, mas, sim, alguns instrumentos percussivos como pandeiros, zabumbas e caracaxás. Tal composição aproxima-se da descrição dos desfiles das Bandeiras no campo, conforme registra Pereira da Costa: “No campo, tinham essas Bandeiras um tom mais acentuadamente popular e um aparato especial; marchava adiante da procissão o estrepitoso zabumba e mais instrumentos, foguetes do ar estourando.”13 Esse caráter festivo da procissão da Bandeira, em outras temporalidades (século XIX), foi criticado pelo religioso e escritor Padre Lopes Gama em sua passagem por Pernambuco. Segundo o intelectual, diz ter visto, Em certo arraial uma bandeira dessas, e julguei estar observando uma dessas saturnais dos antigos romanos. Era dedicada ao Senhor S. Gonçalo. As ninfas, que a levavam, depois de gritarem por todo o lugarejo, sempre debaixo do compasso do mais rigoroso landum, entravam pela igreja, e ali, postas em redor de tal bandeira, saracoteavam as ancas, rebolavam-se, davam umbigadas [...].14 O mesmo discurso de rejeição, deslegitimando a manifestação cultural dos populares era proferido pela Igreja, na pessoa do bispo da diocese, o qual proibia o formato festivo do cortejo: Absolutamente, permitindo apenas que sejam as bandeiras levadas da igreja para o mastro, e retiradas depois para a mesma igreja, carregadas por crianças e acompanhadas pelas respectivas irmandades; e por muito empenho, concedem, às vezes, que sejam conduzidas e tiradas com as antigas solenidades, mas sem os versos cantados por moças.15 No entanto, era comum, no período colonial, os devotos organizarem Bandeiras para os santos, não necessariamente 13 COSTA, Francisco Augusto Pereira. Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. 2 ed. – Recife: CEPE, 2004.p. 214 14 Idem 15 Idem 27 aqueles comemorados no período junino. São Gonçalo, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora do Monte, em Olinda, entre outros santos, tinham suas bandeiras festejadas em “devoções de patuscadas” com instrumentos percussivos, músicas e fogos de artifício.16 No tempo presente, o préstito segue as ruas da comunidade onde reside o organizador, numa animada batucada, regada com bebida, música e dança. Na Bandeira da Várzea, coordenada pela professora Antonieta Vidal, numa demonstração de fé, a imagem de Santo Antônio percorre as mãos dos seguidores, que, discretamente, fazem seus pedidos ao orago, enquanto outros cantam e dançam músicas de forró e algumas toadas de domínio público. Ao retornar para a casa da responsável, a imagem é colocada em um altar e os participantes festejam ao longo da noite, se servem com comida, bebida e muita música. 16 A expressão “devoções de patuscada” é empregada por Pereira da Costa para se referir às procissões de Bandeiras dos Santos Católicos seguidas de instrumentos percussivos, música e danças. Ver Costa, Francisco Augusto Pereira. Folk-lore Pernambucanao: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. 2 ed. – Recife: CEPE, 2004.p. 215 Bandeira de Santo Antônio no bairro da Várzea e Sto. Antonio nas mãos dos festeiros. 28 No Recife, as Bandeiras dos Santos Juninos têm prevalência como eventos religiosos no calendário municipal. A Prefeitura local realiza a “Procissão dos Santos Juninos”, no Bairro de Casa Amarela e o “Desfile das Bandeiras Juninas”, nas ruas do centro do Recife. Em Casa Amarela, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição recebe, anualmente, dezenas de Bandeiras e andores com imagens de santos para a tradicional procissão até o Sítio da Trindade, no mesmo bairro. Antes da saída, o padre celebra a sagração das Bandeiras com água benta, num momento de muita alegria e comoção, com palmas, cânticos e fogos de artifício. Fazem parte destes eventos Bandeiras de várias localidades, muitas transportando símbolos correspondentes à sua religiosidade, e também aquelas que não declaram vínculo religioso, a exemplo da Bandeira de São João Deveras, relacionado ao Balé Deveras, localizada no bairro Brasília Teimosa, no Recife. Como afirma seu coordenador, Ladimir Ferreira da Silva (“Mica Silva”), esse bem cultural “é puramente o resgate de um brinquedo, não tem nenhum vínculo religioso”. Ele relata que: Na época, quando eu criei o Balé Deveras, eu era mais ligado à igreja Católica Apostólica Romana, mas hoje eu não tenho religião e ela [a Bandeira] não nasceu puramente por isso, não nasceu com essa conotação e sim com relação de devoção ao santo, o São João numa relação também a Xangô, a gente fez uma pesquisa mais aprofundada sobre sincretismo religioso para fazer essa relação com Xangô.17 Contudo, a Bandeira de São João do Bacnaré (Balé de Cultura Negra do Recife), localizada no Bairro de Água Fria, no Recife, se apresenta com trajes nas cores vermelho e branco, em menção ao Orixá Xangô, com modelos utilizados em cerimônias do Candomblé, além do uso de coreografias na dança, as quais remetem aos movimentos dos orixás, o que fazem por honra e tradição. 17 Ladimir Ferreira da Silva. Bandeira de São João Deveras. Entrevista realizada por Ester Monteiro. Recife, 19 de junho de 2018. 29 Na “Procissão dos Santos Juninos”, assim como no “Desfile das Bandeiras Juninas”, é possível observar a diversidade de cada uma dessas formas de expressão. Na tradicional Bandeira de São João da Carroça e das Bandeiras dos Santos Juninos D’O Bonde, que agrupa as Bandeiras de São José, Santo Antônio, São João, São Pedro, São Paulo e Santana, todas organizadas pela diretoria do Bloco Carnavalesco Lírico O Bonde, é possível observar o empenho do seu presidente, o Sr. Alcides Campelo Cavalcanti, conhecido como “Cid do Bonde” em levar para as ruas um desfile onde se destaque a beleza estética, a luminosidade e o brilho nos adereços e nas vestimentas. Conceição Andrade, representante da Bandeira de Santo Antônio de Água Fria, por sua vez, diz que o figurino da sua Bandeira varia conforme a ocasião: “quando a gente sai com a Bandeira, no primeiro dia, a gente tem uma farda que é uma roupinha marrom e bege e uma fitinha com o nome de Santo Antônio. Mas, quando a gente sai na festa profana, a roupa é uma roupa tipo de São João, uma saia longa, estampada, uma camisetinha.”18 Partindo desse pressuposto, podemos observar como a forma de expressão das Bandeiras está intimamente relacionada com a vida cotidiana dos seus praticantes, interligada com as histórias de vida particulares, a ponto de indeterminar quais as fronteiras que definem o que é privado e acontecem no interior dos lares com o momento festivo, o qual preenche os espaços públicos das cidades com expressões de religiosidades. 18 Entrevista com Maria da Conceição Andrade Silva - Bandeira de Santo Antônio de Água Fria. Realizada por Déborah Callender. Recife, 06 de julho de 2018. SAGRADO E PROFANO No decorrer da pesquisa, encontramos vários registros em jornais e até mesmo nas entrevistas, que colocam em lados opostos sagrado e profano. Ficamos a nos perguntar: onde está a linha divisória que estabelece limites, que confronta esses dois lados? Nessarelação, onde está o limite que reserva de um lado o que é profano e o sagrado do outro? Será mesmo que existe essa relação dicotômica ou eles se misturam, embricam-se de tal maneira que não conseguimos definir onde começa um e termina o outro? PARA SABER MAIS 30 Entre festas e louvações, devoção aos Santos e Orixás: a prática religiosa nas Bandeiras dos Santos Juninos e nos Acorda Povo de Pernambuco O calendário festivo do Nordeste brasileiro traz, no mês de junho, um livre curso ao sentimento regionalista; nesse contexto, Pernambuco se distingue pela diversidade de celebrações. Em quase todos os dias do mês, na capital e no interior do estado, são realizadas diversas práticas culturais que perpetuam a vivência social das pessoas. Os festejos juninos são caracterizados pela fartura de alimentos, músicas de variados ritmos, danças, encenações, receitas culinárias, trajes com cores e adereços específicos, brincadeiras de adivinhações, queima de fogos, rituais sagrados, promessas, missas, procissões, trezenas, entre tantas outras demonstrações de fé, devoção e preservação de tradições culturais. As expressões de natureza religiosa são provenientes, principalmente, do catolicismo e do candomblé, também conhecido como Xangô pernambucano. As Bandeiras dos Santos Juninos e os Acorda Povo estão inseridas nesse amplo conjunto de práticas e representações. Trata-se de uma forma de expressão da religiosidade em louvor aos santos católicos mais reverenciados no mês de junho, são eles: Santo Antônio de Pádua, no dia 13; São João Batista, no dia 24; São Pedro e São Paulo, no dia 29; e também ao Orixá Xangô, detentor do fogo, da fartura, da justiça, divindade do Candomblé homenageado comumente no mês de junho, por ser relacionado, localmente, a São João Batista. Essa disponibilidade para mesclar culturas é dita pelo historiador João José Reis (1996) como um imperativo de POR ESTER MONTEIRO DE SOUZA 31 sobrevivência dos povos escravizados; um exercício de sabedoria, também refletida na habilidade de compor alianças sociais, as quais inevitavelmente se traduziam em transformações e interpenetrações culturais. Observamos que o vínculo entre as Bandeiras dos Santos Juninos e os Acorda Povo, advém dessas “alianças”, das quais denota a referida “mescla” de culturas revelando hibridismos de variados tipos e situações, características “muito presentes na religiosidade, nas procissões, nas comemorações dos santos, nas diversas formas de pagamento de promessas, nas festas populares em geral, como em diversos elementos da religião oficial, por exemplo, no Catolicismo”.19 O Acorda Povo da Vila das Lavadeiras, também conhecido como Acorda Povo de Dona Nenzinha, localizado no bairro de Areias, Recife, exemplifica integralmente essa afirmação. Durante setenta e oito anos de vigência, tem prestado igualmente devoção ao Santo e ao Orixá, resguardando simbolismos e preceitos do catolicismo e do candomblé, mantido tradições e vivenciado transformações decorrentes da conjuntura social e dos valores culturais das gerações que vêm liderando essa forma de expressão. 19 FERRETTI, Sérgio F. Sincretismo e Religião na festa do Divino. In. Revista Anthropológicas, ano 11, vol. 18(2), 2007. p.112 Dona Nenzinha - Acorda Povo da Vila das Lavadeiras. 32 Os depoimentos sobre a história desse bem cultural apontam que o mesmo é uma herança familiar, fundado em 1941 por Adalgisa Marques de Almeida (Dona Dida). Mulher festeira, declaradamente católica e do candomblé, devota de São João Batista e do Orixá Xangô, falecida no início dos anos 1970. É possível presumir que as perseguições às religiões afro-brasileiras e às manifestações culturais correlatas20, recorrentes durante o período de liderança de Dona Dida, tenham motivado a mesma a não exaltar publicamente sua devoção a Xangô, deixando mais evidentes no Acorda Povo, representações relativas a São João. Kesinho, neto da matriarca fundadora, explica: “eu acho assim: minha avó, antigamente, tinha essa ligação [com o Candomblé], mas ela não fazia como a gente faz, a gente faz para o Orixá”.21 Dona Nenzinha, filha que, desde a infância, esteve junto a Dona Dida conduzindo o Acorda Povo, recorda que, naquela época, as orientações da Igreja Católica eram seguidas com maior rigor; muitas mulheres se mantinham virgens até o casamento, faziam promessas para conseguir casar. Por isso, durante a procissão do Acorda Povo, “quem carregava o andor de São João era uma moça vestida de noiva e uma criança vestida de anjo e, na frente da bandeira, tinha um menino vestido de São João, levando um carneiro”. Com o passar dos anos, o uso do animal foi extinto, pois o mesmo ficava assustado com o barulho dos fogos de artifício e, devido ao peso, os homens passaram a transportar o andor. Após o falecimento de Dona Dida, sua filha perdeu o ânimo de conduzir essa forma de expressão, por isso o deixou no Terreiro de Dona Vanda, localizado no Bairro da Mustardinha, no Recife. Somente no início dos anos 1990, a pedido de Kesinho, a citada manifestação cultural volta à residência de Dona Nenzinha, tendo seu retorno festejado pelo Orixá Xangô. Kesinho relata: Quando o Acorda Povo retornou por aqui, a gente fez a obrigação pra Xangô e tal, quando foi na hora de Xangô sair, na hora que o Acorda Povo saiu, uma senhora 20 Sobre as perseguições às religiões e manifestações culturais afro-brasileiras ver, entre outros, os estudos de: SANTOS, Mário Ribeiro dos. Trombones, tambores, repiques e ganzás: a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife (1930-1945) / Mário Ribeiro dos Santos. – 2010. SOUZA, Ester Monteiro de. Ekodidé: relações de gênero do contexto dos afoxés de culto nagô no Recife. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFPE, (2010); MENEZES, Lia. As Yalorixás do Recife. Recife: Funcultura, 2005; QUEIROZ, Martha Rosa Figueira. Religiões Afro- brasileiras no Recife: intelectuais, policiais e repressão. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1999; A coletânea de artigos de autoria de LIMA, Ivaldo Marciano de França. GUILLEN, Isabel Cristina 33 baixou Xangô na praça e ele dizendo que tava muito feliz de ter voltado, que aqui era o lugar dele.22 Há mais de trinta anos o Acorda Povo da Vila das Lavadeiras vem sendo coordenado por Aurelina Marques de Almeida (Dona Nenzinha), junto com seu filho Clésiton José Genésio de Almeida (Kesinho), respectivamente, filha e neto de Dona Dida. Tanto ela, quanto seu filho confessam fé religiosa ao candomblé e profunda devoção a Xangô. Com força, Dona Nenzinha diz: Minha ligação é com meu pai Xangô, que merece, [o Acorda Povo] é em reverência a Ele. Xangô é tudo na minha vida, é meu pai, num momento é meu filho, meu amor. Ele significa minha família, muito bom pra mim. [...] Quando solta aquela giranda [girândola] parece que ele incorporou em mim, me dá aquela vontade de chorar tão grande, com aquela alegria que eu sinto.23 Martins. Cultura Afro- descendente no Recife: maracatus, valentes e catimbós. Recife: Bagaço, 2007. O documentário Irôco: a árvore sagrada, realizado pelo Núcleo da Cultura Afro-brasileira da Secretaria de Cultura do Recife, em parceria com a Fundação Cultural Palmares - Recife, 2006, é uma importante fonte audiovisual sobre o tema. 21 Entrevista com Clésito José Genésio de Almeida (Kesinho) – Acorda Povo Vila das Lavadeiras. Realizada por Alice Alves. Recife, 31 de maio de 2018. 22 Idem 23 Entrevista com Dona Nenzinha – Acorda Povo Vila das Lavadeiras. Realizada por Alice Alves. Recife, 31 de maio de 2018. Dona Nenzinha apresenta com orgulho a coroa de Xangô - Acorda Povo da Vila das Lavadeiras. 34 Tamanho amor ao orixá, junto ao exercício da liberdade de culto, motiva Dona Nenzinha a exaltar com notoriedade o nome de Xangô e, ao mesmo tempo, manteros saberes de sua mãe, preservando as referências ao catolicismo. A cada ano, durante o mês de junho, são realizadas diversas ações preparatórias à saída da Bandeira de São João e do Acorda Povo, como a confecção das roupas ritualísticas do candomblé, escolha das residências onde serão hasteadas as bandeiras, a casa onde o andor será resguardado, também são realizados rituais católicos e do candomblé com oferendas para os orixás, pedidos de permissão, proteção e licença para sair nas ruas, limpeza ritual do bombo (instrumento utilizado no cortejo). A culminância da festa ocorre nos dias 23 e 24, respectivamente, véspera e dia de São João. Às 4h do dia 23, uma queima de fogos de artifício anuncia a saída do Acorda Povo. O cortejo segue cantando pelas ruas da comunidade saudando as residências das pessoas que fizeram promessas e como pagamento se dispuseram a Obrigação ritualística do bombo no quarto sagrado dos orixás (Peji) - Acorda Povo da Vila das Lavadeiras. 35 “levantar” uma bandeira de São João pela graça alcançada. De maneira prévia, essas pessoas costumam procurar Dona Nenzinha para ter a honraria. Em 2018, treze bandeiras foram hasteadas na comunidade. Com altivez, Dona Nenzinha relata: “o povo é que vem aqui [na casa dela] me procurar, [para saber] se pode levantar a bandeira. [...] Pra ser juíza também vem me procurar, [para] saber se pode, se tem a vaga”.24 É chamada de “juíza” a mulher que acolhe em sua residência o andor com a imagem de São João, lá também fica hasteada uma bandeira com a imagem de São João. Apenas uma juíza é escolhida a cada ano. Por voltas das 6h da manhã, o percurso é finalizado com o retorno à casa de Dona Nenzinha, onde será “levantada” a última bandeira. Depois disso, é puro divertimento ao dançar o coco25 em frente à casa da matriarca, regado à distribuição de mungunzá26 para todos que participam. Ainda no dia 23, perto das 18 horas, o grupo sai para buscar a bandeira e o andor na casa da juíza, para os objetos pernoitarem na casa de Dona Nenzinha. 24 Idem 25 Manifestação cultural nordestina, influenciada pelas culturas indígena e afrobrasileira, vivenciada com muita evidência durante o período junino. 26 Iguaria à base de milho e leite de coco, apreciada comumente na culinária junina. Bandeiras dos santos hasteadas nas frentes das casas. 36 A festa é retomada às 20 horas do dia 24, quando são “arriadas” todas as bandeiras que foram hasteadas na comunidade e guardadas com cada família. Logo após esse ato, todos saem em procissão transportando o andor e a bandeira até a casa da juíza que guardará as relíquias até o mês de junho do próximo ano. É uma tradição que vem sendo mantida para renovação da fé dos seus praticantes e promoção da alegria entre a comunidade da Vila das Lavadeiras. A transmissão de saberes também se faz presente na relação familiar da Mestra Ana Lúcia, líder do Acorda Povo do Amaro Branco, localizado no bairro de mesmo nome, no município de Olinda. Ela ressalta o seu envolvimento com diversas manifestações da cultura popular, tendo aprendido tudo com seu pai, Francisco Nunes, que, por sua vez, teria aprendido com o pai dele, que teria aprendido com o avô, em Nazaré da Mata, região da Mata Norte de Pernambuco. Acorda Povo de Amaro Branco - Mestra Ana Lúcia. 37 Uma particularidade dessa expressão cultural era a realização do banho do rio, uma referência ao batismo de Jesus por João Batista, no rio Jordão. Ela recorda que, no passado, seu pai promovia o ritual do banho de São João: O Acorda Povo ía para o rio, só que não existe mais rio, você não pode se jogar ali dentro pra tomar um banho que tá contaminado, muito sujo, mas o rio era tudo limpo e tinha pouca casa. Eu nasci aqui, isso era mato e as casas distantes. E levava [os participantes do acorda povo para tomar banho de rio] lá pra Casa Caiada, levava pra Rio Doce [bairros de Olinda]. Saía cantando, fazia o coco. Aí saía cantando pra levar o andor com a bandeira para o rio. Quando chegava no rio, arriava a bandeira, o andor, todo mundo mergulhava, as pessoas de idade faziam os seus pedidos, as pessoas novas era [pedido de] casamento. E depois que terminava isso tudinho, o pessoal saía cantando com a procissão.27 Aos doze anos de idade, Mestra Ana Lúcia começa a participar mais ativamente do Acorda Povo tocando ganzá, cantando coco, época na qual ocorre o falecimento de seu pai e pouco tempo depois a mesma assume a liderança. O Acorda Povo, a Trezena para Santo Antônio e o Coco formam um conjunto de manifestações culturais que compõe os festejos juninos realizados pela Mestra e seu filho Stênio Oliveira. Ela é praticante do catolicismo; já seu filho dedica sua fé ao candomblé e à umbanda, motivo pelo qual os festejos agregam a prática das três religiões, com rezas, obrigações, cânticos, procissão, andor e bandeira de São João. Em 2018, a procissão saiu no dia 23 de junho, véspera do dia de São João, partindo do Palácio de Yemanjá, terreiro de Candomblé localizado no Alto da Sé, sítio histórico de Olinda, em direção à Casa das Matas do Rei Malunguinho, terreiro de Jurema situado no Largo do Amparo, no mesmo sítio histórico. 27 Entrevista com Mestra Ana Lúcia – Acorda Povo Amaro Branco, Olinda-PE. Realizada por Alice Alves e Raquel Araújo. Olinda, 11 de junho de 2018. 38 Como indica a tradição, em junho de 2019 o Acorda Povo do Amaro Branco saiu do citado Terreiro de Jurema com destino a ser previamente anunciado por Mestra Ana Lúcia. O vínculo ao Candomblé e a Jurema, assim como a sucessão familiar, também estão presentes na história do Acorda Povo de Seu Manoel, localizado no Bairro Sapucaia de Dentro, 2ª Região Político-Administrativa de Olinda. O falecimento de Seu Manoel, em 2012, permitiu a Dona Célia do Coco, sua filha biológica, assumir a liderança dessa expressão cultural, a qual permanece com o nome de seu fundador. Dona Célia é membro do Terreiro Xambá28 e responsável pelos rituais de preparação para a saída do Acorda Povo nas primeiras horas do dia 23 de junho. A cada ano, as saias em chita, de uso tradicional no citado Terreiro, compõem o cenário do cortejo que percorre algumas ruas da comunidade, cantando coco, transportando a Estrela, a Bandeira de São João, anunciados pelos estouros de fogos de artifício, mantendo a tradição de reverenciar algumas pessoas da comunidade e seguir ao Terreiro Xambá, onde ocorre uma saudação religiosa e um lanche, que é oferecido aos participantes. 28 Sobre o Terreiro Xambá ver: COSTA, Valéria Gomes. É do Dendê! História e memórias urbanas da Nação Xambá no Recife (19501992). São Paulo: Annablume, 2009. Saída do Acorda Povo de Amaro Branco - Palácio de Yemanjá (Olinda). 39 Na noite do dia seguinte, a alegria permanece com a realização do Coco de Seu Manoel, organizado por Dona Célia, em frente à sua casa. É ela quem compõe e canta as toadas do coco junto com sua filha, netos, amigas e amigos da família, que também cantam, tocam instrumentos e se envolvem nos festejos. Os grupos de Acorda Povo têm em si, além da devoção, o estado e a condição de alegrar, de comemorar os ciclos festivos que compõem a cultura popular pernambucana. Aqui, os brincantes caminham de mãos dadas, fortalecendo as mais variadas formas de expressão da cultura local e suas relações com o sagrado; é prática comum essa imbricação, essa vivência, seja no natal, no carnaval ou no São João. Alguns grupos de Acorda Povo e Bandeiras dos Santos Juninos têm suas lideranças à frente de agremiações carnavalescas, de grupos de dança e de outras manifestações culturais correlatas. Um forte exemplo é o Acorda Povo Bandeira de São João Cambinda Estrela, ligado a um Maracatu Nação de mesmo nome, ao Afoxé Omolu Pa Kérù Awo e ao Coco dos Pretos, todos agregados em Acorda Povo de Seu Manoel - Sapucaia de Dentro (Olinda). 40 sede única no Bairro de Chão de Estrelas, no Recife. Embora esses grupos culturais tenhamcaráter distinto, vários dos seus membros são comuns, assim como as práticas religiosas fundamentadas nos preceitos do Candomblé e do Catolicismo. Wanessa Santos, presidenta do Centro Cultural Cambinda Estrela, informa que “a priori, quem leva a bandeira [de São João] é tia Ana, Ana Maria Barbosa de Sena, que é nossa dama do paço no maracatu. Ela é Ialorixá de Oxum. Isso foi questão de decisão do próprio Santo”29 e detalha a realização de rituais precedentes à saída do cortejo. 29 Wanessa Paula Conceição Quirino dos Santos _ Acorda Povo Bandeira de São João Cambinda Estrela. Entrevista realizada por Déborah Callender em 07 de junho de 2018. 30 O Xirê consiste numa roda de dança, cânticos e toques percutidos em tambores, apropriados aos Orixás, sequenciado conforme o culto de cada Terreiro de Candomblé. 31 Wanessa Paula Conceição Quirino dos Santos _ Acorda Povo Bandeira de São João Cambinda Estrela. Entrevista realizada por Déborah Callender em 07 de junho de 2018. No mês de maio, é feita uma reunião para verificar as questões relativas às oferendas a Xangô e ao Xirê.30 “A gente vai listar tudo o que vai ser usado; ver quantos bichos vai ser, quais materiais vai usar, quanto a gente vai gastar, o que a gente vai ofertar no banquete de Xangô [...]”31. A obrigação ocorre duas Obrigação para Xangô. 41 semanas antes da saída do Acordo Povo; nela “é feita a matança, tem os dias de resguardo das pessoas que são de candomblé e os simpatizantes que participam também mantêm esse resguardo até o dia da festa, quando o Pai de Santo libera todas as pessoas envolvidas nesse processo”.32 O dia da saída do cortejo, dia 22/06, se inicia com os preparativos da montagem do andor que servirá de suporte para a imagem de São João, da alimentação que será consagrada ao Orixá e depois servida aos participantes e com a decoração do salão do Centro Cultural. “Dezoito horas, a gente acende a fogueira e começa o Xirê para o patrono da Casa que é Xangô e quando dá 11:30h [23:30h] mais ou menos, a gente já começa se preparar para a saída do cortejo do Acorda Povo.”33 Wanessa ressalta que o Acorda Povo e Bandeira de São João Cambinda Estrela “é uma festa voltada para homenagear e falar da história de São João com aquela visão católica, porém a gente deixa bem claro que o sentido da festa é para Xangô realmente”.34 32 Idem 33 Idem 34 Idem Acorda Povo e Bandeira de São João Cambinda Estrela - Chão de Estrelas. 42 São muitas as expressões culturais que vivenciam essa “mistura, junção ou fusão” de religiões.35 A Bandeira de São João do Terreiro de Mãe Amara, com endereço jurídico no Bairro do Arruda, Recife, está inscrita nesse contexto e agrega particularidades decorrentes das circunstâncias de sua existência. Esse bem cultural nasceu no Ilê Obá Aganjú Okoloyá36, tornou-se itinerante e parte integrante de um importante ciclo de oferendas e festividades dessa Casa de culto, denominado “Amalá de Xangô, o Banquete do Rei”. O Amalá é uma celebração anual, realizada por Mãe Amara, que conta com ritual religioso ao Orixá Xangô e oferenda de um farto banquete com duas de suas comidas prediletas: o Amalá e o Beguíri37. Maria Helena Sampaio, filha biológica de Mãe Amara e Yákekeré (Mãe Pequena) do Terreiro, conta que a Bandeira de São João: Surgiu há muito tempo, foi uma promessa que minha mãe fez ao orixá dela, que é o patrono da casa, de oferecer um Amalá com Beguirí a Xangô, chamando ‘O Banquete do Rei’. Antigamente minha mãe saía do terreiro dela [com a Bandeira de São João] e ia pro terreiro de Dona Biu [Terreiro Xambá Xangô Fúniké, próximo ao Terreiro de Mãe Amara, no Bairro de Dois Unidos – Recife-PE], elas eram irmãs [irmãs de santo] desde novinha, de criança no terreiro de mãe Luíza [Mãe de Santo de Mãe Amara e de Dona Biu] e as duas eram filhas de Xangô; minha mãe é de Xangô Aganjú e ela [Dona Biu] era de Xangô Funiké, e como ela também reverenciava Xangô nessa mesma época, minha mãe, em devoção a essa amizade, que era uma amizade tanto espiritual como amizade material, ela levava a bandeira tradicionalmente de ano em ano para o terreiro dela; um ano saía do Terreiro de mainha, no outro ano retorna do terreiro de lá para cá. Então havia essa aliança, essa irmandade entre elas.38 35 FERRETTI, Sérgio. F. Repensando o sincretismo. São Paulo: Edusp: Fapema,1995. p.78 36 O Ilê Obá Aganjú Okoloyá, também conhecido como Terreiro de Mãe Amara, de Nação Nagô, fundado em 1945, no Bairro de Dois Unidos, Recife-PE. Sobre essa Casa de culto, ver: MEIRA, Fernanda. Ilê Obá Aganjú Okoloyá – Terreiro de Mãe Amara: Desafios e estratégias hoje. Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. 37 Amalá e Beguiri são iguarias preparadas no Terreiro de Mãe Amara para oferenda ritual ao Orixá Xangô. O Beguiri é feito basicamente com quiabo, castanha, amendoim, camarão e carne bovina, fartamente regado com azeite de dendê, temperado com pimenta, sal, cebola e cebolinha. O Amalá consiste num espécie de papa feita 43 Mãe Amara relata que, na saída da bandeira, acendia-se uma enorme fogueira e soltava-se fogos, para anunciar a partida. Ao ouvir o sinal, todos saíam de dentro de casa, para recepcionar alegremente a chegada do cortejo. com farinha de mandioca e água. Ambas são servidas ao Orixá em alta temperatura. Disponível em: http://www.unicap.br/ observatorio2/?p=4252 – Acesso em: 21/08/2018 38 Maria Helena Sampaio. Bandeira de São João do Terreiro de Mãe Amara. Entrevista realizada por Ester Monteiro. Recife, 11 de setembro de 2018. Essa animação aconteceu durante muito tempo, nos dois terreiros. Porém, com o falecimento de Dona Biu, Mãe Amara deixou de sair com a Bandeira por um longo período, até que, em 2001, um filho de santo de Mãe Amara, ouvindo ela falar de sua fé em Xangô e do saudoso cortejo da Bandeira de São João, sugeriu que a mesma voltasse a realizar essa grande festa. Aceitando a ideia, Mãe Mara conversou com sua filha Maria Helena e esta restabeleceu o bem cultural, mantendo a tradição nagô iniciada por sua mãe. O Terreiro Xambá Xangô Funiké, atualmente liderado pelos descendentes de Mãe Biu, acolheu a notícia com muita alegria organizando uma grande festa para o reinício de uma histórica tradição entre as duas Casas. Em 2014, a celebração do “Amalá de Xangô – O Banquete do Rei” foi reconhecido com o Prêmio Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, promovido pelo Bandeira de São João do Terreiro de Mãe Amara - UNICAP 2018. 44 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN. Essa premiação veio ampliar a programação para o ano seguinte, quando foram comemorados 70 anos da realização do evento. Em 2016, por questões familiares, Mãe Amara saiu do endereço que sediou tantos rituais. Contudo, a celebração do Amalá e da Bandeira de São João foi preservada; se dá em caráter itinerante, sendo realizada em espaços culturais e de formação, a exemplo da Torre Malakof, da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE e da Universidade Católica. Atualmente, a configuração do Amalá compreende um dia inteiro de atividades, promovendo a integração não apenas com a comunidade religiosa do terreiro, mas com escolas, universidades, movimentos sociais e a sociedade em geral. Ao raiar do dia, uma alvorada com queima de fogos e o toque do Alujá39 anunciam a festa. É servida uma farta refeição com comidas juninas; em seguida, realiza-se um Xirê com cânticos aos orixás para seguir com a programação previamente estabelecida, geralmente, seminário com temas relacionados à religiosidade e à cultura afro-brasileira; durante a tarde, são realizadas oficinas e apresentações culturais de grupos convidados, até a noite, quando a festa se encerra com o cortejo da Bandeira de São João. Os participantes saem em cortejo tocando, dançando e cantando toadas de Candomblé, cantigas decoco e de domínio público, fazendo menção ao santo (São João) e ao orixá (Xangô). 39 Alujá é um ritmo executado em tambores em louvação ao Orixá Xangô Bandeira de São João do Terreiro de Mãe Amara. 45 A Bandeira de São João do Terreiro de Mãe Amara participa da Exposição da Culinária Afro brasileira, evento que integra o ciclo junino da Prefeitura do Recife, onde são servidas diversas iguarias, comidas de santo preparadas nos terreiros de candomblé. No bairro de Água Fria, foram identificadas três bandeiras organizadas por duas pessoas da mesma família: são as Bandeiras de São João e de São Pedro, lideradas pela carnavalesca Cristina Andrade, e a Bandeira de Santo Antônio, criada por sua filha, Maria da Conceição. Mãe e filha são católicas, integrantes de grupo assistencialista da Igreja Matriz de Santo Antônio, localizada no mesmo bairro, onde atuam na arrecadação de donativos para idosos da comunidade. 40 Maria Cristina Andrade – Bandeira de São João e Bandeira de São Pedro de Água Fria. Entrevista realizada por Déborah Callender. Recife, 06 de julho de 2018. Para Cristina, o diferencial entre as Bandeiras de Santos Juninos e o Acorda Povo, é que, comumente, as primeiras têm relação com a religião católica e o segundo com o candomblé; por isso assegura: “tudo que eu faço é católico. Eu sou da Igreja de Santo Antônio de Água Fria, eu e minha filha. Sempre que eu vou, eu rezo e faço meu grupo rezar comigo; eu agradeço a Deus a minha ida e peço que leve e traga tudo em paz”.40 Bandeira de São João de Água Fria. Bandeira de Santo Antônio de Água Fria. 46 Conceição reitera que a dinâmica de apresentação de sua Bandeira é regida pelos ritos católicos que são realizados no mês de junho para Santo Antônio. Assim, a Bandeira participa da Trezena de Santo Antônio organizada pela igreja do bairro – são treze dias de oração durante o mês de junho dedicados ao citado Santo. O trajeto do cortejo também toma como referência a mencionada matriz, de onde sai percorrendo as ruas do bairro e a ela retorna para o encerramento. Conceição entende que a fé é o elemento mais importante na existência dessa manifestação cultural, “a fé com que você faz aquilo é o mais importante que você está mostrando na sua Bandeira”. Na Bandeira de São João e Acorda Povo da Várzea, foram identificadas outras circunstâncias. Essa expressão cultural assume formatos distintos e mesmo havendo uma forte presença de hibridismo e tradição, já houve demarcação de lugar na realização da prática religiosa. A mesma explica que: Anos atrás, ao iniciar o mês do mês de junho, a bandeira de São João era hasteada na frente da igreja [Igreja Matriz da Várzea - Paróquia Nossa Senhora do Rosário] e ali tinha as orações, os cultos a São João Batista, tinha todo esse ritual da igreja católica. E o acorda povo existia, só que separado, mais ligado ao Candomblé. Mas, quando terminava o cortejo da Bandeira de São João, que chegava na frente da igreja para ser entregue aos padrinhos, o grupo de acorda povo também entrava nessa festa e como [o Acorda Povo] era uma festa mais profana, tinha bebidas, tinha todas aquelas danças diferentes da procissão de São João, que só cantava músicas religiosas, e o acorda povo trazia toda essa festividade de alegria, de muita zoada, de muita dança ligado a Xangô, ao Orixá Xangô. Cabe apontar que no candomblé a dança, a música, a festa, são afirmações do sagrado, assim como o ato de confraternizar, 47 que potencializa os laços de fraternidade e a promoção de alegria. Rita Amaral explica que a ideia de que a vida é festa marca de modo profundo a visão de mundo do povo de santo e é perceptível também fora da religião. [...] Assim, o povo de santo será visto no candomblé, mas também nos afoxés, nas escolas de samba, nos pagodes, [...] na capoeira, nos shows de música afro [nas bandeiras de São João, nos acorda povo – grifo nosso] e em várias outras atividades ligadas à festa de um modo ou de outro.41 As pessoas que outrora acompanhavam o Acorda Povo da Várzea pertenciam ao Terreiro da conhecida “Tia Zu”, Ialorixá que residia na comunidade Ambolê, próxima ao bairro da Várzea. Até falecer, a Ialorixá passou por sérios problemas de saúde e suas filhas acharam por bem retirar a bandeira do Terreiro, “ela se emocionava muito e fazia uma força imensa para ficar de pé e fazer a louvação a Xangô, então a gente evitava passar por lá e por esse motivo a bandeira começou a ficar guardada na minha casa”, diz Antonieta. Quando aconteciam os ensaios, etapa precedente à saída da bandeira, bem como no dia do cortejo, a filha de Tia Zu passou a realizar a “louvação a Xangô”, mas após o falecimento da Ialorixá, as atividades do terreiro foram suspensas. “Entristeceu o terreiro, entristeceu as pessoas, as filhas dela não tiveram muita garra para continuar”. Desse modo, houve maior prevalência do catolicismo, “As pessoas que assumiam a bandeira permitiam que a gente cantasse o louvor a Xangô, mas de maneira tradicional, não de fé”. Durante a pesquisa, foi possível observar, em um dos ensaios, a atenção do casal padrinho com a recepção aos convidados, a bandeira de São João hasteada em frente à casa, o andor iluminado, a decoração local e uma mesa farta com comidas regionais, denominada “lanche solidário”. Houve, ainda, uma oficina de manipulação do “quentão”, aperitivo à base de 41 AMARAL, Rita. O tempo de festa é sempre. In. Travessia. Revista do Migrante n. 15, janeiro/ abril, Centro de Estudos Migratórios – CEM, São Paulo, 1993. 48 aguardente, frutas e ervas, consumida tradicionalmente nos ensaios e durante o cortejo. Um coral de mulheres, acompanhado por um jovem tocando atabaque, ensaiava cantigas juninas e entre as canções, apenas uma fez menção ao Orixá Xangô, sendo a estrofe repetida várias vezes: Meu pai São João Batista é Xangô Dono do meu destino até o fim Se um dia me faltar a fé no meu senhor Derrame essa pedreira sobre mim. Antonieta Vidal, além de coordenar a Bandeira de São João e Acorda Povo da Várzea, criou a Bandeira de Santo Antônio, em agradecimento pela superação de algumas dificuldades ocorridas no interior de sua família. Ela relata: Sempre pedi a Santo Antônio, como padroeiro da família, a me orientar, me dar essa sabedoria, estar à frente da minha família, porque fiquei viúva muito cedo e meus filhos pequeninos ficaram comigo. Então, era Santo Antônio, São José e São Francisco, a quem eu pedia muita sabedoria para educá-los, para orientá-los. E aí o surgimento da Bandeira foi um agradecimento; minha filha disse: vamos pedir a Santo Antônio; ele vai nos orientar e a oração do Responsório de Santo Antônio é uma oração muito forte e por toda a história que eu fui educada pela minha mãe, ela colocava pra gente esse amor pelo santo. Eu quis fazer a bandeira em forma de agradecimento. Eu digo, verdadeiramente, que o momento especial foi agradecer a Santo Antônio a vida da minha netinha. Durante três dias consecutivos, precedentes ao desfile da Bandeira, Antonieta organiza em sua casa uma reunião de pessoas. com o propósito de fazer preces, leituras e citações 49 sobre a vida e os milagres de Santo Antônio de Pádua. Elas mentalizam as suas súplicas e recitam o “Responsório”, oração de grande força para a realização dos pedidos. Ela denomina “Trido(sic) de Santo Antônio, etapa preparatória à saída da Bandeira, [...] é justamente para mostrar o agradecimento, a alegria [pela graça alcançada], que a gente desfila na rua e faz a festa para nossa comunidade”. O “Responsório de Santo Antônio” é o seguinte: “Se milagres desejais, Recorrei a Santo António; Vereis fugir o demónio E as tentações infernais. Recupera-se o perdido. Rompe-se a dura prisão E no lugar do furacão Cede o mar embravecido. Todos os males humanos Se moderam se retiram, Digam-no aqueles que o viram, E digam-no os lusitanos. Recupera-se o perdido. Rompe-se a dura prisão E no auge do furacãoCede o mar embravecido. Pela sua intercessão Foge a peste, o erro, a morte, 50 O fraco torna-se forte E torna-se o enfermo são. Recupera-se o perdido. Rompe-se a dura prisão E no auge do furacão Cede o mar embravecido. Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo. Recupera-se o perdido. Rompe-se a dura prisão E no auge do furacão Cede o mar embravecido. Rogai por nós, bem-aventurado António. Para que sejamos dignos das Promessas de Cristo.” O desfile da Bandeira de Santo Antônio percorre com muita animação algumas ruas do bairro da Várzea, acompanhado por um grupo tocando instrumentos percussivos, cantando músicas do ciclo junino, enquanto uma imagem de Santo Antônio é passada de mão em mão. Numa demonstração de fé, as pessoas oram, fazem seus pedidos olhando a imagem, repassando-a continuamente. Finalizamos esses apontamentos observando a grandeza dos saberes que fazem dos Acorda Povo e das Bandeiras dos Santos Juninos de Pernambuco uma construção social permeada de sentimentos e de subjetividades. Os símbolos e significados existentes na prática desses bens culturais estabelecem uma linha tênue entre as festas e as louvações. Elas se irmanam, misturam-se de uma maneira a ponto de indeterminar limites para vivenciar o estado de alegria. 51 52 Os símbolos da festa e as subjetividades do sagrado Impregnados de elementos simbólicos e afetivos, as Bandeiras dos Santos Juninos e os Acorda Povo estabelecem relações identitárias e de pertencimento com os sujeitos sociais; estes compartilham experiências na esfera da religiosidade, da sociabilidade, da produção artística e do simbólico, presentes em cada elemento da manifestação, quer seja no seu fazer ou na sua representação. O cenário é composto por diversos símbolos revestidos de sentidos não cristalizados, formando um campo imagético para o qual convergem e proliferam os significados atribuídos pelos sujeitos. A bandeira é um dos elementos principais da celebração, encarregando-se de abrir o préstito, trazendo na frente as imagens dos santos ligados ao ciclo junino: São José, Santo Antônio, São João, São Pedro, São Paulo e Sant’Ana. Elas são feitas com diversos materiais: tecidos diversos, fitas de cetim, paetês, lona de vinil, flores, veludos, folhas de ouro, fitas de led, chenile, pedrarias e aviamentos diversos, erguida por um mastro feito de madeira. São conduzidas por homens ou mulheres e geralmente vêm presas a um mastro. Há grupos que trazem três bandeiras presas num só mastro. Em geral com as imagens de Santo Antônio, São João e São Pedro. Nas Bandeiras e nos Acorda Povo, São João é representado de duas maneiras: na imagem carregada no andor, o santo aparece como um homem adulto: barbudo, vestido com peles de animais. No estandarte, chamado também de bandeira, geralmente feito pelos integrantes do grupo, o santo é reproduzido como um menino, o São João do carneirinho, com rosto angelical, cabelos encaracolados, carregando uma cruz. Essas duas representações estão ligadas a momentos distintos da história do santo: como uma criança, remonta ao período de seu nascimento, cujo objetivo POR DÉBORAH CALLENDER 53 foi anunciar a vinda do messias, seu primo Jesus. Como adulto, São João Batista simboliza aquele que batizou Jesus nas águas do rio Jordão, sendo um de seus apóstolos. É relevante destacar que, em alguns grupos, a bandeira traz a imagem de São João, a coroa e o machado de Xangô juntos, representando o hibridismo religioso tão presente nessa celebração pernambucana. Resultado de uma confluência de afetos e emoções, a prática simboliza, nesse sentido, uma unidade entre os sujeitos, constituindo uma identidade de pertencimento e fé, uma maneira singular de sentir o sagrado e com ele se relacionar em que santo e orixá são cultuados nos mesmos espaços, na mesma celebração. No que se refere à produção artística, a Bandeira organizada pelo Bloco Carnavalesco O Bonde, inicialmente denominada Bandeira de São João da Carroça, destaca-se por ter uma apresentação plástica que difere das demais. Constituída de materiais não encontrados em outros grupos, como folhas de ouro, lâmpadas de led, a Bandeira de São João da Carroça tem como sua “marca” a forma padronizada e elegante das vestimentas, assim como seus acessórios e adereços. Além das bandeiras dos santos juninos, O Bonde também traz, em seu cortejo, uma réplica da Igreja de São Pedro, lamparinas, uma fogueira cenográfica, estrela, lampiões e balões iluminados. Todas as meninas, de oito a oitenta [anos de idade] elas têm uma roupa padrão, que também está muito ligada a essa questão do próprio simbolismo da Bandeira com as flores em homenagem a São João bordadas. Todos os meninos que participam da Bandeira também têm uma camisa padrão com todas as bandeiras impressas na camisa, que é uma coisa exclusiva da nossa Bandeira; as próprias bandeiras de São João que, inicialmente, eram confeccionadas assim, de uma forma mais simples, até por questão mesmo de recursos, hoje são todas bordadas e iluminadas, que é uma característica nossa; todas as nossas bandeiras têm 54 iluminação com led. Então, tudo isso foi uma evolução, no sentido, naturalmente, dessa busca, principalmente, pela beleza, porque, quando a gente gosta de algo, a gente sempre quer que aquilo seja cada vez mais belo e quando a gente tem uma devoção por um Santo, a gente quer fazer o melhor possível para ele, que é santo; então a gente vai sempre nesse sentido crescente e as coisas vão evoluindo, vão mudando, vão aparecendo elementos.42 42 Cid do Bonde_ Bandeira de São João da Carroça. Entrevista realizada por Ester Monteiro de Souza. Recife, 05 de junho de 2018. Procissão das Bandeiras dos Santos Juninos 2018 - Morro da Conceição. Acorda Povo de Seu Manoel-Sapucaia de Dentro (Olinda).Bandeira de São João da Carroça. 55 Seguindo o préstito, após a bandeira, vem o andor, confeccionado de madeira, ferro, flores (naturais ou artificiais), tecidos, cola e aviamentos. O andor tem a função de levar a imagem do santo, a qual é decorada com flores nas cores, predominantemente branca e vermelha. Nas proximidades do andor, geralmente à frente, conduzido por uma criança, encontra-se a estrela, iluminada com lanternas feitas com garrafas plásticas. As estrelas são confeccionadas por integrantes dos grupos, com uma armação metálica de arame, que dá suporte para velas brancas, que são Andor de São João - BACNARÉ - Procissão das Bandeiras dos Santos Juninos 2018 - Morro da Conceição.. Procissão das Bandeiras dos Santos Juninos 2018 - Morro da Conceição. 56 acesas no centro e revestidas, em geral, com tecidos nas cores vermelha e branca. Alguns Acorda Povo trazem mais de uma estrela em cores diversas. Em alguns grupos, a cada ano uma pessoa da comunidade fica responsável por receber o andor, a imagem de São João e a bandeira do Acorda Povo, sendo denominada de juíza. Essas pessoas, geralmente, são pagadoras de promessas e assumem a responsabilidade com a ornamentação das ruas da comunidade, além de ficarem responsáveis pelos cuidados dos principais símbolos da celebração (andor, imagem e bandeira), por um ano. O cortejo segue pelas ruas dos bairros, ao som de músicas executadas com instrumentos de sopro e percussão, junto com preces e louvações. Os devotos seguem em procissão, com o santo em cima do andor, conduzido nos ombros por homens ou em cima de um carro aberto, transformando naquele instante, casas, ruas, becos e vielas em territórios religiosos, ao estabelecer novos sentidos e configurações aos espaços. Esses lugares geográficos Á esq. Acorda Povo Cambinda Estrela e Á dir. Acorda Povo de Amaro Branco. 57 (casas, ruas e avenidas) que, cotidianamente são utilizados com funções rotineiras: residências, caminhos dos transeuntes ao trabalho, pontos de comércio e lazer, em determinado espaço-tempo adquirem outros significados, seja por meio de símbolos ou por meio das condutas
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