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\ CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam REVISÃO: Rita Lopes Edições Loyola Rua 1822 nº 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP @ (11) 6914-1922 ® (lI) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quais- quer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 978-85-15-03307-2 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007 'ih -4-,.,- • li o' • li t " SUMÁRIO Introdução... 9 Capítulo 1 • Entendes o que lês? 11 1. Leitura multifacetada 11 2. As línguas "originais" 13 3. Traduções e fundamentalismo 14 4. Dois tipos de tradução 15 5. Comparação de algumas traduções do Brasil............................... 16 6. E quem não estudou grego nem hebraico? 22 Capítulo 2 • Primeiros passos na leitura 23 1. A delimitação do texto 23 1.1. Critérios para delimitar um texto .. 24 1.2. Avaliação de alguns casos nas Bíblias editadas no Brasil 26 2. A segmentação do texto 28 3. A forma do texto 29 4. Exercícios 30 Capítulo 3 • Figuras de linguagem e modos de dizer 33 1. Figuras de linguagem 33 2. Figuras de pensamento ou de retórica.. 34 3. Figuras de construção ou de sintaxe 36 4. Figuras de palavras ou estilo 37 5. Exercícios 38 Capítulo 4 • Gêneros literários 41 1. Preliminares 41 2. Como identificar um gênero literário 42 3. Na prática, como fazer 43 4. Gêneros literários 45 4.1. Relatos 46 4.1.1. Novela 46 4.1.2. Saga.......................................................................... 46 4.1.3. Lenda profética 47 4.1.4. Relato de milagre 47 4.1.5. Relato de vocação 48 4.1.6. Relato de "não-vocação" 49 4.1.7. Parábola jurídica 49 4.1.8. Relato sobre o herói-menino exposto à morte 49 4.1.9. Relato de ascensão 50 4.1.10. Relato de visão.......................................................... 51 4.1.11. Relato de viagem a outros mundos 52 4.1.12. Relato sobre o julgamento do rei 52 4.1.13. Relato sobre a mulher que derrota o inimigo 53 4.1.14. Relato de controvérsia 53 4.1.15. Relato da unção do rei por um profeta 54 4.1.16. Relato de ação simbólica 54 4.2. Leis 55 4.2.1. Leis categóricas 55 4.2.2. Leis casuístas 55 4.2.3. Maldições 55 4.2.4. Sentenças de morte 56 4.3. Discursos e ensinamentos 56 4.3.1. Oráculo de salvação 56 4.3.2. Requisitória profética - rib 56 4.3.3. Comparação, parábola, alegoria e fábula 57 4.3.4. Discursos de revelação 58 4.3.5. Provérbio breve - mâsâl 58 4.3.6. Sentença-tôv 58 4.3.7. Etopéia 59 4.3.8. Paralelismo dos números 59 4.3.9. Lista enciclopédica 59 4.4. Cânticos e poesias 60 4.4.1. Cânticos de guerra 60 4.4.2. Cântico de descrição da pessoa amada - waif........... 60 4.4.3. Cânticos cultuais 60 4.4.4. Salmos 61 5. Exercícios 64 Capítulo 5 • Leitura sinóptica dos evangelhos 67 1. Preliminares 67 2. Teoria das duas fontes 68 3. Na prática, como estudar os evangelhos sinópticos 70 4. Um exemplo estudado 70 5. Exercícios 75 Capítulo 6 • Noções de poética hebraica 77 1. Terminologia................................................................................. 77 2. Paralelismo .......;............................................................................ 78 3. Artifícios poéticos......................................................................... 80 4. Exercício 83 Capítulo 7 • Exercícios corrigidos 85 1. Capítulo 2: Primeiros passos na leitura................. 85 2. Capítulo 3: Figuras de linguagem e modos de dizer 88 3. Capítulo 4: Gêneros literários 90 4. Capítulo 5: Leitura sinóptica dos evangelhos 93 5. Capítulo 6: Noções de poética hebraica 96 Bibliografia............................................................................................. 99 INTRODUÇÃO "Entendes o que lês?", perguntou Filipe ao eunuco etíope, que, por sua vez, respondeu: "Como posso entender, sem que alguém me guie?" (At 8,30-31). A resposta do eunuco é interessante. Ele não diz "alguém que me explique", isto é, que me esclareça este único trecho da Escritura; antes, ele deseja "alguém que guie", isto é, alguém que lhe dê critérios para ler e entender toda a Escritura. De fato, o autor de Atos dos Apóstolos diz que Filipe tomou como ponto de partida o texto de Isaías que o eunuco lia (Is 53,7-8) para anunciar o evangelho. O eunuco não queria somente a explicação pontual de um trecho da Bíblia. Mais do que uma interpretação pronta, ele queria aprender a interpretar. Em outras palavras, ele pergunta a Filipe: "Como posso entender, sem alguém que me dê uma chave de interpretação?", ou ainda: "Como posso compreender, sem alguém que me ensine um método de leitura?". A pergunta do eunuco permanece ainda válida: a maioria dos leitores da Bíblia tem uma grande dificuldade para entender o que ela diz. O povo de Deus ama a Palavra de Deus, mesmo sem compreendê-la totalmente. A resposta de Filipe também permanece válida: os discípulos mais adian- tados no estudo da Sagrada Escritura têm a missão de guiar os que ainda se sentem perdidos durante a leitura. Esta, pois, é a finalidade deste livro. Trata-se de um pequeno manual de metodologia bíblica, uma cartilha, que oferecerá ferramentas para se estudar o LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 9 texto bíblico de modo mais profundo. Abaixo da superfície do texto bíblico encontra-se um outro mundo à espera do leitor. A presente cartilha quer for- necer referências para que qualquer pessoa, mesmo sem conhecer grego e hebraico, possa fazer um mergulho e de lá voltar maravilhada com esta coisa tão bonita que é a Palavra de Deus. Pois, entao, se prepare! Tenha sempre por perto a Bíblia e outros instru- mentos de trabalho: lápis,borracha, papel, lápis de cor; teclado e impres- sora para quem já entrou na era da informática. Não se assuste com o grego e o hebraico. Pule o que estiver nestas IInguas e vá em frente: tudo será traduzido e explicado. Bom trabalho... A gente se encontra por ai... 10 ------------------------- lEIA A BíBliA COMO liTERATURA Capítulo 1 ENTENDES O QUE LÊS? 1. Leitura multifacetada Quando o eunuco disse a Filipe: "Como posso, sem alguém que me guie?", Filipe ofereceu ao eunuco um caminho, um critério para interpretar a Escritura. Todavia, se Filipe tivesse sido rabino, em lugar de tal critério, ele teria chama- do outro rabino e ambos entabulariam uma discussão sobre as múltiplas pos- sibilidades de se interpretar o mesmo texto. Com efeito, os rabinos não se cansam de afirmar que "a Escritura tem setenta faces", isto é, há muitos modos de ler a Palavra de Deus. E eles estão certos! Essa multíplice interpretação da Bíblia deriva de vários fatores, alguns ligados ao texto (a língua e o estilo do autor, a clareza com que as idéias foram expressas, o quanto o texto reflete o ambiente histórico-social em que foi produzido), outros ligados ao leitor (seus interesses durante a leitura, o quanto ele conhece aqueles fatores ligados ao texto, quais princípios de interpretação ele aplica durante sua leitura do texto bíblico). LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 11 Essa leitura multifacetada pode ser assim esquematizada: História, Antropologia, Sociologia Oração, Lectio Divina Liturgia, Pregação Catequese, Doutrinação Exegese Teologia 12 A leitura como forma de oração é o modo mais básico e espontâneo do contato com a Bíblia: o leitor percorre a Sagrada Escritura tendo em vista um diálogo com Deus. Há vários esquemas de leitura orante, entre os quais se destaca a chamada Lectio Divina, cujos passos são: leitura do texto, meditação, partilha, oração, contemplação, ação. A leitura usada na liturgia e na pregação estabelece o vínculo entre vários textos que falam do mesmo tipo de presença e de ação de Deus na história humana. Essa leitura também quer levar o leitor/ouvintea um com- promisso de vida. Um pouco mais elaborada é a leitura da Bíblia na catequese e na doutri- nação, pois exige um conhecimento relativamente sólido e profundo da cha- mada "história da salvação", dos dogmas e da moral, a fim de que a experiên- cia do povo da Bíblia possa ser constantemente atualizada. Juntas, essas três primeiras leituras ou faces - oração, liturgia e catequese - formam a chamada "leitura pastoral da Bíblia". Quando se passa para a teologia, a leitura se toma bem mais elaborada. O objetivo não é formar na fé, e sim fazer uma reflexão sistemática e abrangente sobre os conteúdos da fé. Por isso, a leitura teológica usa como instrumentos de trabalho a filosofia, a história, as ciências da linguagem e outras ciências humanas. A teologia aplicada especificamente ao estudo da Bíblia é chamada de "teologia bíblica". Por sua vez, a exegese faz uma minuciosa leitura analítica para compreen- der o texto bíblico em si mesmo. Para tanto, o leitor deve conhecer bem as línguas bíblicas (hebraico, aramaico, grego) e dominar os métodos científicos desenvolvidos especialmente para o estudo da Bíblia. ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Teologia bíblica e exegese estão muito ligadas e são complementares, mas há uma diferença fundamental entre o trabalho de cada uma: a teologia é sistemática e a exegese é analítica. Em palavras pobres, pode-se dizer que a teologia estuda o que os textos bíblicos têm de parecido, enquanto a exegese estuda o que os mesmos textos têm de diferente. A última face das interpretações da Bíblia é constituída pelas várias ciên- cias humanas (história, antropologia, sociologia, psicologia e outras) quando usam o texto bíblico como objeto de estudo. Já não é mais a teologia ou a exegese que empresta algo dessas ciências, mas elas mesmas que se debruçam sobre a Bíblia e, muitas vezes sem nenhum interesse teológico, aplicam suas próprias metodologias de trabalho. Cada uma dessas formas de ler a Sagrada Escritura é válida e, não obstan- te, por si só incompleta e insuficiente. A Palavra de Deus sempre escapa aos esquemas humanos! Por isso, cada forma de leitura precisa reconhecer seus próprios limites e aprender a dialogar com as demais. 2. As línguas "originais" A palavra "original" deve ser lida entre aspas, porque o primeiro manus- crito de qualquer texto bíblico já não existe mais; há, sim, várias cópias, por vezes defeituosas e incompletas. Em alguns casos, há várias versões para o texto sagrado, até que um se impôs e se tornou normativo. No entanto, são admitidas como línguas originais: • para o Antigo Testamento: hebraico, aramaico e grego; • para o Novo Testamento: grego. Há também traduções antigas, de capital importância para a interpretação dos textos, principalmente nos casos em que o hebraico ou o grego são incom- preensíveis: • a Peshitta (tradução do Antigo Testamento, em siríaco); • os Targumim (traduções do Antigo Testamento, em aramaico); • a Vetus Latina e a Vulgata (traduções da Bíblia toda, em latim); • uma série de manuscritos antigos em outras línguas: hebraico samaritano, copta, boairico, saídico. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~- 13 3. Traduções e fundamentalismo Esta cartilha de metodologia bíblica quer ajudar os leitores da Bíblia a superar algumas atitudes ingênuas. A primeira delas é a que considera todas as traduções iguais e transposições totalmente fiéis do hebraico e do grego para uma língua vemácula (em nosso caso, para o português). Na verdade, sempre se perde algo quando se traduz de uma língua para outra, ainda mais quando se trata de textos antigos: o significado exato das palavras e das expressões, os jogos de palavras, o universo cultural etc. Em geral os tradutores estão muito atentos a tudo isso, mas é impossível encontrar soluções satisfatórias para todos os textos. Muitas das palavras do mundo bíblico não têm uma correspondente adequada em nossa língua. Entre o nosso universo cultural e o dos autores bíblicos há um grande abismo, constituído por língua, ambiente histórico e geográfico, desenvolvimento cien- tífico e tecnológico, mentalidade do povo. Disso resulta que uma tradução da Bíblia, por mais bem feita que seja, sempre perde algo e "trai" o original. ,.. -......•. ' ..." ú .. " ; .•...' "'0 Veja,por exemplo, o que acontece corn a palavra ~~ - go'e/, "resgata- dor" ou "remidor". .Ogo'e/ eraumcaraqU.e tinha várias atribuições, tais como; vingar a morte qe. um.parente assassinado; resgatar uma proprie- dade que umparente próximO perder~p<>rdívidas; se um parente morreu e deixou viúva sem filhos,o.go'e/tinttaaincumbênda de se casar com a viúva e ter filhos com ela para suscitar uma descendência para o falecido. Poisé ... Eu nem precisava explicar tudo isso. porque você já tinha enten- dido quem era o gO'e/só de ler a palavra "resgatador", não é mesmo? 14 Todavia, existe o chamado "fundamentalismo", segundo o qual a Bíblia deve ser lida "ao pé da letra", sem a necessidade de se estudar o universo em que ela surgiu. Para os fundamentalistas, o texto é claro por si mesmo e não condicionado pelo tempo, pela sociedade e pela história. Entre as várias carac- terísticas do fundamentalismo, uma delas é a atitude ingênua de considerar uma tradução da Bíblia algo absolutamente fiel aos textos originais e perfeita substituta deles. Sem dúvida, o texto bíblico é inspirado, e o mesmo Espírito que guiou os autores sagrados pode ter auxiliado os tradutores; mas, ainda assim, deve-se perguntar: Qual texto é o inspirado: o original ou a tradução? Para o fundamentalista, todas as traduções são igualmente inspiradas e gozam da mesma autoridade do texto original. No entanto, isso não é verdade. Não obstante toda a problemática referente aos manuscritos gregos e hebraicos ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA e à reconstrução material do texto, é considerado inspirado somente o original; todas as traduções, mesmo as mais honradas e veneradas por judeus e cristãos, não se equiparam aos textos assumidos como normativos, em grego e hebraico'. a fundamentalista, no entanto, não quer se perguntar sobre nada disso. Ele prefere crer que a tradução que tem em mãos está livre de erros e impre- cisões, e que os tradutores, sob a ação do Espírito Santo, foram capazes de traduzir com absoluta clareza o texto sagrado, com palavras perfeitamente adequadas e não condicionadas pelas diferenças entre a língua original e a língua de chegada. 4. Dois tipos de tradução Traduzir a Bíblia não é algo fácil. Há muitos textos em que foram usadas palavras cujo significado já se perdeu; em outros casos, as palavras são conhe- cidas, mas formam uma frase obscura ou truncada. À medida que a ciência bíblica progride, ela oferece novas soluções para velhos problemas textuais. Em cada nova tradução da Bíblia, os tradutores procuram superar as dificul- dades, mas muitos versículos ainda permanecem "indecifráveis". Quando se lê o mesmo versículo em mais de uma tradução, é comum encontrar grandes diferenças. A comparação de duas ou mais traduções da Bíblia quase sempre segue o critério da compreensão imediata: em uma edição o texto é "mais fácil", enquanto em outra é "mais difícil". Todavia, a tradução "mais fácil" pode também empobrecer a riqueza do texto original e até chegar a desvirtuá-lo. a critério "tradução mais fácil - tradução mais difícil" é meramente empírico e não pode servir como base para um estudo mais aprofundado da Palavra de Deus. Por isso, é necessário perguntar para que e para quem uma Bíblia é publicada (para a liturgia, para a catequese, para grupos populares, para o estudo da teologia). Grosso modo, podem-se dividir as traduções da Bíblia em duas categorias: as traduções formais ou literais e as traduções funcionais ou dinâmicas. A tradução formal ou líteral? renuncia à compreensão imediata. Antes, respeita a forma lingüística do original, mantém repetições e redundâncias, 1. O estudo comparativo das diferenças entre os manuscritos chama-se "crítica textual" eé um passo metodológico essencial na exegese dos textos bíblicos. 2. Não confundir com tradução "ao pé da letra", isto é, aquela em que o tradutor simples- mente transpõe palavra por palavra da língua original para a língua de destino, sem se LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA-------------------~---- 15 busca na língua de chegada o melhor vocábulo para traduzir o original, mesmo que seja uma palavra pouco usada. Por sua vez, a tradução funcional ou dinâmica visa a compreensão imediata. Para isso, elimina tensões, repetições e redundâncias, altera estruturas frasais, usa um vocabulário mais simples e, por vezes, supre palavras "faltantes". No Brasil, há traduções de ambos os tipos. A Bíblia de Jerusalém (BJ), a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), a Bíblia da CNBB a partir da quinta edição e as várias versões da João Ferreira de Almeida podem ser consideradas formais. Por sua vez, a Bíblia - Edição Pastoral, a Bíblia do Peregrino, a Bíblia na Linguagem de Hoje, a Bíblia Fácil e a Bíblia da CNBB até a sua quarta edição, todas podem ser qualificadas como funcionais. Ambos os tipos de tradução têm seu valor, mas isso não quer dizer que sejam iguais. As traduções funcionais, de grande serventia para a reflexão com grupos populares e para a catequese com crianças, são insuficientes para o estudo bíblico e teológico, uma vez que o estudo exige um texto sólido, mais bem elaborado e que sirva para uma reflexão mais profunda. Ou seja, para o estudo mais aprofundado da Bíblia, é necessário usar uma tradução formal. 5. Comparação de algumas traduções do Brasil Não faz parte dos objetivos desta cartilha comparar todas as traduções do Brasil. No entanto, é conveniente oferecer alguns exemplos, ainda que mera- mente ilustrativos. O leitor deve ter em mente o seguinte: no que se refere à Bíblia, a afirma- ção popular "é a mesma coisa com palavras diferentes" é falsa. Ou seja, quan- do se usam palavras diferentes, já não se está dizendo a mesma coisa! De fato, toda tradução reflete as opções teológicas (e ideológicas) do tradutor e indu- zem o leitor a uma ou outra interpretação do texto. Repito: Não existe "é a mesma coisa com palavras diferentes". Se as palavras não são as mesmas, já não é mais a mesma coisa... •.. ' .. á .;~' < 16 perguntar se o texto resultante significa alguma coisa no idioma para o qual o original foi traduzido. ----------------------- LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Um primeiro exemplo é Colossenses 1,24: Nuv xaí.pw EV roic TTae~j..LaOLV UTTEp Új..LWV Kal. áv,avaTTÂllPW ,à úa'Ep~lJ.lX.Ta. ,WV 8ÂLljIEwv 't'ou XpLaiou EV ,fi aapl<í.j..Lou ÚTTEP TOU oWj..La,oç auTOu, oEonv ~ EKKÂlloLa, Traduzido literalmente, o texto diz: Agora eu me alegro nos sofrimentos em vosso favor, e completo o que falta dos sofrimentos do Cristo em minha carne, em favor do seu corpo, que é a Igreja. Como era de se esperar, esse versículo foi traduzido de variados modos. Neste exemplo, o que interessa é a frase evidenciada: 1) João Ferreira Regozijo-me, agora, no que padeço por vós de Almeida e na minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, (revista e corrigida) pelo seu corpo, que é a igreja; 2) João Ferreira Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; de Almeida e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, (revista e atualizada) a favor do seu corpo, que é a igreja; 3) Novo Mundo Agora encontro a minha alegria nos sofrimentos que suporto (revisão de 1986) por vós; e o que falta às tribulações de Cristo, eu o completo em minha carne em favor do seu corpo que é a Igreja. 4) Edição Pastoral Agora eu me alegro de sofrer por vocês, (1997, reimpressão) pois vou completando em minha carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor do seu corpo que é a Igreja. 5) CNBB (2000, Alegro-me nos sofrimentos que tenho suportado por vós primeira edição) e completo, na minha carne, o que falta às tribulações de Cristo em favor de seu Corpo que é a Igreja. 6) Ave Maria Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. (1959) O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo que é a Igreja. 7) Bíblia Agora eu estou contente com os sofrimentos que tenho de Mensagem de suportar por vós. Deus (1994) Porque assim completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, em favor do seu corpo, que é a Igreja. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ------------------------ 17 18 8) Bíblia de Agora eu me regozijo nos meus sofrimentos por vós, Jerusalém (1985, e completo, na minha carne, o que falta das tribulações de edição revista) Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja. 9) Tradução Agora encontro a minha alegria nos sofrimentos que suporto Ecumênica da por vós; Bíblia (1994) e o que falta às tribulações de Cristo, eu o completo em minha carne em favor do seu corpo que é a Igreja. 10) Bíblia do Agora me alegro de padecer por vós, Peregrino de completar, a favor do seu corpo que é a Igreja, (2000) o que falta aos sofrimentos de Cristo. Nas traduções 3,4,5, 6, 7, 9 e 10, Paulo parece dizer que o sofrimento de Cristo foi incompleto e que as tribulações que ele, Paulo, sofre completam o que ficou faltando. Diferentemente, nas traduções 1, 2 e 8, Paulo afirma que ainda não sofreu tudo o que Cristo sofreu, e esta diferença ele quer completar. Esta, de fato, parece ser a interpretação correta, conforme a tradução literal do versículo: o sofrimento de Cristo foi completo; para assemelhar-se totalmente a Cristo, Paulo quer sofrer os sofrimentos de Cristo que ele, Paulo, ainda não sofreu. ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Outro exemplo pode ser João 4,18: TIÉVtE yàp lXvõpaç EaXEç Kat vuv ÔV EXELÇ OÓK ÉatW oou âVlÍp" tOUtO cXÀTj9EÇ E'(pTjKaç. De fato, tiveste cinco maridos e o que tens agora não é teu marido. Nisto disseste a verdade". Este é um claro exemplo de como a tradução de um versículo pode dizer exatamente o contrário do que se afirma no original: 1) João Ferreira Porque tiveste cinco maridos, de Almeida e o que agora tens não é teu marido; (revista e corrigida) isso disseste com verdade. 2) João Ferreira Porque tiveste cinco maridos, de Almeida e o que agora tens não é teu marido; (revista e atualizada) isso disseste com verdade. 3) Novo Mundo Pois, tiveste cinco maridos, (revisão de 1986) e o [homem] que agora tens não é teu marido. Isso disseste verazmente." 4) Edição Pastoral De fato, você teve cinco maridos. (1997, reimpressão) E o homem que você tem agora, não é seu marido. Nisso você falou a verdade". 5) CNBB (2000, De fato, tiveste cinco maridos, primeira edição) e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste a verdade". 6) Ave Maria Tiveste cinco maridos, (1959) e o que agora tens não é teu. Nisto disseste a verdade. 7) Bíblia Porque tiveste cinco Mensagem de Deus e o que tens agora não é também teu marido; (1994) nesse ponto, disseste a verdade. 8) Bíblia de Pois tiveste cinco maridos Jerusalém e o que agora tens não é teu marido; (1985, edição revista) nisso falaste a verdade". 9) Tradução Jesus lhe disse: "Tu dizes bem: 'Não tenho marido'; Ecumênica da Bíblia tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido. (1994) Nisso disseste a verdade'". 3. Estranhamente,a TEB antecipa a divisão do versículoe passa para o v. 18 a metade do v.17. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ------------------------- 19 10) Bíblia do Peregrino (2000) Pois tiveste cinco homens, e tampouco o de agora é teu marido. Nisso disseste a verdade. 20 A grande dificuldade para a interpretação desse versículo é o significado da palavra grega &v~p - 'onér, "homem, marido", que traduz o hebraico ".p~ - ba'al, que, por sua vez, significa "marido, senhor, divindade". O texto joga com toda essa ambigüidade, mas outros elementos (tais como o gênero literá- rio do relato) permitem dizer que "marido" não se refere a um varão, e sim à divindade cultuada pela mulher. As traduções 3 e 4 acrescentam uma palavra "homem", inexistente no texto original, e induzem o leitor a pensar que a samaritana vive em adultério ou concubinato. Nessa mesmalinha, a tradução 1O, que traduz a primeira ocorrência de "marido" por "homem". As pequenas variações nas traduções 6, 7 e 9 podem igualmente ter como causa a interpre- tação de "marido" como o varão com o qual a samaritana estaria vivendo maritalmente. Sem dúvida, é necessário mais que uma tradução fiel ao original para se superar a interpretação segundo a qual a mulher que dialoga com Jesus é uma adúltera. Todavia, introduzir palavras ausentes no original, bem como, contra- riamente, suprimir o que está no grego, são dois expedientes que servem so- mente para complicar ainda mais um texto por si só difícil, mas que, com certeza, não fala de adultério nem de prostituição. A palavra "marido" refere- se à divindade cultuada pela mulher, que, por sua vez, é a personificação da cidade da Samaria. ,~-- Um último exemplo, agora tirado de Jeremias 5,8: ~';' C':;'lD~ C'J~'~ C'O~O :~~~T~: ~'~,~i. n~,~':.~~ ~',N São cavalos ardentes e fogosos (?), cada qual rincha para a mulher de seu companheiro. ----------------------- LEIA A BíBLIA COMO lITERATURA Este sim é um texto obscuro, e os tradutores fazem o que podem: 1) João Ferreira Como cavalos bem fartos, levantam-se pela manhã, de Almeida rinchando cada um à mulher do seu companheiro. (revista e corrigida) 2) João Ferreira Como garanhões bem fartos, correm de um lado para outro, de Almeida cada um rinchando à mulher do seu companheiro. (revista e atualizada) 3) Novo Mundo Como cavalos bem fartos, levantam-se pela manhã, (revisão de 1986) rinchando cada um à mulher do seu companheiro. 4) Edição Pastoral São como cavalos. reprodutores, gordos e soltos, (1997, reimpressão) cada qual relinchando pela mulher do próximo. 5) CNBB (2000, Garanhões gordos e vadios, primeira edição) cada qual relincha pela mulher do vizinho. 6) Ave Maria Garanhões bem nutridos, no calor do cio, (1959) cada qual relincha ante a mulher do próximo. 7) Bíblia Como robustos cavalos fogosos, Mensagem de Deus relincham à mulher do próximo. (1994) 8) Bíblia de São cavalos cevados e vagabundos, Jerusalém cada qual relincha pela mulher de seu próximo. (1985, edição revista) 9) Tradução Garanhões no cio, excitados! Ecumênica Cada um deles relincha atrás da mulher do outro. da Bíblia (1994) 10) Bíblia do São cavalos cevados e sensuais que relincham, Peregrino cada qual pela mulher do próximo. (2000) Houve ainda um estudioso que propôs: Cavalos couraçados de Mesek (isto é, cavalos equipados para a guerra, vindos do país de Mesek) cada qual rincha para a mulher de seu companheiro", Mas o fato é que não se sabe o que as palavras significam, e muito menos a frase completa. Por isso, todas as traduções podem ser válidas. De qualquer forma, Jeremias compara algumas pessoas a cavalos aos quais não se consegue 4. M. JASTROW, Jeremiah 5:8. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 21 dominar, seja porque bem alimentados e bravios, seja porque estão excitados para o acasalamento, seja porque estão excitados para o combate. Quer dizer então que, se ninguém encontrar a solução, vamos ter de perguntar ao profeta Jeremias em pessoa? Mas... e se minha curiosidade não agOentar até eu chegar no céu? 22 6. E quem não estudou grego nem hebraico? É natural, pois, que surja a questão: Que deve fazer a pessoa que não tem acesso aos textos originais em hebraico e grego? A quase totalidade do povo de Deus não conhece as línguas bíblicas; mas mesmo assim é possível aprender um método de leitura que ajude a ler e a estudar o texto bíblico mais profundamente. Por isso, a melhor atitude é jamais se contentar com uma única tradução. Em outras palavras, deve-se consultar mais de uma publicação em vernáculo do texto bíblico e prestar atenção nas diferenças entre elas. Outro recurso é usar uma boa edição da Bíblia (isto é, uma tradução formal), que tenha abundantes notas de rodapé e referências a textos paralelos. As notas de rodapé oferecem informações de grande utilidade para se com- preender o texto e o ambiente histórico e social que ele descreve. As referên- cias a textos paralelos remetem o leitor a passagens bíblicas que, de várias maneiras, esclarecem o texto que se está lendo. Eu nem deveria falar, mas é só por desencargo de consciência, caso você tenha se esquecido: Tenha sempre em mãos uma boa tradução da Blblia, para poder con- ferir os exemplos. Melhor ainda: tenha por perto mais de uma boa tradução da Blblia. Ou você acha que eu vou copiar verslculo por verslculo? ------------------------lEIAA BíBLIA COMO lITERATURA Capítulo 2 PRIMEIROS PASSOS NA LEITURA São três os procedimentos iniciais: delimitar o texto, dividi-lo em unidades menores e analisar a sua forma. IJI· ....,,;.... ........... .. ,:l " 1"" , 1. A delimitação do texto "Delimitar um texto" significa estabelecer em qual versículo o texto come- ça e em qual versículo termina, isto é, definir os limites "para cima" e "para baixo". O trecho da Bíblia resultante dessa operação recebe o nome técnico de "perícope" . Nas edições das Bíblias, as perícopes vêm destacadas com subtítulos. Mas eles não pertencem ao texto original. Cada editor divide o texto como acha mais conveniente e coloca os subtítulos que considera mais adaptados. Como resul- tado, há diferenças entre as divisões propostas pelas edições da Bíblia. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 23 24 o objetivo dos editores é ajudar o leitor. Mas nem sempre a divisão e os subtítulos correspondem ao texto. Essa pequena confusão acontece porque os autores bíblicos não dividiram explicitamente seus escritos. Não obstante, deixaram' no próprio texto marcas que permitem ao leitor treinado identificar o início e o fim de cada perícope. 1.1. Critérios para delimitar um texto São três os tipos de indícios que demarcam uma perícope: a) Elementos que marcam um novo início: • indicação de tempo: Mt 2,1; Me 16,1. • indicação de espaço: Ex 15,22; Mt 2,1; Mc 1,16. • novos personagens / actantes: 2Rs 4,42; Me 7,1. • nova ação: Gn 39,7; lSm 16,1; At 16,16. • mudança de estilo: Ex 15,1.22; Nm 23-24; Lc 3,23. • título: Is 21,1.11.13; Ap 2,1.8.12. • introdução ao discurso: Is 14,24; Jó 6,1; Lc 15,3. b) Elementos que marcam o fim: • indicação de tempo: Nm 20,29; Mc 1,45. • indicação de espaço: 2Sm 19,40; At 12,17. • multiplicação de personagens / actantes: 2Rs 11,20; Me 1,45. • focalização em um único personagem / actante: 2Rs 8,14; At 7,58 e 8,1. • ação do tipo partida: Js 24,28; Me 8,13. • ação ou função do tipo terminal: Gn 49,33; 2Rs 11,20; Mt 9,8. • frase categórica ou comentário: 2Rs 13,19; Lc 15,7. • sumário: 2Rs 7,20; Lc 2,40. c) Elementos ao longo do texto, para indicar sua coesão: • campo semântico: Is 5,1-7; Jo 15,1-8. • intercalação: Me 3,21.22-30.31. • inclusão': SI 8,2.10; Mt 5,3.10. 1. Palavraou frase usada no iníciodo texto é repetidano fim, de modo que tudo o que se encontra entre as duas ocorrências fique "incluído". ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Veja-se, por exemplo, Me 1,14-15: ~no dese~uarenta dias, G:{te~ntt~alid~o ~p~o~r~Satanãs. E estava entre as feras, e os anjos o serviam. 14 Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia anunciando o evangelho de Deus 15 e dizendo: "Completou-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Convertei-vos e crede no evangelho". 16 E, passando junto ao mar da Galiléia, viu Simão e André, irmão de Simão, enquanto lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores. . .. Embora breve (apenas dois versículos), Me 1,14-15 é uma perícope com- pleta e bem delimitada. No v. 13, a indicação temporal "quarenta dias" informa ao leitor a duração do período em que Jesus esteve no deserto junto a Satanás, às feras e aos anjos. Estes actantes desaparecem no v. 14: Jesus está sozinho. Ou seja, o v. 13 encerra uma narrativa, ainda que sucinta. No v. 14, as indicações de um novo tempo ("depois que João foi preso") e de um novo espaço ("a Galiléia") atestam que se inicia uma nova perícope. Além disso, Jesus, que no v. 13 era totalmente inativo, agora começaa agir: ele passa a anunciar o evangelho. A repetição da palavra "evangelho" no fim de cada um dos versículos 14 e 15 funciona como uma inclusão: o episódio está bem articulado e completo. No v. 15, o novo deslocamento e a nova mudança de espaço focalizam com maior precisão ("junto ao mar da Galiléia") a anterior indicação genérica de lugar ("Galiléia"). Surgem também novos personagens ("Simão e André"). Esses elementos indicam que o v. 15 inicia uma nova perícope. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 25 26 1.2. Avaliação de alguns casos nas Bíblias editadas no Brasil A comparação de algumas edições brasileiras da Bíblia demonstra como nem sempre os editores usaram com rigor os critérios agora elencados. a) Jr 14,1-15,4(9) 1) João Ferreira de Almeida 14,1-15,21 (!): Jeremias em vão intercede pelo povo (revista e corrigida) 2) Edição Pastoral 14,1-15,4: ferida incurável (1997, reimpressão) 15,5-9: a sentença de Javé 3) CNBB 14,1-10: a seca (2000, primeira edição) 14,11-22: o povo prefere os falsos profetas 15,1-9: punição irrevogável 4) Ave Maria (1959) 14,1-15,9: palavras sobre o flagelo da seca 5) Bíblia de Jerusalém 14,1-15,4: a grande seca (1985, edição revista) 15,4-9: as desgraças da guerra 6) Tradução Ecumênica 14,1-15,4 (14,2-9.10-16.17-22; 15;1-4): a seca da Bíblia (1994) 15,4-9: abandonada que abandonou Apreciação crítica: A aplicação dos critérios de delimitação demonstram que 14,1-15,9 constitui uma unidade editorial, cujo tema é um só: a seca. Tal unidade editorial subdivide-se assim: 14,1 - título A) 14,2-6 - flagelo B) 14,7-9 - lamento-petição C) 14,10-16 - resposta divina A') 14,17-18 - flagelo B') 14,19-22 - lamento-petição C) 15,1-4 - resposta divina D) 15,5-9 - lamento divino Como conclusão, pode-se afirmar que a edição que usou com maior rigor os critérios de delimitação foi a Tradução Ecumênica da Bíblia - TEB. -----------------------lEIAA BíBLIA COMO lITERATURA b) Lc 14,25-35 1) João Ferreira de Almeida 14,24-35: parábola acerca da providência (revista e corrigida) 2) Edição Pastoral 14,25-35: para ser discípulo de Jesus (1997, reimpressão) 3) CNBB 14,25-33: o preço do seguimento (2000, primeira edição) 14,34-35: o sal 4) Ave Maria (1959) 14,25-35: qualidades do verdadeiro discípulo 5) Bíblia de Jerusalém 14,25-26: renunciar ao que temos de mais caro (1985, edição revista) 14,27-33: renúncia a todos os bens 14,34-35: não se tomar insosso 6) Tradução Ecumênica 14,25-33: renunciar a tudo para seguir Jesus da Bíblia (1994) 14,34-35: não perder o sabor Apreciação crítica: O v. 33 é formalmente semelhante aos vv. 25-26 e com eles serve de moldura para os vv. 27-32. Esses versículos todos constituem um bloco de texto que não pode ser quebrado. Já os vv. 34-35 são de outro estilo e nitidamente destacados dos anteriores. Por conseguinte, a melhor solução é considerar duas perícopes, 14,25-33 e 14,34-35, como fizeram TEB e CNBB. c) Jo 10,1-21 1) João Ferreira de Almeida 10,1-21: o bom pastor (revista e corrigida) 2) Edição Pastoral (1997, reimpressão) 10,1-6: o povo conhece a voz de Jesus 10,7-21: Jesus é o único caminho 3) CNBB (2000, primeira edição) 10,1-6: a parábola do rebanho 10,7-10: Jesus a porta 10,11-21: Jesus, o pastor de verdade 4) Ave Maria (1959) 10,1-21: o bom pastor -- 5) Bíblia de Jerusalém (1985, edição revista) 10,1-21: o bom pastor 6) Tradução Ecumênica da Bíblia (1994) 10,1-21: a parábola do pastor Apreciação crítica: Como em todo discurso, os temas e as imagens utili- zadas pelo orador têm grande peso na delimitação do texto. No capítulo 10 de João encontram-se: LEIA A BíBLIA COMO lITERATURA ----------------------- 27 10,1-6 - parábola do rebanho Jesus é o pastor; os líderes judaicos são os assaltantes 10,7-10 - parábola da porta Jesus é a porta 10,11-18 - parábola do bom pastor Jesus é o bom pastor 10,19-21 - conclusão dos capítulos 9-10 Em conclusão, a edição que mais se aproximou disso foi a da CNBB. 2. A segmentação do texto Após delimitada a perícope, é necessário estudá-la sob o aspecto frasal, isto é, avaliar cada frase, oração e unidade expressiva que compõem o texto. Para isso, é necessário reescrever o texto e subdividi-lo em linhas, como se ele fosse uma poesia. A regra básica para este trabalho é: cada linha deve conter, tanto quanto possível, uma idéia completa. Cada segmento, em geral, tem um único verbo, mas não necessariamente é assim. Igualmente, ocupam um segmento à parte: vocativos, imperativos, apostos, frases subordinadas etc. A cada nova informa- ção - principal ou secundária - uma nova linha. Quanto maior a sensibilidade do leitor, tanto mais fácil será segmentar uma perícope. Um único versículo pode conter vários segmentos; por isso, um texto de poucos versículos pode ficar longo quando segmentado. Cada segmento deve ser indicado com uma letra (a, b, c... ). Tal indicação recomeça a cada versículo. Veja-se, por exemplo, Me 1,15: 14a MEtlX ÕE tO lTUPUÕOSf)vIU tOV 'IwávvT]v b ~ÀSEV Ó 'IT]oouç Elç t~V rUÀLÀuCuv c KT]PÚOOWV tO EUUyyÉÀLov roü SEOU 15a KUI. ÀÉywv on b lTElTÀ~pWtal Ó KUlpOÇ c KUI. ~yYlKEV ~ PUOlÀECU tOU SEOU' d I!EtUVOEl.te e KUI. mOtEÚEtE EV tQ EUUYYEÀCq>. Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia anunciando o evangelho de Deus e dizendo: "Completou-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Convertei-vos e crede no evangelho" 28 A Bíblia Hebraica, todavia, exige uma pequena variação neste procedimen- to. Uma vez que cada versículo é quase sempre dividido em duas partes (a e ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA b), a assinalação de letras deve respeitar a divisão do original. Os segmentos, então, passam a ser indicados com letras gregas, conforme o exemplo a seguir, o SI 117: ar Louvai o SENHOR,~ ai! nações todas;~ b« Exaltai-o, t4l povos todos. Porque é forte por nós seu amor, e a fidelidade do SENHOR é para sempre. Aleluia! 1aa 2aa ~rnrr -nK ,~~;, T " CA:í;-~~ 'mJi:;l~ :C'~K;,-S:l í'ion ,:l,Sl1'· ,~5 ,; C~~l1~ ~;;,'-n~N' ';rl,:-'~~B Note-se que não há uma regra fixa no que se refere ao numero de palavras em cada segmento: os fatores que determinam se um segmento é mais longo ou mais breve são a semântica e a sintaxe do próprio texto. 3. A forma do texto Uma vez feita a segmentação do texto, é necessário analisar as articulações internas da perícope em sua redação final. Este passo metodológico é por alguns chamado de "estruturação do texto" ou "análise da estrutura literária", enquanto outros falam de "organização do texto", e outros ainda preferem "forma do texto". Independentemente da nomenclatura usada, trata-se de uma leitura sincrônica, isto é, que analisa o texto em si mesmo e como ele está. A comparação de dois ou mais textos com formas semelhantes é chamada "es- tudo dos gêneros literários", e constitui uma leitura diacrônica/. 2. Cf., mais adiante, o capítulo 4, pp. 41-65. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 29 Para se estudar a forma de um texto, devem-se agrupar os segmentos em subunidades, denominadas "seqüências". Cada seqüência deve conter uma peça mais ou menos completa no desenvolvimento do relato ou do discurso. As seqüências mantêm entre si relações de dependência ou de subordinação. Após definir as seqüências de um texto, é necessário atribuir a elas uma letra maiúscula ou um número. Por fim, cada seqüência deve ser resumida em uma frase bastante breve, que não seja uma paráfrase do texto. Veja-se o quadro com a forma (ou estruturação) do SI 117: A B c ;";" -n~ ,~~;, T' CA:i;-~~ ';,'n~tg' :t:J'~~;,-S:l I' o,. T T i;on ')'''11 ,~5 ':l t:J~;11~ ~,;,,-n~~·, T : IT: .: -::1': I"" bc 2"" Louvai o SENHOR, nações todas; Exaltai-o, povos todos. Porque é forte por nós seu amor, e a fidelidade do SENHOR [ é para sempre. convite e destinatários motivação convite fmal 30 Uma vez definida a estrutura ou forma do texto, é possível relê-lo na sua totalidade e emitir um juízo sobre como tal perícope articula o conteúdo. Enfim, cumpre observar que tambémpara este trabalho, não há uma regra fixa: cada texto tem sua própria organização, e mesmo textos formalmente semelhantes apresentam características próprias. Além disso, um mesmo texto pode ter mais de uma estrutura justapostas. 4. Exercícios Aplicar os passos metodológicos estudados neste capítulo ao relato da vocação de Eliseu. Eis o texto hebraico, com uma tradução literal: • 1 Rs 19,19-21 ~'~1 '~~~-H 11,~'~~rn~ ~~7?"1 t:J~~' 1~".119 ',;,:~~ '~P.:1 'iR~ry t:J~).~:l ~';:T1 "~~7 't:J'i~~ 'iR~-t:J').~ tLi1.h ~~~~~~~~~~~-~~~~~~~~~~~- LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ~jl~S~, 'JP~ 'n~J '~~tr-n~ :l!~~J20 :,,~~ it1l'1~ l~.~~J ,,~~ :l~0 17 'iS '7.?N~J l')P~ jl,~7~: '~N7~ ~:l~7 'Nrjli?~~ '7.?N"J '8ftr '7.?,~-n~ np-"J "lr:)~~ :l~~J21 =17. 'I:1'~~-jl7.? ',~ l~~J ci?:J ~S,~N;'J t::W7 11)."J ,~~tr C,7~:l "i?~tr ~s?:l~ ~jln.~\"J 5l :~jlmw" ~jl"SN ',nN I" : T:- IT'" I .. -: - "Então partiu dali e encontrou Eliseu, filho de Safat. Ele estava lavrando, com doze juntas de bois à sua frente; e ele mesmo estava com a duodécima. Elias passou por ele e lançou o seu manto sobre ele. 2°Então, ele deixou os bois, e correu atrás de Elias, e disse: "Que eu possa beijar meu pai e minha mãe e, então, te seguirei." E ele lhe disse: "Vai, volta! Pois, o que te fiz?" 21Voltou, pois, de atrás dele, e tomou a junta de bois, e os imolou, e, com os aparelhos dos bois, cozeu as carnes, e as deu ao povo para que comessem. Então, levan- tou-se e seguiu a Elias e começou a servi-lo. Outros textos para praticar: Ex 2,1-10; Mt 9,18-25, lo 10,1-6. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 31 Capítulo 3 FIGURAS DE LINGUAGEM EMODOS DE DIZER 1. Figuras de linguagem O estudo das figuras de linguagem constitui a análise estilística, cujo esco- po é identificar os procedimentos por meio dos quais o autor dá maior expres- sividade, colorido e vivacidade a seu texto. Nas gramáticas, encontra-se a seguinte distinção: • Figuras de pensamento ou de retórica: ligadas ao modo de organizar as idéias • Figuras de construção ou de sintaxe: ligadas à formulação das frases • Figuras de palavras ou de estilo: ligadas ao uso dos vocábulos e dos conceitos Há figuras de linguagem comuns a todos os idiomas, mas há também algumas próprias de um grupo lingüístico ou de uma cultura. Na Bíblia encon- tram-se todas as figuras da língua portuguesa, e mais outras próprias do antigo universo semita e do grego. E, como acontece com todo e qualquer texto, várias figuras das línguas e das culturas bíblicas originais se perdem na tradução, seja porque o idioma de chegada não permite manter o original, seja porque há jogos de palavras e expressões idiomáticas intraduzíveis. Por outro lado, são introduzidas aquelas da língua e da cultura dota) tradutor(a), além daquelas ligadas ao estilo pessoal de quem traduz. LEIA A SrSlIACOMO LITERATURA ----------------------- 33 34 completa seria 2. Figuras de pensamento ou de retórica Antecipação ou prolepse: Há dois tipos de antecipação. O primeiro é ligado ao tempo da narrativa: um evento futuro é anacronicamente apresentado como algo já acontecido (Ex 15,13-17; 1Rs 13,3). O segundo tipo de antecipação ocorre quando um orador responde previamente à eventual objeção de um interlocutor, seja ele real ou imaginário (Jr 7,4; Mt 3,9; 1Cor 1,16). Antítese: Confrontação de duas ou mais idéias ou situações: SI 1; Jr 17,5-8; Lc 6,20-26. Macarismo ou bem-aventurança: "Macarismo" é uma palavra grega - jJ.UKUPWjJ.ÓÇ - e significa "felicitação, bem-aventurança". Trata-se de uma bendição ou louvação de alguém, iniciada pela fónnu1a "bem-aventurado quem ... ", "feliz quem...", "felicidade para quem ... ": Dt 28,3-6; SI 84,4; Mt 5,3-12 (11 Lc 6,20-23). Lamentação ou queixume (ou até maldição): O contrário do macarismo: "ai de quem...", "pobre de quem ...": Is 5,8-24 (6x); Lc 6,24-26. Antropomorfismo ou personificação: Atribuição de formas e ações humanas a Deus: Gn 3,8; Ex 15,6.8; Lc 11,20. Antropopatismo: Atribuição de sentimentos humanos a Deus: Gn 6,6; Dt 6,15; Lc 1,78. " <'-' '' ' '' -: . '. -.._..,~ ''\ --:::;;;;;;:.:====::=--_-----------1 ---------------------- LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Prosopopéia: É a personificação na qual sentimentos e ações humanas são atribuídos a animais (Gn 3,1.4-5; Jz 9,8-15) e a seres inanimados (Gn 4,10- 11; SI 114; Mt 6,3). Também é prosopopéia falar de uma cidade ou de uma nação como se fosse uma única pessoa: Mq 7,8-10; Zc 9,9; Mt 11,21.23. Gradação: Disposição de palavras, idéias ou fatos em ordem crescente ou decrescente: Gn 22,2; Dn 3,51-90; Rm 8,29-30. Eufemismo: Uso de uma expressão mais branda em lugar de outra mais pe- sada ou tabu: lSm 24,4; 25,22; Jo 11,11. Merismo: Enumeração das partes de um todo (coisa ou ação), para indicar a totalidade: SI 121,2.6.8; Is 42,5; Lc 1,71. Hipérbole: Ênfase expressiva, provocada pelo exagero: 2Rs 21,16; Gl 1,8. Inclusão: Repetição da mesma palavra ou expressão no início e no fim do texto: SI 8,2.10; Mt 5,3.10. Questão retórica: Pergunta cujo objetivo não é obter uma resposta, e sim fazer o interlocutor pensar e concordar com o orador: Jr 5,9.29; 9,8; Lc 13,2.4; Rm 9,14.19-21. Onomatopéia: Quando uma frase ou um nome imita o som da coisa descrita: Eel 7,6 (no hebraico, o som das palavras imita o barulho dos gravetos crepitando debaixo da panela); Jz 12,6. Ironia: Quando se diz o oposto do que se pretende realmente dizer (ironia verbal: Am 4,4-5; Mt 22,16), ou quando o resultado de uma ação é o con- trário do que se pretendia fazer (ironia dramática: Eel 10,3; Mt 19,16-22). Oximoro: Associação de idéias contraditórias, com finalidade enfática: Is 58,10; lTs 1,6. Paralelismo: Justaposição de palavras ou frases que se equivalem sintática ou semanticamente. Em geral são dois os membros do paralelismo, mas pode haver mais. Há três tipos de paralelismo: sinonímico (quando as frases expressam algo equivalente: Jz 5,28; Lc 1,46-47), antitético (quando as frases expressam idéias antagônicas: Pr 10,1; lCor 1,22) ou sintético (quando entre as idéias expressas há uma relação de causa-efeito ou quando a segunda frase dá maior precisão à primeira: SI 1,6; 19,8-9; l Cor 1,27-28). LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA -------------------'-------- 35 36 Quiasmo: Estrutura fraseológica cruzada, do tipo a-b-b'-a': Is 55,8-9; Mt 6,24. 3. Figuras de construção ou de sintaxe Aliteração: Repetição da mesma letra ou sílaba, normalmente no início de duas ou mais palavras sucessivas: Jz 5,3-4.12.23; lTs 1,2; Hb 1,1. Acróstico: A rigor, trata-se de uma poesia em que as primeiras letras (às vezes, também as letras do meio ou as do fim) de cada verso formam um vocá- bulo ou uma frase. O único acróstico usado na Bíblia é aquele em que cada verso ou grupo de versos começa com uma das letras do alfabeto hebraico, em ordem sucessiva: SI 37 (cada verso), 119 (cada grupo de versos). Anacoluto: Ruptura da ordem lógica da frase ou na estrutura sintática para se introduzir uma palavra, expressão ou idéia sem nexo sintático na frase: Me 2,10; Rm 5,12.13-17.18. Elipse: Omissão de um termo da oração facilmente identificável, quer por elementos gramaticais na própria oração, quer pelo contexto: Dt, 4,12; Ecl 7,1; Mt 25,2.9.11; Lc 11,33. Epíteto: Qualificação de alguém ou de algo por meio de uma característica que já lhe é inerente: Gn 21,16; 2Rs 9,31.34; Lc 13,32. Hipérbato: Inversão da estrutura frasal, isto é, da ordem direta dos termos da oração. A finalidade do hipérbato é sempre enfática: Jr 14,1 (no hebraico: "Que veio a palavra de YHWH a Jeremias"); Jo 1,1 (no grego: "e Deus era o verbo"). ---------------------- LEIA A BíBLIA COMO lITERATURA Pleonasmo: Repetição de uma palavra ou de uma noção já implicada no texto: 1s 51,22; Nm 19,2; Jo 1,3. Assíndeto: Ausência de conjunções entre palavras ou frases em um parágrafo: Ex 15,9-10; lRs 19,20; Ef 4,5-6; lTm 3,16. Polissíndeto: O contrário do assíndeto, isto é, repetição de conjunções: SI 83,10.12; 1s 11,2; Lc 14,21; Ap 16,18. Poliptoto: Repetição do mesmo termo com variações (asdiferentes conjuga- ções de um verbo, ou os vários casos e formas de um substantivo, pronome ou adjetivo), variando até mesmo a classe gramatical (substantivo, adjetivo, verbo etc.): Am 4,7-8; Mt 13,17; lCor 2,13. Anáfora: Repetição de uma palavra ou frase no início de vários versos: Ecl 3,1-8; Jr 51,20-23; 2Cor 11,26. 4. Figuras de palavras ou estilo Comparação: Semelhança estabelecida com o uso da palavra "como" dentro de uma frase. Se a comparação é desenvolvida em uma descrição ou uma história, ela se toma uma parábola': Ct 4,1-4; Mt 23,37. Metáfora: Semelhança estabelecida sem o uso da partícula "como": SI 57,5; Ct 4,12; Jo 14,6. Antonomásia: Substituição do nome de uma pessoa ou de uma coisa por uma característica pela qual se tomou famosa: lRs 4,7; At 3,14. Metonímia: Substituição de um nome por outro, em virtude de haver entre eles alguma relação do tipo qualitativo: o objeto pela matéria, a obra pelo autor, o recipiente pelo conteúdo, a parte pelo todo, o gênero pela espécie etc.: Gn 6,12; SI 24,4; Mt 6,11; 25,21.23. ,- 1. Cf. mais adiante. o quadro das pp. 57-58. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ---------------------- 37 5. Exercícios Eis alguns versículos pinçados, para que se identifiquem quais as figuras de linguagem utilizadas. Como já afirmado no início deste capítulo, muitas vezes a tradução faz desaparecer as figuras presentes nas línguas bíblicas. Por isso, após a versão original, encontra-se uma tradução literal na qual se man- têm os artifícios do grego ou do hebraico. a) Dt 17,6: C";S' C"Jtli "El-"S' t:i~~~ '~W~~ ;~ n~i1 n~'" :'m~ 'S' "El-"S' n6," '~"IT ': I"~ \' - - J b) Rt 3,8: 'ntli·, TS':l ":l~~' - ;-~" ~-~..~ i1!?'.~;:t ~~p::l ~,~~." ~S~; ~,~ ~~n' ,"n·"J'Õ ~Jn~ IT .: - ,- : - :~~tlin' IT : • - c) lRs 10,8: Pela boca de duas testemunhas ou de três testemunhas, morrerá quem deve morrer; não morrerá pela boca de uma só testemunha. Booz comeu e bebeu, e seu coração ficou feliz. Então foi deitar-se junto a um monte de cevada. Ela veio de mansinho, descobriu os pés dele e se deitou. l"W~~ ~'.~~ i1~~ l",l~~ ~1~~ '"6Çl '1"'~~7 c~'/?llD :llJ~~ITn~ C"P/?WtT d) SI 23,lb-2: "li, rnrr :',9T;1~'~·? "J~"::l'" ~tli., n;~J::l :")ç~J"'-n;nJ~ "~~~~ • I" -: -: J ".: I" - e) SI 96,11-12: C"~tLii1 m~iD" .ri.~';:t ''',m' Felizes teus homens, felizes estes teus servos, que estão sempre diante de ti, que escutam a tua sabedoria. YHWH é meu pastor, nada temerei! Em pastos verdejantes me faz repousar, às águas de tranqüilidade me guia. Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra: 38 -----------------------~ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA :iN'''~, 1:l";T 1:ll7,' i::l-'~N'-"~' ,.;~ ~L,~'~ ~'l7~'-~~l7~~~ ;5;,: ,:~ -'T .. -: T :-: IT t) Mt 7,25: KaL Ka,É~~ ~ ~pOx~ KaL ~À80v ol TIOmj..LOL KaL ETIVEUaaV ol ãVEj..LOl KaL TIpoaÉTIEaaV 'U OLKL~ EKELVn, KaL OUK ETIEGEV, 'E8Ej..LEÀLW'0 yàp ETIL ,~v TIÉ,pav. trema o mar e a sua plenitude. Exulte o campo e tudo o que há nele; então, aplaudirão todas as árvores do bosque. e caiu a chuva e vieram os rios e sopraram os ventos e precipitaram-se contra aquela casa e ela não caiu, com efeito, estava edificada sobre a rocha. g) Mt 22,16: KaL aTIoa,ÉUoUGlV atm;> rooc j..La8~,àç au,wv j..LECà ,WV 'Hp<.yolavwv ÀÉyovuç' OlooaKaÀE, O'LOaj..LEV on aÀ~8~ç EL KaL ,~v óõov roü 8EDU EvaÀ~8EL~ OlOOaKElç KaL ou j..LÉÀEl aOl TIEpL OUOEVÓÇ. ou yàp ~ÀÉTIE lÇ Ete; TIpÓaWTIOV av8púÍTIwV, Então (os fariseus) enviaram a ele [ seus discípulos com os dos herodianos, dizendo: "Mestre, sabemos que és verdadeiro e ensinas o caminho de Deus [ segundo a verdade, e não te importas com ninguém; com efeito, não olhas [ a aparência das pessoas." h) Mt 26,5 ÀEYov M' j..L~ EV ,~ EOP,U, 'Lva j..L~ 8ópu~oç yÉv~,aL EV ,41 Àa41. Mas diziam: "Não durante a festa, para que não surja um tumulto entre o povo." i) Lc 8,5: Eçf]À8EV Ó aTIELpWV roü aTIEl.paL ,ov onópov au,ou. KaL EV ,41 aTIELpElV au,ov ô j..LEV ETIEGEV TIapà ,~v óõov KaL Ka'ETIa,~8~, KaL ,à TIE,ElVà ,ou oupavou Ka,É$aYEv au,ó. Saiu o semeador a semear [ a sua semente. E ao semeá-la, parte caiu ao longo do caminho e foi pisada e as aves do céu a comeram. j) Jo 21,25: "Eoru- OE KaL ãUa TIouà & ETIOL~aEV ó 'Inooíx, anva Eàv ypá$~ml Ka8' EV, oúô' au'tov oLj..Lal rõv KÓaj..LOV xwpf]aal ,à ypa$Ój..LEVa ~l~ÀLa. Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez; se fossem escritas uma por uma, creio que mundo inteiro não poderia conter os livros escritos. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ------------------------- 39 k) lCor 1,25 on rà j.Lwpàv toú SEDU ooljJúÍrEpov rwv &vSpúÍ'lTWV EOrl.V Kal. rà &08EVEÇ roü SEDU toxupórEpov rwv &vSpúÍ'lTwv. 1) lCor 13,11: orE ~j.Ll1V v~moç, EÀlXÃOUV wç v~moç, EljJpóvouv wç v~moç, E}..OYLÇÓj.Ll1V wç v~moÇ" orE yÉyova &v~p, Kar~pYl1Ka rex roü Vl1'lTLOU. Porque a insensatez de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é 'mais forte do que os homens. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tomei homem abandonei as de criança. 40 ------------------------- LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Capítulo A GÊNEROS LITERÁRIOS 1. Preliminares Desde o início do século XX, vários exegetas dedicam-se a comparar tex- tos que, não obstante apresentem diferenças de conteúdo, têm formas seme- lhantes. Como já afirmado anteriormente, a "forma" é a organização ou estru- tura de um único texto lido sincronicamente'. Quando, porém, se faz uma leitura diacrônica, isto é, quando se confrontam textos formalmente semelhan- tes, é possível abstrair um esquema básico partilhado por eles. Esse esquema comum é denominado "gênero literário". Falar em "gênero literário" exige que se façam algumas observações pré- vias. Em primeiro lugar, o termo "gênero literário" corre o risco de fazer esquecer que boa parte do material bíblico surgiu como tradição oral, isto é, antes de se tornarem textos, relatos e ensinamentos eram transmitidos de boca em boca, não só como atividade lúdica e estética, mas também como forma de se transmitir cultura, orientações éticas e conteúdos de fé. Por isso, embora o estudo dos gêneros literários baseie-se no material escrito, não se pode apagar o estágio anterior ao processo de transcrição. 1. Cf. capítulo 2, pp. 29-30. Esta cartilha evitará enredar-se em discussões terminológicas que já duram mais de um século, sem terem ainda chegado a um amplo consenso. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ------------------------ 41 Segundo, embora boa parte dos "gêneros literários" tenha esquemas rela- tivamente fixos, esta não é uma regra universal. Há textos que possuem um estilo ou uma índole comum, mas não seguem o mesmo modelo. Com efeito, também esta é uma herança do período da transmissão oral. Terceiro, o gênero literário "puro" existe só na abstração. Toda vez que um modelo é empregado, ele sofre influências do contexto e apresenta alterações, seja em sua forma, seja na sua finalidade. Há também textos híbridos, isto é, uma mesma perícope pode ser formada pela justaposição de dois gêneros literários distintos. Quarto, cumpre observar que os mesmos gêneros literários são utilizados tanto no Antigo como no Novo Testamento. Mais ainda, esse intercâmbio ocorre também entre as diversas tradições bíblicas (histórica, sapiencial, pro- fética, apocalíptica etc.). Por uma questão didática, os manuais de metodologia bíblica geralmente qualificam cada gênero literário como típico de uma deter- minada tradição; mas o fato de ser "típico" não significa que seja "exclusivo". Por fim, cabe dizer que o elenco dos gêneros literários é grande e ainda não pode ser considerado concluso. De fato, há ainda textos não classificados e, portanto, gêneros novos a serem definidos. 2. Como identificar um gênero literário O primeiro passo já foi exposto no capítulo anterior: é necessário delinear a organização do texto que se quer estudar. O segundo passo é fazer o mesmo com outros textos suspeitos de partilharem elementos formais (estruturantes) comuns. Por fim, tais textos devem ser comparados, a fim de se identificarum "esqueleto" que possa ser considerado um esquema padrão, bem como as diferenças próprias de cada um. Para que haja um gênero literário, é necessário ao menos dois textos com caraeteristicasformais semelhantes. Todavia, cada vez que um autor usa um gênero literário, opera nele mudanças e adaptações. Coisa do tipo: "o livro é meu, e eu faço dele o que eu quiser.,,", 6/ > « < ," ' ' ',,~', ", ' .' ,,',.~ '. ' ,;" ",' , 42 ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA Vários gêneros literários presentes na Bíblia são encontrados também na literatura judaica e cristã extrabíblica (apócrifos, comentários rabínicos) e até em textos das culturas circundantes (Assíria, Babilônia, Ugarit, Grécia, Roma etc). Por isso, um estudo aprofundado dos gêneros literários implica também uma comparação com textos não pertencentes ao cânon bíblico. 3. Na prática, como fazer Ex 2,15b-22 narra a chegada de Moisés na terra de Madiã e como ele conheceu Séfora e se casou com ela: Moisés fugiu da presença de Faraó, o homem chega A bIl e foi morar na terra de Madiã, 1Yy e sentou-se junto a um poço. ao poço 16. O sacerdote de Madiã tinha sete filhas, 1600 as quais vieram tirar água a mulher chega B bIl e encher os bebedouros ao poço 1Yy para dar de beber às ovelhas de seu pai. 17. Mas vieram pastores, C 1700 querendo expulsá-las. dificuldade bIl Moisés então se levantou D 1Yy e as socorreu, ele tira a água bõ e deu de beber às ovelhas. 18. Quando elas voltaram a Reuel, seu pai, 1800 ele perguntou: bIl "Por que voltastes tão cedo hoje?" 19aa Elas responderam: E ajl "Um egípcio livrou-nos das mãos dos pastores, ela volta para casa 1900 depois tirou água para nós bIl e deu de beber às ovelhas". 20aa Replicou-lhes Reuel: ajl "E onde está ele? 2000 Por que deixastes partir este homem? bIl Chamai-o ele é convidado F 1Yy para que coma alguma coisa". para uma refeição LEIA A BíBLIA COMO lITERATURA ----------------------- 43 21m Moisés aceitou G afl ficar com aquele homem, 2100 que deu sua filha Séfora a Moisés. 2204 Ela deu à luz um filho, H ap e Moisés o chamou de Gersom, 2200 pois dizia: ~ "Sou peregrino em terra estrangeira". os dois se casam nasce um filho Quando se faz o estudo da organização de Gn 24, Gn 29 e Jo 4,1-42, percebe-se que, não obstante as variações próprias de cada texto em particular, todos eles seguem o mesmo esquema: Gn 24~ Jo 4v. 11 vv.2-4 v.6 v. 15-16 v.9 v.7a vv. 17-18 vv. 8.11-12a vv.7b.9-12 vv. 19-21 v. 10 vv. 13-16 v.28 v. 12b vv. 28-29 vV.31-33 vv. 13-14 v. 40 v.67 vv. 15-21.28 vv. 41-42 • o homem chega ao poço primeiro • a mulher chega para tirar água • os dois conversam • ele tira a água do poço e oferece a ela e aos rebanhos • ela volta para casa e conta sobre o encontro • ele é convidado para ir à casa dela • os dois se casam , ... :e.... "_", - Esse tipo de relato é chamado "encontro junto ao poço". Ele narra um episódio ambientado em um dos poucos lugares em que, no antigo Israel, homens e mulheres que não eram parentes podiam conversar livremente. A busca da água no poço era uma excelente ocasião para a paquera: as mulheres demonstravam sua capacidade de cuidar do rebanho e da casa, e os homens mostravam sua força para o trabalho. A finalidade desse relato é explicar como o casal de ancestrais se conheceu, além de engrandecer as referidas qualidades de cada um deles. 44 ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA As diferenças na aplicação do esquema básico estão em função do que é específico de cada texto. Em Gn 24, em lugar de o homem tirar a água, é a mulher quem o faz. Talvez isso aconteça porque o homem que chega ao poço é somente o repre- sentante do futuro noivo. Em Gn 29, antes de Raquel chegar, já estão lá os pastores e é com eles que Jacó conversa em primeiro lugar. Só depois chega Raquel. Essa demora na chegada de Raquel antecipa a grande variação neste caso concreto, isto é, a inversão do casamento: na noite de núpcias, Labão engana Jacó e o obriga a se casar com Léa antes de se casar com Raquel. O episódio narrado em Jo 4 é fortemente simbólico: a mulher é a figura da Samaria, antiga capital do reino do norte; os cinco maridos não são seres humanos do sexo masculino, mas, sim, cinco divindades cultuadas pelos povos que foram transplantados para a Samaria durante a dominação assíria (cf. 2Rs 17,29-31). Em outras palavras, Jo 4 usa o gênero do encontro junto ao poço para descrever a acolhida do evangelho pelos samaritanos, isto é, como a Samaria "se casou" com Jesus. 4. Gêneros literários Convém repetir algo há pouco afirmado: os manuais de metodologia bíbli- ca, por uma questão didática e funcional, falam de "gêneros literários do Antigo Testamento" e "gêneros literários do Novo Testamento", além de sub- dividi-los segundo tradições (histórica, apocalíptica, sapiencial etc.). Todavia, vários gêneros literários estão presentes em ambos os testamentos e não se restringem aos livros de uma única tradição. A apresentação a seguir abandonará essa forma clássica e usará uma divi- são bem flexível: relatos, leis, discursos, ensinamentos, cânticos e poesia. Cum- pre, ainda, lembrar que o elenco a seguir não será exaustivo, mas trará apenas alguns exemplos que possam servir como uma primeira "caixa de ferramentas" LEIA A BfBLlA COMO LITERATURA ----------------------- 45 46 para ler a Bíblia como literatura. Além dos gêneros literários considerados "indispensáveis" em uma exposição sobre o assunto, foram incluídos também alguns menos conhecidos, mas que não por isso são menos importantes. Ao contrário, há vários anos têm merecido especial atenção dos estudiosos, por abrirem novas perspectivas na interpretação bíblica. 4.1. Relatos 4.1.1. Novela Narrativa relativamente longa, formada por uma série de eventos conca- tenados, ligados à vida pessoal, aos sentimentos e às ações de um persona- gem, cuja história tem importância para a nação. A trama se desenvolve em três tempos: a situação de conflito ou de tensão b o conflito se complica cada vez mais e os personagens buscam a solução c resolução do conflito e esvaecimento das complicações São novelas bíblicas as histórias de Rute, de José e de Tobias. 4.1.2. Saga A Bíblia não contém narativas mitológicas, porque a fé israelita expurgou os elementos fundamentais para tais relatos: o politeísmo e a magia. No entan- to, conservou a índole de narrar miticamente as façanhas de um herói ou os fatos extraordinários ligados a um lugar. Esse tipo de história é chamado de "saga" (do alemão sagen: falar, narrar): as gestas de um ancestral (mocinho ou bandido) explica, desde o passado, acontecimentos e comportamentos do pre- sente. Por isso, as sagas normalmente têm uma finalidade etiológica, isto é, explicar a origem de nomes, de lugares e de costumes. Não há um esquema fixo, e sim um estilo geral. Exemplos: a destruição de Sodoma e Gomorra (Gn 19,1-29), para explicar a esterilidade do Mar Morto e a formação geológica (salitre) da região ao seu redor; a prova da fé de Abraão (Gn 22), para explicar por que Israel não pratica sacrifícios humanos. Por outro lado, é necessário não confundir narrativas totalmente etiológicas com narrativas às quais foram acrescentadas frases etiológicas. Tal é o caso do final de Ex 2,10, adicionado ao relato da infância de Moisés (Ex 2,1-10): a fi- lha do Faraó conhece filologia hebraica! ------------------------lEIAA BíBLIA COMO LITERATURA 4.1.3. Lenda profética Os primeiros profetas eram também chamados "homens de Deus". Mais do que pregadores, eram taumaturgos, isto é, operadores de milagres. As lendas proféticas são geralmente breves e têm a finalidade de provocar temor, respeito e admiração. Nessas lendas, não entra em questão se as pessoas agraciadas com o milagre merecem ou não recebê-lo, se têm ou não um comportamento exem- plar. A viúva de um dos filhos dos profetas é a única da qual se diz que "temia a Deus" (2Rs 4,1). Nos demais casos, o único mérito dos miraculados não é outro senão o fato de estarem próximos ao homem de Deuse apelarem a ele. Nas lendas proféticas, a palavra do homem de Deus é eficaz e capaz de fazer acontecer o que significam. O esquema básico é: a situação de crise b súplica pela intervenção do profeta c dúvida sobre a possibilidade de uma solução d instrumentos para o milagre e palavras durante a realização do milagre f efeito produzido g reações dos presentes e/ou conseqüências O ciclo de Eliseu contém várias lendas, quase todas breves: 2Rs 2,19-22; 4,1-7.38-41.42-44. Mas algumas são alongadas: 4,8-37; 5,1-27; 6,8-23. 4.1.4. Relato de milagre No Novo Testamento, a lenda profética cedeu lugar ao relato de milagre, um gênero literário proveniente do mundo helenístico e que sem problemas foi adotado pelas tradições judaica e cristã. Nos evangelhos, os milagres provam a autoridade de Jesus como Messias e, mais ainda, manifestam a sua divindade. No livro de Atos, os milagres atestam que Jesus age por meio de seus discípulos. O esquema do relato de milagre é muito semelhante ao da lenda profética: a introdução (descrição do ambiente e do encontro) b o problema e os esforços para superá-lo c a súplica do pedinte d a intervenção de Jesus e o efeito produzido f a reação do povo e do miraculado Os milagres operados por Jesus podem ser divididos em quatro grupos: curas (Mc 1,29-31; 3,1-6); exorcismos (Mc 1,23-27; 5,1-20); ressuscitações LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 47 48 (Me 5,21-24; 5,35-43) e milagres sobre a natureza (Me 4,37-41; Lc 5,1-11; Jo 2,1-11). Também a tradição rabínica adotou este gênero literário e vários são os relatos nas duas versões do Talmud (o da Babilônia e o de Jerusalém). Analogamente, milagres foram creditados a quase todos os fundadores de religião, tais como Buda, Zoroastro e Maomé. Embora eles mesmos tenham se recusado a operar milagres, seus fiéis discípulos atribuíram-lhes os feitos mais espantosos. 4.1.5. Relato de vocação Se os relatos de milagres visam provocar o respeito pelo taumaturgo, os relatos de vocação descrevem o comportamento exemplar de um personagem que foi chamado a um compromisso mais profundo. O leitor é convidado a repetir as respostas afirmativas assim descritas: a quem chama passa b quem chama vê c o nome do futuro vocacionado d relações de parentesco e o vocacionado está trabalhando f palavra imperativa ou gesto simbólico [g objeção do vocacionado] [h resposta de quem chama] despojamento j seguimento Os relatos das vocações de Eliseu (lRs 19,19-21), Simão e André (Me 1,16-18), e Tiago e João (Me 1,19-20) seguem rigorosamente esse esquema. 2. Cf. A. WEISER, Milagre, p. 182. ----------------------- LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA 4.1.6. Relato de "não-vocação" Há, todavia, relatos que descrevem a atitude a ser evitada, isto é, desistir do discipulado. O esquema deste tipo de narrativa é muito diferente daquele em que o vocacionado se engaja no seguimento: a falta o nome do não-vocacionado b falta o imperativo / gesto vocacional (a pessoa se oferece) [c Jesus apresenta as condições para o seguimento] [d o não-vocacionado insiste] e Jesus exige um ato radical f o não-vocacionado desiste Mt 8,18-22 narra dois casos; Lc 9,57-62 acrescenta ainda um terceiro. Também nessa perspectiva deve ser lido o episódio de Me 10,17-22. 4.1.7. Parábola jurídica Um profeta se dirige ao rei ou a alguma autoridade e, por meio de uma parábola, descreve uma situação de conflito e lhe pede um juízo. Mas, após dar seu veredicto, o personagem interpelado recebe a notícia de que o acusado é ele mesmo. A parábola em si mesma - isto é, a apresentação do conflito - não segue um esquema fixo; mas o episódio em que ela se insere, sim: a pré-história b o profeta vai ao encontro da pessoa questionada c parábola (acusação velada) d o profeta pede o veredicto e a pessoa questionada emite o veredicto f revelação: quem é a pessoa da qual se fala g acusação explícita h reações da pessoa questionada Tiveram de ouvir uma parábola jurídica: Davi (2Sm 12,1-15), os habitantes de Jerusalém (Is 5,1-7), Simão, o fariseu (Lc 7,36-50) e o grupo dos fariseus (Mt 21,33-46 [mas não em Mc 12,1-12, nem em Lc 20,9-19]). 4.1.8. Relato sobre o herói-menino exposto à morte Trata-se de uma narrativa de infância típica do curriculum vitae dos gran- des reis ou líderes. O protagonista ainda é uma criança e já deve superar sua primeira prova: a morte. A sobrevivência do herói-menino é garantida por LEIA A BíBLIA COMO lITERATURA ----------------------- 49 50 parentes e amigos, que funcionam como instrumentos da proteção divina. A vitória sobre a morte garante que a missão daquela criança será levada a bom termo. A história é assim composta: a o monarca em exercício se vê ameaçado b o monarca mata ou manda matar os filhos c o herói é escondido d o herói recebe ajuda de "parentes" e amigos e alguém da realeza "adota" o herói f confronto entre herói e o monarca São três os relatos bíblicos: a infância de Moisés (Ex 2,1-10), a de Joás (2Rs 11,1-20) e a de Jesus (Mt 2,1-11). 4.1.9. Relato de ascensão A diferença entre ascensão e assunção é semântica e foi assumida defini- tivamente pela teologia: Jesus ascendeu, isto é, subiu por suas próprias forças; Maria e outros personagens foram assuntos, isto é, assumidos para entrar no céu. Todavia, os relatos bíblicos não fazem tal distinção. Por isso, fala-se tranqüilamente da "ascensão" de Elias. Neste tipo de narrativa, o herói desaparece de forma fantástica: vivo, ele deixa de pertencer a este mundo e passa a fazer parte do mundo divino. O esquema básico de um relato de ascensão é dado pela narrativa patriarcal acerca de Henoc (Gn 5,24): 3. Cf. W.W. HALLO, Context I, p. 461. ------------------------ LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA a "Henoc caminhou com Deus; b e desapareceu c porque Deus o levou." Outros personagens que ascenderam (ou foram assuntos): o já citado Elias, em um relato bastante alongado (2Rs 2,1-18), e Jesus (Lc 24,50-53; At 1,9-11). Acrescente-se ainda o curioso enterro de Moisés (Dt 34,5-6). De fato, a tradi- ção judaica afirma que Moisés também foi arrebatado aos céus (cf. a Assunção de Moisés, livro apócrifo do Antigo Testamento). Em todos esses casos, o primeiro elemento - "caminhou com Deus", isto é, seguiu os caminhos de Deus - pertence à história do personagem, anterior- mente narrada. A elevação ou o arrebatamento de um personagem é a confir- mação de que a comunhão com Deus, vivida pelo personagem durante sua vida terrena, continua em algum lugar, mesmo depois de aquela pessoa ter deixado este mundo. Por outro lado, o desaparecimento fantástico do personagem faz crescer a espera de sua volta, e tal espera se prolonga indefinidamente no tempo, ultra- passando séculos: até hoje, os judeus esperam a volta de Elias, que traz con- sigo o Messias, o descendente (a re-encarnação") do rei Davi; no caso dos cristãos, eles esperam a volta de Jesus na parusia. 4.1.1 O. Relato de visão Normalmente durante o sono (mas não necessariamente), o protagonista recebe uma revelação repleta de elementos simbólicos: coisas, seres animados, cores, acontecimentos etc. Tais "visões" seguem um padrão: a as circunstâncias ou a ocasião da revelação b a participação de um acompanhante (anjo ou guia) c a descrição do sonho ou da visão d a reação de quem recebeu a revelação e o diálogo com o acompanhante f o acompanhante explica o significado da visão g a conclusão do episódio LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ------------------------ 51 52 A primeira parte do livro de Zacarias (capítulos 1-6) é composta de oito visões (exceto a quarta, que é bem dilatada, todas são breves). Quem usou e abusou deste tipo de relato foi a apocalíptica, como se vê no livro de Daniel: os capítulos 7-12 apresentam quatro longos relatos. 4.1.11. Relato de viagem a outros mundos Diferentemente da visão em sonho, na qual o vidente simplesmente vis- lumbra acontecimentos futuros, a viagem a outros mundos (normalmente o céu) é uma ascensão temporária: o profeta é levado para contemplar a história futura e depois volta para dar a conheceraos "sábios" o que viu e ouviu. Não há verdadeiros relatos desse tipo no Antigo Testamento, mas Jr 23,18 supõe esse tipo de episódio. Por outro lado, Ap 4-21 é quase que totalmente a descrição das visões que João teve quando foi levado a outro mundo. O esquema é basicamente o mesmo das visões em sonhos, com a diferença de que o vidente não permanece onde está, mas é levado pelo Espírito (Ap 1,10; 4,2); por elementos cósmicos (lHenoc 14,8)4 ou pelo carro de YHWH (Testamento de Abraão 10-14)5. 4.1.12. Relato sobre o julgamento do rei Uma mulher se dirige ao rei e lhe apresenta uma situação complexa: ela e outra mulher brigam por um filho. O rei é chamado a dar um veredicto que provará sua sabedoria ou sua inépcia. Assim se desenrola o episódio: a uma mulher pede ajuda ao rei b as circunstâncias em que o filho de uma delas morre c a descrição das ações de cada uma delas d a reação e o veredicto (ou não-veredicto) do rei Graças à sua sentença, Salomão (lRs 3,16-28) foi reconhecido como rei sábio. Diferentemente, Jorão não sabe o que responder à mulher e atribui a culpa a Eliseu (2Rs 6,26-3l)! 4. H.F.D. SPARKS, Apócrifos I, p. 176; C,J.A RODRIGUES, Apócrifos, p. 265 (com uma diferente divisão dos versículos: 14,6). 5. H.F.D. SPARKS, Apócrifos I, pp. 314-319; C.J.A RODRIGUES, Apócrifos, pp. 177-184 (com uma diferente numeração dos capítulos: 12-22). -----------------------lEIAA BíBLIA COMO LITERATURA 4.1.13. Relato sobre a mulher que derrota o inimigo Para zombar da prepotência de chefes militares que se julgam invencíveis, os autores bíblicos dão a eles uma morte mais que tragicômica: a um guerreiro invencível sai para a guerra b uma série de vitórias c as circunstâncias da última batalha d uma mulher sagaz faz algo ridículo e atinge o guerreiro na cabeça Jael oferece leite para um Sísara sedento e crava-lhe nas têmporas uma es- taca de tenda (Jz 4,17-22); uma mulher (anônima!) de Tebes atira uma pedra e afunda o crânio de Abimelec (Jz 9,50-55); Judite decapita Holofemes após embebedá-lo (Jt 12,10-13,10). ,- 4.1.14. Relato de controvérsia A controvérsia é um episódio no qual se enfrentam o protagonista e seus adversários: estes apresentam perguntas ardilosas para desacreditar o protago- nista perante seus discípulos e a multidão. Os autores do Novo Testamento usaram o mesmo esquema das controvérsias rabínicas: a a pergunta dos adversários b a contrapergunta de Jesus c a (não-)resposta dos adversários d a contra-resposta (ou não-resposta) de Jesus Foram objetos deste tipo de discussão: a autoridade de Jesus (Me 11,27- 33) e o tributo a César (Me 12,13-17). Em Me 2,1-12 a discussão sobre o poder de Jesus para perdoar pecados (vv. 6-10) é intercalada a um relato de milagre (vv. 1-5.11-12). Em alguns casos, a controvérsia transformou-se em diálogo doutrinal: sobre o puro e o impuro (Me 7,1-23), sobre o divórcio (Me 10,2-12). LEIA A SrSlIACOMO LITERATURA ----------------------- 53 4.1.15. Relato da unção do rei por um profeta O início de uma dinastia legítima é marcada pela unção operada por um profeta, a mando de YHWH: a um profeta vai ao encontro do futuro rei para ungi-lo b o futuro rei não sabe que foi eleito c a unção é feita em nome de YHWH d a unção acontece em ambiente reservado e o ungido é aclamado rei f o profeta deixa o ungido g conseqüências Samuel ungiu Saul (lSm 9,1-10,16) e Davi (lSm 16,1-13); um dos discí- pulos de Eliseu ungiu Jeú (2Rs 9,1-13). Todavia, quando não há quebra de dinastia, isto é, quando o novo rei é de algum modo herdeiro do trono, o máximo que acontece é a unção por meio de um sacerdote em um ato público (lRs 1,38-40; 2Rs 11,12). Note-se ainda que Aías, de Silo, nomeia Jeroboão rei, mas não o unge (lRs 11,29-38): com isso, o deuteronomista nega que Jeroboão seja um rei legítimo. 4.1.16. Relato de ação simbólica Para atrair a atenção de seus contemporâneos e tentar convencê-los, alguns profetas fizeram encenações públicas, normalmente bizarras. As ações em si mesmas são variadas e não seguem um esquema fixo. Todavia, o relato no qual se inserem, sim: a ordem de YHWH: o profeta deve fazer algo incomum b relato do cumprimento da ordem c interpretação do gesto Isaías deve caminhar descalço e nu (Is 20,1-5); Jeremias deve comprar um va- so e quebrá-lo à vista dos anciãos do povo (Jr 19,1-2.10-11); Ezequiel deve tomar um pedaço de cerâmica, desenhar nele Jerusalém e brincar de guerra (Ez 4,1-3). e·-...." "- .." • ,"0" ~",,'~ , .,é .. 54 ----------------------- LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA 4.2. Leis 4.2.1. Leis categóricas Para regular a convivência dos nômades e das populações das pequenas aldeias surgiram regras de conduta, sem conotação jurídica, cuja função era incentivar determinado comportamento (''faze x") e desencorajar outros ("não faças y"). As formulações no positivo são denominadas "preceitos", enquanto as formulações no negativo são chamadas de "proibições". Ambos os tipos são enunciados diretos (usam a segunda pessoa) e expressos de modo categórico e incondicional (são universais e sua validade não depende das circunstâncias). As leis categóricas estão normalmente agrupadas em séries, embora as proibições sejam normalmente mais numerosas que os preceitos: Ex 20,1-17; Lv 18; Lc 6,27-35. 4.2.2. Leis casuístas Este tipo de leis tem características diferentes das categóricas: são leis formuladas de maneira impessoal (usam a terceira pessoa) e são particulares e condicionais (levam em conta as múltiplas situações da vida diária). A for- mulação básica é "se x, então y". A prótase (a frase condicional, normalmente iniciada com "se") descreve as circunstâncias da situação; a apódose (a frase complementar, equivalente ao "então") determina a conseqüência legal: absol- vição, reparação ou castigo. A maioria das leis do Antigo Oriente pertencem a este grupo e foram facilmente assimiladas por Israel: Ex 21,2-11.18-37; 22,1-17; Dt 22,23-27. 4.2.3. Maldições A transgressão das regras de convivência não pode ficar impune. Um dos modos de castigar o transgressor é amaldiçoá-lo. Não se diz explicitamente 6. Cf. E. BOUZON, Código, p. 25. LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA ----------------------- 55 qual desgraça recairá sobre o culpado. O fato de ser "maldito" já é por si só um castigo pesado o suficiente para motivar o não-cumprimento de determi- nada ação. Trata-se de uma palavra eficaz, que realiza o que significa. As maldições têm um esquema nitidamente litúrgico: a "Maldito" + descrição do delito com verbo no particípio ("quem faz x") b aprovação da assembléia: "E todo o povo dirá: 'Amém!' " Várias leis no Deuteronômio foram agrupadas por terem em comum este esquema: Dt 27,16-25. 4.2.4. Sentenças de morte Outra forma de punir transgressões às regras de convivência é a pena capital. As sentenças de morte são assim formuladas: a descrição do delito com verbo no particípio: "Quem faz x... " b pena de morte: "... morrerá de morte violenta." Pertence a este gênero literário Ex 21,12.15-17. 4.3. Discursos e ensinamentos 4.3.1. Oráculo de salvação Diante de uma situação de crise ou de desgraça, o profeta anuncia a inter- venção salvadora de YHWH, que abre uma nova perspectiva. A estrutura básica é a seguinte: a vocativo b promessa de salvação (encorajamento) c motivação, introduzida pela conjunção "porque" d conseqüências Há vários textos deste tipo na segunda parte de Isaías: 41,8-12; 44,1-5. 4.3.2. Requisitória profética - r/b Trata-se de um oráculo em estilo de processo jurídico diante de um tribu- nal. Este tipo de oráculo segue uma forma estável: a preliminares do processo b interrogatório 56 LEIA A BíBLIA COMO LITERATURA c requisitória (benefícios concedidos por YHWH e infidelidade do povo) d declaração oficial da culpa e condenação (ameaça ou veredicto) Há diversos textos com a forma completa (Dt 32,1-25; Is 1,2-3.10-20; Mq 6,1-8; SI 50) e outros incompletos (Is 42,18-25; 48,12-16a; Jr 6,16-21). 4.3.3. Comparação, parábola, alegoria e fábula Nos evangelhos, Jesus conta vários tipos de histórias, embora os evangelis-