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Paulo Bunaviães TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Por um Direito Constitucional de luta e resistência Por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade El i=MALHEIROS =V= EDITOR ES Teoria Constitucional da Democracia Participativa (Por um Direito Constitucional de luta e resistência Por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade) © P a u l o B o n a v i d e s ISBN 85-7420-279-7 Direitos reservados desta edição por MALHEIROS EDITORES LTDA. Rua Paes de Araújo, 29, conjunto 171 CEP 04531-940 — São Paulo — SP Tel.: (Oxxll) 3842-9205 Fax: (Oxxll) 3849-2495 URL: www.malheiroseditores.com.br e-mail: malheiroseditores@zaz.com.br Composição PC Editorial Ltda. Capa Criação: Vânia Lúcia Amato Arte: PC Editorial Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil 03-2001 http://www.malheiroseditores.com.br mailto:malheiroseditores@zaz.com.br A Go f f r e d o Te l l e s J ú n io r , autor da “Carta aos Brasileiros ” e advogado da liberdade, da cidadania e da Constituição, h o m e n a g e m d e P a u l o B o n a v id e s SUMÁRIO Introdução........................................................................................... 7 Capítulo 1 0 Direito Constitucional da Democracia Participativa: um direito de luta e resistência.......................................................... 25 Capítulo 2 -A Democracia Participativa e os bloqueios da classe dominante............................................................................................... 50 Capítulo 3 - A ideologia da globalização e o antagonismo neoliberal à Constituição ....................................................................................... 66 Capitulo 4 - A globalização e a soberania - aspectos constitucionais... 87 Capítulo 5 A inconstitucionalidade material e a interpretação do art. 14 da Constituição......................................................................... 108 Capítulo 6 - 0 Estado Social e sua evolução rumo à democracia participativa............................................................................................ 143 Capítulo 7 - Garcia Pelayo e o Estado Social dos países em desenvol vimento: o caso do Brasil.................................................................... 168 Capitulo 8 - A evolução constitucional do Brasil................................ 190 Capitulo 9 - 0 pensamento jusfilosófico de Friedrich Müller: fundamento de uma Nova Hermenêutica....................................... 206 Capitulo 1 0 - A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais......... 216 Capítulo 11 - A dignidade da pessoa humana............................................ 230 Capítulo 12 -A presunção de constitucionalidade das leis e interpre tação conforme a Constituição.......................................................... 235 Capítulo 13 - Ciência Política........................................................................ 264 Capítulo 14 - La Sociologia Jurídica............................................................ 269 Capítulo 15 - Espaço público e representação política............................ 277 6 TEORJA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA INTRODUÇÃO Com a presente Teoria Constitucional da Democracia Participativa damos seqüência e conclusão a um conjunto de idéias e refle xões que começamos a expor e aprofundar em nosso Curso de Direito Constitucional,' e que tiveram depois continuidade, de forma não me nos explícita e combativa, na Coletânea intitulada Do País Constitucio nal ao País Neocolonial.2 Os três livros tomados conjugadamente compõem uma trilogia volvida para a liberdade, a igualdade e a justiça. Outro fim não alme jam senão desbravar e iluminar caminhos que conduzam a uma demo cracia participativa, aquela democracia de emancipação dos povos da periferia, conforme poderá o leitor logo averiguar. A tese central da obra consiste, pois, em reivindicar um Direito Constitucional da liberdade, oxigenado de princípios e valores já in corporados nas nossas raízes e tradições de resistência a golpes de Es tado, estados de sítio, intervenções federais e ditaduras, todos vibrados e todos instalados quando a chamada democracia representativa - per passada da crise constituinte que estalou no berço da nacionalidade - não correspondeu com seus meios jurídicos e seu dever constitucional aos anseios nacionais de alforria do povo e da sociedade. Fiéis, assim, a uma posição libertária de pensamento inaugurada em tese de cátedra, que teve por título Do Estado liberal ao Estado social,3 nunca nos arredamos dessa posição. Por isso afigurou-se-nos, agora, legítimo e útil trasladar também para as páginas desta Coletânea 1. 10a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2000. 2. 2a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2001. 3. 6a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1996. 8 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA a Introdução à sexta edição daquela monografia acadêmica, bem como dois Prefácios da mesma, onde verdadeiramente havíamos esboçado já os primeiros ensaios rudimentares de uma jornada de idéias na direção da democracia participativa e do Estado social. E o fizemos com o confessado propósito de anexar os direitos fun damentais das dimensões subseqüentes àquela primeira que se estreou desde que os direitos políticos e civis foram proclamados pelos consti tuintes do Século XVIII, um dos séculos mais revolucionários e fecun dos de toda a história política do ocidente. A publicação ora estampada, cuja unidade temática é manifesta, procura designadamente certificar mais uma vez que não cobra sentido lecionar nas escolas e academias jurídicas dos países da periferia outro Direito Constitucional que não seja o da democracia participativa, ao qual nossa Constituição, na esfera teórica, em parte já se incorpora ou pelo menos deita lá sementes de legítima soberania popular, que ja mais germinarão, todavia, se ficarem expostas à ação inclemente e es- terilizadora dos legisladores de mandato representativo. O velho e clássico Direito Constitucional do positivismo formalis- ta e burguês professa uma neutralidade normativista já em fase de dis solução, descrédito e desintegração. Essa fase foi introduzida por obra de um Executivo que desrespeita esse Direito a cada passo, e do qual ele se arredou por inteiro desde que caiu nos braços do neoliberalismo. A decadência do Direito Constitucional tem sido apregoada e ace lerada pelos globalizadores políticos que intentam por todos os meios demoli-lo, apagando-lhe as noções, falseando-lhe os conceitos, desmo ralizando-lhe os princípios, fragilizando-lhe as normas, quebrantando- lhe idéias, enfim, subtraindo-lhe juridicidade. Nunca, porém, a antiga disciplina das épocas pretéritas e progra- máticas do século XIX se mostrou em seus institutos tradicionais tão viva, tão prestadia, tão contemporânea, tão necessária que quando se associa à democracia de participação e é lecionada nas Faculdades de leis, vinculada a princípios e valores sem os quais não há hermenêutica constitucional, nem Estado de Direito, nem legítima separação de po deres, nem controle de constitucionalidade. Se lhe dermos, pois, o destino e a missão de inculcar nos cérebros da mocidade estudantil e universitária o compromisso com a democra cia e com o Estado constitucional, não haverá matéria mais relevante nos currículos jurídicos ou que lhe exceda a importância, a dignidade, o prestígio. INTRODUÇÃO 9 O novo e remodelado Direito Constitucional é tão guardião do re gime quanto as cortes constitucionais o são, porquanto nele se sedi menta, com o homem-cidadão, a consciência de salvaguarda da ordem jurídica, sob a superintendência de valores e postulados pertinentes à justiça, à liberdade e à democracia. Se o Direito Constitucional morreu para os neoliberais, ressurrec- to nós o vemos, todavia, entre quantos se empenham em fazê-lo uma ferramenta de sustentação da identidade nacionale dos poderes de so berania. E, do mesmo passo, entre aqueles que se declaram leais a um sistema de normas superiores e fundamentais, um sistema cujo Direito vai ao campo de batalha e não retrocede nem na doutrina nem nos con ceitos. E esta a missão, a causa, a tarefa que se lhe impende atribuir. Em verdade, não podemos nem devemos pensar unicamente com as categorias ideológicas e políticas do Primeiro Mundo, porquanto es tas nos aparelham, não raro, a ruína social, a dependência, a recoloni- zação e a terceirização ideológica de valores. Esses valores nem sem pre são os nossos. De tal sorte que com eles apenas as elites do status quo costumam identificar-se ou comprometer-se. Se os punhais do neoliberalismo assassinarem a doutrina de uma tão redentora forma de justiça distributiva, que é o Estado social, a Na ção reagirá para fazer o milagre de sua ressurreição. O mesmo se diga com respeito à Constituição e à soberania. Democracia participativa e Estado social constituem, por conse guinte, axiomas que hão de permanecer invioláveis e invulneráveis, se os povos continentais da América Latina estiverem no decidido propó sito de batalhar por um futuro que reside tão-somente na democracia, na liberdade, no desenvolvimento. Toda a substância teórica do nosso pensamento em matéria cons titucional e política fica, de conseguinte, condensada nestas páginas da maneira mais clara e sucinta possível, consolidando ao mesmo tempo teses de que jamais nos afastamos. São as mesmas daqueles que, por dever de cidadania e lealdade às instituições da democracia, porfiam no mesmo campo de oposição, luta e resistência à tormenta alienante, avassaladora e colonialista do neoliberalismo e da globalização. Dizer que a democracia é direito da quarta geração, qual o fiz em Foz de Iguaçu, na Conferência final da XIV Conferência Nacional de Advogados, em 1992, não basta. Faz-se mister ir além. Urge, assim, tomar explícitos os meios téc nicos de realização e sustentação desse direito principiai nos países da 10 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA periferia, onde as três gerações ou dimensões de direitos fundamentais não lograram ainda concretizar-se na região da normatividade. É essa, indubitavelmente, a grande tragédia jurídica dos povos do Terceiro Mundo. Têm a teoria mas não têm a práxis. E a práxis para vingar diante da ofensiva letal dos neoliberais precisa de reforma ou renovação de modelos teóricos. E isto o que se propõe com o Direito Constitucional de luta, com a Nova Hermenêutica, com a repolitização da legitimidade. Tudo quanto ocupa, pois, o espaço destas páginas assinala o pensamento que nos guiou, a constante que nos inspirou ao elaborar esta obra. Com efeito, não estamos a escrever a proposta nem a minuta de um tratado de paz com a ideologia neoliberal senão que lhe fazemos uma declaração de guerra. Declaração formal, mesmo. E a tomamos extensiva a quantos se bandearam para as facções globalizadoras e puseram em risco de vida a Constituição, a soberania, a identidade nacional. A esta altura não podemos deixar de assinalar que há quatro prin cípios cardeais compondo a estrutura constitucional da democracia par ticipativa, cada qual com sua peculiaridade conceituai na contextura desse sistema. São eles, respectivamente, o princípio da dignidade da pessoa hu mana, o princípio da soberania popular, o princípio da soberania nacio nal e o princípio da unidade da Constituição, todos de suma importân cia para a Nova Hermenêutica constitucional, de que tanto já nos ocu pamos em nosso Curso quando versamos a inteipretação da Constitui ção e dos direitos fundamentais. Com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, funda menta ele a totalidade dos direitos humanos positivados como direitos fundamentais no ordenamento jurídico-constitucional. Esse princípio aumenta cada vez mais de importância ao verificar- se que resume e consubstancia por inteiro o teor axiológico e principio- lógico dos direitos fundamentais das quatro dimensões já conhecidas e proclamadas. Por ele as Constituições da liberdade se guiam e se inspiram; é ele, em verdade, o espírito mesmo da Constituição, feita primacialmen- te para o homem e não para quem govema. É, enfim, o valor dos valores na sociedade democrática e partici pativa. Já o princípio da soberania popular compendia as regras básicas de governo e de organização estrutural do ordenamento jurídico, sen INTRODUÇÃO I I do, ao mesmo passo, fonte de todo o poder que legitima a autoridade e se exerce nos limites consensuais do contrato social. Encarna o princí pio do governo democrático e soberano, cujo sujeito e destinatário na concretude do sistema é o cidadão. Atribui-se, por conseguinte, nesse livro, extrema importância à defesa e salvaguarda do mais ameaçado e comprometido dos princí pios que organizam a vida nacional e preservam a nossa identidade de mocrática, a saber, o princípio da soberania popular - de último, nas duas Casas do Congresso Nacional, tão desfigurado, tão atraiçoado, tão ferido pela covardia dos quadros representativos, os quais, em aliança com o Executivo, consentem que este leve a cabo a tarefa de despeda çar a Constituição e as leis. Em suma, o princípio da soberania popular é a carta de navegação da cidadania ramo às conquistas democráticas, tanto para esta como para as futuras gerações. Desse princípio, explícito na Constituição, infere-se outro, de na tureza não menos substantiva, ou seja, o princípio da soberania nacio nal, com que se afirma de maneira imperativa e categórica a indepen dência do Estado perante as demais organizações estatais referidas à esfera jurídica internacional. A soberania nacional nesta acepção nada tem porém que ver com outra doutrina professada durante a Revolução Francesa e que invoca va a Nação de maneira deveras ambígua por fundamento do poder su premo e base de legitimação do sistema representativo. A Nação, sede ali de um poder do qual o povo não era ainda titu lar efetivo, se fazia o órgão por excelência que retardava e escamotea va a universalidade do sufrágio com inibir o princípio da igualdade e tolher a concretização da própria soberania popular, enquanto parcela expressiva da vontade de cada cidadão, ou seja, daquele cidadão partí cipe na formação da lei e da autoridade governativa. E tudo isso acontecia porque a Nação era confusamente identifi cada numa visão arbitrária e ambígua com o terceiro estado, isto é, com a burguesia revolucionária, como o proletariado o fora, depois, com o Estado socialista da revolução soviética. Finalmente o princípio da unidade da Constituição se destaca por elemento hermenêutico de elucidação de cláusulas constitucionais. Compreende tanto a unidade lógica - hierarquia de normas oriun da da rigidez constitucional - como a unidade axiológica - ponderação de valores, proveniente da necessidade de concretizar princípios ins culpidos na Constituição. 12 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA A unidade lógica se exprime através de uma unidade formal de normas dispostas em seqüência hierárquica. Com respeito à unidade axiológica, manifesta-se ela mediante uma unidade material de valores e princípios, que são a essência, o espírito, a substância mesma da Carta Magna. Os quatro princípios acima expendidos e declinados somente hão de prosperar numa sociedade aberta, onde os instrumentos e mecanis mos de governo não sejam obrepticiamente monopolizados e controla dos por uma casta política, cujos membros, à revelia do povo, se alter nam e permeiam no exercício da autoridade civil e governativa - sem pre a serviço de interesses concentrados e com esteio na força do capital. Atuam eles em função da ordem capitalista, não da coisa pública. De tal sorte que para lograr esse escuso objetivo se valem, ao mesmo passo, do mais poderoso instrumento de descaracterização da verdade e da legitimidade na sociedade regida pelo capital. Reportamo-nos aosmeios de comunicação, a saber, as grandes empresas de jornais, as vas tas cadeias de rádio, as poderosas redes de televisão, as quais, submis sas ao capital e ao poder que lhes ministram copiosos subsídios de pu blicidade paga, se transformam numa usina ou laboratório onde se fa brica o sofisma da opinião pública (opinião publicada e informação di vulgada) e se legitimam as mais absurdas políticas de governo, contra riando o interesse nacional e destruindo as células morais do ente cívi co que é a polis. A mídia escravizada ao capital deforma, entorpece e anula a livre vontade, o livre raciocínio, a livre consciência do ser político, rebaixa do a cidadão nominal, a cidadão súdito, a cidadão vassalo - que enor me contradição isto representa! E assim as ditaduras constitucionais sobem ao poder e nele se conservam ostentando a imagem da pseudo- democracia e do pseudo-regime representativo. O povo que não é povo, a multidão que não é gente, a massa que se deixou domesticar, a classe média que já não tem influição no poder e jaz oprimida, o proletariado que perde cada vez mais a capacidade de luta e é perseguido no salário configuram o retrato social da falsa repú blica onde desde muito não sobrerrestam senão traços ou vestígios de cidadania A razão mutilada do homem-povo sem pensamento autodetermi nativo e com a vontade anulada pela torrente de valores dirigidos que lhe foram passados na onda informativa inassimilável, fixa o sombrio quadro de uma nação moralmente dissolvida, decomposta, onde os se INTRODUÇÃO 13 nhores da mídia, freando a repercussão dos fatos e deturpando a infor mação, são também os senhores daquele poder suscetível de aniquilar e interceptar, pelo silêncio imposto e pelas omissões propositadas, to dos os canais de comunicação das lideranças democráticas com o povo, não podendo este, assim, ser libertado das pressões reacionárias e da permanente agressão capitalista aos direitos da terceira geração. Tendo ao seu dispor a máquina da informação com que intentam dar aparência de legitimidade aos seus interesses, os estamentos de do minação têm tudo com que perpetuar a servidão social e o confisco dos direitos de expressão. Há algum tempo, em debate com os magistrados de meu país, dis se que a mídia brasileira estava prisioneira no cárcere das elites e que era preciso libertá-la e restituí-la ao povo, ou seja, à legitimidade de sua vontade. Vamos, portanto, descerrar os ferrolhos do ergástulo e abrir na Constituição uma artéria normativa de controle, que afiance pelo con curso da mídia emancipada a livre expressão material das idéias e do pensamento - a saber, um canal por onde possam circular sem estorvos e sem alienações e sem embargos à formação da alma coletiva os pode res incorporados nas liberdades públicas e nos direitos fundamentais. Aquela assertiva, mais do que nunca, na hora de teorizar a demo cracia participativa, é de imensa veracidade para o País. Constitucionalizar a mídia como um dos poderes da república - mas poder democrático e legítimo - é, por sem dúvida, o mais urgente e inarredável requisito da democracia participativa. Poder-se-á, até, dizer pressuposto ou condição sine qua non de ins talação desse regime, se o quisermos como realidade, e não como farsa ou burla conforme tem acontecido com o sistema representativo. A teoria constitucional da democracia participativa é, portanto, o artefato político e jurídico que em termos de identidade há de criar en tre nós o Brasil do povo, o Brasil da democracia nacional e nacionalis ta, o Brasil que nos sonegaram. Compendia-se, assim, um novo Estado de Direito retraído dos pri vilégios da classe dominante, que devem ser abolidos, e refratário à hegemonia dos corpos representativos sem representação e sem legiti midade - enfim, algo significativo de uma abertura mais ampla no uni verso de nossa organização política e social. Será este futuro e reformado Estado de Direito a réplica da cons ciência popular, disposta a desatar os laços já seculares da deplorável 14 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA dependência em que temos invariavelmente vivido, mergulhados na submissão ao capital estrangeiro e ao seu imperialismo de expansão e confisco das riquezas nacionais. Não tem sentido teorizar aquela democracia nem propugnar este Estado de Direito se não houver um alvo superior, volvido para a pro blemática histórica da sociedade brasileira, sociedade agredida siste maticamente, de maneira cada vez mais violenta e atroz, por forças ex- temas de dominação. O País sabe, sem dificuldade, identificar essas forças, porquanto se acham elas mancomunadas com as mesmas elites que escreveram no passado e continuam escrevendo no presente páginas de opróbrio e traição. Todas as épocas coloniais, imperiais e republicanas da nossa his tória estampam o selo ou trazem o testemunho dessa capitulação. E estigma e vergonha e vilipêndio de uma decadência em curso, que terá remate unicamente se despertarmos os órgãos da nação viva para uma ação revolucionária de combate e resistência às formas clás sicas de opressão. Faz-se mister, por conseguinte, o abraço de solidariedade do estu dante com o trabalhador, da classe média com o estamento obreiro, da nação com a sociedade, a fim de que se possa, de uma vez por todas, extirpar as raízes da crise constituinte, que outra coisa não significa nem representa senão o quebrantamento e a depravação do contrato so cial por fórmulas políticas e desmoralizadas de governo, adversas aos interesses, às exigências e aos valores da nacionalidade e do povo, no meadamente aqueles cristalizados na sua soberania e conservação. As letras jurídicas carecem, pois, de renovação e rumos. A teoria constitucional da democracia participativa segue a trilha renovadora que fará o povo senhor de seu futuro e de sua soberania, coisa que ele nunca foi nem será enquanto governarem em seu nome privando-o de govemar-se por si mesmo. O povo da democracia participativa é o povo que iluminou a cabeça de Lincoln quando ele definiu democracia - o governo do povo, para o povo e pelo povo. Há demagogia nisso? Não. Há verdade e certeza. Os hipócritas da classe dominante ocultaram nas vestes represen tativas da vontade popular, falseada durante séculos, sua sagrada alian ça com o capitalismo. Usufrutuários de um poder usurpado, intentam hoje, mediante a implantação ideológica do neoliberalismo, revogar a dialética e a his INTRODUÇÃO 15 tória, paralisando o mundo na eternidade da globalização como status quo da injustiça e das desigualdades sociais. A escravidão pode hastear pois essa bandeira; a liberdade e a democracia jamais. Em suma, é de assinalar que para uma certa corrente de publicis tas empenhados em propagar a doutrina globalizadora do neoliberalis mo, determinados conceitos, quais os de soberania, Estado, Nação e Constituição estariam recebendo já a extrema-unção na teoria contem porânea do Poder e do Direito. Com efeito, o fluxo de interesses e relações que dominam a esfera global inaugura uma nova fase dialética no campo da economia capita lista, decretando, de maneira supostamente irreversível, o declínio e a próxima mina daquelas idéias-chaves e dogmas institucionais. O Estado constitucional, o Estado nação, o Estado soberano, o Es tado de Direito da idade moderna têm sobrevivido com dificuldade às crises universais do capitalismo. Trata-se, em verdade, de um modelo de economia cujos abalos se fazem sentir com mais dano, força e intensidade nos países do Terceiro Mundo, onde provocam um cortejo de tragédias e violências, que vão de agressões políticas, intervenções militares, golpes de Estado e dita duras a capitulações econômicas e financeiras, já na iminência de de sembocarem num processo ativo e imediato de recolonização. Todas essas comoções introduzem, de conseguinte, a filosofia de força, injustiça e privilégio, típica daquele sistema de dominação que invade o mundo contemporâneona dimensão globalizadora e neolibe- ral, e o fazem com o mesmo espírito reacionário e restaurador da Santa Aliança, durante a segunda década do século XIX, após o colapso dos exércitos de Napoleão. Com efeito, é de assinalai- que na França revolucionária, em sua fase áurea de expansão, o poder conquistador, depois desfalecido, con duzira na cabeça de seus comandantes a disciplina do soldado, mas na retaguarda social o que prevalecera fora o pensamento regenerador da Revolução Francesa e da pólis burguesa acompanhando a marcha dos granadeiros. A Santa Aliança pós-napoleônica significava, portanto, a vitória aparente do absolutismo restaurado mas decrépito que se estampava na fórmula política dos tronos constitucionais e das Cartas outorgadas. No fundo o que preponderava, contudo, era o sonho de liberdade dos filósofos contratualistas dominando a cena constitucional e dissol 16 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA vendo, com o compromisso das Cartas, a fereza do projeto autoritário, repressivo e restaurador das realezas de direito divino. A recaída no passado havia sido impossível. Tinha por óbice maior o fato histórico que fora a Revolução Francesa. Expatriar e exilar no rochedo de Santa Helena o autor do Código não constituiria nenhuma dificuldade; mas revogar da lei civil os prin cípios ali introduzidos não cabia no poder nem na jurisdição das mo narquias nostálgicas, confederadas num pacto de reação; e foi este o Congresso de Viena, impotente para deter o triunfo j useivilista do Có digo, que inaugurava a sociedade construída pela burguesia segundo as idéias da Revolução. Cimentava-se, portanto, um sistema de organização social confor me valores novos, sem nenhuma analogia, compromisso ou vínculo com o ancién régime. Tomando, porém, aos nossos tempos de globalização, o Consenso de Washington tem no chefe do FMI um Mettemick que não faz a di plomacia dos tratados mas a política de força das sentenças financeiras com que o capitalismo avassala, derrota e até mesmo destrói a econo mia de paises onde os direitos da terceira geração jamais chegam se não por imagem retórica de um discurso compendiado na falsidade de promessas desenvolvimentistas bem como na frouxidão das teses ca- ducas do neoliberalismo, desamparadas da verdade pela evidência dos grandes retrocessos e fracassos sociais de nosso tempo. A pax universal de Kant, tão distinta, de inspiração e índole, desta que nos querem ditar os globalizadores contemporâneos é, por sem dú vida, do ponto de vista da democracia participativa e de seu programa humanista a única aceitável, e a mais límpida e bem formulada por um filósofo. Cuidar que a globalização veio para ficar qual ela se apresenta, e que seu advento constitui uma fatalidade, é equívoco deplorável. Mas sustentar, ao mesmo passo, que ela contradiz a soberania e, por isso mesmo, esta deve acabar para não servir-lhe de obstáculo é laborar num perverso sofisma, tão perverso quanto aquele de certa teoria do positi vismo jurídico que, outrora, separava obstinadamente, por contraditó rios e inconciliáveis, os conceitos de legalidade e legitimidade. E tudo farsa e impostura na região do pensamento. A legitimidade da soberania, da nação, da ordem constitucional cifra ainda elevados valores históricos de referência inestimável para os povos da periferia, de que não podem estes apartar-se, porquanto, se INTRODUÇÃO 17 o fizessem, estariam cometendo um suicídio - e não há suicídio pior que o das instituições, porque quando as instituições desaparecem com elas desaparece também uma forma social de vida e organização, ex tingue-se um esquema de poder autodeterminativo do qual aqueles con ceitos eram a garantia, o cimento, o alicerce. O Direito Constitucional liberta, e se lhe destruirmos as bases, mi nando os seus princípios, como é da índole e natureza do processo glo- balizador e das categorias axiológicas do neoliberalismo, já não haverá povo, nem cidadania, nem nação; haverá, sim, legiões de súditos, coor- tes de homens resignados, debaixo da regência de um estatuto do po der, que será tudo, menos uma Constituição. Os acordos do FMI são as medidas provisórias da globalização, os decretos-leis da recolonização. Como obviar a essa desgraça política que nos faz recuar aos cam pos de batalha da História, a Porto Calvo e Guararapes, senão profes sando o magistério preventivo de um Direito Constitucional de liberta ção? Professamos, por conseguinte, o Direito Constitucional da demo cracia participativa. E, no Brasil, país da periferia, formaremos com esse Direito a consciência do homem livre disposto a levantar em solo nacional as mesmas divisas de nossos antepassados. O invasor não nos arrebatará as armas do pensamento. O Direito Constitucional na cabeça do cidadão, estudante de hoje e estadista do futuro, é a mais valiosa dessas armas. Esta portanto uma das razões de ser deste livro. Volvendo ao plano teórico e enfrentando um dos problemas cons titucionais mais graves que embargam o advento da democracia parti cipativa, faz-se mister, ainda, um amplo esclarecimento com respeito à despolitização da legitimidade. E fenômeno bem ao gosto dos neoliberais e de sua doutrina de senhorio absoluto, por via oblíqua, dos interesses sociais e da teieolo- gia do poder. Com efeito, a legitimidade tem-se apresentado, de último, nas re flexões jurídicas sobre a matéria, despolitizada, neutralizada e subsu- mida, por uma suposta evidência de sua identidade conceituai e axioló- gica com a legalidade, enquanto expressão formal e acabada do triunfo das ideologias liberais. Efetivamente, os juristas do positivismo alargando as expansões dogmáticas de seu devaneio juscientífico cuidavam que na Constitui 18 TEORJA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ção só havia juridicidade para as normas e não para os princípios, como se os princípios não fossem normas - aliás, as normas das normas, as mais excelsas do sistema. Foi isso que ocasionou a reação oposta e o ressurgimento, com toda a força e energia, do princípio da legitimidade. Aqueles arautos da razão, velhos conhecidos nossos, aferrando-se unicamente à legalidade, intentavam desterrar do sistema os princípios ou, pelo menos, ignorá-los, tolerando-lhe, apenas, a inserção nos códi gos do juscivilismo, qual a mais subsidiária das fontes hermenêuticas, aquelas de baixíssima densidade normativa. As Constituições, juridicamente menos importantes que as leis na época do liberalismo, retomam, porém, o seu lugar de culminância; o mesmo se diga da Hermenêutica constitucional ou, com mais proprie dade, da Nova Hermenêutica. E não tomam esse lugar como bandeiras arvoradas por uma meta física da liberdade, mas enquanto esteio e concreção dessa mesma li berdade cristalizada em princípios e valores que se fizeram jurídicos e não podem ser, portanto, removidos do vértice da pirâmide onde as senta a hierarquia das normas do ordenamento. Na esteira dessas fórmulas renovadoras a ciência constitucional avança e volta a reconstituir-se, sob a égide de um princípio de legiti midade repolitizado - único capaz de interessar e fazer bem aos povos excluídos da hegemonia. Nós o repolitizamos debaixo das inspirações de concretude de uma democracia participativa, de uma nova hermenêutica constitucional, de um novo conceito de associação política. Assim o fazemos combatendo o modelo de representação deriva do das Cartas Constitucionais, ou nelas posto com base tão-somente na força política das cadeiras parlamentares majoritárias; é modelo que há de ceder lugar a outro, de presença mais direta e efetiva da cidadania enquanto sujeito da vontade governativa institucionalizada por vias ple- biscitárias. A queda de legitimidade dos órgãos legislativos e executivos se faz patente, profunda, irreparável nos moldes vigentes. Urge introduzir pois o mais cedo possível a nova legitimidade, cuja base recomposta é, novamente, a cidadania, mas a cidadaniaredimida, sem os percalços que lhe inibem a ação soberana, sem a perversão representativa, sem o falseamento de vontade, sem as imperfeições conducentes às infideli dades do mandato e aos abusos da representação. INTRODUÇÃO 19 Legitimidade que mana, enfim, do cidadão erguido faticamente às últimas instâncias do poder, tendo de sua mão, por expressão de sobe rania, os freios à conduta e à política dos governos, que ele, o cidadão mesmo, como povo, há de traçar, sancionar e executar. Unicamente por esse caminho a democracia sairá do círculo vicioso onde se movem, à revelia e à distância do povo, as bancadas congres- suais e as organizações partidárias. Fora da repolitização da legitimidade, criadora de uma neocidada- nia governante, não há democracia participativa, nem lealdade políti ca, nem soberania dos postulados constitucionais. Todo o arcabouço jurídico-político do regime pende da realização de valores em que a identidade do povo, para ser legítima, é a identida de do cidadão - e cidadão é quem faz a vontade geral e concretiza o contrato social. Além dessa averiguação não há povo nem cidadania. Ora, na presente conjuntura, debaixo da “ditadura constitucional” que nos governa, e sob as rédeas de um Executivo onipotente, o siste ma representativo já não é a legitimidade despolitizada, mas a banda morta e podre da Constituição. E isto, pois, que nos faz clamar, em nome das garantias constitucio nais e das verdades esteadas em princípios e valores, por um sanea mento moral das instituições e das políticas governativas. E isto, também, que nos faz encarecer a necessidade de repoliti- zar, por meio da democracia participativa, o princípio da legitimidade. Princípio absurdamente postergado por quem se afez ao desrespeito contumaz das decisões judiciais envolvendo o direito adquirido, a coi sa julgada e o ato jurídico perfeito, e que só sabe legislar pela via usur- patória das medidas provisórias, exaradas com inobservância dos re quisitos constitucionais de urgência e relevância e ajuizadas - carentes de consistência - ao livre alvedrio da autoridade expedidora. Tais atos, por suas conseqüências, põem em risco a segurança constitucional e as bases do sistema. Em suma, a democracia participativa configura uma nova forma de Estado: o Estado democrático-participativo que, na essência, para os países da periferia é a versão mais acabada e insubstituível do Esta do social, este que a globalização e o neoliberalismo tanto detestam e combatem, argumentando contra todos os elementos conceituais de sua teorização. O Estado democrático-participativo organizará, porém, a resistên cia constitucional dos países da periferia arvorando a bandeira da so berania, da igualdade e da justiça social. 20 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Com o Estado democrático-participativo o povo organizado e so berano é o próprio Estado, é a democracia no poder, é a legitimidade na lei, a cidadania no governo, a Constituição aberta no espaço das ins tituições concretizando os princípios superiores da ordem normativa e da obediência fundada no contrato social e no legítimo exercício da autoridade. Ao Estado liberal sucedeu o Estado social; ao Estado social há de suceder, porém, o Estado democrático-participativo que recolhe das duas formas antecedentes de ordenamento o lastro positivo da liberda de e da igualdade. E o faz numa escala de aperfeiçoamento qualitativo da democracia jamais dantes alcançada em termos de concretização. O Estado democrático-participativo libertará povos da periferia, transformando-se em trincheira de sobrevivência, desafio e oposição às infiltrações letais da diátese globalizadora que mina o organismo das sociedades do Terceiro Mundo. O Estado democrático-participativo tem, por conseguinte, sua fór mula política mais acabada na expressão democracia participativa, que é a designação lingüística empregada nos textos desta Coletânea para versar esse conceito. Assim como há quatro gerações de direitos fundamentais, há, do mesmo passo, em igual sentido, cinco classes de Estado, que surgiram ou estão surgindo desde a queda das monarquias de direito divino. Compreendem em linha de sucessão histórica e de coexistência, não raro controversa e hostil, o Estado liberal, o Estado socialista, o Estado social, e, de último, na contemporaneidade da globalização, dois outros modelos desse Estado, a saber, o Estado neoliberal e o Estado neo-social - um reacionário, outro progressista; um já bastantemente formulado, outro apenas esboçado; um positivado, outro teorizado; um no Primeiro Mundo, outro na periferia. A quinta modalidade que prognosticamos e defendemos, ou seja, o Estado neo-social da periferia, ainda se acha em gestação nas refle xões dos cientistas políticos e constitucionais. Em nossa nomenclatura política ele se chama Estado democrático-participativo. Outra coisa não significa senão o Estado da democracia partici pativa, figura institucional fadada a libertar, se aplicada e concretizada com bom êxito, os povos periféricos. Em verdade é a única alternativa que se lhes apresenta, premidos pela ideologia neoliberal e globaliza dora da recolonização que os priva e destitui dos instrumentos de afir mação, sobrevivência e continuidade presentes nos conceitos de sobe rania, povo, nação, território e constituição. INTRODUÇÃO 21 Um Direito Constitucional de luta, uma Nova Hermenêutica, uma repolitização da legitimidade, eis as chaves teóricas que nos abrirão a porta à democracia participativa de libertação. Democracia dos povos da periferia e resposta política que eles devem dar às pressões neolibe- rais da recolonização e do projeto globalizador. Em todo sistema jurídico-constitucional do Estado de Direito con temporâneo, nascido à sombra dos postulados do contrato social, há, em rigor, três legisladores perfazendo as tarefas normativas do regime. Um legislador de primeiro grau que faz a norma fundamental - a Constituição. Sua autoridade depois remanesce no corpo representati vo, legitimado pela vontade constituinte. Mas remanesce como um po der jurídico limitado, apto a introduzir tão-somente as alterações que se fizerem mister ao estatuto fundamental com o propósito de aperfei çoar a Constituição e manter a estabilidade dos mecanismos funcionais de governo. E também para tolher, por via de emenda, reforma ou revi são, o advento das crises constitucionais, dando-lhes solução adequada e legítima. A seguir, depara-se-nos, em escala de verticalidade, o legislador de segundo grau, que faz a norma geral e abstrata, na qualidade de le gislador ordinário. Para desempenhar esse múnus constitucional rece be a colaboração do Poder Executivo, cujo Chefe sanciona ou não atos das assembléias parlamentares. Têm estas, porém, o poder de rejeitar o veto do presidente e resta belecer a vontade do órgão legiferante. Enfim, depara-se-nos o legislador de terceiro grau, no estreitamen to do funil normativo, a saber, o juiz, que dirime conflitos e faz a nor ma jurídica do caso concreto. Legisla entre as partes. Intérprete normativo no ocaso da velha dogmática jurídica, esse juiz tende, desde o advento da Nova Hermenêutica, a ser, com razão, o legislador por excelência; aquele que tanto na esfera tópica como siste mática dissolve as antinomias do positivismo ou combina, na concre- tude social e jurisprudencial, a doutrina com a realidade, o dever-ser com o ser e integrado aos quadros teóricos da democracia participativa terá legitimidade bastante com que coibir de uma parte as usurpações do Executivo, de outra as tibiezas e capitulações do Legislativo. So bretudo quando este, por omissão, se faz desertor de suas atribuições constitucionais. Assim, sob a égide de um Judiciário, guardião efetivo da supre macia constitucional e da ordem democrática, recompor-se-á a esfera de harmonia e equilíbrio dos Três Poderes. 22 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA A importância do juiz legisladorde terceiro grau avultará na prá- xis da democracia participativa do futuro, designadamente nas socie dades da periferia. E, de certa forma, se fará a expensas do legislador de segundo grau, cuja servidão ao Executivo, na conjuntura contempo rânea do neoliberalismo e da globalização, configura já a decadência do ramo representativo do poder, prisioneiro das elites e, não raro, de seus egoísmos e interesses adversos ao País. Demais, a par da verticalidade legislativa do sistema, poder-se-á também com a democracia participativa traçar um círculo normativo de legitimidade, cujo percurso o intérprete faz, tendo por ponto de par tida a obra do constituinte, passando deste à do legislador quando faz a lei ou reforma a Constituição, até chegar, finalmente, ao juiz que esta tui a regra do caso concreto, coroando dessa maneira a concretude jurí dica do sistema sob a égide dos princípios e dos valores cardeais do ordenamento. O juiz da democracia participativa não será, como no passado, ao alvorecer da legalidade representativa, o juiz “boca da lei”, da imagem de Montesquieu, mas o magistrado “boca da Constituição” e do con trato social; aquele que figuraria decerto na imagem de Rousseau redi vivo. Ministra a democracia participativa por conseguinte mecanismos de exercício direto da vontade geral e democrática suscetíveis de res taurar e repolitizar a legitimidade do sistema. Na pirâmide da relevância institucional haverá, com o Estado de mocrático-participativo, uma transformação substantiva e axiológica do papel do magistrado, decorrente da maior abertura e democratização do Poder Judiciário. A concepção do juiz intérprete que, ao decidir, normatiza, ocorre em substituição daquela do juiz mero aplicador de leis que, ao senten ciar apenas deduz e subsume, segundo o entendimento axiomático-de- dutivista do positivismo e da dogmática jurídica tradicional das épocas em que imperava sobretudo o princípio da legalidade. Contrasta esse entendimento com a noção tópica, indutiva, eurís- tica e criativa da Nova Hermenêutica, contemporânea, do Direito, se gundo a qual o juiz intérprete, ao estabelecer a norma, é legislador. Le gisla entre as partes e o faz não propriamente sob a égide do legalismo puramente formal e rígido, mas do legitimismo principiológico e mate rial, onde o direito vivo, se a realidade e os princípios falarem mais alto, decreta sua prevalência sobre a regra oxidada do direito vigente de vestes formais. INTRODUÇÃO 23 Enquanto o juiz aplicador se guia por um logicismo que gira pri- macialmente ao redor da norma-texto da terminologia de Müller, o juiz intérprete haure sua maior força e dimensão hermenêutica na esfera dos princípios, mas se move tecnicamente no círculo de um pluralismo nor mativo tópico onde a norma-texto é apenas o ponto de partida da nor- matividade investigada e achada ao termo do processo decisório con creto, segundo assinala a teoria estruturante do Direito, da qual Frie- drich Müller, já citado, é seu mais insigne formulador e jusfúósofo. Ao juiz da lei sucederá o juiz da Constituição. Ao juiz da legalida de, o juiz da legitimidade. Ao juiz da pré-compreensão de classe, o juiz da pré-compreensão da sociedade. Por essa via o povo chegará ao poder, a sociedade à regeneração e o Estado e a Nação, abraçados com a cidadania, à execução e obser vância do contrato social. Enfim, a teoria material da Constituição tem por órgão auxiliar importantíssimo, de concretização da democracia participativa, a Nova Hermenêutica. Ela repolitiza a legitimidade do regime. Ela introduz efi cazmente no universo das políticas governativas a presença do supre mo poder decisório, de todo cifrado no exercício direto da soberania popular consubstanciando a vontade constitucional da Nação. Se este for o caminho trilhado a crise constituinte será uma página a menos na literatura do absolutismo. E nunca mais, ao livro de dor e revolta em que se lêem as felonias perpretadas pela classe dominante contra a Constituição, o Direito e a Liberdade, hão de acrescentar-se novos capítulos. O Estado democrático-participativo conduzir-nos-á, ao mesmo passo, ao Estado de Direito da terceira dimensão, mais seguro, mais aperfeiçoado e mais sólido na garantia das liberdades que o tradicional Estado de Direito do liberalismo - o da primeira dimensão - ou que aquele outro, que o neoliberalismo está arruinando, o da segunda di mensão, gerado nas entranhas do Estado social. Vamos recriar pois a república no Brasil; uma república que seja verdadeiramente da democracia, da justiça social, do Estado de Direito e da legitimidade; uma república, como asseverou Rui Barbosa, que doravante conheça “o seu foro e a sua lei”. Ao seu foro - disse literal mente o constitucionalista baiano - “serão citados todos os poderes, em nome da Constituição” e “pela sua lei serão refreados todos os po deres, que à Constituição não obedecerem”, rematou o imortal jurista do habeas corpus. 24 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Esta a república que queremos legar às futuras gerações, no pata mar da liberdade, e não aquela das medidas provisórias, dos atos ple- biscitários refalsados, das miniconstituintes e do neocolonialismo, no patamar da servidão. A democracia participativa, de linhas gerais traçadas ao longo das páginas desta Coletânea, há de representar, na teoria constitucional, o consenso dos regimes do Terceiro Mundo. Demais disso, é de assinalar que essa democracia já é direito posi tivado no parágrafo único do art. 1“ da Constituição. Mas resta inani mada e programática naquele dispositivo tutelar, por obra do silêncio, da omissão, do egoísmo e das deserções dos dois Poderes que legislam e governam o País. Se este pequeno livro puder ministrar alguma ajuda com que concretizá-la, não o teremos elaborado em vão. Capítulo 1 O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: UM DIREITO DE LUTA E RESISTÊNCIA Não há teoria constitucional de democracia participativa que não seja, ao mesmo passo, uma teoria material da Constituição. Uma teoria cuja materialidade tem os seus limites jurídicos de eficácia e apli cabilidade determinados grandemente por um controle que há de com binar, de uma parte, a autoridade e a judicatura dos tribunais constitu cionais e, doutra parte, a autoridade da cidadania popular e soberana exercitada em termos decisórios de derradeira instância. Nisso reside a essência desse figurino de constitucionalidade que há de ser o mais democrático, o mais aberto, o mais legítimo dos mo delos de organização da democracia emancipatória do futuro nos paí ses periféricos. E, aliás, o único modelo capaz de pôr cobro ao ludibrio do poder popular, sempre objeto das alienações e descumprimento de sua vonta de por outra vontade que, ocupando e dominando as Casas representa tivas, posto que derivadas daquela, invariavelmente o tem negado, des troçado ou atraiçoado. Tal acontece em virtude do processo de distor ção e falseamento daquela vontade desde as suas nascentes. Os vícios eleitorais, a propaganda dirigida, a manipulação da cons ciência pública e opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de in formação, a serviço da classe dominante, que os subornou, até as ma nifestações executivas e legiferantes exercitadas contra o povo e a na- Ção e a sociedade nas ocasiões governativas mais delicadas, ferem o interesse nacional, desvirtuam os fms do Estado, corrompem a moral 26 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA pública e apodrecem aquilo que, até agora, o status quo fez passar por democracia e representação. Esse quadro se desenha sempre com vivas cores e máxima fre qüência nos sistemas constitucionais de ditadura dissimulada, quais os da América Latina, onde o mandato, por excesso de continuidade e re novação indefinidas, perde já as características republicanas, como no caso do Brasil e do Peru, e se reveste cada vez mais de um teor usurpa- tório, de confisco da vontade populare de transmutação da chamada democracia representativa em simulacro de governo popular. Demo cracia onde o baixíssimo grau de legitimidade participativa certifica a farsa do sistema, assinalando o máximo divórcio entre o povo e as suas instituições de Governo. Quem é o povo, e onde está o povo, nessa forma de organização em que o ente político é objeto e não sujeito, e se viu privado, pela extorsão política, da titularidade de suas faculdades soberanas? Nin guém sabe responder. A indagação em parte havia sido dantes formulada com extrema acuidade por Friedrich Müller num de seus mais recentes ensaios de filosofia política, estampado em língua portuguesa. Saber quem é o povo tem enorme importância e atualidade nesta ocasião em que a soberania, clamando por socorro, agoniza nos países do Terceiro Mundo. Seu debate faz-se, de conseguinte, imprescindível na organização da resistência e na construção de um dique aos desígnios da inconfi dência tramada e executada pelos usufrutuários da globalização e pe los cafres nacionais da recolonização; neles se incluem, por igual, os juristas do neoliberalismo e da sua ideologia de refalsada e aparente neutralidade. Retorquir àquela indagação ficou de último, como se verifica, mais difícil porquanto o povo da pseudodemocracia vigente na era da globa lização não é verdadeiramente povo. Os teoristas da reação, recrutados e instruídos politicamente, como todos sabem, nas academias do neoliberalismo, buscam com todo em penho legitimar uma globalização injusta que está sendo imposta de forma desfigurada e degenerativa aos povos do Terceiro Mundo. Seu povo é tão-somente a caricatura de um ícone; ontem, estan darte de libertação, hoje, por via paradoxa, insígnia e fraude de tiranos e ditadores. Dissimulando o seu poder em vestes constitucionais nos países que o totalitarismo do capital governa, os ditadores da Carta Magna, de O n iR F IT Ifc<griM ST m .lf W > N A I.D A»r)F*d(BnR.AClA PA R T iriPA T IV A 27 mãos dadas com os globalizadores - seus patrões internacionais - pri- vatizam, desnacionalizam, desfederalizam e, ao mesmo tempo, opri mem o povo, esfacelam a unidade espiritual dos universos éticos e so ciais, submetem os territórios recolonizados à servidão das finanças externas, anulam o pouco que ainda sobrerresta de esperança política e jurídica de sobrevivência e embargam e sabotam e bloqueiam até mes mo a reinserção plena da Sociedade e do Estado na antiga e clássica democracia representativa, onde o povo dos países em desenvolvimen to conserva a forma e não a substância do poder democrático e republi cano. 2. Do ponto de vista teórico faz-se mister, portanto, acrescentar e admitir que a democracia participativa, sobre transcender a noção obs cura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativos, transcen de, por igual, os horizontes jurídicos da clássica separação de poderes. E o faz sem, contudo, dissolvê-la. Em rigor a vincula, numa fór mula mais clara, positiva e consistente, ao povo real, o povo que tem a investidura da soberania sem disfarce. Substitui-se assim, numa esfera renovadora, por outra concepção doutrinária a velha divisão de poderes de Montesquieu. O axioma da separação repousa agora numa distinção funcional e orgânica de pode res, que é a da democracia participativa, assentada com verdade, soli dez e legitimidade, sobre pontos referenciais de valoração cuja conver gência se faz ao redor de um eixo axiológico cifrado num único princí pio cardeal: o princípio de unidade da Constituição. Com efeito, esse princípio magno e excelso, comum a todo regi me constitucional legítimo, é, na forma, a unidade normativa da Cons tituição; e, na substância, a unidade espiritual da Carta Magna, ou seja, o espírito da Constituição em seus fundamentos invioláveis. Fora daí nada é constitucional. Tudo se subsume ou se desfaz em infração e quebrantamento da Lei Magna, em ofensa à ordem superior de seus valores básicos, em postergação da hierarquia normativa, em ilegitimidade insanável, em corrosão do sistema consensual de poder. Em suma, é possível também condensar noutras palavras o mes mo conceito da seguinte forma: a unidade da Constituição, qual a con cebemos, vista pelo prisma formal, é uma hierarquia de normas que estabelece a rigidez e, a partir daí, a superioridade da lei constitucional sobre a lei ordinária, garantindo, desse modo, a segurança jurídica e, ao mesmo passo, a estabilidade do ordenamento; vista porém pelo pris ma material, por sem dúvida o mais importante, a mesma unidade da 28 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEM €>CM «A#>?H<^PATIVA Constituição é maionnente uma hierarquia de normas visualizadas pe los seus conteúdos e valores. Estes amparam a legitimidade do ordenamento constitucional, cujo fim já não é, apenas, aquela segurança, de todo formal, senão também a justiça substantiva, a justiça material, a justiça que se distribui na so ciedade, a justiça em sua dimensão igualitária; portanto, a justiça in- corporadora de todas as gerações de direitos fundamentais; da primeira à segunda, da segunda à terceira e desta à quarta, passando pelos direi tos civis e políticos, pelos direitos sociais, pelo direito dos povos ao desenvolvimento, até alcançar, com a democracia participativa, onde têm sede os direitos da quarta geração - sobretudo o direito à democra cia - um paradigma de juridicidade compendiado na dignidade da pes soa humana. Essa dignidade consubstancia, por inteiro, a ordem axiológica do regime e das instituições; é o supremo valor onde jaz o espírito da Constituição. O quebrantamento do espírito da Constituição configura a maior das inconstitucionalidades. As políticas de governo, ofensivas do di reito popular e da soberania do país, se não forem tolhidas pela via judicial de controle - o que só nos parece possível numa democracia participativa - legitimam o direito de resistência, bem como a desobe diência civil, por derradeiras instâncias de defesa do povo agredido. Assim há de ser naquela forma de democracia cujas Cortes solve- rão conflitos constitucionais empregando princípios interpretativos des conhecidos à hermenêutica clássica, quais, por exemplo, entre outros, o princípio da proporcionalidade. Com tais categorias hermenêuticas se faz, por conseguinte, a pon deração de valores, no intuito primacial de assegurar uma ordem jurí dica mais justa, impossível de estabelecer ou introduzir se não houvesse uma nova hermenêutica constitucional acostada a valores e princípios. E a hermenêutica da justiça, da materialidade normativa, da con- cretude jurídica do poder popular, da realização moral do princípio da dignidade da pessoa humana naquele gênero de democracia. Se as garantias participativas asseguradas materialmente nessa nova categoria ou espécie de Estado democrático de Direito não preva lecerem, ou forem embargadas, a sobredita hermenêutica constitucio nal perderá seu fim e significado e o espírito da Constituição logo che gará ao seu termo como princípio de legitimidade, da mesma forma que aconteceu com o espírito das leis (título da obra capital de Montes- O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 29 quieu) enquanto princípio da legalidade, arruinado com a decadência do constitucionalismo burguês da sociedade de classes, que foi a socie dade da época do liberalismo. 3. O constitucionalismo da democracia participativa é o mesmo constitucionalismo de luta que prevaleceu no ocidente quando os paí ses do Primeiro Mundo proclamavam repúblicas, promulgavam Cons tituições ou, em evasivas conservadoras de apego e afeição ao passa do, instalavam monarquias constitucionais, afiançando a sobrevivência política dos tronos e das dinastias ameaçadas. É por igual, doravante, o constitucionalismo dos países da perife ria onde o espírito da Constituição tem o mesmo sentido histórico que teve o espírito das leis no século da revolução, quando a França liqui dou o absolutismo. O Espírito das Leis,de Montesquieu, e o Contrato Social, de Rousseau, foram as obras mais influentes e clássicas na elaboração da doutrina do velho liberalismo e sua ideologia de mutação das bases so ciais em proveito da nova classe dominante. A máquina do poder absoluto e dos privilégios feudais, mantida e criada pelo ancién régime, e pela arrogância de seus reis de direito di vino, desmantelou-se e produziu um estrondo cuja ressonância chega aos nossos dias, e ainda perdura com a memória dos eventos revolucio nários daquela época. As nações do Velho Mundo, durante aquela idade de mudança e rebelião social, espargiam o sangue de seus povos nas guerras civis do Continente. Eram guerras de inspiração libertária, nascidas das idéias propagadas e propugnadas pelos publicistas e filósofos da Revolução Francesa. As invasões napoleônicas, estendendo-se por toda a Europa, se tomaram, depois, deveras significativas a esse respeito. A ditadura im perial, tomando a forma do passado, conduzia, porém, as sementes que germinavam o futuro. O presente se consagrava mediante o Código e o porvir mediante a Constituição. O braço dos granadeiros de Napoleão levava oculto, a cada país conquistado, o pensamento constitucional da liberdade. Era o paradoxo da passagem de um extremo a outro, conti do e incubado na fereza do antigo general da Convenção que fez as campanhas da Revolução e, com suas armas, decretou o fim das socie dades feudais. O seu Código era a base jusprivatista de organização da sociedade civil, estabelecida segundo um método novo e revolucioná rio, que enfraquecia, de maneira definitiva, o poder da nobreza e dos reis do absolutismo. 30 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 4. Se traçamos o quadro acima o fizemos tão-somente no intuito de patentear quanta analogia e semelhança se pode extrair da lição da quele tempo, e com ela fundamentar a justiça da causa constitucional dos povos do Terceiro Mundo. Não podem eles desfazer-se, portanto, dos conceitos trazidos e inspirados pela ideologia libertadora do sécu lo XVIII. Hoje, mais do que nunca, são tais conceitos instrumentos de luta, de extrema valia e atualidade com que conjurar a queda irremissível do povo nos braços da recolonização. Uma recolonização aparelhada pela classe política dominante e por considerável parcela dos juristas a seu serviço, sem consciência do dano causado ao interesse nacional. Por conseqüência - tomamos a reiterar - a bandeira da democra cia social e participativa é apresentada pelos globalizadores como ar caísmo político, que ainda faz arder a imaginação dos países do Ter ceiro Mundo. Todavia, é a doutrina do neoliberalismo que figura como a lâmina mais corrosiva e cortante que já se empregou para decepar a liberdade, a economia e as finanças dos povos da periferia. Nunca, jamais, aquela bandeira foi, porém, tão necessária de has tear e conduzir entre os povos do Terceiro Mundo quanto hoje. Arriá- la seria capitular, e capitular outro sentido não tem senão dobrar a cer- viz ao Poder Central da globalização reacionária, ora em curso. E ela que constrói a nova Roma neoliberal do capitalismo. No mundo da economia, das finanças e da política, a globalização significa, inequivocamente, a sujeição completa de todos os povos ao império das hegemonias supranacionais, enfeixadas na ideologia da pax americana. Houve quem já dissesse, com ironia e verdade, que o mundo todo está sendo colocado na gaiola da globalização. Afigura-se-nos todavia que a globalização fez duas gaiolas; uma, de luxo, toda especial - é mais um viveiro aberto, dotado de amplo e arejado espaço reservada aos povos do Primeiro Mundo; outra, pe quena, estreita, fechada, suja e obscura, destinada aos passarinhos do Terceiro Mundo. Ficam estes confinados nela para sempre. Quem ali entra há de entrar como as almas no infemo de Dante - ou seja, entram para viagem sem retomo. 5. As reflexões que ora fazemos legitimam, portanto, em nosso universo político, ou seja, em todas as esferas da nacionalidade, a ado ção imediata de um constitucionalismo de luta, de resistência, e de O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 31 ofensiva e libertação, que penetra a consciência nacional e se abraça com o mesmo fervor de proteção e o mesmo anseio de conquista, àque le que outrora instituiu as liberdades do Primeiro Mundo, nas pretéri tas épocas revolucionárias do século XVIII. Vamos, portanto, para o campo de batalha a fim de manter os di reitos sociais na teoria e concretizá-los, a seguir, com mais amplitude, na práxis, onde o neoliberalismo já os salteou com golpes mortais des feridos sem piedade. Vamos, também, para essa porfia de vida e morte a fim de que não se revoguem nem destrocem os direitos da terceira geração, a saber, o direito dos povos ao desenvolvimento, ou seja, o mais crepitante e o mais urgente dos direitos na versão social e universal da justiça iguali tária. Essa justiça é fadada a passar do indivíduo, do trabalhador e do cidadão às gentes sacrificadas da humanidade subdesenvolvida. Estamos, assim, em presença daquela humanidade cujos filhos via jam no comboio do progresso em vagão de terceira classe, isto é, nos últimos compartimentos da miséria social, do sofrimento, do abando no, da dor, do esquecimento. E a humanidade que tem os pulsos atados às algemas da globali zação neoliberal, a escravidão branca do século XXI. Vivem, assim, os povos periféricos num mundo de atraso, ódios, trevas e preconceitos; o mundo das perseguições sociais e das desigualdades iníquas que de sonram o século; o mundo onde a dignidade da pessoa humana é, to dos os dias, ofendida e conculcada. Enfim, quo vadis liberdade, justiça e democracia? O egoísmo, a traição, o elitismo dos privilegiados dominam os juristas da ditadura constitucional. E agora eu vos pergunto: tendes porventura respeito aos legisladores de gabinete, que redigem e fazem passar por lei as medi das provisórias inconstitucionais do governo da recolonização? Se não houvesse o horizonte da democracia participativa, para a qual se convocam, se recrutam e se arregimentam as falanges insubor- náveis da mocidade acadêmica e universitária, as esperanças de fazer sobreviver a Constituição, já grandemente destroçada e transgredida, seriam mínimas, com a situação constitucional do país para sempre comprometida. Ao grito de convocação, elas, parte pensante da consciência nacio nal, acudiram com sua presença, e aqui compareceram, contra a mídia do silêncio e da ausência, contra o Poder, contra as pressões reacioná rias da classe dominante, contra os interesses organizados, contra as 32 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA empresas do capital interno e externo. Atendendo às palavras convoca tórias do nosso apelo vieram a estes encontros e seminários ouvir e aplaudir a oração dos constitucionalistas da democracia e da liberdade. Constitucionalistas que vos são fiéis e não vos atraiçoam, qual soem fazer os juristas das medidas provisórias, os deputados e senado res das miniconstituintes, os demagogos dos plebiscitos inconstitucio nais, os autores de propostas desrespeitosas que afrontam os artigos cardeais da Constituição, designadamente aquele onde bate o coração da Lei Magna, que é o art. 60 da Constituição e seus intangíveis §§ lfi e 4a. 6. Distinguimos no constitucionalismo dos países ocidentais três modelos sucessivos de Direito Constitucional. Primeiro, um Direito Constitucional de geração originária, ou seja, o Direito Constitucional do Estado liberal. Teve ele a primogenitura da salvaguarda das liberdades humanas. Nasceu em sua rigidez formal na Europa, depois de banhar-se de san gue ao decurso das grandes tempestades e comoções revolucionárias do continente, sobretudo durante a Revolução Francesa. A seguir, após padecer mais abalos não menos traumáticos, quais os do México, da União Soviética e da República de Weimar, despon tou o Direito Constitucional de segunda geração, a saber,o Direito Constitucional do Estado social. Este, em termos institucionais propriamente ditos, aferidos pelo critério da estabilidade, só vingou em países do chamado Primeiro Mundo, porquanto foi neles que se introduziu de maneira mais viva, efetiva e menos programática o princípio igualitário. Todavia, tem-se observado ali, por derradeiro, a ocorrência de um Estado social regressivo, já na esfera teórica, já no patamar programáti- co. Tudo em conseqüência das formulações neoliberais da globalização. De tal sorte que o Direito Constitucional da segunda geração des- figurou-se e tomou, de último, a feição neoliberal, derivada no Primei ro Mundo da dissolução dos modelos sociais, da perda de expansão de seus valores, do discurso reacionário dos interlocutores do capitalis mo, que colocam, acima de tudo, nas perspectivas globais do progres so e da civilização, a dimensão das operações lucrativas, das finanças e dos altos interesses empresariais, criando, ao mesmo passo, nas extre midades da tecnologia avançada, esse sofisma de mercado que é a cha mada Nova Economia, a qual empurra, paradoxalmente, o Terceiro Mundo, pela via oblíqua das especulações, para o insondável abismo do neocolonialismo. O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 33 Trata-se, em verdade, de um Direito Constitucional avariado, de cadente, estagnado, que perde densidade institucional, normativa e ju- risprudencial à medida que a fusão federativa se acelera no Velho Con tinente. Tal se observa sobretudo nos países que estão prestes a formar uma espécie de Estados Unidos da Europa, algo que, somado à globa lização torna mais grave e delicado o problema de legitimidade criado por esse fenômeno. Contudo, o processo globalizador não nos envolve na fatalidade de um determinismo, conforme intentam fazer crer os que nos impe lem à retaguarda e à capitulação incondicional, desertando as esferas da política, da économia nacional, da identidade e da soberania. A Cartilha elaborada pelo Consenso de Washington é o breviário do neoliberalismo, o decálogo da recolonização. Podemos, por conseguinte, dizer com toda certeza que um Direito Constitucional atrelado à sua autodissolução, consoante nos querem impor, absolutamente não nos convém nem nos interessa, porquanto solapa todas as conquistas jurídicas e sociais da liberdade nos países do Terceiro Mundo. Acarreta, ao frágil constitucionalismo desses países, varridos por freqüentes crises constituintes, o pior retrocesso de todas as épocas constitucionais. Em razão disso, a resistência é tarefa de todos nós, que havemos de construir em bases teóricas, e depois trasladá-lo à prática, esse novo Direito Constitucional de terceira geração. Pretendemos, assim, na advocacia da liberdade e da Constituição traçar-lhe as linhas mestras, estabelecê-las com nitidez, dotá-las de po- sitividade, fazê-las uma revolução nos fastos do constitucionalismo, a fim de que alcancem, tão cedo quanto possível, um mais elevado nível de democratização da Sociedade. 7. Busca-se, como se vê, fundar o Direito Constitucional da de mocracia participativa. Com esse Direito, poder-se-á salvar, preservar e consolidar o conceito de soberania que a onda reacionária do neoli beralismo contemporâneo faz submergir nas inconstitucionalidades do Poder, até destroçá-lo por completo. A democracia participativa é direito constitucional progressivo e vanguardeiro. E direito que veio para repolitizar a legitimidade e re conduzi-la às suas nascentes históricas, ou seja, àquele período em que foi bandeira de liberdade dos povos. 34 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA A legitimidade formal, despolitizada, posta em bases procedimen tais, desmembrada de seus conteúdos valorativos, se encaixa bem nos desígnios subjacentes aos interesses neoliberais, por servir-lhes de cou raça, de antemuro, de escudo às suas posições contra-ideológicas, de suposta e falsa neutralidade. A democracia participativa combate a conspiração desagregadora do neoliberalismo e forma a nova corrente de idéias que se empenham em organizar o povo para apôr um dique à penetração da ideologia co lonialista; ideologia de submissão e fatalismo, de autores que profes sam a tese derrotista da impossibilidade de manter de pé o conceito de soberania. A obsolescência deste é proclamada a cada passo como ver dade inconcussa. A democracia participativa porém, se vingar, há de elaborar outro direito constitucional forjado na luta e na rejeição ao neoliberalismo da recolonização. As matrizes básicas de conceitos indeclináveis e inabdicáveis, quais os de soberania, nação e povo, serão zelosamente conservadas e amparadas, porquanto a privação desses pressupostos conceituais e or gânicos faria inexeqüível e obstaculizada toda marcha rumo a um Es tado de Direito de emancipação social, que a democracia representati va de fachada jamais fará possível. 8. A ideologia constitucional dos países do Terceiro Mundo há de ser, por inteiro, distinta da que ora prevalece no cognominado Primei ro Mundo. Se insistirmos em seguir à risca as transformações ali produzidas, por efeito de mudanças - processadas sempre no magno interesse de uma globalização concentradora de força, hegemonia e poder, restrita aos espaços confinados da central do capitalismo o constitucionalis- mo entre nós deixará de existir até mesmo como cópia de modelos ex ternos. Restará, tão-somente, a ficção e a caricatura de uma pseudo e evanescente soberania, escarnecida por conceito abstrato e sem con teúdo, a par da aceitação resignada da condição colonial irreparável. A chave constitucional do futuro entre nós reside, pois, na demo cracia participativa, que faz soberano o cidadão-povo, o cidadão-go- vemante, o cidadão-nação, o cidadão titular efetivo de um poder inva riavelmente superior e, não raro, supremo e decisivo. O cidadão, nesse sistema, é, portanto, o povo, a soberania, a na ção, o governo; instância que há de romper a seqüência histórica na evolução do regime representativo, promovendo a queda dos modelos O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 35 anteriores e preparando a passagem a uma democracia direta, de natu reza legitimamente soberana e popular. Em face desse contexto é de notar que a direção dos regimes poli- ticos tem obedecido a dois momentos culminantes na evolução do cons titucionalismo representativo. No primeiro momento avulta o legislador que faz a lei, inviolável e suprema. Consagra-se o princípio da legalidade. E a época em que prepondera o dogma do racionalismo político e jurídico, em que avulta a inspiração jusnaturalista, logo transmudado num positivismo a cami nho da máxima estabilidade. Com as instituições estáveis, por obra dos Códigos, que afiançam a fiel observância daquele princípio de legalidade, o princípio por ex celência da segurança jurídica, o Estado liberal entra a festejar a era de esplendor de sua ideologia jusprivatista. No segundo momento a revolução contemporânea dos direitos fundamentais elevados à categoria de princípios, e grandemente des providos já de seu teor meramente subjetivista, peculiar à versão libe ral de poder e direito, fez despontar a definitiva supremacia normativa da Constituição sobre a lei. Formulou-se então o princípio de constitu- cionalidade, e introduziu-se a idade nova dos valores e princípios, que determinam a nova base de normatividade dos ordenamentos jurídicos e, ao mesmo passo, o advento da Constituição aberta. Em rigor, Constituição aberta de modo algum, nesse âmbito con ceituai, significa perda da rigidez da Constituição. A rigidez garante o funcionamento normal de mecanismos sem os quais não há superioridade das normas constitucionais nem se toma eficaz, nem exeqüível, o controle de constitucionalidade. Um terceiro momento, todavia, já se vislumbra com formação de uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos clássicos. Pertence à democracia participativa e fazdo cidadão-povo a medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba-se então a intermedia ção representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrá tica do cidadão - meio povo, meio súdito. De todos os períodos constitucionais, o mais crítico é o da demo cracia constitucional, porque decide do destino e do futuro dos povos da periferia, perseguidos pelo fantasma da recolonização. Cassar a soberania, como a globalização intenta fazê-lo, de mão comum com o neoliberalismo, órgão primaz de sua singular ideologia antiideológica - aliás uma surpreendente contradição nos anais do pen- 36 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA sarnento filosófico-político! - significa truncar, coarctar ou suspender a evolução constitucional dos países periféricos, arruinados por dita duras e pelas mazelas do subdesenvolvimento. Significa, ao mesmo passo, fechar a porta para sempre à concreti zação dos direitos fundamentais de cunho objetivo e pluridimensional. Daqui a razão de preconizar-se para esses países um Direito Constitu cional de luta e resistência cujas raízes de pensamento e justificação já se acham deitadas, contidas, expostas e definidas em nosso compêndio sobre a matéria. (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 10a edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2000) Com efeito, o Direito Constitucional afigura-se-nos a mais rele vante disciplina que versa e expõe, na direção dos valores, as bases jurídicas de uma sociedade verdadeiramente livre. Diante, pois, das graves ameaças de substituição das Constituições pelas Ordenações ou da Lei pelas Cartas Régias, do passado colonial, que hoje tem o seu equivalente nas Medidas Provisórias, faz-se mister, fora de toda controvérsia, se quisermos manter abertos os horizontes da libertação, apelar, outra vez, para as velhas armas do constituciona lismo clássico quando ele foi um constitucionalismo de resistência, a sa ber: a nação, a soberania, e o povo. Por mais paradoxal e inverossímil que isso possa parecer, são elas, ainda, os mais eficazes meios de defesa e os mais seguros veículos de sobrevivência da identidade ameaçada. 9. Com a democracia participativa o político e o jurídico se coa gulam na constitucionalidade enquanto simbiose de princípios, regras e valores, que fazem normativo o sistema, tendo por guia e chave de sua aplicação a autoridade do intérprete; mas do intérprete legitimado democraticamente enquanto juiz eletivo que há de compor os quadros dos tribunais constitucionais. Nisto consiste a essência e o espírito da nova legitimidade: o abra ço com a Constituição aberta, onde, sem cidadania não se governa e sem povo não se alcança a soberania legítima. As derradeiras instâncias decisórias hão de permanecer ali sempre vinculadas à emancipação direta da vontade popular. A nova legitimidade assenta, pois, a democracia participativa em instrumentos ou órgãos de concretização como a Nova Hermenêutica Constitucional, indubitavelmente sua mais sólida coluna de sustenta ção e efetivação. O elemento interpretativo, ínsito à formação da legitimidade, era dantes, na velha Hermenêutica, ou desconhecido em matéria constitu O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 37 cional ou menoscabado, aí, por sua natureza acessória, adjetiva e ins trumental; já, os conteúdos políticos e jurídicos, estes sim perfazem, com a Nova Hermenêutica, a parte substantiva do sistema e, por con seguinte, formam os esteios da nova legitimidade definindo a maneira como se concretiza a democracia participativa. Se não houvesse contudo conexidade inapartável do político com o jurídico, não haveria necessidade de nova hermenêutica para as Cons tituições. As Cartas Magnas são, primacialmente, ordem de princípios e va lores, necessitados de meios interpretativos desconhecidos à hermenêu tica clássica, e sem os quais a juridicidade das cláusulas constitucio nais não se traduziria naquelas determinações normativas, por onde se há estabelecido a superioridade hierárquica do princípio da constitucio- nalidade sobre o tradicional e minguante princípio da legalidade. Deposto se acha este princípio de seu pedestal jusprivatista pela ruína e decadência ideológica do velho liberalismo, cuja racionalidade neutralista das leis caiu no descrédito e já não engana a quem desven dou e percebeu o sigiloso semblante axiológico e teleológico das insti tuições burguesas e seus mecanismos de autoconservação. É na direção renovadora da hermenêutica constitucional e de sua axiologia, condensada em valores e princípios, que as instituições da democracia participativa hão de achar o caminho para solver seus pro blemas; caminho de concretude e não de abstração metafísica e pro- gramática, qual se perlustrara em idades constitucionais já ultrapassa das, quando a Constituição era tão-somente promessa de liberdade e esperança de democracia. Em razão disso não causava sobressaltos nem, tampouco, vexa- ções ao poder conservador das elites burguesas da sociedade capitalista. 10. Doravante, porém, a Constituição se nos afigura a estrada real que conduz à democracia participativa. Não há como interpretá-la dou tra forma quando se trata de fazê-la o meio mais seguro de concretizar o Estado de Direito, as liberdades públicas e os direitos fundamentais de todas as dimensões enunciadas e conhecidas, sobretudo nos países retardatários da orla periférica, onde o subdesenvolvimento trava, como um freio, o funcionamento das formas representativas. A importância da Constituição, ao contrário do que escrevem os ju ristas neoliberais, só tem crescido e só há de crescer em virtude da espé cie de globalização em curso, que esmaga e confisca as conquistas so 38 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ciais do trabalho e faz mais amargo, mais aflitivo, mais retrógrado, mais iníquo, por obra das injustiças do capital, o retrocesso da recolonização. O princípio da constitucionalidade, desatando-se de seus laços de sujeição e vassalagem ao formalismo hierárquico de Kelsen - sem con tudo renegá-lo, antes incorporando-o - , fez brotar outra hierarquia, de teor material, a saber: a hierarquia de valores e princípios, doravante sua nova base e fundamento. Desta, uma vez privado o princípio, perderia ele a possibilidade de instaurar a nova hermenêutica constitucional. Essa hermenêutica se funda toda em elementos valorativos, cuja supremacia nos faz chegar à democracia participativa; democracia da concretude e da realidade e não do sonho e da utopia; democracia do povo e não da representação; democracia das massas e não das elites; democracia da cidadania e não do súdito branco, o suposto cidadão dos regimes representativos. 11. Sendo escola de pensamento e teoria jurídica de organização do poder político, a democracia participativa deita suas raízes no con tributo filosófico da tópica de Aristóteles na antigüidade e de Viehweg na modernidade. Também foram deveras influentes por trazerem pedras aos alicer ces do novo sistema alguns juristas alemães, discípulos do Mestre da Mogúncia. Não titubearam eles em confutar, com o peso de sólidos argu mentos, as objeções antitópicas e antifilosóficas de Forsthof, o jurista schmittiano empenhado, sagazmente, em restaurar o prestígio e a au toridade do positivismo. Designadamente, daquele positivismo vincu lado às vertentes mais adversas à liberdade, qual a do estatismo autori tário e ideológico remanescente, que subjaz às doutrinas totalitárias do século XX, todas elas lesivas ao estabelecimento do Estado de Direito. Contudo, onde a democracia participativa haure um de seus subsí dios mais destacados, mais corretos, mais elucidativos da sua respecti va feição e natureza é, talvez, na obra de Müller, na sua metodologia interpretativa da norma constitucional, sobretudo na sua concepção an tecedente, em que, segundo ele, a doutrina clássica, para chegar ao povo - e nunca chegava, segundo ele, em razão das escamoteações re presentativas
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