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Paulo Bunaviães
TEORIA CONSTITUCIONAL
DA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Por um Direito Constitucional de luta e resistência 
Por uma Nova Hermenêutica 
Por uma repolitização da legitimidade
El i=MALHEIROS 
=V= EDITOR ES
Teoria Constitucional da Democracia Participativa
(Por um Direito Constitucional de luta e resistência 
Por uma Nova Hermenêutica 
Por uma repolitização da legitimidade)
© P a u l o B o n a v i d e s
ISBN 85-7420-279-7
Direitos reservados desta edição por 
MALHEIROS EDITORES LTDA.
Rua Paes de Araújo, 29, conjunto 171 
CEP 04531-940 — São Paulo — SP 
Tel.: (Oxxll) 3842-9205 Fax: (Oxxll) 3849-2495 
URL: www.malheiroseditores.com.br 
e-mail: malheiroseditores@zaz.com.br
Composição 
PC Editorial Ltda.
Capa
Criação: Vânia Lúcia Amato 
Arte: PC Editorial Ltda.
Impresso no Brasil 
Printed in Brazil 
03-2001
http://www.malheiroseditores.com.br
mailto:malheiroseditores@zaz.com.br
A Go f f r e d o Te l l e s J ú n io r , 
autor da “Carta aos Brasileiros ” 
e advogado da liberdade, da cidadania e da Constituição,
h o m e n a g e m d e P a u l o B o n a v id e s
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................... 7
Capítulo 1 0 Direito Constitucional da Democracia Participativa:
um direito de luta e resistência.......................................................... 25
Capítulo 2 -A Democracia Participativa e os bloqueios da classe
dominante............................................................................................... 50
Capítulo 3 - A ideologia da globalização e o antagonismo neoliberal
à Constituição ....................................................................................... 66
Capitulo 4 - A globalização e a soberania - aspectos constitucionais... 87
Capítulo 5 A inconstitucionalidade material e a interpretação do
art. 14 da Constituição......................................................................... 108
Capítulo 6 - 0 Estado Social e sua evolução rumo à democracia
participativa............................................................................................ 143
Capítulo 7 - Garcia Pelayo e o Estado Social dos países em desenvol­
vimento: o caso do Brasil.................................................................... 168
Capitulo 8 - A evolução constitucional do Brasil................................ 190
Capitulo 9 - 0 pensamento jusfilosófico de Friedrich Müller:
fundamento de uma Nova Hermenêutica....................................... 206
Capitulo 1 0 - A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais......... 216
Capítulo 11 - A dignidade da pessoa humana............................................ 230
Capítulo 12 -A presunção de constitucionalidade das leis e interpre­
tação conforme a Constituição.......................................................... 235
Capítulo 13 - Ciência Política........................................................................ 264
Capítulo 14 - La Sociologia Jurídica............................................................ 269
Capítulo 15 - Espaço público e representação política............................ 277
6 TEORJA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
INTRODUÇÃO
Com a presente Teoria Constitucional da Democracia Participati­va damos seqüência e conclusão a um conjunto de idéias e refle­
xões que começamos a expor e aprofundar em nosso Curso de Direito 
Constitucional,' e que tiveram depois continuidade, de forma não me­
nos explícita e combativa, na Coletânea intitulada Do País Constitucio­
nal ao País Neocolonial.2
Os três livros tomados conjugadamente compõem uma trilogia 
volvida para a liberdade, a igualdade e a justiça. Outro fim não alme­
jam senão desbravar e iluminar caminhos que conduzam a uma demo­
cracia participativa, aquela democracia de emancipação dos povos da 
periferia, conforme poderá o leitor logo averiguar.
A tese central da obra consiste, pois, em reivindicar um Direito 
Constitucional da liberdade, oxigenado de princípios e valores já in­
corporados nas nossas raízes e tradições de resistência a golpes de Es­
tado, estados de sítio, intervenções federais e ditaduras, todos vibrados 
e todos instalados quando a chamada democracia representativa - per­
passada da crise constituinte que estalou no berço da nacionalidade - 
não correspondeu com seus meios jurídicos e seu dever constitucional 
aos anseios nacionais de alforria do povo e da sociedade.
Fiéis, assim, a uma posição libertária de pensamento inaugurada 
em tese de cátedra, que teve por título Do Estado liberal ao Estado 
social,3 nunca nos arredamos dessa posição. Por isso afigurou-se-nos, 
agora, legítimo e útil trasladar também para as páginas desta Coletânea
1. 10a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2000.
2. 2a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2001.
3. 6a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1996.
8 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
a Introdução à sexta edição daquela monografia acadêmica, bem como 
dois Prefácios da mesma, onde verdadeiramente havíamos esboçado já 
os primeiros ensaios rudimentares de uma jornada de idéias na direção 
da democracia participativa e do Estado social.
E o fizemos com o confessado propósito de anexar os direitos fun­
damentais das dimensões subseqüentes àquela primeira que se estreou 
desde que os direitos políticos e civis foram proclamados pelos consti­
tuintes do Século XVIII, um dos séculos mais revolucionários e fecun­
dos de toda a história política do ocidente.
A publicação ora estampada, cuja unidade temática é manifesta, 
procura designadamente certificar mais uma vez que não cobra sentido 
lecionar nas escolas e academias jurídicas dos países da periferia outro 
Direito Constitucional que não seja o da democracia participativa, ao 
qual nossa Constituição, na esfera teórica, em parte já se incorpora ou 
pelo menos deita lá sementes de legítima soberania popular, que ja­
mais germinarão, todavia, se ficarem expostas à ação inclemente e es- 
terilizadora dos legisladores de mandato representativo.
O velho e clássico Direito Constitucional do positivismo formalis- 
ta e burguês professa uma neutralidade normativista já em fase de dis­
solução, descrédito e desintegração. Essa fase foi introduzida por obra 
de um Executivo que desrespeita esse Direito a cada passo, e do qual 
ele se arredou por inteiro desde que caiu nos braços do neoliberalismo.
A decadência do Direito Constitucional tem sido apregoada e ace­
lerada pelos globalizadores políticos que intentam por todos os meios 
demoli-lo, apagando-lhe as noções, falseando-lhe os conceitos, desmo­
ralizando-lhe os princípios, fragilizando-lhe as normas, quebrantando- 
lhe idéias, enfim, subtraindo-lhe juridicidade.
Nunca, porém, a antiga disciplina das épocas pretéritas e progra- 
máticas do século XIX se mostrou em seus institutos tradicionais tão 
viva, tão prestadia, tão contemporânea, tão necessária que quando se 
associa à democracia de participação e é lecionada nas Faculdades de 
leis, vinculada a princípios e valores sem os quais não há hermenêutica 
constitucional, nem Estado de Direito, nem legítima separação de po­
deres, nem controle de constitucionalidade.
Se lhe dermos, pois, o destino e a missão de inculcar nos cérebros 
da mocidade estudantil e universitária o compromisso com a democra­
cia e com o Estado constitucional, não haverá matéria mais relevante 
nos currículos jurídicos ou que lhe exceda a importância, a dignidade, 
o prestígio.
INTRODUÇÃO 9
O novo e remodelado Direito Constitucional é tão guardião do re­
gime quanto as cortes constitucionais o são, porquanto nele se sedi­
menta, com o homem-cidadão, a consciência de salvaguarda da ordem 
jurídica, sob a superintendência de valores e postulados pertinentes à 
justiça, à liberdade e à democracia.
Se o Direito Constitucional morreu para os neoliberais, ressurrec- 
to nós o vemos, todavia, entre quantos se empenham em fazê-lo uma 
ferramenta de sustentação da identidade nacionale dos poderes de so­
berania. E, do mesmo passo, entre aqueles que se declaram leais a um 
sistema de normas superiores e fundamentais, um sistema cujo Direito 
vai ao campo de batalha e não retrocede nem na doutrina nem nos con­
ceitos. E esta a missão, a causa, a tarefa que se lhe impende atribuir.
Em verdade, não podemos nem devemos pensar unicamente com 
as categorias ideológicas e políticas do Primeiro Mundo, porquanto es­
tas nos aparelham, não raro, a ruína social, a dependência, a recoloni- 
zação e a terceirização ideológica de valores. Esses valores nem sem­
pre são os nossos. De tal sorte que com eles apenas as elites do status 
quo costumam identificar-se ou comprometer-se.
Se os punhais do neoliberalismo assassinarem a doutrina de uma 
tão redentora forma de justiça distributiva, que é o Estado social, a Na­
ção reagirá para fazer o milagre de sua ressurreição. O mesmo se diga 
com respeito à Constituição e à soberania.
Democracia participativa e Estado social constituem, por conse­
guinte, axiomas que hão de permanecer invioláveis e invulneráveis, se 
os povos continentais da América Latina estiverem no decidido propó­
sito de batalhar por um futuro que reside tão-somente na democracia, 
na liberdade, no desenvolvimento.
Toda a substância teórica do nosso pensamento em matéria cons­
titucional e política fica, de conseguinte, condensada nestas páginas da 
maneira mais clara e sucinta possível, consolidando ao mesmo tempo 
teses de que jamais nos afastamos. São as mesmas daqueles que, por 
dever de cidadania e lealdade às instituições da democracia, porfiam 
no mesmo campo de oposição, luta e resistência à tormenta alienante, 
avassaladora e colonialista do neoliberalismo e da globalização.
Dizer que a democracia é direito da quarta geração, qual o fiz em 
Foz de Iguaçu, na Conferência final da XIV Conferência Nacional de 
Advogados, em 1992, não basta.
Faz-se mister ir além. Urge, assim, tomar explícitos os meios téc­
nicos de realização e sustentação desse direito principiai nos países da
10 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
periferia, onde as três gerações ou dimensões de direitos fundamentais 
não lograram ainda concretizar-se na região da normatividade.
É essa, indubitavelmente, a grande tragédia jurídica dos povos do 
Terceiro Mundo. Têm a teoria mas não têm a práxis. E a práxis para 
vingar diante da ofensiva letal dos neoliberais precisa de reforma ou 
renovação de modelos teóricos.
E isto o que se propõe com o Direito Constitucional de luta, com a 
Nova Hermenêutica, com a repolitização da legitimidade. Tudo quanto 
ocupa, pois, o espaço destas páginas assinala o pensamento que nos 
guiou, a constante que nos inspirou ao elaborar esta obra. Com efeito, 
não estamos a escrever a proposta nem a minuta de um tratado de paz 
com a ideologia neoliberal senão que lhe fazemos uma declaração de 
guerra. Declaração formal, mesmo. E a tomamos extensiva a quantos 
se bandearam para as facções globalizadoras e puseram em risco de 
vida a Constituição, a soberania, a identidade nacional.
A esta altura não podemos deixar de assinalar que há quatro prin­
cípios cardeais compondo a estrutura constitucional da democracia par­
ticipativa, cada qual com sua peculiaridade conceituai na contextura 
desse sistema.
São eles, respectivamente, o princípio da dignidade da pessoa hu­
mana, o princípio da soberania popular, o princípio da soberania nacio­
nal e o princípio da unidade da Constituição, todos de suma importân­
cia para a Nova Hermenêutica constitucional, de que tanto já nos ocu­
pamos em nosso Curso quando versamos a inteipretação da Constitui­
ção e dos direitos fundamentais.
Com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, funda­
menta ele a totalidade dos direitos humanos positivados como direitos 
fundamentais no ordenamento jurídico-constitucional.
Esse princípio aumenta cada vez mais de importância ao verificar- 
se que resume e consubstancia por inteiro o teor axiológico e principio- 
lógico dos direitos fundamentais das quatro dimensões já conhecidas e 
proclamadas.
Por ele as Constituições da liberdade se guiam e se inspiram; é 
ele, em verdade, o espírito mesmo da Constituição, feita primacialmen- 
te para o homem e não para quem govema.
É, enfim, o valor dos valores na sociedade democrática e partici­
pativa.
Já o princípio da soberania popular compendia as regras básicas 
de governo e de organização estrutural do ordenamento jurídico, sen­
INTRODUÇÃO I I
do, ao mesmo passo, fonte de todo o poder que legitima a autoridade e 
se exerce nos limites consensuais do contrato social. Encarna o princí­
pio do governo democrático e soberano, cujo sujeito e destinatário na 
concretude do sistema é o cidadão.
Atribui-se, por conseguinte, nesse livro, extrema importância à 
defesa e salvaguarda do mais ameaçado e comprometido dos princí­
pios que organizam a vida nacional e preservam a nossa identidade de­
mocrática, a saber, o princípio da soberania popular - de último, nas 
duas Casas do Congresso Nacional, tão desfigurado, tão atraiçoado, tão 
ferido pela covardia dos quadros representativos, os quais, em aliança 
com o Executivo, consentem que este leve a cabo a tarefa de despeda­
çar a Constituição e as leis.
Em suma, o princípio da soberania popular é a carta de navegação 
da cidadania ramo às conquistas democráticas, tanto para esta como 
para as futuras gerações.
Desse princípio, explícito na Constituição, infere-se outro, de na­
tureza não menos substantiva, ou seja, o princípio da soberania nacio­
nal, com que se afirma de maneira imperativa e categórica a indepen­
dência do Estado perante as demais organizações estatais referidas à 
esfera jurídica internacional.
A soberania nacional nesta acepção nada tem porém que ver com 
outra doutrina professada durante a Revolução Francesa e que invoca­
va a Nação de maneira deveras ambígua por fundamento do poder su­
premo e base de legitimação do sistema representativo.
A Nação, sede ali de um poder do qual o povo não era ainda titu­
lar efetivo, se fazia o órgão por excelência que retardava e escamotea­
va a universalidade do sufrágio com inibir o princípio da igualdade e 
tolher a concretização da própria soberania popular, enquanto parcela 
expressiva da vontade de cada cidadão, ou seja, daquele cidadão partí­
cipe na formação da lei e da autoridade governativa.
E tudo isso acontecia porque a Nação era confusamente identifi­
cada numa visão arbitrária e ambígua com o terceiro estado, isto é, com 
a burguesia revolucionária, como o proletariado o fora, depois, com o 
Estado socialista da revolução soviética.
Finalmente o princípio da unidade da Constituição se destaca por 
elemento hermenêutico de elucidação de cláusulas constitucionais.
Compreende tanto a unidade lógica - hierarquia de normas oriun­
da da rigidez constitucional - como a unidade axiológica - ponderação 
de valores, proveniente da necessidade de concretizar princípios ins­
culpidos na Constituição.
12 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
A unidade lógica se exprime através de uma unidade formal de 
normas dispostas em seqüência hierárquica.
Com respeito à unidade axiológica, manifesta-se ela mediante uma 
unidade material de valores e princípios, que são a essência, o espírito, 
a substância mesma da Carta Magna.
Os quatro princípios acima expendidos e declinados somente hão 
de prosperar numa sociedade aberta, onde os instrumentos e mecanis­
mos de governo não sejam obrepticiamente monopolizados e controla­
dos por uma casta política, cujos membros, à revelia do povo, se alter­
nam e permeiam no exercício da autoridade civil e governativa - sem­
pre a serviço de interesses concentrados e com esteio na força do capital.
Atuam eles em função da ordem capitalista, não da coisa pública. 
De tal sorte que para lograr esse escuso objetivo se valem, ao mesmo 
passo, do mais poderoso instrumento de descaracterização da verdade 
e da legitimidade na sociedade regida pelo capital. Reportamo-nos aosmeios de comunicação, a saber, as grandes empresas de jornais, as vas­
tas cadeias de rádio, as poderosas redes de televisão, as quais, submis­
sas ao capital e ao poder que lhes ministram copiosos subsídios de pu­
blicidade paga, se transformam numa usina ou laboratório onde se fa­
brica o sofisma da opinião pública (opinião publicada e informação di­
vulgada) e se legitimam as mais absurdas políticas de governo, contra­
riando o interesse nacional e destruindo as células morais do ente cívi­
co que é a polis.
A mídia escravizada ao capital deforma, entorpece e anula a livre 
vontade, o livre raciocínio, a livre consciência do ser político, rebaixa­
do a cidadão nominal, a cidadão súdito, a cidadão vassalo - que enor­
me contradição isto representa! E assim as ditaduras constitucionais 
sobem ao poder e nele se conservam ostentando a imagem da pseudo- 
democracia e do pseudo-regime representativo.
O povo que não é povo, a multidão que não é gente, a massa que 
se deixou domesticar, a classe média que já não tem influição no poder 
e jaz oprimida, o proletariado que perde cada vez mais a capacidade de 
luta e é perseguido no salário configuram o retrato social da falsa repú­
blica onde desde muito não sobrerrestam senão traços ou vestígios de 
cidadania
A razão mutilada do homem-povo sem pensamento autodetermi­
nativo e com a vontade anulada pela torrente de valores dirigidos que 
lhe foram passados na onda informativa inassimilável, fixa o sombrio 
quadro de uma nação moralmente dissolvida, decomposta, onde os se­
INTRODUÇÃO 13
nhores da mídia, freando a repercussão dos fatos e deturpando a infor­
mação, são também os senhores daquele poder suscetível de aniquilar 
e interceptar, pelo silêncio imposto e pelas omissões propositadas, to­
dos os canais de comunicação das lideranças democráticas com o povo, 
não podendo este, assim, ser libertado das pressões reacionárias e da 
permanente agressão capitalista aos direitos da terceira geração.
Tendo ao seu dispor a máquina da informação com que intentam 
dar aparência de legitimidade aos seus interesses, os estamentos de do­
minação têm tudo com que perpetuar a servidão social e o confisco dos 
direitos de expressão.
Há algum tempo, em debate com os magistrados de meu país, dis­
se que a mídia brasileira estava prisioneira no cárcere das elites e que 
era preciso libertá-la e restituí-la ao povo, ou seja, à legitimidade de 
sua vontade.
Vamos, portanto, descerrar os ferrolhos do ergástulo e abrir na 
Constituição uma artéria normativa de controle, que afiance pelo con­
curso da mídia emancipada a livre expressão material das idéias e do 
pensamento - a saber, um canal por onde possam circular sem estorvos 
e sem alienações e sem embargos à formação da alma coletiva os pode­
res incorporados nas liberdades públicas e nos direitos fundamentais.
Aquela assertiva, mais do que nunca, na hora de teorizar a demo­
cracia participativa, é de imensa veracidade para o País.
Constitucionalizar a mídia como um dos poderes da república - 
mas poder democrático e legítimo - é, por sem dúvida, o mais urgente 
e inarredável requisito da democracia participativa.
Poder-se-á, até, dizer pressuposto ou condição sine qua non de ins­
talação desse regime, se o quisermos como realidade, e não como farsa 
ou burla conforme tem acontecido com o sistema representativo.
A teoria constitucional da democracia participativa é, portanto, o 
artefato político e jurídico que em termos de identidade há de criar en­
tre nós o Brasil do povo, o Brasil da democracia nacional e nacionalis­
ta, o Brasil que nos sonegaram.
Compendia-se, assim, um novo Estado de Direito retraído dos pri­
vilégios da classe dominante, que devem ser abolidos, e refratário à 
hegemonia dos corpos representativos sem representação e sem legiti­
midade - enfim, algo significativo de uma abertura mais ampla no uni­
verso de nossa organização política e social.
Será este futuro e reformado Estado de Direito a réplica da cons­
ciência popular, disposta a desatar os laços já seculares da deplorável
14 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
dependência em que temos invariavelmente vivido, mergulhados na 
submissão ao capital estrangeiro e ao seu imperialismo de expansão e 
confisco das riquezas nacionais.
Não tem sentido teorizar aquela democracia nem propugnar este 
Estado de Direito se não houver um alvo superior, volvido para a pro­
blemática histórica da sociedade brasileira, sociedade agredida siste­
maticamente, de maneira cada vez mais violenta e atroz, por forças ex- 
temas de dominação.
O País sabe, sem dificuldade, identificar essas forças, porquanto 
se acham elas mancomunadas com as mesmas elites que escreveram 
no passado e continuam escrevendo no presente páginas de opróbrio e 
traição.
Todas as épocas coloniais, imperiais e republicanas da nossa his­
tória estampam o selo ou trazem o testemunho dessa capitulação.
E estigma e vergonha e vilipêndio de uma decadência em curso, 
que terá remate unicamente se despertarmos os órgãos da nação viva 
para uma ação revolucionária de combate e resistência às formas clás­
sicas de opressão.
Faz-se mister, por conseguinte, o abraço de solidariedade do estu­
dante com o trabalhador, da classe média com o estamento obreiro, da 
nação com a sociedade, a fim de que se possa, de uma vez por todas, 
extirpar as raízes da crise constituinte, que outra coisa não significa 
nem representa senão o quebrantamento e a depravação do contrato so­
cial por fórmulas políticas e desmoralizadas de governo, adversas aos 
interesses, às exigências e aos valores da nacionalidade e do povo, no­
meadamente aqueles cristalizados na sua soberania e conservação.
As letras jurídicas carecem, pois, de renovação e rumos. A teoria 
constitucional da democracia participativa segue a trilha renovadora 
que fará o povo senhor de seu futuro e de sua soberania, coisa que ele 
nunca foi nem será enquanto governarem em seu nome privando-o de 
govemar-se por si mesmo.
O povo da democracia participativa é o povo que iluminou a cabeça 
de Lincoln quando ele definiu democracia - o governo do povo, para o 
povo e pelo povo. Há demagogia nisso? Não. Há verdade e certeza.
Os hipócritas da classe dominante ocultaram nas vestes represen­
tativas da vontade popular, falseada durante séculos, sua sagrada alian­
ça com o capitalismo.
Usufrutuários de um poder usurpado, intentam hoje, mediante a 
implantação ideológica do neoliberalismo, revogar a dialética e a his­
INTRODUÇÃO 15
tória, paralisando o mundo na eternidade da globalização como status 
quo da injustiça e das desigualdades sociais. A escravidão pode hastear 
pois essa bandeira; a liberdade e a democracia jamais.
Em suma, é de assinalar que para uma certa corrente de publicis­
tas empenhados em propagar a doutrina globalizadora do neoliberalis­
mo, determinados conceitos, quais os de soberania, Estado, Nação e 
Constituição estariam recebendo já a extrema-unção na teoria contem­
porânea do Poder e do Direito.
Com efeito, o fluxo de interesses e relações que dominam a esfera 
global inaugura uma nova fase dialética no campo da economia capita­
lista, decretando, de maneira supostamente irreversível, o declínio e a 
próxima mina daquelas idéias-chaves e dogmas institucionais.
O Estado constitucional, o Estado nação, o Estado soberano, o Es­
tado de Direito da idade moderna têm sobrevivido com dificuldade às 
crises universais do capitalismo.
Trata-se, em verdade, de um modelo de economia cujos abalos se 
fazem sentir com mais dano, força e intensidade nos países do Terceiro 
Mundo, onde provocam um cortejo de tragédias e violências, que vão 
de agressões políticas, intervenções militares, golpes de Estado e dita­
duras a capitulações econômicas e financeiras, já na iminência de de­
sembocarem num processo ativo e imediato de recolonização.
Todas essas comoções introduzem, de conseguinte, a filosofia de 
força, injustiça e privilégio, típica daquele sistema de dominação que 
invade o mundo contemporâneona dimensão globalizadora e neolibe- 
ral, e o fazem com o mesmo espírito reacionário e restaurador da Santa 
Aliança, durante a segunda década do século XIX, após o colapso dos 
exércitos de Napoleão.
Com efeito, é de assinalai- que na França revolucionária, em sua 
fase áurea de expansão, o poder conquistador, depois desfalecido, con­
duzira na cabeça de seus comandantes a disciplina do soldado, mas na 
retaguarda social o que prevalecera fora o pensamento regenerador da 
Revolução Francesa e da pólis burguesa acompanhando a marcha dos 
granadeiros.
A Santa Aliança pós-napoleônica significava, portanto, a vitória 
aparente do absolutismo restaurado mas decrépito que se estampava na 
fórmula política dos tronos constitucionais e das Cartas outorgadas.
No fundo o que preponderava, contudo, era o sonho de liberdade 
dos filósofos contratualistas dominando a cena constitucional e dissol­
16 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
vendo, com o compromisso das Cartas, a fereza do projeto autoritário, 
repressivo e restaurador das realezas de direito divino.
A recaída no passado havia sido impossível. Tinha por óbice maior 
o fato histórico que fora a Revolução Francesa.
Expatriar e exilar no rochedo de Santa Helena o autor do Código 
não constituiria nenhuma dificuldade; mas revogar da lei civil os prin­
cípios ali introduzidos não cabia no poder nem na jurisdição das mo­
narquias nostálgicas, confederadas num pacto de reação; e foi este o 
Congresso de Viena, impotente para deter o triunfo j useivilista do Có­
digo, que inaugurava a sociedade construída pela burguesia segundo 
as idéias da Revolução.
Cimentava-se, portanto, um sistema de organização social confor­
me valores novos, sem nenhuma analogia, compromisso ou vínculo 
com o ancién régime.
Tomando, porém, aos nossos tempos de globalização, o Consenso 
de Washington tem no chefe do FMI um Mettemick que não faz a di­
plomacia dos tratados mas a política de força das sentenças financeiras 
com que o capitalismo avassala, derrota e até mesmo destrói a econo­
mia de paises onde os direitos da terceira geração jamais chegam se­
não por imagem retórica de um discurso compendiado na falsidade de 
promessas desenvolvimentistas bem como na frouxidão das teses ca- 
ducas do neoliberalismo, desamparadas da verdade pela evidência dos 
grandes retrocessos e fracassos sociais de nosso tempo.
A pax universal de Kant, tão distinta, de inspiração e índole, desta 
que nos querem ditar os globalizadores contemporâneos é, por sem dú­
vida, do ponto de vista da democracia participativa e de seu programa 
humanista a única aceitável, e a mais límpida e bem formulada por um 
filósofo.
Cuidar que a globalização veio para ficar qual ela se apresenta, e 
que seu advento constitui uma fatalidade, é equívoco deplorável. Mas 
sustentar, ao mesmo passo, que ela contradiz a soberania e, por isso 
mesmo, esta deve acabar para não servir-lhe de obstáculo é laborar num 
perverso sofisma, tão perverso quanto aquele de certa teoria do positi­
vismo jurídico que, outrora, separava obstinadamente, por contraditó­
rios e inconciliáveis, os conceitos de legalidade e legitimidade.
E tudo farsa e impostura na região do pensamento.
A legitimidade da soberania, da nação, da ordem constitucional 
cifra ainda elevados valores históricos de referência inestimável para 
os povos da periferia, de que não podem estes apartar-se, porquanto, se
INTRODUÇÃO 17
o fizessem, estariam cometendo um suicídio - e não há suicídio pior 
que o das instituições, porque quando as instituições desaparecem com 
elas desaparece também uma forma social de vida e organização, ex­
tingue-se um esquema de poder autodeterminativo do qual aqueles con­
ceitos eram a garantia, o cimento, o alicerce.
O Direito Constitucional liberta, e se lhe destruirmos as bases, mi­
nando os seus princípios, como é da índole e natureza do processo glo- 
balizador e das categorias axiológicas do neoliberalismo, já não haverá 
povo, nem cidadania, nem nação; haverá, sim, legiões de súditos, coor- 
tes de homens resignados, debaixo da regência de um estatuto do po­
der, que será tudo, menos uma Constituição.
Os acordos do FMI são as medidas provisórias da globalização, os 
decretos-leis da recolonização.
Como obviar a essa desgraça política que nos faz recuar aos cam­
pos de batalha da História, a Porto Calvo e Guararapes, senão profes­
sando o magistério preventivo de um Direito Constitucional de liberta­
ção?
Professamos, por conseguinte, o Direito Constitucional da demo­
cracia participativa. E, no Brasil, país da periferia, formaremos com 
esse Direito a consciência do homem livre disposto a levantar em solo 
nacional as mesmas divisas de nossos antepassados.
O invasor não nos arrebatará as armas do pensamento. O Direito 
Constitucional na cabeça do cidadão, estudante de hoje e estadista do 
futuro, é a mais valiosa dessas armas. Esta portanto uma das razões de 
ser deste livro.
Volvendo ao plano teórico e enfrentando um dos problemas cons­
titucionais mais graves que embargam o advento da democracia parti­
cipativa, faz-se mister, ainda, um amplo esclarecimento com respeito à 
despolitização da legitimidade.
E fenômeno bem ao gosto dos neoliberais e de sua doutrina de 
senhorio absoluto, por via oblíqua, dos interesses sociais e da teieolo- 
gia do poder.
Com efeito, a legitimidade tem-se apresentado, de último, nas re­
flexões jurídicas sobre a matéria, despolitizada, neutralizada e subsu- 
mida, por uma suposta evidência de sua identidade conceituai e axioló- 
gica com a legalidade, enquanto expressão formal e acabada do triunfo 
das ideologias liberais.
Efetivamente, os juristas do positivismo alargando as expansões 
dogmáticas de seu devaneio juscientífico cuidavam que na Constitui­
18 TEORJA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
ção só havia juridicidade para as normas e não para os princípios, como 
se os princípios não fossem normas - aliás, as normas das normas, as 
mais excelsas do sistema.
Foi isso que ocasionou a reação oposta e o ressurgimento, com 
toda a força e energia, do princípio da legitimidade.
Aqueles arautos da razão, velhos conhecidos nossos, aferrando-se 
unicamente à legalidade, intentavam desterrar do sistema os princípios 
ou, pelo menos, ignorá-los, tolerando-lhe, apenas, a inserção nos códi­
gos do juscivilismo, qual a mais subsidiária das fontes hermenêuticas, 
aquelas de baixíssima densidade normativa.
As Constituições, juridicamente menos importantes que as leis na 
época do liberalismo, retomam, porém, o seu lugar de culminância; o 
mesmo se diga da Hermenêutica constitucional ou, com mais proprie­
dade, da Nova Hermenêutica.
E não tomam esse lugar como bandeiras arvoradas por uma meta­
física da liberdade, mas enquanto esteio e concreção dessa mesma li­
berdade cristalizada em princípios e valores que se fizeram jurídicos e 
não podem ser, portanto, removidos do vértice da pirâmide onde as­
senta a hierarquia das normas do ordenamento.
Na esteira dessas fórmulas renovadoras a ciência constitucional 
avança e volta a reconstituir-se, sob a égide de um princípio de legiti­
midade repolitizado - único capaz de interessar e fazer bem aos povos 
excluídos da hegemonia.
Nós o repolitizamos debaixo das inspirações de concretude de uma 
democracia participativa, de uma nova hermenêutica constitucional, de 
um novo conceito de associação política.
Assim o fazemos combatendo o modelo de representação deriva­
do das Cartas Constitucionais, ou nelas posto com base tão-somente na 
força política das cadeiras parlamentares majoritárias; é modelo que há 
de ceder lugar a outro, de presença mais direta e efetiva da cidadania 
enquanto sujeito da vontade governativa institucionalizada por vias ple- 
biscitárias.
A queda de legitimidade dos órgãos legislativos e executivos se 
faz patente, profunda, irreparável nos moldes vigentes. Urge introduzir 
pois o mais cedo possível a nova legitimidade, cuja base recomposta é, 
novamente, a cidadania, mas a cidadaniaredimida, sem os percalços 
que lhe inibem a ação soberana, sem a perversão representativa, sem o 
falseamento de vontade, sem as imperfeições conducentes às infideli­
dades do mandato e aos abusos da representação.
INTRODUÇÃO 19
Legitimidade que mana, enfim, do cidadão erguido faticamente às 
últimas instâncias do poder, tendo de sua mão, por expressão de sobe­
rania, os freios à conduta e à política dos governos, que ele, o cidadão 
mesmo, como povo, há de traçar, sancionar e executar.
Unicamente por esse caminho a democracia sairá do círculo vicioso 
onde se movem, à revelia e à distância do povo, as bancadas congres- 
suais e as organizações partidárias.
Fora da repolitização da legitimidade, criadora de uma neocidada- 
nia governante, não há democracia participativa, nem lealdade políti­
ca, nem soberania dos postulados constitucionais.
Todo o arcabouço jurídico-político do regime pende da realização 
de valores em que a identidade do povo, para ser legítima, é a identida­
de do cidadão - e cidadão é quem faz a vontade geral e concretiza o 
contrato social. Além dessa averiguação não há povo nem cidadania.
Ora, na presente conjuntura, debaixo da “ditadura constitucional” 
que nos governa, e sob as rédeas de um Executivo onipotente, o siste­
ma representativo já não é a legitimidade despolitizada, mas a banda 
morta e podre da Constituição.
E isto, pois, que nos faz clamar, em nome das garantias constitucio­
nais e das verdades esteadas em princípios e valores, por um sanea­
mento moral das instituições e das políticas governativas.
E isto, também, que nos faz encarecer a necessidade de repoliti- 
zar, por meio da democracia participativa, o princípio da legitimidade. 
Princípio absurdamente postergado por quem se afez ao desrespeito 
contumaz das decisões judiciais envolvendo o direito adquirido, a coi­
sa julgada e o ato jurídico perfeito, e que só sabe legislar pela via usur- 
patória das medidas provisórias, exaradas com inobservância dos re­
quisitos constitucionais de urgência e relevância e ajuizadas - carentes 
de consistência - ao livre alvedrio da autoridade expedidora. Tais atos, 
por suas conseqüências, põem em risco a segurança constitucional e as 
bases do sistema.
Em suma, a democracia participativa configura uma nova forma 
de Estado: o Estado democrático-participativo que, na essência, para 
os países da periferia é a versão mais acabada e insubstituível do Esta­
do social, este que a globalização e o neoliberalismo tanto detestam e 
combatem, argumentando contra todos os elementos conceituais de sua 
teorização.
O Estado democrático-participativo organizará, porém, a resistên­
cia constitucional dos países da periferia arvorando a bandeira da so­
berania, da igualdade e da justiça social.
20 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Com o Estado democrático-participativo o povo organizado e so­
berano é o próprio Estado, é a democracia no poder, é a legitimidade 
na lei, a cidadania no governo, a Constituição aberta no espaço das ins­
tituições concretizando os princípios superiores da ordem normativa e 
da obediência fundada no contrato social e no legítimo exercício da 
autoridade.
Ao Estado liberal sucedeu o Estado social; ao Estado social há de 
suceder, porém, o Estado democrático-participativo que recolhe das 
duas formas antecedentes de ordenamento o lastro positivo da liberda­
de e da igualdade. E o faz numa escala de aperfeiçoamento qualitativo 
da democracia jamais dantes alcançada em termos de concretização.
O Estado democrático-participativo libertará povos da periferia, 
transformando-se em trincheira de sobrevivência, desafio e oposição 
às infiltrações letais da diátese globalizadora que mina o organismo das 
sociedades do Terceiro Mundo.
O Estado democrático-participativo tem, por conseguinte, sua fór­
mula política mais acabada na expressão democracia participativa, que 
é a designação lingüística empregada nos textos desta Coletânea para 
versar esse conceito.
Assim como há quatro gerações de direitos fundamentais, há, do 
mesmo passo, em igual sentido, cinco classes de Estado, que surgiram 
ou estão surgindo desde a queda das monarquias de direito divino.
Compreendem em linha de sucessão histórica e de coexistência, 
não raro controversa e hostil, o Estado liberal, o Estado socialista, o 
Estado social, e, de último, na contemporaneidade da globalização, dois 
outros modelos desse Estado, a saber, o Estado neoliberal e o Estado 
neo-social - um reacionário, outro progressista; um já bastantemente 
formulado, outro apenas esboçado; um positivado, outro teorizado; um 
no Primeiro Mundo, outro na periferia.
A quinta modalidade que prognosticamos e defendemos, ou seja, 
o Estado neo-social da periferia, ainda se acha em gestação nas refle­
xões dos cientistas políticos e constitucionais. Em nossa nomenclatura 
política ele se chama Estado democrático-participativo.
Outra coisa não significa senão o Estado da democracia partici­
pativa, figura institucional fadada a libertar, se aplicada e concretizada 
com bom êxito, os povos periféricos. Em verdade é a única alternativa 
que se lhes apresenta, premidos pela ideologia neoliberal e globaliza­
dora da recolonização que os priva e destitui dos instrumentos de afir­
mação, sobrevivência e continuidade presentes nos conceitos de sobe­
rania, povo, nação, território e constituição.
INTRODUÇÃO 21
Um Direito Constitucional de luta, uma Nova Hermenêutica, uma 
repolitização da legitimidade, eis as chaves teóricas que nos abrirão a 
porta à democracia participativa de libertação. Democracia dos povos 
da periferia e resposta política que eles devem dar às pressões neolibe- 
rais da recolonização e do projeto globalizador.
Em todo sistema jurídico-constitucional do Estado de Direito con­
temporâneo, nascido à sombra dos postulados do contrato social, há, 
em rigor, três legisladores perfazendo as tarefas normativas do regime.
Um legislador de primeiro grau que faz a norma fundamental - a 
Constituição. Sua autoridade depois remanesce no corpo representati­
vo, legitimado pela vontade constituinte. Mas remanesce como um po­
der jurídico limitado, apto a introduzir tão-somente as alterações que 
se fizerem mister ao estatuto fundamental com o propósito de aperfei­
çoar a Constituição e manter a estabilidade dos mecanismos funcionais 
de governo. E também para tolher, por via de emenda, reforma ou revi­
são, o advento das crises constitucionais, dando-lhes solução adequada 
e legítima.
A seguir, depara-se-nos, em escala de verticalidade, o legislador 
de segundo grau, que faz a norma geral e abstrata, na qualidade de le­
gislador ordinário. Para desempenhar esse múnus constitucional rece­
be a colaboração do Poder Executivo, cujo Chefe sanciona ou não atos 
das assembléias parlamentares.
Têm estas, porém, o poder de rejeitar o veto do presidente e resta­
belecer a vontade do órgão legiferante.
Enfim, depara-se-nos o legislador de terceiro grau, no estreitamen­
to do funil normativo, a saber, o juiz, que dirime conflitos e faz a nor­
ma jurídica do caso concreto. Legisla entre as partes.
Intérprete normativo no ocaso da velha dogmática jurídica, esse 
juiz tende, desde o advento da Nova Hermenêutica, a ser, com razão, o 
legislador por excelência; aquele que tanto na esfera tópica como siste­
mática dissolve as antinomias do positivismo ou combina, na concre- 
tude social e jurisprudencial, a doutrina com a realidade, o dever-ser 
com o ser e integrado aos quadros teóricos da democracia participativa 
terá legitimidade bastante com que coibir de uma parte as usurpações 
do Executivo, de outra as tibiezas e capitulações do Legislativo. So­
bretudo quando este, por omissão, se faz desertor de suas atribuições 
constitucionais.
Assim, sob a égide de um Judiciário, guardião efetivo da supre­
macia constitucional e da ordem democrática, recompor-se-á a esfera 
de harmonia e equilíbrio dos Três Poderes.
22 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
A importância do juiz legisladorde terceiro grau avultará na prá- 
xis da democracia participativa do futuro, designadamente nas socie­
dades da periferia. E, de certa forma, se fará a expensas do legislador 
de segundo grau, cuja servidão ao Executivo, na conjuntura contempo­
rânea do neoliberalismo e da globalização, configura já a decadência 
do ramo representativo do poder, prisioneiro das elites e, não raro, de 
seus egoísmos e interesses adversos ao País.
Demais, a par da verticalidade legislativa do sistema, poder-se-á 
também com a democracia participativa traçar um círculo normativo 
de legitimidade, cujo percurso o intérprete faz, tendo por ponto de par­
tida a obra do constituinte, passando deste à do legislador quando faz a 
lei ou reforma a Constituição, até chegar, finalmente, ao juiz que esta­
tui a regra do caso concreto, coroando dessa maneira a concretude jurí­
dica do sistema sob a égide dos princípios e dos valores cardeais do 
ordenamento.
O juiz da democracia participativa não será, como no passado, ao 
alvorecer da legalidade representativa, o juiz “boca da lei”, da imagem 
de Montesquieu, mas o magistrado “boca da Constituição” e do con­
trato social; aquele que figuraria decerto na imagem de Rousseau redi­
vivo.
Ministra a democracia participativa por conseguinte mecanismos 
de exercício direto da vontade geral e democrática suscetíveis de res­
taurar e repolitizar a legitimidade do sistema.
Na pirâmide da relevância institucional haverá, com o Estado de­
mocrático-participativo, uma transformação substantiva e axiológica do 
papel do magistrado, decorrente da maior abertura e democratização 
do Poder Judiciário.
A concepção do juiz intérprete que, ao decidir, normatiza, ocorre 
em substituição daquela do juiz mero aplicador de leis que, ao senten­
ciar apenas deduz e subsume, segundo o entendimento axiomático-de- 
dutivista do positivismo e da dogmática jurídica tradicional das épocas 
em que imperava sobretudo o princípio da legalidade.
Contrasta esse entendimento com a noção tópica, indutiva, eurís- 
tica e criativa da Nova Hermenêutica, contemporânea, do Direito, se­
gundo a qual o juiz intérprete, ao estabelecer a norma, é legislador. Le­
gisla entre as partes e o faz não propriamente sob a égide do legalismo 
puramente formal e rígido, mas do legitimismo principiológico e mate­
rial, onde o direito vivo, se a realidade e os princípios falarem mais 
alto, decreta sua prevalência sobre a regra oxidada do direito vigente 
de vestes formais.
INTRODUÇÃO 23
Enquanto o juiz aplicador se guia por um logicismo que gira pri- 
macialmente ao redor da norma-texto da terminologia de Müller, o juiz 
intérprete haure sua maior força e dimensão hermenêutica na esfera dos 
princípios, mas se move tecnicamente no círculo de um pluralismo nor­
mativo tópico onde a norma-texto é apenas o ponto de partida da nor- 
matividade investigada e achada ao termo do processo decisório con­
creto, segundo assinala a teoria estruturante do Direito, da qual Frie- 
drich Müller, já citado, é seu mais insigne formulador e jusfúósofo.
Ao juiz da lei sucederá o juiz da Constituição. Ao juiz da legalida­
de, o juiz da legitimidade. Ao juiz da pré-compreensão de classe, o juiz 
da pré-compreensão da sociedade.
Por essa via o povo chegará ao poder, a sociedade à regeneração e 
o Estado e a Nação, abraçados com a cidadania, à execução e obser­
vância do contrato social.
Enfim, a teoria material da Constituição tem por órgão auxiliar 
importantíssimo, de concretização da democracia participativa, a Nova 
Hermenêutica. Ela repolitiza a legitimidade do regime. Ela introduz efi­
cazmente no universo das políticas governativas a presença do supre­
mo poder decisório, de todo cifrado no exercício direto da soberania 
popular consubstanciando a vontade constitucional da Nação.
Se este for o caminho trilhado a crise constituinte será uma página 
a menos na literatura do absolutismo. E nunca mais, ao livro de dor e 
revolta em que se lêem as felonias perpretadas pela classe dominante 
contra a Constituição, o Direito e a Liberdade, hão de acrescentar-se 
novos capítulos.
O Estado democrático-participativo conduzir-nos-á, ao mesmo 
passo, ao Estado de Direito da terceira dimensão, mais seguro, mais 
aperfeiçoado e mais sólido na garantia das liberdades que o tradicional 
Estado de Direito do liberalismo - o da primeira dimensão - ou que 
aquele outro, que o neoliberalismo está arruinando, o da segunda di­
mensão, gerado nas entranhas do Estado social.
Vamos recriar pois a república no Brasil; uma república que seja 
verdadeiramente da democracia, da justiça social, do Estado de Direito 
e da legitimidade; uma república, como asseverou Rui Barbosa, que 
doravante conheça “o seu foro e a sua lei”. Ao seu foro - disse literal­
mente o constitucionalista baiano - “serão citados todos os poderes, 
em nome da Constituição” e “pela sua lei serão refreados todos os po­
deres, que à Constituição não obedecerem”, rematou o imortal jurista 
do habeas corpus.
24 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Esta a república que queremos legar às futuras gerações, no pata­
mar da liberdade, e não aquela das medidas provisórias, dos atos ple- 
biscitários refalsados, das miniconstituintes e do neocolonialismo, no 
patamar da servidão.
A democracia participativa, de linhas gerais traçadas ao longo das 
páginas desta Coletânea, há de representar, na teoria constitucional, o 
consenso dos regimes do Terceiro Mundo.
Demais disso, é de assinalar que essa democracia já é direito posi­
tivado no parágrafo único do art. 1“ da Constituição. Mas resta inani­
mada e programática naquele dispositivo tutelar, por obra do silêncio, 
da omissão, do egoísmo e das deserções dos dois Poderes que legislam 
e governam o País. Se este pequeno livro puder ministrar alguma ajuda 
com que concretizá-la, não o teremos elaborado em vão.
Capítulo 1
O DIREITO CONSTITUCIONAL 
DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: 
UM DIREITO DE LUTA E RESISTÊNCIA
Não há teoria constitucional de democracia participativa que não seja, ao mesmo passo, uma teoria material da Constituição. Uma 
teoria cuja materialidade tem os seus limites jurídicos de eficácia e apli­
cabilidade determinados grandemente por um controle que há de com­
binar, de uma parte, a autoridade e a judicatura dos tribunais constitu­
cionais e, doutra parte, a autoridade da cidadania popular e soberana 
exercitada em termos decisórios de derradeira instância.
Nisso reside a essência desse figurino de constitucionalidade que 
há de ser o mais democrático, o mais aberto, o mais legítimo dos mo­
delos de organização da democracia emancipatória do futuro nos paí­
ses periféricos.
E, aliás, o único modelo capaz de pôr cobro ao ludibrio do poder 
popular, sempre objeto das alienações e descumprimento de sua vonta­
de por outra vontade que, ocupando e dominando as Casas representa­
tivas, posto que derivadas daquela, invariavelmente o tem negado, des­
troçado ou atraiçoado. Tal acontece em virtude do processo de distor­
ção e falseamento daquela vontade desde as suas nascentes.
Os vícios eleitorais, a propaganda dirigida, a manipulação da cons­
ciência pública e opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de in­
formação, a serviço da classe dominante, que os subornou, até as ma­
nifestações executivas e legiferantes exercitadas contra o povo e a na- 
Ção e a sociedade nas ocasiões governativas mais delicadas, ferem o 
interesse nacional, desvirtuam os fms do Estado, corrompem a moral
26 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
pública e apodrecem aquilo que, até agora, o status quo fez passar por 
democracia e representação.
Esse quadro se desenha sempre com vivas cores e máxima fre­
qüência nos sistemas constitucionais de ditadura dissimulada, quais os 
da América Latina, onde o mandato, por excesso de continuidade e re­
novação indefinidas, perde já as características republicanas, como no 
caso do Brasil e do Peru, e se reveste cada vez mais de um teor usurpa- 
tório, de confisco da vontade populare de transmutação da chamada 
democracia representativa em simulacro de governo popular. Demo­
cracia onde o baixíssimo grau de legitimidade participativa certifica a 
farsa do sistema, assinalando o máximo divórcio entre o povo e as suas 
instituições de Governo.
Quem é o povo, e onde está o povo, nessa forma de organização 
em que o ente político é objeto e não sujeito, e se viu privado, pela 
extorsão política, da titularidade de suas faculdades soberanas? Nin­
guém sabe responder.
A indagação em parte havia sido dantes formulada com extrema 
acuidade por Friedrich Müller num de seus mais recentes ensaios de 
filosofia política, estampado em língua portuguesa.
Saber quem é o povo tem enorme importância e atualidade nesta 
ocasião em que a soberania, clamando por socorro, agoniza nos países 
do Terceiro Mundo.
Seu debate faz-se, de conseguinte, imprescindível na organização 
da resistência e na construção de um dique aos desígnios da inconfi­
dência tramada e executada pelos usufrutuários da globalização e pe­
los cafres nacionais da recolonização; neles se incluem, por igual, os 
juristas do neoliberalismo e da sua ideologia de refalsada e aparente 
neutralidade.
Retorquir àquela indagação ficou de último, como se verifica, mais 
difícil porquanto o povo da pseudodemocracia vigente na era da globa­
lização não é verdadeiramente povo.
Os teoristas da reação, recrutados e instruídos politicamente, como 
todos sabem, nas academias do neoliberalismo, buscam com todo em­
penho legitimar uma globalização injusta que está sendo imposta de 
forma desfigurada e degenerativa aos povos do Terceiro Mundo.
Seu povo é tão-somente a caricatura de um ícone; ontem, estan­
darte de libertação, hoje, por via paradoxa, insígnia e fraude de tiranos 
e ditadores.
Dissimulando o seu poder em vestes constitucionais nos países que 
o totalitarismo do capital governa, os ditadores da Carta Magna, de
O n iR F IT Ifc<griM ST m .lf W > N A I.D A»r)F*d(BnR.AClA PA R T iriPA T IV A 27
mãos dadas com os globalizadores - seus patrões internacionais - pri- 
vatizam, desnacionalizam, desfederalizam e, ao mesmo tempo, opri­
mem o povo, esfacelam a unidade espiritual dos universos éticos e so­
ciais, submetem os territórios recolonizados à servidão das finanças 
externas, anulam o pouco que ainda sobrerresta de esperança política e 
jurídica de sobrevivência e embargam e sabotam e bloqueiam até mes­
mo a reinserção plena da Sociedade e do Estado na antiga e clássica 
democracia representativa, onde o povo dos países em desenvolvimen­
to conserva a forma e não a substância do poder democrático e republi­
cano.
2. Do ponto de vista teórico faz-se mister, portanto, acrescentar e 
admitir que a democracia participativa, sobre transcender a noção obs­
cura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativos, transcen­
de, por igual, os horizontes jurídicos da clássica separação de poderes.
E o faz sem, contudo, dissolvê-la. Em rigor a vincula, numa fór­
mula mais clara, positiva e consistente, ao povo real, o povo que tem a 
investidura da soberania sem disfarce.
Substitui-se assim, numa esfera renovadora, por outra concepção 
doutrinária a velha divisão de poderes de Montesquieu. O axioma da 
separação repousa agora numa distinção funcional e orgânica de pode­
res, que é a da democracia participativa, assentada com verdade, soli­
dez e legitimidade, sobre pontos referenciais de valoração cuja conver­
gência se faz ao redor de um eixo axiológico cifrado num único princí­
pio cardeal: o princípio de unidade da Constituição.
Com efeito, esse princípio magno e excelso, comum a todo regi­
me constitucional legítimo, é, na forma, a unidade normativa da Cons­
tituição; e, na substância, a unidade espiritual da Carta Magna, ou seja, 
o espírito da Constituição em seus fundamentos invioláveis.
Fora daí nada é constitucional. Tudo se subsume ou se desfaz em 
infração e quebrantamento da Lei Magna, em ofensa à ordem superior 
de seus valores básicos, em postergação da hierarquia normativa, em 
ilegitimidade insanável, em corrosão do sistema consensual de poder.
Em suma, é possível também condensar noutras palavras o mes­
mo conceito da seguinte forma: a unidade da Constituição, qual a con­
cebemos, vista pelo prisma formal, é uma hierarquia de normas que 
estabelece a rigidez e, a partir daí, a superioridade da lei constitucional 
sobre a lei ordinária, garantindo, desse modo, a segurança jurídica e, 
ao mesmo passo, a estabilidade do ordenamento; vista porém pelo pris­
ma material, por sem dúvida o mais importante, a mesma unidade da
28 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEM €>CM «A#>?H<^PATIVA
Constituição é maionnente uma hierarquia de normas visualizadas pe­
los seus conteúdos e valores.
Estes amparam a legitimidade do ordenamento constitucional, cujo 
fim já não é, apenas, aquela segurança, de todo formal, senão também 
a justiça substantiva, a justiça material, a justiça que se distribui na so­
ciedade, a justiça em sua dimensão igualitária; portanto, a justiça in- 
corporadora de todas as gerações de direitos fundamentais; da primeira 
à segunda, da segunda à terceira e desta à quarta, passando pelos direi­
tos civis e políticos, pelos direitos sociais, pelo direito dos povos ao 
desenvolvimento, até alcançar, com a democracia participativa, onde 
têm sede os direitos da quarta geração - sobretudo o direito à democra­
cia - um paradigma de juridicidade compendiado na dignidade da pes­
soa humana.
Essa dignidade consubstancia, por inteiro, a ordem axiológica do 
regime e das instituições; é o supremo valor onde jaz o espírito da 
Constituição.
O quebrantamento do espírito da Constituição configura a maior 
das inconstitucionalidades. As políticas de governo, ofensivas do di­
reito popular e da soberania do país, se não forem tolhidas pela via 
judicial de controle - o que só nos parece possível numa democracia 
participativa - legitimam o direito de resistência, bem como a desobe­
diência civil, por derradeiras instâncias de defesa do povo agredido.
Assim há de ser naquela forma de democracia cujas Cortes solve- 
rão conflitos constitucionais empregando princípios interpretativos des­
conhecidos à hermenêutica clássica, quais, por exemplo, entre outros, 
o princípio da proporcionalidade.
Com tais categorias hermenêuticas se faz, por conseguinte, a pon­
deração de valores, no intuito primacial de assegurar uma ordem jurí­
dica mais justa, impossível de estabelecer ou introduzir se não houvesse 
uma nova hermenêutica constitucional acostada a valores e princípios.
E a hermenêutica da justiça, da materialidade normativa, da con- 
cretude jurídica do poder popular, da realização moral do princípio da 
dignidade da pessoa humana naquele gênero de democracia.
Se as garantias participativas asseguradas materialmente nessa 
nova categoria ou espécie de Estado democrático de Direito não preva­
lecerem, ou forem embargadas, a sobredita hermenêutica constitucio­
nal perderá seu fim e significado e o espírito da Constituição logo che­
gará ao seu termo como princípio de legitimidade, da mesma forma 
que aconteceu com o espírito das leis (título da obra capital de Montes-
O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 29
quieu) enquanto princípio da legalidade, arruinado com a decadência 
do constitucionalismo burguês da sociedade de classes, que foi a socie­
dade da época do liberalismo.
3. O constitucionalismo da democracia participativa é o mesmo 
constitucionalismo de luta que prevaleceu no ocidente quando os paí­
ses do Primeiro Mundo proclamavam repúblicas, promulgavam Cons­
tituições ou, em evasivas conservadoras de apego e afeição ao passa­
do, instalavam monarquias constitucionais, afiançando a sobrevivência 
política dos tronos e das dinastias ameaçadas.
É por igual, doravante, o constitucionalismo dos países da perife­
ria onde o espírito da Constituição tem o mesmo sentido histórico que 
teve o espírito das leis no século da revolução, quando a França liqui­
dou o absolutismo.
O Espírito das Leis,de Montesquieu, e o Contrato Social, de 
Rousseau, foram as obras mais influentes e clássicas na elaboração da 
doutrina do velho liberalismo e sua ideologia de mutação das bases so­
ciais em proveito da nova classe dominante.
A máquina do poder absoluto e dos privilégios feudais, mantida e 
criada pelo ancién régime, e pela arrogância de seus reis de direito di­
vino, desmantelou-se e produziu um estrondo cuja ressonância chega 
aos nossos dias, e ainda perdura com a memória dos eventos revolucio­
nários daquela época.
As nações do Velho Mundo, durante aquela idade de mudança e 
rebelião social, espargiam o sangue de seus povos nas guerras civis do 
Continente. Eram guerras de inspiração libertária, nascidas das idéias 
propagadas e propugnadas pelos publicistas e filósofos da Revolução 
Francesa.
As invasões napoleônicas, estendendo-se por toda a Europa, se 
tomaram, depois, deveras significativas a esse respeito. A ditadura im­
perial, tomando a forma do passado, conduzia, porém, as sementes que 
germinavam o futuro. O presente se consagrava mediante o Código e o 
porvir mediante a Constituição. O braço dos granadeiros de Napoleão 
levava oculto, a cada país conquistado, o pensamento constitucional da 
liberdade. Era o paradoxo da passagem de um extremo a outro, conti­
do e incubado na fereza do antigo general da Convenção que fez as 
campanhas da Revolução e, com suas armas, decretou o fim das socie­
dades feudais. O seu Código era a base jusprivatista de organização da 
sociedade civil, estabelecida segundo um método novo e revolucioná­
rio, que enfraquecia, de maneira definitiva, o poder da nobreza e dos 
reis do absolutismo.
30 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
4. Se traçamos o quadro acima o fizemos tão-somente no intuito 
de patentear quanta analogia e semelhança se pode extrair da lição da­
quele tempo, e com ela fundamentar a justiça da causa constitucional 
dos povos do Terceiro Mundo. Não podem eles desfazer-se, portanto, 
dos conceitos trazidos e inspirados pela ideologia libertadora do sécu­
lo XVIII.
Hoje, mais do que nunca, são tais conceitos instrumentos de luta, 
de extrema valia e atualidade com que conjurar a queda irremissível do 
povo nos braços da recolonização.
Uma recolonização aparelhada pela classe política dominante e 
por considerável parcela dos juristas a seu serviço, sem consciência do 
dano causado ao interesse nacional.
Por conseqüência - tomamos a reiterar - a bandeira da democra­
cia social e participativa é apresentada pelos globalizadores como ar­
caísmo político, que ainda faz arder a imaginação dos países do Ter­
ceiro Mundo. Todavia, é a doutrina do neoliberalismo que figura como 
a lâmina mais corrosiva e cortante que já se empregou para decepar a 
liberdade, a economia e as finanças dos povos da periferia.
Nunca, jamais, aquela bandeira foi, porém, tão necessária de has­
tear e conduzir entre os povos do Terceiro Mundo quanto hoje. Arriá- 
la seria capitular, e capitular outro sentido não tem senão dobrar a cer- 
viz ao Poder Central da globalização reacionária, ora em curso. E ela 
que constrói a nova Roma neoliberal do capitalismo.
No mundo da economia, das finanças e da política, a globalização 
significa, inequivocamente, a sujeição completa de todos os povos ao 
império das hegemonias supranacionais, enfeixadas na ideologia da 
pax americana.
Houve quem já dissesse, com ironia e verdade, que o mundo todo 
está sendo colocado na gaiola da globalização.
Afigura-se-nos todavia que a globalização fez duas gaiolas; uma, 
de luxo, toda especial - é mais um viveiro aberto, dotado de amplo e 
arejado espaço reservada aos povos do Primeiro Mundo; outra, pe­
quena, estreita, fechada, suja e obscura, destinada aos passarinhos do 
Terceiro Mundo. Ficam estes confinados nela para sempre. Quem ali 
entra há de entrar como as almas no infemo de Dante - ou seja, entram 
para viagem sem retomo.
5. As reflexões que ora fazemos legitimam, portanto, em nosso 
universo político, ou seja, em todas as esferas da nacionalidade, a ado­
ção imediata de um constitucionalismo de luta, de resistência, e de
O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 31
ofensiva e libertação, que penetra a consciência nacional e se abraça 
com o mesmo fervor de proteção e o mesmo anseio de conquista, àque­
le que outrora instituiu as liberdades do Primeiro Mundo, nas pretéri­
tas épocas revolucionárias do século XVIII.
Vamos, portanto, para o campo de batalha a fim de manter os di­
reitos sociais na teoria e concretizá-los, a seguir, com mais amplitude, 
na práxis, onde o neoliberalismo já os salteou com golpes mortais des­
feridos sem piedade.
Vamos, também, para essa porfia de vida e morte a fim de que não 
se revoguem nem destrocem os direitos da terceira geração, a saber, o 
direito dos povos ao desenvolvimento, ou seja, o mais crepitante e o 
mais urgente dos direitos na versão social e universal da justiça iguali­
tária. Essa justiça é fadada a passar do indivíduo, do trabalhador e do 
cidadão às gentes sacrificadas da humanidade subdesenvolvida.
Estamos, assim, em presença daquela humanidade cujos filhos via­
jam no comboio do progresso em vagão de terceira classe, isto é, nos 
últimos compartimentos da miséria social, do sofrimento, do abando­
no, da dor, do esquecimento.
E a humanidade que tem os pulsos atados às algemas da globali­
zação neoliberal, a escravidão branca do século XXI. Vivem, assim, os 
povos periféricos num mundo de atraso, ódios, trevas e preconceitos; o 
mundo das perseguições sociais e das desigualdades iníquas que de­
sonram o século; o mundo onde a dignidade da pessoa humana é, to­
dos os dias, ofendida e conculcada.
Enfim, quo vadis liberdade, justiça e democracia? O egoísmo, a 
traição, o elitismo dos privilegiados dominam os juristas da ditadura 
constitucional. E agora eu vos pergunto: tendes porventura respeito aos 
legisladores de gabinete, que redigem e fazem passar por lei as medi­
das provisórias inconstitucionais do governo da recolonização?
Se não houvesse o horizonte da democracia participativa, para a 
qual se convocam, se recrutam e se arregimentam as falanges insubor- 
náveis da mocidade acadêmica e universitária, as esperanças de fazer 
sobreviver a Constituição, já grandemente destroçada e transgredida, 
seriam mínimas, com a situação constitucional do país para sempre 
comprometida.
Ao grito de convocação, elas, parte pensante da consciência nacio­
nal, acudiram com sua presença, e aqui compareceram, contra a mídia 
do silêncio e da ausência, contra o Poder, contra as pressões reacioná­
rias da classe dominante, contra os interesses organizados, contra as
32 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
empresas do capital interno e externo. Atendendo às palavras convoca­
tórias do nosso apelo vieram a estes encontros e seminários ouvir e 
aplaudir a oração dos constitucionalistas da democracia e da liberdade.
Constitucionalistas que vos são fiéis e não vos atraiçoam, qual 
soem fazer os juristas das medidas provisórias, os deputados e senado­
res das miniconstituintes, os demagogos dos plebiscitos inconstitucio­
nais, os autores de propostas desrespeitosas que afrontam os artigos 
cardeais da Constituição, designadamente aquele onde bate o coração da 
Lei Magna, que é o art. 60 da Constituição e seus intangíveis §§ lfi e 4a.
6. Distinguimos no constitucionalismo dos países ocidentais três 
modelos sucessivos de Direito Constitucional.
Primeiro, um Direito Constitucional de geração originária, ou seja, 
o Direito Constitucional do Estado liberal.
Teve ele a primogenitura da salvaguarda das liberdades humanas. 
Nasceu em sua rigidez formal na Europa, depois de banhar-se de san­
gue ao decurso das grandes tempestades e comoções revolucionárias 
do continente, sobretudo durante a Revolução Francesa.
A seguir, após padecer mais abalos não menos traumáticos, quais 
os do México, da União Soviética e da República de Weimar, despon­
tou o Direito Constitucional de segunda geração, a saber,o Direito 
Constitucional do Estado social.
Este, em termos institucionais propriamente ditos, aferidos pelo 
critério da estabilidade, só vingou em países do chamado Primeiro 
Mundo, porquanto foi neles que se introduziu de maneira mais viva, 
efetiva e menos programática o princípio igualitário.
Todavia, tem-se observado ali, por derradeiro, a ocorrência de um 
Estado social regressivo, já na esfera teórica, já no patamar programáti- 
co. Tudo em conseqüência das formulações neoliberais da globalização.
De tal sorte que o Direito Constitucional da segunda geração des- 
figurou-se e tomou, de último, a feição neoliberal, derivada no Primei­
ro Mundo da dissolução dos modelos sociais, da perda de expansão de 
seus valores, do discurso reacionário dos interlocutores do capitalis­
mo, que colocam, acima de tudo, nas perspectivas globais do progres­
so e da civilização, a dimensão das operações lucrativas, das finanças e 
dos altos interesses empresariais, criando, ao mesmo passo, nas extre­
midades da tecnologia avançada, esse sofisma de mercado que é a cha­
mada Nova Economia, a qual empurra, paradoxalmente, o Terceiro 
Mundo, pela via oblíqua das especulações, para o insondável abismo 
do neocolonialismo.
O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 33
Trata-se, em verdade, de um Direito Constitucional avariado, de­
cadente, estagnado, que perde densidade institucional, normativa e ju- 
risprudencial à medida que a fusão federativa se acelera no Velho Con­
tinente. Tal se observa sobretudo nos países que estão prestes a formar 
uma espécie de Estados Unidos da Europa, algo que, somado à globa­
lização torna mais grave e delicado o problema de legitimidade criado 
por esse fenômeno.
Contudo, o processo globalizador não nos envolve na fatalidade 
de um determinismo, conforme intentam fazer crer os que nos impe­
lem à retaguarda e à capitulação incondicional, desertando as esferas 
da política, da économia nacional, da identidade e da soberania.
A Cartilha elaborada pelo Consenso de Washington é o breviário 
do neoliberalismo, o decálogo da recolonização.
Podemos, por conseguinte, dizer com toda certeza que um Direito 
Constitucional atrelado à sua autodissolução, consoante nos querem 
impor, absolutamente não nos convém nem nos interessa, porquanto 
solapa todas as conquistas jurídicas e sociais da liberdade nos países 
do Terceiro Mundo.
Acarreta, ao frágil constitucionalismo desses países, varridos por 
freqüentes crises constituintes, o pior retrocesso de todas as épocas 
constitucionais.
Em razão disso, a resistência é tarefa de todos nós, que havemos 
de construir em bases teóricas, e depois trasladá-lo à prática, esse novo 
Direito Constitucional de terceira geração.
Pretendemos, assim, na advocacia da liberdade e da Constituição 
traçar-lhe as linhas mestras, estabelecê-las com nitidez, dotá-las de po- 
sitividade, fazê-las uma revolução nos fastos do constitucionalismo, a 
fim de que alcancem, tão cedo quanto possível, um mais elevado nível 
de democratização da Sociedade.
7. Busca-se, como se vê, fundar o Direito Constitucional da de­
mocracia participativa. Com esse Direito, poder-se-á salvar, preservar 
e consolidar o conceito de soberania que a onda reacionária do neoli­
beralismo contemporâneo faz submergir nas inconstitucionalidades do 
Poder, até destroçá-lo por completo.
A democracia participativa é direito constitucional progressivo e 
vanguardeiro. E direito que veio para repolitizar a legitimidade e re­
conduzi-la às suas nascentes históricas, ou seja, àquele período em que 
foi bandeira de liberdade dos povos.
34 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
A legitimidade formal, despolitizada, posta em bases procedimen­
tais, desmembrada de seus conteúdos valorativos, se encaixa bem nos 
desígnios subjacentes aos interesses neoliberais, por servir-lhes de cou­
raça, de antemuro, de escudo às suas posições contra-ideológicas, de 
suposta e falsa neutralidade.
A democracia participativa combate a conspiração desagregadora 
do neoliberalismo e forma a nova corrente de idéias que se empenham 
em organizar o povo para apôr um dique à penetração da ideologia co­
lonialista; ideologia de submissão e fatalismo, de autores que profes­
sam a tese derrotista da impossibilidade de manter de pé o conceito de 
soberania. A obsolescência deste é proclamada a cada passo como ver­
dade inconcussa.
A democracia participativa porém, se vingar, há de elaborar outro 
direito constitucional forjado na luta e na rejeição ao neoliberalismo da 
recolonização.
As matrizes básicas de conceitos indeclináveis e inabdicáveis, 
quais os de soberania, nação e povo, serão zelosamente conservadas e 
amparadas, porquanto a privação desses pressupostos conceituais e or­
gânicos faria inexeqüível e obstaculizada toda marcha rumo a um Es­
tado de Direito de emancipação social, que a democracia representati­
va de fachada jamais fará possível.
8. A ideologia constitucional dos países do Terceiro Mundo há de 
ser, por inteiro, distinta da que ora prevalece no cognominado Primei­
ro Mundo.
Se insistirmos em seguir à risca as transformações ali produzidas, 
por efeito de mudanças - processadas sempre no magno interesse de 
uma globalização concentradora de força, hegemonia e poder, restrita 
aos espaços confinados da central do capitalismo o constitucionalis- 
mo entre nós deixará de existir até mesmo como cópia de modelos ex­
ternos. Restará, tão-somente, a ficção e a caricatura de uma pseudo e 
evanescente soberania, escarnecida por conceito abstrato e sem con­
teúdo, a par da aceitação resignada da condição colonial irreparável.
A chave constitucional do futuro entre nós reside, pois, na demo­
cracia participativa, que faz soberano o cidadão-povo, o cidadão-go- 
vemante, o cidadão-nação, o cidadão titular efetivo de um poder inva­
riavelmente superior e, não raro, supremo e decisivo.
O cidadão, nesse sistema, é, portanto, o povo, a soberania, a na­
ção, o governo; instância que há de romper a seqüência histórica na 
evolução do regime representativo, promovendo a queda dos modelos
O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 35
anteriores e preparando a passagem a uma democracia direta, de natu­
reza legitimamente soberana e popular.
Em face desse contexto é de notar que a direção dos regimes poli- 
ticos tem obedecido a dois momentos culminantes na evolução do cons­
titucionalismo representativo.
No primeiro momento avulta o legislador que faz a lei, inviolável 
e suprema. Consagra-se o princípio da legalidade. E a época em que 
prepondera o dogma do racionalismo político e jurídico, em que avulta 
a inspiração jusnaturalista, logo transmudado num positivismo a cami­
nho da máxima estabilidade.
Com as instituições estáveis, por obra dos Códigos, que afiançam 
a fiel observância daquele princípio de legalidade, o princípio por ex­
celência da segurança jurídica, o Estado liberal entra a festejar a era de 
esplendor de sua ideologia jusprivatista.
No segundo momento a revolução contemporânea dos direitos 
fundamentais elevados à categoria de princípios, e grandemente des­
providos já de seu teor meramente subjetivista, peculiar à versão libe­
ral de poder e direito, fez despontar a definitiva supremacia normativa 
da Constituição sobre a lei. Formulou-se então o princípio de constitu- 
cionalidade, e introduziu-se a idade nova dos valores e princípios, que 
determinam a nova base de normatividade dos ordenamentos jurídicos 
e, ao mesmo passo, o advento da Constituição aberta.
Em rigor, Constituição aberta de modo algum, nesse âmbito con­
ceituai, significa perda da rigidez da Constituição.
A rigidez garante o funcionamento normal de mecanismos sem os 
quais não há superioridade das normas constitucionais nem se toma 
eficaz, nem exeqüível, o controle de constitucionalidade.
Um terceiro momento, todavia, já se vislumbra com formação de 
uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos 
clássicos. Pertence à democracia participativa e fazdo cidadão-povo a 
medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba-se então a intermedia­
ção representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrá­
tica do cidadão - meio povo, meio súdito.
De todos os períodos constitucionais, o mais crítico é o da demo­
cracia constitucional, porque decide do destino e do futuro dos povos 
da periferia, perseguidos pelo fantasma da recolonização.
Cassar a soberania, como a globalização intenta fazê-lo, de mão 
comum com o neoliberalismo, órgão primaz de sua singular ideologia 
antiideológica - aliás uma surpreendente contradição nos anais do pen-
36 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
sarnento filosófico-político! - significa truncar, coarctar ou suspender 
a evolução constitucional dos países periféricos, arruinados por dita­
duras e pelas mazelas do subdesenvolvimento.
Significa, ao mesmo passo, fechar a porta para sempre à concreti­
zação dos direitos fundamentais de cunho objetivo e pluridimensional. 
Daqui a razão de preconizar-se para esses países um Direito Constitu­
cional de luta e resistência cujas raízes de pensamento e justificação já 
se acham deitadas, contidas, expostas e definidas em nosso compêndio 
sobre a matéria. (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 
10a edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2000)
Com efeito, o Direito Constitucional afigura-se-nos a mais rele­
vante disciplina que versa e expõe, na direção dos valores, as bases 
jurídicas de uma sociedade verdadeiramente livre.
Diante, pois, das graves ameaças de substituição das Constituições 
pelas Ordenações ou da Lei pelas Cartas Régias, do passado colonial, 
que hoje tem o seu equivalente nas Medidas Provisórias, faz-se mister, 
fora de toda controvérsia, se quisermos manter abertos os horizontes 
da libertação, apelar, outra vez, para as velhas armas do constituciona­
lismo clássico quando ele foi um constitucionalismo de resistência, a sa­
ber: a nação, a soberania, e o povo. Por mais paradoxal e inverossímil 
que isso possa parecer, são elas, ainda, os mais eficazes meios de defesa 
e os mais seguros veículos de sobrevivência da identidade ameaçada.
9. Com a democracia participativa o político e o jurídico se coa­
gulam na constitucionalidade enquanto simbiose de princípios, regras 
e valores, que fazem normativo o sistema, tendo por guia e chave de 
sua aplicação a autoridade do intérprete; mas do intérprete legitimado 
democraticamente enquanto juiz eletivo que há de compor os quadros 
dos tribunais constitucionais.
Nisto consiste a essência e o espírito da nova legitimidade: o abra­
ço com a Constituição aberta, onde, sem cidadania não se governa e 
sem povo não se alcança a soberania legítima.
As derradeiras instâncias decisórias hão de permanecer ali sempre 
vinculadas à emancipação direta da vontade popular.
A nova legitimidade assenta, pois, a democracia participativa em 
instrumentos ou órgãos de concretização como a Nova Hermenêutica 
Constitucional, indubitavelmente sua mais sólida coluna de sustenta­
ção e efetivação.
O elemento interpretativo, ínsito à formação da legitimidade, era 
dantes, na velha Hermenêutica, ou desconhecido em matéria constitu­
O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 37
cional ou menoscabado, aí, por sua natureza acessória, adjetiva e ins­
trumental; já, os conteúdos políticos e jurídicos, estes sim perfazem, 
com a Nova Hermenêutica, a parte substantiva do sistema e, por con­
seguinte, formam os esteios da nova legitimidade definindo a maneira 
como se concretiza a democracia participativa.
Se não houvesse contudo conexidade inapartável do político com 
o jurídico, não haveria necessidade de nova hermenêutica para as Cons­
tituições.
As Cartas Magnas são, primacialmente, ordem de princípios e va­
lores, necessitados de meios interpretativos desconhecidos à hermenêu­
tica clássica, e sem os quais a juridicidade das cláusulas constitucio­
nais não se traduziria naquelas determinações normativas, por onde se 
há estabelecido a superioridade hierárquica do princípio da constitucio- 
nalidade sobre o tradicional e minguante princípio da legalidade.
Deposto se acha este princípio de seu pedestal jusprivatista pela 
ruína e decadência ideológica do velho liberalismo, cuja racionalidade 
neutralista das leis caiu no descrédito e já não engana a quem desven­
dou e percebeu o sigiloso semblante axiológico e teleológico das insti­
tuições burguesas e seus mecanismos de autoconservação.
É na direção renovadora da hermenêutica constitucional e de sua 
axiologia, condensada em valores e princípios, que as instituições da 
democracia participativa hão de achar o caminho para solver seus pro­
blemas; caminho de concretude e não de abstração metafísica e pro- 
gramática, qual se perlustrara em idades constitucionais já ultrapassa­
das, quando a Constituição era tão-somente promessa de liberdade e 
esperança de democracia.
Em razão disso não causava sobressaltos nem, tampouco, vexa- 
ções ao poder conservador das elites burguesas da sociedade capitalista.
10. Doravante, porém, a Constituição se nos afigura a estrada real 
que conduz à democracia participativa. Não há como interpretá-la dou­
tra forma quando se trata de fazê-la o meio mais seguro de concretizar 
o Estado de Direito, as liberdades públicas e os direitos fundamentais 
de todas as dimensões enunciadas e conhecidas, sobretudo nos países 
retardatários da orla periférica, onde o subdesenvolvimento trava, como 
um freio, o funcionamento das formas representativas.
A importância da Constituição, ao contrário do que escrevem os ju­
ristas neoliberais, só tem crescido e só há de crescer em virtude da espé­
cie de globalização em curso, que esmaga e confisca as conquistas so­
38 TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
ciais do trabalho e faz mais amargo, mais aflitivo, mais retrógrado, mais 
iníquo, por obra das injustiças do capital, o retrocesso da recolonização.
O princípio da constitucionalidade, desatando-se de seus laços de 
sujeição e vassalagem ao formalismo hierárquico de Kelsen - sem con­
tudo renegá-lo, antes incorporando-o - , fez brotar outra hierarquia, de 
teor material, a saber: a hierarquia de valores e princípios, doravante sua 
nova base e fundamento. Desta, uma vez privado o princípio, perderia 
ele a possibilidade de instaurar a nova hermenêutica constitucional.
Essa hermenêutica se funda toda em elementos valorativos, cuja 
supremacia nos faz chegar à democracia participativa; democracia da 
concretude e da realidade e não do sonho e da utopia; democracia do 
povo e não da representação; democracia das massas e não das elites; 
democracia da cidadania e não do súdito branco, o suposto cidadão dos 
regimes representativos.
11. Sendo escola de pensamento e teoria jurídica de organização 
do poder político, a democracia participativa deita suas raízes no con­
tributo filosófico da tópica de Aristóteles na antigüidade e de Viehweg 
na modernidade.
Também foram deveras influentes por trazerem pedras aos alicer­
ces do novo sistema alguns juristas alemães, discípulos do Mestre da 
Mogúncia.
Não titubearam eles em confutar, com o peso de sólidos argu­
mentos, as objeções antitópicas e antifilosóficas de Forsthof, o jurista 
schmittiano empenhado, sagazmente, em restaurar o prestígio e a au­
toridade do positivismo. Designadamente, daquele positivismo vincu­
lado às vertentes mais adversas à liberdade, qual a do estatismo autori­
tário e ideológico remanescente, que subjaz às doutrinas totalitárias do 
século XX, todas elas lesivas ao estabelecimento do Estado de Direito.
Contudo, onde a democracia participativa haure um de seus subsí­
dios mais destacados, mais corretos, mais elucidativos da sua respecti­
va feição e natureza é, talvez, na obra de Müller, na sua metodologia 
interpretativa da norma constitucional, sobretudo na sua concepção an­
tecedente, em que, segundo ele, a doutrina clássica, para chegar ao 
povo - e nunca chegava, segundo ele, em razão das escamoteações re­
presentativas

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