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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Saulo Tavares da Mota Usos e desusos da noção de vulnerabilidade na saúde pública no Brasil Doutorado em Psicologia Social São Paulo 2018 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Saulo Tavares da Mota Usos e desusos da noção de vulnerabilidade na saúde pública no Brasil Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social sob a orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin. Doutorado em Psicologia Social São Paulo 2018 Banca Examinadora ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ À minha companheira na vida, Angela Di Paolo, que torna possível as potências nos bons encontros. À minha filha, Isadora, que já torna tudo mais alegre. O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq - No 140136/2015-0. AGRADECIMENTO S Agradeço à Angela, minha companheira, pela parceria e apoio fundamental nesta caminhada, e pela partilha da vida. Aos meus pais, pelo incentivo, celebração e amparo nos momentos mais difíceis. À Maria Cristina Gonçalves Vicentin, a Cris, orientadora desse trabalho, por acreditar nesse projeto e pela sustentação incansável dos bons encontros, no NUPLIC, na pesquisa, na vida. Que a vida nos brinde sempre com tantas potências quanto as produzidas ao longo desses anos de parceria. À profa. Mary Jane P. Spink pelo aprendizado durante minha trajetória acadêmica e pelos fundamentais apontamentos no exame de qualificação dessa tese. Ao prof. José Ricardo Ayres por aceitar participar desse debate acerca da noção da vulnerabilidade. Além do aprendizado, sua contribuição tem valor ético e político nesses tempos em que é necessário construir e sustentar coletivamente práticas comprometidas com a afirmação dos diversos modos de vida no campo da saúde pública À profa. Elisabeth Lima pelo aceite em participar de minha banca de doutorado e pela partilha de conhecimentos e de vida no GT Subjetividade Contemporânea. estudo durante as disciplinas e para além delas. Agradeço à profa. Heliana Conde pela afirmação de seu modo de viver, que ensina e inspira a multiplicação de possíveis a cada texto, pesquisa, aula, encontro. À profa. Cecília Bonini pelo aceite em participar dessa banca de doutorado e pela contribuição para a realização de parte dessa pesquisa realizada no contexto da Atenção Básica à Saúde de São Paulo-SP. Aos amigos(as) e colegas do Núcleo de Pesquisa em Lógicas Institucionais e Coletivas, pela partilha da conhecimentos, dores e alegrias, e pela experiência de reinvenção de si. À todos os profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo-SP que contribuíram generosamente com essa pesquisa, compondo com o compromisso ético de fortalecimento do SUS e aperfeiçoamento de suas estratégias. Ao CNPq pelo apoio e financiamento dessa pesquisa. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem? Gilles Deleuze Usos e desusos da noção de vulnerabilidade na saúde pública no Brasil Saulo Tavares da Mota RESUMO O objetivo deste estudo é analisar o modo como a Vulnerabilidade se tornou um problema e um objeto de intervenção para as políticas de Saúde Pública no Brasil, e os modos como vem sendo usada por profissionais da Atenção Básica à Saúde no município de São Paulo - SP. A noção de Vulnerabilidade foi adotada no Brasil pelo Ministério da Saúde como um dos objetos de intervenção fundamentais da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), produzindo mudanças profundas no modo de definir, identificar, intervir e priorizar a população a ser atendida, produzindo alterações nas práticas dos funcionários e dos usuários de serviços de Saúde Pública no país. Como método de pesquisa, partimos da genealogia desenvolvida por Michel Foucault. Enquanto analítica dos modos de subjetivação, a genealogia permitiu entrever as condições históricas da produção de saberes, conjuntos de regras e modos pelos quais profissionais de saúde reconhecem situações de vulnerabilidade e usam essa noção em suas práticas. A pesquisa foi desenvolvida a partir da análise de arquivos e documentos do campo das políticas de Saúde Pública, observação participante de atividades por profissionais realizadas em unidades de Atenção Básica à Saúde, além de entrevistas com tais profissionais. Verificou-se que a noção de vulnerabilidade é usada não somente para dar sentido a realidades complexas, mas para a ação concreta sobre os problemas que ela nomeia e propõe. Historicamente produziram-se usos e funções estratégicas diferentes para a noção de vulnerabilidade no Brasil, em meio a disputas, confrontos, transformações e resistências. Se, por um lado, a emergência de tal noção no campo da atenção ao HIV/AIDS no Brasil se constituiu como resistência e problematização do conceito de risco em saúde, por outro lado, sua propagação e seu uso em outros campos da saúde pública sofreram apropriações que agenciaram funções estratégicas diferentes e que se afastaram da inicial postura crítica. O processo de constituição da noção de vulnerabilidade como problema e objeto de intervenção na saúde pública historicamente envolveu estratégias de controle e práticas de resistência. No cotidiano das práticas dos profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo articulam-se, por um lado, estratégias de governamentalidade por meio de instituições, procedimentos, análises, cálculos e táticas que permitem estabelecer relações de poder sobre a população, com o intuito de torná-la útil e participativa, por meio de uma racionalidade neoliberal, interessada no incremento das capacidades e de estratégias de segurança, controlando e evitando riscos. Por outro lado, nesse mesmo contexto, as práticas de recalcitrância deslocam essas estratégias com resistências, contraposições, esquivas, inversões de posicionamentos e afirmam de modos de viver muitas vezes inconformes às diretrizes de atuação preestabelecidas. Em consonância com Judith Butler entendemos que é fundamental a atenção à situação de violência e precariedade a que muitas pessoas estão expostas, porém também é necessário a recusa de políticas que vitimizem ou estigmatizem essas pessoas com o argumento da proteção ou salvação, de modo que ofereçam recursos para seu fortalecimento e potencializando seus modos de viver. Palavras-chave: Saúde Pública; Promoção da Saúde; Atenção Primária à Saúde; Vulnerabilidade; Biopolíticas. Uses and disuse of the notion of vulnerability in public health in Brazil Saulo Tavares da Mota ABSTRACT Keywords: Public Health, Health Promotion, Primary Health Care; Vulnerability; Biopolitics. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS SUS Sistema Único de Saúde MS Ministério da Saúde ONU Organização das Nações Unidas OMS Organização Mundial da Saúde PNPS Política Nacional de Promoção da Saúde SMSSP - Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo UNAIDS - Programa das Nações Unidas para a AIDS ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro NEPAIDS Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS CIOMS - Council for International Organization of Medical Sciences SBB - Sociedade Brasileira de Bioética GET - Grupo Executivo de Trabalho CEPS - Comitêsde Ética em Pesquisa CNS - Conselho Nacional de Saúde BM Banco Mundial UBS Unidade Básica de Saúde GVE Guia de Vigilância Epidemiológica SVS Secretaria de Vigilância em Saúde PNUD Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento Sumário 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 13 1.1 História e Experiência: um percurso metodológico .............................................. 25 1.1.1 Acontecimentalizar......................................................................................... 29 1.2 Fontes Documentais e Empíricas .......................................................................... 31 1.3 Organização da Tese ............................................................................................. 35 2 O USO DA PALAVRA .............................................................................................. 37 2.1 Uma ou várias vulnerabilidades? .......................................................................... 38 2.2 Seguindo o Coelho ................................................................................................ 42 2.3 A construção de prioridades.................................................................................. 45 3 PROVENIÊNCIAS E FUNÇÕES ............................................................................... 55 3.1 Provém a palavra .................................................................................................. 56 3.2 O vulnerável na medicina do século XIX ............................................................. 57 3.3 Planejamento em Saúde: critérios para a seleção dos danos mais importantes .... 61 3.4 Vulnerabilidade e atenção à AIDS ........................................................................ 65 3.4.1 Vulnerabilidade: proveniências da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos .................................................................................................... 67 4 DIREITOS, HUMANOS E SAÚDE ........................................................................... 72 4.1 A lateralidade da norma ........................................................................................ 73 4.2 Transição dos Direitos .......................................................................................... 74 4.2.1 Tutela x Autorregulamentação ....................................................................... 77 4.3 Transição das Políticas de Saúde .......................................................................... 86 4.3.1 Vigiar e Interferir: vigilância das doenças prioritárias nos anos 1990 ........... 86 4.3.2 Proteger da ciência o vulnerável .................................................................... 93 4.3.3 Situando os usos da noção de risco ................................................................ 98 4.3.4 Para além do risco ........................................................................................ 102 4.3.5 AIDS e Promoção da Saúde ......................................................................... 112 4.4 Transição das Relações dos Humanos ................................................................ 115 4.4.1 Humano como capital................................................................................... 118 4.4.2 As incapacidades: em busca do Sujeito (Neo)Liberal .................................. 123 4.4.3 Redução e Proteção ...................................................................................... 130 4.4.4 Notas sobre a construção da Política Nacional da Promoção da Saúde ....... 133 5 DISPOSITIVO DA VULNERABILIDADE ............................................................. 141 5.1 Dispositivo .......................................................................................................... 147 5.2 Promoção da Segurança: ou da gestão dos riscos diferenciais ........................... 149 5.2.1 Mães e crianças como foco de gestão dos riscos ......................................... 149 5.2.2 Riscos Diferenciais do Idoso ........................................................................ 164 5.2.3 A acamada .................................................................................................... 171 5.3 Recalcitrâncias .................................................................................................... 176 5.3.1 A acumuladora ............................................................................................. 185 5.4 Modos de Vida .................................................................................................... 190 5.4.1 Território ...................................................................................................... 198 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 202 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 210 ANEXO 1 ..................................................................................................................... 231 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é analisar o modo como a Vulnerabilidade se tornou um problema e um objeto de intervenção para as políticas de Saúde Pública no Brasil, e os modos como vem sendo usada por profissionais da Atenção Básica à Saúde no município de São Paulo - SP. Há um extenso volume de estudos acerca da emergência da noção de vulnerabilidade no campo das políticas de atenção à AIDS no Brasil. Essa produção enfatiza as contribuições dessa noção para o aumento das possibilidades de prevenção e cuidado dessa e de outras doenças, bem como de suas formas de acometimento, a partir de fatores contextuais da vida das pessoas. Em minhas experiências de atuação como profissional psicólogo e como pesquisador das políticas de saúde pública, identifiquei controversos usos dessa noção em campos de atuação diferentes das políticas de prevenção a AIDS, como nas políticas e estratégias de Saúde Mental, Saúde do Idoso, Saúde do Imigrante, Saúde da População em Situação de Rua e Saúde da População Negra. Tais fatores motivaram a busca por compreender os usos da noção de vulnerabilidade em contextos da saúde pública diferentes das políticas de prevenção e atenção ao HIV/AIDS1. Propomos-nos, portanto, a ampliar o estudo dos modos como a noção de vulnerabilidade se tornou um problema e um objeto de intervenção em outros campos da saúde pública no Brasil. Iniciamos nosso estudo por políticas de saúde pública com abrangência nacional, como a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) e de práticas cotidianas de profissionais da Atenção Básica à Saúde do município de São Paulo-SP. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) tem como objetivo de esenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das 2012a, p. 19). No uso de suas tecnologias de cuidado, propõe a observação dos idade, resiliência e o imperativo ético de que toda demanda, neces a, p.19). 1 A decisão por esse trajeto de pesquisa foi ainda reforçada por José Ricardo de Mesquita Ayres, que no exame de qualificação dessa tese reafirmou que há uma extensa produção de pesquisas sobre a noção de vulnerabilidade no campo da prevenção à AIDS e que seria importante a discussão dos usos dessa noção em outros contextos e populações. A PNAB para a organização da atenção básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o a, p. 13), considerando e baseando-se na Política Nacional de Promoção da Saúde. Essa política articula a AB com importantes iniciativas do SUS, como a ampliação das ações intersetoriais e de promoção da saúde (BRASIL, 2012a, p. 11). A Política Nacional de Promoção daSaúde (PNPS) foi aprovada em 2006 pelo Ministério da Saúde (MS) promover a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes . (BRASIL, 2006, p. 17). A política vem produzindo mudanças no modo de definir, identificar e intervir junto às populações a serem atendidas, e provocando alterações nas práticas dos profissionais e dos usuários de serviços de Saúde Pública no país. 2002 (BRASIL, 2002a), foram entendidos como determinantes da saúde e da melhoria modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais (BRASIL, 2006, p. 17). Em 2015, a Vulnerabilidade foi retomada como objetivo geral das PNPS, na minuta de revisão das PNPS de 2006. Nesta, a PNPS se compromete a promover a melhoria das condições de vida, ampliando a potencialidade da saúde individual e coletiva, reduzindo vulnerabilidades e riscos à saúde decorrentes dos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais (BRASIL, 2015a, p. 10). A noção orienta ainda diferentes políticas e serviços de Saúde Pública, e se atualiza também em ações mais singularizadas como a Equipe de Saúde da Família Especial, direcionada ao atendimento de população em Situação de Rua e alta Vulnerabilidade Social, que foi implantada pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS-SP) na capital paulista. (SÃO PAULO, 2014). Na década de 1990, a noção de Vulnerabilidade passou a ser utilizada em pesquisas relacionadas ao combate à pobreza. Em 1999, foi utilizada pela Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL, 1999) para definir a situação de carência de recursos necessários para subsistência, pela qual padeciam determinados indivíduos de países em desenvolvimento da América Latina. Esse documento, intitulado como América Latina , tinha o objetivo de construir orientações para metodologias e programas de redução da pobreza. Nos anos 2000, foram desenvolvidos instrumentais para mensurar índices de vulnerabilidade social, entre diversos municípios, a partir de critérios de faixa-etária, local de residência, aspectos culturais, dentre outros. O Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPRS) foi criado em 2000, a partir da solicitação da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo à Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), para a construção de indicadores que expressassem o grau de desenvolvimento social e econômico dos municípios do Estado de São Paulo. Em 2007, o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) definiu que as situações de vulnerabilidade social podem ser identificadas no confronto entre os recursos acumulados pelos indivíduos e as oportunidades acessíveis a esses para empregá-los, de tal maneira que não só o dinheiro que tais indivíduos possuem deve ser avaliado, como também a capacidade destes em conduzir suas próprias vidas. (FUNDAÇÃO SEADE, 2007). Em 2010, o IPVS (FUNDAÇÃO SEADE, 2010, p. 8) afirmou que a efere-se a sua maior ou menor capacidade de controlar as forças que afetam seu bem- prefeitura Municipal de Belo Horizonte publicou o afirmando que a abordagem das relações de, fundamenta necessariamente o argumento norteador da construção dos indicadores de vulnerabilidade, para a análise da situação sanitária municipal. (BELO HORIZONTE, 2013). Atribui-se à noção de vulnerabilidade determinada história, ou ao menos, determinadas periodizações acerca do início de seu uso no campo da Saúde Pública no Brasil, mais especificamente no contexto das políticas de atenção e combate ao HIV/AIDS. Ayres et al. (2009) afirma que a epidemia de AIDS na década de 1980 demandou novas problematizações do conceito de risco em saúde, e a noção de vulnerabilidade se estabeleceu como uma possibilidade de construção de novas teorias e práticas de prevenção e cuidado de portadores do HIV. (AYRES, 2009). Na perspectiva de Ayres, Paiva e Buchalla (2012) a noção de vulnerabilidade foi AIDS in the World , publicado em 1992 no formato de coletânea, por Jonathan Mann, Daniel Tarantola e Thomas Netter nos Estados Unidos. O livro foi produzido pela Coalizão Global de Políticas contra a AIDS, que se caracterizava como um formato inicial do Programa das Nações Unidas para a AIDS (UNAIDS), com o apoio da Associação François-Xavier Bagnoud e da Harvard School of Public Health. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). O texto apresentava procedimentos para avaliar a exposição individual à infecção pelo HIV, propondo, segundo Ayres, Paiva e Buchalla (2012), pela primeira vez, uma análise da situação mundial da epidemia em termos de vulnerabilidade. Partia-se do aspecto comportamental e dos riscos epidemiologicamente apresentados, para em seguida identificar fatores sociais e de acesso a serviços que poderiam aumentar ou diminuir a capacidade individual de percepção e ação sobre o risco de exposição. Assim, o grau de exposição e de proteção de populações de diversos países do mundo foi analisado. A partir dessa análise um ranking de classificação de alta, média e baixa vulnerabilidade foi desenvolvido, com base em uma escala elaborada a partir de indicadores de saúde, sociodemográficos e de avaliações de programas de combate à AIDS. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). Quatro anos mais tarde, produzido pela Coalizão, Aids in the Word II2 foi publicado, após a instituição do Center for Health and Human Rights da Harvard School of Public Health (FXB-C). O livro retoma o tema da vulnerabilidade em seção Direitos Humanos Direitos Humanos como recurso para avaliar situações de vulnerabilidade e produzir diretrizes e ações para sua redução. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). Ayres, Paiva e Buchalla (2012) afirmam que a produção brasileira acerca da vulnerabilidade e Direitos Humanos começou aproximadamente no mesmo momento, a partir do trabalho de grupos que se dedicavam ao estudo da epidemia de AIDS no Brasil, como o Instituto de Medicina Social da UERJ e a Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS (ABIA), no Rio de Janeiro. Além disso, apontam grupos de pesquisadores dos campos da Medicina, Psicologia, Saúde Pública e o NEPAIDS (Núcleo de Estudos e Pesquisa em AIDS), da USP e do Instituto de Saúde e Programa de DST/AIDS de Secretaria de Estado da Saúde, em São Paulo. Nessa perspectiva, ao longo dos anos 1990, o quadro da vulnerabilidade e Direitos Humanos foi desenvolvido 2 Livro ainda não traduzido para o português. no Brasil de modo peculiar, já que ocorreu durante o processo de redemocratização do país, que passava pela Reforma Psiquiátrica assim como pela construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Ayres, Paiva e Buchalla (2012) ressaltam, nesse sentido, as propostas de modelos de atenção integral à saúde, impulsionadas pelos movimentos de mulheres e de luta antimanicomial, assim como as mobilizações de grupos da sociedade civil organizada ante a epidemia de AIDS. A academia brasileira desempenhou suas atividades por meio da tradição crítica da Saúde Coletiva, da epidemiologia, da Psicologia Social e da Educação, fortemente influenciada pelo pensamento de Paulo Freire. Nessa perspectiva, esses aspectos ajudariam a compreender porque esse quadro da vulnerabilidade e Direitos Humanos assumiu no Brasil caráter mais radical do que nos Estados Unidos, já que se buscou desde o início a construção e legitimação de múltiplas sínteses transdisciplinares ou, ainda, novos modos de pensar e agir no campo da saúde. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). Ayres, Paiva e Buchalla (2012) argumentam que, com relação à noção de vulnerabilidade, tem abordado a dicotomia entre o individual e o coletivo por meio do manejo de três dimensões constitutivas das análises de vulnerabilidade: a dimensão individual, a dimensão social e a dimensão programática. A dimensão individual é entendida como intersubjetividade,como identidade pessoal em constante construção nas interações eu-outro. A dimensão social, sempre em contexto de interação, é identificada nos espaços de experiência da intersubjetividade, atravessados por normatividades e poderes sociais, com base na organização política, econômica, nas tradições culturais, crenças, relações de gênero, raciais, geracionais, dentre outros. Por sua vez, a dimensão programática, é caracterizada pelas formas institucionalizadas de interação, que se referem a conjuntos de políticas, serviços e ações organizadas e disponibilizadas conforme processos políticos e segundo padrões de cidadania operantes. Segundo Ayres, Paiva e Buchalla (2012), por esse motivo o foco orientador das análises passaria a ser menos as identidades pessoais/sociais, como as identidades de mulher, negra, adolescente, pobre, em direção a relações sociais que estariam na base das situações de vulnerabilidade, como relações de gênero, relações raciais, relações geracionais, relações socioeconômicas etc. Entre os séculos XX e XXI, no Brasil, emerge ainda uma distinta referência à vulnerabilidade em outro segmento da saúde pública: as pesquisas que envolvem seres humanos. Nesse campo, os Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos tem se . (MACKLIN, 2004, p. 60). Para Macklin (2004) destaca-se como principal característica da vulnerabilidade nessa diretriz a limitação da capacidade ou da liberdade para consentir na pesquisa ou se recusar a participar dela. A diretriz tem na sua sequência um comentário no qual são relacionados grupos que podem ser considerados vulneráveis no contexto da pesquisa. Incluem-se aí membros subordinados de grupos hierárquicos como os militares ou estudantes, pessoas idosas com demência e residentes em asilos, pessoas que recebem benefícios de seguridade ou assistência social, outras pessoas pobres e desempregadas, pacientes em sala de emergência, alguns grupos étnicos e raciais minoritários, sem-teto, nômades, refugiados ou pessoas deslocadas, prisioneiros, e membros de comunidades sem conhecimento dos conceitos médicos modernos. (MACKLIN, 2004, p. 61). Além da construção histórica da noção de vulnerabilidade no campo das políticas públicas de Saúde, é possível identificar uma ampla variedade de abordagens e definições da vulnerabilidade em diversos campos do saber. Destacamos a perspectiva de Delor e Hupert (2000), que afirmam que a relação entre a noção de vulnerabilidade e a elaboração de programas de prevenção à AIDS, presente em diversos campos do conhecimento e em todos os continentes, resulta de um processo que pode ser dividido em pelo menos três etapas. A primeira etapa remonta à década de 1980, quando se fortalece a construção social do risco de HIV/AIDS, referindo-o a grupos específicos como homossexuais e haitianos. Buscava-se erradicar o risco da maior parte da população em detrimento desses grupos específicos, uma vez que se definia que o risco de HIV/AIDS era exclusivo desses grupos. A segunda etapa causa viral, na qual o risco passou a ser associado a práticas específicas, como a penetração anal. Trata-se da transição do paradigma do mecanismo causal, que antes se concentrava nas características de um grupo específico e passou a focar o comportamento individual. Tal mudança teria ocorrido quando grupos específicos, apontados como de risco, reagiram tenazmente denunciando tal discriminação, afirmando que o vírus agia de forma indiscriminada sobre a população. Nessa etapa, o objetivo principal das campanhas voltou-se sobre os comportamentos e seu foco continuava a ser o da erradicação da AIDS. Na terceira e mais recente etapa, Delor e Hupert (2000) apontam para o recrudescimento da perspectiva de que leva em conta as características das relações e interações em que o risco ocorre, enfatizando os programas de intervenção que visam a habilitação e a capacitação dos sujeitos frente à epidemia. Nessa etapa o objetivo de erradicar o risco parece ter ganhado status de ilusório, sendo gradualmente substituído pelo objetivo de redução do risco. Passou- co zero sexo seguro para todos e sempre, para campanhas de redução do risco, do sexo 'mais seguro'. Nesse sentido, para Delor e Hubert (2000), a identificação e a descrição de situações de vulnerabilidade, que possam basear programas de intervenção, tornou-se uma prioridade. O conceito de vulnerabilidade estaria se tornando central diante da dificuldade de sua aplicação à diversidade de situações nas quais os indivíduos ou grupos estão mais expostos ao HIV, sendo, portanto, necessário buscar esclarecê-lo. Porém, ainda na década de 1980, Trostle (1986) apontara que em meados de 1900 já havia o interesse no envolvimento do comportamento humano nos processos de saúde-doença, por determinados segmentos da epidemiologia e da antropologia, provavelmente provocado pelo aumento da mobilidade das populações. Alves e Rabelo (1998) apontam nesse sentido que, envolvendo populações pobres, projetos de intervenção e pesquisas relacionadas ao tema caminharam para a extinção e o aniquilamento, nos anos seguintes a 1900, devido a cortes de recursos, ainda que fossem bem sucedidas tecnicamente. Antes disso, no século XIX já havia sido atribuída importância à relação entre questões sociais e a saúde, tal como ressaltou Edwin Chadwick com a Poor Law3 em 1834 na Inglaterra (ROSEN, 1994), Villermé na França, chamando a atenção para as condições das fábricas têxteis, e na Alemanha Virchow, Neumann e Leubuscher, que buscavam estabelecer conhecimentos fundados na relação entre a doença e a situação sanitária. (AROUCA, 1975; NUNES, 1998). No século XX, John Cassel (1976) foi um dos pesquisadores da epidemiologia moderna que se dispôs a discutir o envolvimento dos aspetos culturais e sociais no processo saúde-doença, nas décadas de 1960 e 1970. Em 1976, é publicado o artigo , no qual Cassel afirma que a problematização estabelecida na pesquisa epidemiológica referia-se ao dilema da 3 Lei dos Pobres (tradução livre). existência ou não de categorias e classes de fatores ambientais capazes de mudar a resistência humana e de fazer conjuntos de pessoas ficarem mais ou menos suscetíveis aos agentes onipresentes em nosso ambiente. Entretanto, para Cassel (1976), quando se pensava nessa questão, costumava-se pensar em termos gerais como estado nutricional, fadiga, excesso de trabalho, entre outros, sendo que em sua perspectiva há outra categoria de fatores ambientais capazes de produzir efeitos profundos no grau de susceptibilidade das pessoas a agentes de doenças ambientais, sendo esses fatores aspectos do ambiente social. Cassel (1976) se contrapôs inclusive a pesquisadores que adotavam a perspectiva biológica, que afirmavam que a explicação do 'stress' não seria mais necessária, pois é evidente que qualquer processo de doença pode ser influenciado por meio da reação do indivíduo ao seu ambiente social ou a outras pessoas. Em sua perspectiva, os processos psicossociais atuam como estressores condicionais que alteram o equilíbrio do sistema endócrino do corpo aumentando a susceptibilidade do organismo a agentes patógenos. Processos psicossociais são entendidos por Cassel (1976) como reforçadores da susceptibilidade à doença, como por exemplo, as consequências do rompimento de relações sociais importantes para a saúde, como a morte de um cônjuge. Muito ainda pode ser apresentado sobre os diversos usos da vulnerabilidade. Esta revisão de literatura sobre a noção de vulnerabilidade é irrisória frente à extensão de seu uso na bibliografia nacional e internacional. Certamente não encerraremos aqui o infindável e quase inapreensível número de citações desta palavra nos séculos XX e XXI, assim como não percorreremos a totalidade dos múltiplos sentidos e definições atribuídos a ela. O que parece certo é que a partir da segunda metade do séculoXX passa a ser crescente a insistência em se falar sobre a vulnerabilidade de grupos e indivíduos em determinadas circunstâncias e, em grande parte das vezes, em termos de falta, ausência, seja de recursos, capacidades, segurança, moradia, saúde, informação, apoio social, institucional, dentre outros. Essa insistência em identificar vulnerabilidades e apontar soluções para reduzi- las está enunciada na PNPS, que tem como um de seus objetivos a redução de vulnerabilidades (BRASIL, 2006; 2015). Contudo, para Souza, Mello e Ayres (2013), a despeito do desenvolvimento de estratégias de redução de vulnerabilidades pelo governo, os serviços ainda estão criando, ou deixando de reduzir vulnerabilidades. Identifica-se nos discursos e propostas das P individuais [...] articulados a uma regulação biopolítica4 . (FERREIRA NETO; KIND, 2010, p. 55), produzindo o que Tedesco e Nascimento (2013) entendem por individualização de questões sociais. Tais práticas muitas vezes acabam por diminuir a autonomia, a responsabilização e a participação social, em vez de aumentá- las. (ROSA, 2012). E ainda, numa perspectiva analítica, Rose (2007) e Ferreira Neto e Kind (2010) afirmam que nos séculos XX e XXI, no campo das políticas de saúde, houve um deslocamento do foco de intervenção que passou a priorizar menos a doença e mais a capacidade dos indivíduos de gerenciar e garantir sua própria saúde e seu bem-estar. Nesse contexto, percebe-se que tanto nos documentos governamentais, quanto nas práticas de promoção de saúde, existe um crescente incremento de estratégias de ações sobre os corpos, os comportamentos e as vidas das pessoas, determinando estratégias de capacitação e regulação dos indivíduos, bem como o estabelecimento de políticas públicas capazes de esquadrinhar e controlar as populações vulneráveis. (ROSA, 2012). Para Sposati (2011), nesse contexto, ainda é possível perceber discursos e práticas que acabam por culpabilizar o indivíduo por sua situação de vulnerabilidade ou doença, deslocando-o das condições históricas e sociais que determinaram tal situação. Para a pesquisadora, é preciso ressaltar sempre que a superação da Vulnerabilidade depende de um conjunto de suportes que envolve a presença e a qualidade de políticas públicas. (SPOSATI, 2011). Méndez (2014) afirma que através da própria noção de Vulnerabilidade, utilizada para legitimar o direito e a prioridade de atenção à saúde, pode-se produzir sujeitos fragilizados, na medida em que são tomados como objetos de intervenção de uma política que os classifica como frágeis. Para o pesquisador, muito mais do que um jogo de palavras, a construção e a classificação do sujeito como frágil, realizada através da noção de Vulnerabilidade, produz efeitos reais. Para Méndez (2014), no campo dos direitos da criança e do adolescente, foi em nome da proteção das crianças entendidas como vulneráveis que muitas vezes se estabeleceu mecanismos promotores, e não protetores, de vulnerabilidades. 4 Esse conceito será abordado no capítulo 2. Mais especificamente no campo da Promoção da Saúde, Castiel (2004) afirma que não há uma teoria unificada para a Promoção da Saúde, de tal maneira que podem ser identificadas posturas mais conservadoras, direcionadas para a responsabilização dos indivíduos por sua saúde e para a diminuição dos custos da saúde pública; e posturas radicais e libertárias, direcionadas para a mudança de relação entre cidadãos e Estado, com ênfase em políticas públicas e mudanças sociais mais profundas. Ferreira Neto e Kind (2010) afirmam por sua vez que os posicionamentos e debates no campo da Promoção da Saúde são configurados por relações de força, tensões, confrontos, sendo necessário pensá-lo como um campo constituído simultaneamente por dimensões regulatórias e disciplinares, e dimensões participativas e emancipatórias. Quanto aos usuários, Silva, Val e Nichiata (2010) afirmam que, apesar do potencial de articulação das Estratégias de Saúde da Família em seu território, junto a serviços que podem reduzir a Vulnerabilidade da população, ainda é possível perceber baixa adesão às medidas de prevenção. Os usuários chegam de modos muito distintos ao encontro dos trabalhadores dos serviços de saúde, motivados por sofrimentos, preocupações e expectativas diferentes, ressalta Ayres (2009). Essas pessoas trazem consigo saberes advindos de vivências profundas que, segundo o pesquisador, deveriam ser o motivo central do encontro com o trabalhador, contudo em muitos encontros, os saberes científicos continuam a assumir uma posição excludente com relação a qualquer outro saber. Uma série de condições que possibilitam tal assimetria de poder na relação entre o profissional e o usuário, que pode resistir, se esquivar ou se assujeitar a ser objeto de conhecimento e intervenção do profissional da saúde. (AYRES, 2009). Em pesquisa realizada com famílias consideradas em situação de Vulnerabilidade, Pettengill e Ângelo (2005) relatam que o significado de equipe. Os conflitos entre equipe e família, caracterizados pela falta de diálogo e pela percepção da família de que está sendo inferiorizada e afastada do processo e das tomadas de decisão, ou ainda desrespeitada, constituem um contexto de intensificação da Vulnerabilidade da família, que se percebe ameaçada em sua autonomia. Nesse sentido, pode-se perceber que o uso da noção de Vulnerabilidade vem sendo estabelecido em relação a três âmbitos: (1) o desenvolvimento de campos de conhecimentos diversos, relacionados tanto a mecanismos biológicos como a variantes individuais e sociais de comportamento; (2) a instauração de um conjunto de regras e normas que se apoiam nos cálculos econômicos, em instituições judiciárias, de assistência social e de saúde; (3) mudanças no modo pelo qual os indivíduos são orientados e levados a reconhecer e atribuir sentido e valor a sua conduta, seus deveres, sentimentos e desejos. (FOUCAULT, 1984b). A extensão do uso vulnerabilidade não se restringe a um só campo do conhecimento e tampouco ao âmbito conceitual teórico. Essa noção se tornou organizadora de políticas públicas de abrangência nacional no Brasil (especialmente na assistência social)5, e produz efeitos diretos e indiretos na atenção à saúde da população. Considerando a amplitude de políticas públicas que tomam a vulnerabilidade como objeto de intervenção, decidimos nos restringir ao seu uso no campo da Saúde Pública, identificando sua relação com outras políticas públicas e campos do conhecimento. Nesse contexto, questionamos: de que modo a noção de Vulnerabilidade se tornou um problema e um objeto de intervenção para a Saúde Pública no Brasil? Por meio de que condições de possibilidade historicamente datadas? De que modo tem sido usada por trabalhadores da Saúde Pública? Como tal noção vem sendo acionada nas práticas em saúde? 5 m 2004, quando foi instituída, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) explicitou em seu texto que a vulnerabilidade social, expressa por diferentes situações que podem acometer os sujeitos em seus contextos de vida, é o campo de atuação de suas ações. A concepção de vulnerabilidade denota a multideterminação de sua gênese não estritamente condicionada à ausência ou precariedade no acesso à renda, mas atrelada também às fragilidades de vínculos afetivo-relacionais e desigualdade de acesso a bens e serviços públicos . (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. A partir dos anos 1990, inicia um esforço teórico para a compreensão do fenômeno da pobreza e suas consequências para além do enfoque nas variáveis puramente econômicas. Essa é a tônica levada a cabo por organismos internacionais, incorporando o conceito de vulnerabilidade, de caráter mais amplo, às políticas sociais brasileiras, reorientando a política pública de assistência social. As imbricações entre os conceitos de risco e vulnerabilidade nocampo da assistência social levam a concepções que tomam desde a dimensão mais individual do primeiro sobre o segundo, passando pela assunção daquele como a condição da frágil sociedade contemporânea e deste como a condição dos indivíduos inseridos nesta sociedade, culminando por atrelar a situação de vulnerabilidade dos sujeitos a um certo risco (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7). 1.1 História e Experiência: um percurso metodológico Nesse estudo nos interessará menos os motivos pelos quais determinadas pessoas ou populações estariam em situação de vulnerabilidade. Tampouco o modo mais adequado de identificar e avaliar sua vulnerabilidade. Nem a especificidade dos estudos da vulnerabilidade. Menos ainda a melhor definição da própria noção de vulnerabilidade. Nosso interesse primeiro é analisar o motivo de dizermos com tanto empenho que há vulnerabilidade, que certas pessoas e populações estão vulneráveis. O foco de interesse é o próprio processo pelo qual nossa sociedade chegou a tomar a vulnerabilidade como noção que define um problema que demanda intervenção, passando a incrementar conhecimentos acerca dos tipos de vulnerabilidade, a entendê-la como falta, ausência, afirmando que é preciso intervir sobre ela no campo da Saúde Pública6. Quais os motivos desta insistência em falar sobre vulnerabilidade? O que sustenta e motiva tal insistência? Trata-se de analisar a vulnerabilidade como um foco de experiência historicamente singular. Para analisar o modo como a noção de vulnerabilidade se tornou um problema e um objeto de intervenção na saúde pública buscamos fazer uma história, procedendo por uma análise fundamentada na genealogia proposta por Michel Foucault (1984b), que se caracteriza pela análise da correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e modos de subjetivação7. Para tal análise, segundo Foucault (1984b), é necessário definir o modo como se estabeleceram saberes e normas a partir das problematizações e interpretações de uma sociedade acerca de um acontecimento, em um dado momento historicamente datado. E em seguida, identificar formas e modalidades por meio das quais as pessoas puderam se reconhecer como sujeitos, a partir dessas normas e saberes. (FOUCAULT, 1984b; 2010a). Ou seja, uma genealogia demanda a análise da correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e modos 6 Problematização baseada na genealogia desenvolvida por Michel Foucault em História da Sexualidade (1984). 7 Entendemos nesse estudo que através desses modos de objetivação, aos poucos, os seres reconheceram- se como sujeitos. Como define Foucault ( objetivados apropriam- eito dos processos de objetivação de si. de subjetivação disparados a partir de determinadas problematizações. (FOUCAULT, 1984b). Recusamos, portanto, a hipótese de que o presente é o resultado natural e necessário de certo passado, procurando questionar o que somos e fazemos, assim como o modo como nos relacionamos conosco mesmos e com os outros. (FOUCAULT, 1984b). Valemo-nos de alguns parâmetros para o desenvolvimento de tal análise. Primeiro, a genealogia demanda um afastamento da tarefa de tudo dizer sobre certo período. Escolhas são incontornáveis neste modo de pesquisar, que implica que sejam estabelecidos recortes, egundo pontos determinantes, e uma extensão de [análise] segundo relações , e não segundo um período pré-determinado. (FOUCAULT, 2003a, p. 327). A pertinência está, portanto, nos momentos de ruptura, nos cortes, inversões, descontinuidades, que configuram a emergência de campos de saberes, conjuntos de normas e modos de ser e de pensar relacionados à noção de vulnerabilidade. Isso porque, seguindo as pistas de Foucault (1979), entendemos que um saber não é feito para compreender, mas para cortar. Ele é fruto de relações de força, de poderes confiscados, de vocabulários retomados e voltados contra seus utilizadores, de dominações enfraquecidas sob a espreita de outras que tocaiam sua entrada, . (FOUCAULT, 1979, p. 28). Para Foucault (1979) uma história efetiva não se apoia em nenhuma constância, pelo contrário, ela produz o descontínuo em nosso próprio modo de ser. Nesse sentido a genealogia não pretende reencontrar as raízes ou a origem de nossa identidade, não busca desvelar o surgimento necessário de algo que durante muito tempo já vinha sendo preparado para ocorrer. Trata-se de identificar as cenas em que ocorrem afrontamentos, acidentes, em que se distribuem atores uns frente aos outros, uns acima dos outros, através da qual trocam-se ameaças e palavras, que viabilizam a continuidade, a descontinuidade ou a emergência de uma problematização. (FOUCAULT, 1979). Além disso, a fim de analisar o uso da noção de vulnerabilidade por profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo SP, além da análise da correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e modos de subjetivação, partimos do conceito de ispositivo proposto por Foucault (1984a), valendo-nos de sua estratégia analítica. Procedemos por uma analise do dispositivo que congrega diversas práticas e estratégias que fazem ver e falar sobre a vulnerabilidade: o Dispositivo da Vulnerabilidade. O dispositivo é definido por Foucault (1979, p. 244) como um conjunto [...] que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas . Trata-se da própria relação que se estabelece entre esses elementos. Abordamos tal discussão acerca do dispositivo no capítulo 5. Essa abordagem permite verificar os aspectos produtivos do poder que, segundo Foucault (2010a), não somente reprime, vigia, controla, mas também faz os sujeitos verem, falarem, agirem. A dimensão produtiva do poder poderá ser verificada no contexto da Atenção Básica à Saúde nas cenas observadas nesta pesquisa e narradas por profissionais entrevistados que nela atuam. Mas como identificar tais cenas? Seria possível flagrá-las? Para essa tarefa outro afastamento nos será necessário. Iniciaremos um exercício de distanciamento do já enunciado malogro das Ciências de buscar revelar o mundo e o homem, sua finalidade, seu destino, sua profundidade, sua essência.8 Foucault (2001b) suscitara a questão de que ao invés de cumprir a promessa de desvendar ou revelar o homem e a realidade, as Ciências Humanas, como experiência cultural geral, agiram na construção de realidades e na criação de subjetividades através de um processo de redução do ser humano a um objeto de conhecimento. (FOUCAULT, 2001b; FOUCAULT, 2010a). Através dos modos pelos quais se propunham a conhecer e explicar os seres humanos, tomaram-nos como objeto de estudo, investigação e exame, ou seja, através de modos de objetivação, foram produzidas novas subjetividades e não revelações. (FOUCAULT, 2001b; FOUCAULT, 2010a). Desse modo, também as Ciências Sociais e as Ciências Naturais9 nunca possibilitaram ao A descrença de que a ciência pode desvendar o mundo é retratada em Nietzsche, Freud e Marx por Foucault (2000). Foucault (2001b) refuta a ideia de que essa produção do homem pelo homem consiste essencialmente na afirmação de que as sociedades de classes manteriam os homens longe de sua essência fundamental, alienados, sendo necessário libertá-los desse processo para que retomassem sua essência. Para Foucault (2001), diferentemente, através de tal processo se emergência de algo totalmente diferente. Novamente, trata-se de uma inovação no modo de viver, e não um afastamento da essência do homem. Até mesmo as Ciências Naturais, como a Biologia, assistem embates constantes ainda hoje sobre as interpretações e representações da vida biológica. Assim como outras ciências, afirma Laqueur (1990), a biologia constrói suas próprias verdades em seus estudos sobre os seres vivos, oscilando continuamente em seus modos derepresentar e de construir sentidos. É através da literatura acerca das Ciências Biológicas que é gerado não apenas um conteúdo, mas, por exemplo, a diferença sexual, que está para além da diferença entre a mulher e o homem (LAQUEUR, 1990), podendo homem encontrar a finalidade, ou a essência fundamental, dele próprio. (FOUCAULT, 2001b). No curso de sua história, os seres humanos vêm alterando continuamente sua subjetividade, produzindo uma série infinita de diferentes e múltiplas subjetividades, de tal forma que esse movimento nunca os colocará em face de algo que seria a sua essência. (FOUCAULT, 2001b). Segundo Foucault (2001b), os homens estariam envolvidos neste processo que os deslocam e, ao mesmo tempo, os deformam, os transformam e os transfiguram como sujeitos. Assim, o objetivo da historiografia proposta por Foucault (2001b) não é atender aos historiadores profissionais, mas, através de um conteúdo histórico específico, convidar as pessoas para experimentar o que somos, não somente o que fomos no passado, mas o que somos no presente. É necessário, portanto, que aquilo que o texto diz seja academicamente verificável, historicamente verificável, pois não se trata de um Romance. Entretanto, nesse caso, o mais importante não seria o conjunto de resultados reais ou historicamente verificáveis, mas a experiência que o texto pode produzir. Essa experiência não é nem verdadeira e nem falsa, é sempre uma ficção, ou seja, algo fabricado, uma artificialidade, que não existia antes e que depois se verificou existir. Declara Foucault, (2001b) que o texto transforma aquilo que ele pensa quando o termina. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. (FOUCAULT, 1984b, p. 13). Foucault (2001b) declara escrever para mudar a si mesmo, justamente para não pensar a mesma coisa que antes10. Assim, o filósofo enuncia a sua busca por um ser referida às diversas identidades sexuais que se possa citar. (BUTLER, 1999). Em outro campo, quando as tecnologias de visualização do corpo vivo se concretizam, como os exames de raios X construídos por Roentgen em 1895, e o interior do corpo passa a ser colonizado, aparecem as tentativas de atribuir sentidos, valores, identidades e marcas de singularização a esse novo espaço. Esse processo ocorre não sem efeitos e consequências para os sujeitos, assim como verificamos com os modelos de organização médica e urbana suscitados pelo miasma, o germe e a bactéria, produzindo também modos de subjetivação. (ORTEGA, 2008). Por isso Foucault (2001b) se considera um experimentador e não um teórico, já que este último constrói um sistema geral de dedução ou análise, e o aplica de modo uniforme a diferentes campos. trabalho que, quando lido, impediria que cada leitor fosse o mesmo, ou que tivesse consigo mesmo, com os outros e com as coisas, a mesma relação que mantinha antes de ler o texto. Eis a definição de um texto-experiência, que se opõe ao texto-verdade, que busca revelar o mundo, ou a verdade do ou no sujeito, à espera de ser descoberta; e que se opõe ao texto-demonstração, que busca conservar, repetir e aplicar com rigor modos de pensar, valores vigentes, métodos, dentre outros. (FOUCAULT, 2001b). Nesse estudo, elegemos a experiência da historiografia buscando identificar cenas em que ocorrem afrontamentos e acidentes, nas quais se distribuem atores uns frente aos outros. Tal processo ocorreu por meio da produção de acontecimentos. Ou seja, seguindo algumas pistas de Foucault (2003a; 2003b), para esse estudo foi necessário que o acontecimento se tornasse um verbo e se constituísse como um procedimento de análise. Mas como realizar tal procedimento? 1.1.1 Acontecimentalizar Aos vinte e sete anos, Artaud enviara alguns poemas a uma revista, os quais o diretor, Jacques Rivière, recusou polidamente. Na narrativa de Blanchot (2013, p. 63), o sofre de tal abandono de pensamento que não pode negligenciar as formas, mesmo que troca de cartas entre Rivière e Artaud, escritas em torno daqueles poemas não publicáveis. O diretor da revista propõe então subitamente ao escritor a publicação das cartas sobre os poemas, que agora seriam parcialmente admitidos, para serem publicados como exemplo e testemunho. Sob a condição de não falsear a realidade, Artaud aceita a proposta. Esta célebre correspondência entre o escritor e o diretor da revista é um acontecimento, e de grande significação para Blanchot (2013). Na leitura de Blanchot (2013) é a narrativa da experiência da insuficiência e da indignidade dos poemas que os completam e que os fazem deixar de ser falhos. É como se o que era seu defeito, se tornasse plenitude e acabamento justamente pela expressão aberta do que lhe era falho, do que lhe faltava, e pelo aprofundamento de sua necessidade. É a experiência da obra, mais do que ela própria, que interessou a Rivière. Mais ainda, este malogro, que não o atraíra inicialmente, atrairá àqueles que escrevem sobre ele ou somente o leem. (BLANCHOT, 2013). Entretanto, o que significa dizer que um acontecimento pode não ter a mesma importância para pessoas diferentes? Ora, um acontecimento não tem relação de identificação com os significados atribuídos por aqueles que produziram elaborações a seu respeito, e tampouco determina a priori aqueles para quem fará diferença. Nesse caso, nos referimos aos apontamentos de Stengers (2002) sobre o fato de que o acontecimento carece tanto de um representante privilegiado quanto de um alcance legitimado de antemão. Isso porque seu alcance faz parte de seus desdobramentos e dos problemas agenciados no futuro criado pelo ele próprio. Ele se torna objeto de múltiplas interpretações, assim como pode ser obtido pela própria multiplicidade destas interpretações. Todos que, à sua maneira, se remetem a um acontecimento inventam neste ato um modo de se servir dele, a fim de mostrar sua própria posição, de afirmar sua diferença, dando sequência ao acontecimento. (STENGERS, 2002). Porém, se o acontecimento não se constitui automaticamente e se não possui representantes ou significado finalizado, de que modo se efetua? Ele precisa ser produzido. Ele é fruto de um processo de produção, de invenção, é, portanto, uma . (FOUCAULT, 2003a). Mas, afinal, do que se trata? Primeiramente de uma ruptura. Onde tentadoramente se poderia referir a uma constante histórica, a um evidente modo de pensar e fazer, a um traço antropológico, faz-se emergir uma singularidade. O acontecimento constitui-se pelo que Stengers (2002) circuito nos argumentos, que opõe um contra-poder aos poderes, e que compõe a topografia do campo de invenção das ciências. Mais precisamente, trata-se de mostrar como algo não era tão necessário assim, ou benéficos assim. É a busca por explicitar, por exemplo, como certo procedimento foi realizado com um doente ou um delinquente, e mostrar como não era tão evidente que o melhor a fazer com eles seria interná-los, ou que um louco deve ser visto como doente mental, ou ainda que as causas da doença devem ser buscadas no exame individual do corpo. Operam-se dessa maneira rupturas das evidências, sobre as quais se apoiam nossos saberes, nossas práticas, nossas regras, nossas prioridades, nossos consentimentos. (FOUCAULT, 2003a). Se, no século XIX houve um momento preciso a partir do qual a taxa de proteína na alimentação aumentou e a parte de cereais diminuiu, houve um acontecimento histórico, econômico, biológico. Se houve um momento preciso no mesmo século, no qual se passou a proibir a atuação dos cirurgiões, sangradores e curandeirosna prática de cura no Brasil, houve um acontecimento científico, econômico, social, religioso etc. Eis o interesse do genealogista, e deste estudo, no acontecimento: curto-circuitos em dinâmicas de poder naturalizadas. (FOUCAULT, 2003a). Encontrar desestabilizadores de relações estabelecidas, evocando cenas, contingências, situações, práticas, discursivas ou não, que possam evidenciar que algo naquilo que fomos e somos não é fatalmente necessário, que não é assim tão inevitável, ou ainda, que não é incontornável. A análise proposta neste estudo toma a acontecimentalização como estratégia para uma historiografia da noção de vulnerabilidade. Os usos dessa noção foram tomados como focos de experiência historicamente datados e compuseram esta pesquisa que tem como referencial a genealogia11 proposta por Foucault (1984b). 1.2 Fontes Documentais e Empíricas Descreveremos nessa sessão o conjunto de fontes que foram a base desse estudo e modo como foram utilizadas. Essa escolha por analisar práticas dos profissionais da Atenção Básica à Saúde e políticas de saúde pública de abrangência nacional, nos permitiu seguir indícios e indicações dos próprios profissionais acerca dos usos da noção de vulnerabilidade que Numerosos e diferentes usos dessa noção foram identificados. Desse modo, consideramos oportuno tomar como ferramenta conceitual para esse estudo os três modos de fazer uma história da moral propostos por Foucault (1984b), a saber, a história das moralidades, a história dos códigos e a história das tais indivíduos ou tais grupos são conformes ou não às regras e aos valores que são propostos por de regras e valores que vigoram numa determinada sociedade [...], [...] os aparelhos de coerção que lhes dão vi fim, a história das práticas de si se refere ao modo pelo qual os seres humanos puderam ser levados a se constituírem como sujeitos. Trata-se da história dos modelos propostos para o desenvolvimento das relações do indivíduo consigo mesmo, para o exame, a decifração e a reflexão sobre si, visando a destinadas a assegurá- , p. 29). As fronteiras entre essas modalidades de historiografia muitas vezes se sobrepuseram durante esse estudo. Nos valemos dessa divisão para facilitar o desenvolvimento das análises propostas. se referem a populações específicas, como a população em situação de rua, a população imigrante, a população negra, assim como a figuras nomeadas a partir dessa noção , m situação de dentre outras. A incorporação relativamente recente da noção como conceito organizador de certas ações no campo da saúde nos levou a realizar entrevistas com gestores e o acompanhamento de práticas de saúde com profissionais de saúde. Analisamos as práticas de trabalhadores da Saúde Pública que atuam em um território sanitário da região norte da cidade de São Paulo que abrange 31,5 km2, cuja população em 2010 era 407.245 habitantes. (TAKEITI, 2014). A população é constituída, sobretudo, por negros, jovens e mulheres e está localizada entre os distritos com mais alto índice de homicídios juvenis. (ROSA et al., 2016). Além disso, a precariedade das condições de habitação restringe as possibilidades de emprego formal que, quando presentes, oferecem baixos salários. Somada à privação de condições de obter trabalho e renda adequadas, estão a precarização das condições de saúde, a habitação, o acesso ao sistema educacional de qualidade e demais garantias legais, que foram mapeadas pelo Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), em 2010. (FUNDAÇÃO SEADE, 2010). Desse modo, a essa região são atribuídos índices de alta vulnerabilidade. Contribuiu também para a decisão de aproximação da pesquisa a este território de saúde o fato da Faculdade de Ciências humanas e da Saúde da PUC-SP ter continuada e sistemática relação de ensino, extensão e pesquisa com o mesmo, sendo o tema das vulnerabilidades uma das demandas de formação dos serviços dirigidas à universidade. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais e grupais, com o consentimento dos profissionais envolvidos, em torno do modo como a vulnerabilidade é usada para identificar indivíduos, grupos e populações específicas e a resposta oferecida para as situações de vulnerabilidade identificadas. Atentamo-nos a dois planos da Atenção Básica à Saúde: o plano de gestão e o plano de execução. Nesta etapa foram entrevistados 8 profissionais pertencentes à Coordenação de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. A Coordenação de Atenção Básica da Secretaria de Saúde de São Paulo possui ao menos 5 áreas técnicas destinadas ao atendimento à populações específicas, 1) área técnica de atenção à saúde da população indígena, 2) área técnica de atenção à saúde da população de rua, com o consultório na rua, 3) área técnica de atenção à saúde da população negra, 4) área técnica de atenção à saúde da população imigrante, 5) área técnica de atenção à saúde da população LGBTT. (ENTREVISTA, 2016; SÃO PAULO, 2016). Por meio de tal estratégia a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo contempla uma determinação da própria PNPS, que destaca a importância de Políticas Nacionais de Saúde Integral de Populações Cada área técnica é composta por profissionais que atuam produzindo estratégias de atenção à saúde à respectiva população de sua área, junto às Supervisões Técnicas de Saúde de São Paulo, aos próprios serviços, às equipes e aos profissionais de saúde de cada região da capital paulista. Desse modo, é possível às áreas técnicas atuarem de maneira descentralizada, considerando a especificidade de cada serviço e equipe em suas regiões, respeitando suas diversidades. A Coordenadora de Atenção Básica, a Assessora Técnica da Coord. de Atenção Básica e os Coordenadores das áreas de saúde de população específicas: População Indígena, População Imigrante, População Negra, População em Situação de Rua e População LGBT foram entrevistados, assim como os técnicos analistas em saúde, responsáveis por cada uma dessas áreas técnicas. Além disso, foram entrevistados seis profissionais da Supervisão Técnica de Saúde da Zona Norte de São Paulo, como a Supervisora e os apoiadores institucionais que apoiam o conjunto dos serviços da rede de saúde desta região em suas demandas de gestão e planejamento e avaliação da assistência. A escolha dos profissionais ocorreu a partir de revisão bibliográfica e das atribuições definidas dela PNPS, de que as estratégias de promoção da saúde devem ser em todos os níveis de atenção, com ênfase na atenção básica, voltadas às ações de cuidado com o corpo e a saúde (BRASIL, 2006, p. 20), além de indicações dos próprios profissionais entrevistados. Foram também acompanhadas, pelo pesquisador, algumas reuniões de equipe da Estratégia Saúde da Família e visitas domiciliares em torno de casos e situações que os profissionais classificavam como situações de vulnerabilidade. Fragmentos destas conversas, reuniões e visitas; assim como vinhetas dos casos foram utilizados ao longo dos diferentes capítulos, mas foram objeto de apresentação e/ou análise mais específicas nos capítulos 1 e 5. O período de realização das entrevistas e do acompanhamento foi entre os anos de 2016 e 2017. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todos os entrevistados e participantes, sendo que esta pesquisa teve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sendo aprovada no parecer consubstanciado da Plataforma Brasil. Além das entrevistas, procedemos pela observação participante, definida como o processo pelo qual se mantém a presença do observador no contexto social, com o objetivo de realizar uma pesquisa científica, no qual o observador colhe dados e se torna parte do contexto, modificando e sendo modificadopor este ao mesmo tempo. (MINAYO, 2004). As observações foram registradas em um diário de campo e utilizadas com a autorização dos participantes. Realizamos a observação participante em encontros de articulação de rede, que ocorreram conforme a demanda dos serviços, em espaços de matriciamento, relacionados ao plano de atendimento dos casos-traçadores escolhidos, em atividades das equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), e nas reuniões realizadas junto aos profissionais da Unidade Básica de Saúde (UBS) e da Supervisão Técnica de Saúde (STS). Para a análise do processo de construção de prioridades em saúde no Brasil partimos de publicações da Academia Brasiliênse de Medicina do século XIX no Brasil (ANNAES DE MEDICINA BRASILIÊNSE, 1853; 1880, 1882; UNIÃO MÉDICA, 1886), os Boletins Semanais da Campanha de Erradicação da Varíola (BRASIL, 1968; 1969), e publicações que tratam do assunto. (FOUCAULT, 2008a). Para o estudo das proveniências e funções recorremos ao Vocabulario portuguez & latino Bluteau (BLUTEAU, 1728), Dicionário da Língua Portugueza (BLUTEAU, 1879), Dicionário da Língua Brasileira de 1832 e o Novo Diccionario da Lingua Portuguesa de 1922. Além disso, recorremos às publicações da Academia Brasiliênse de Medicina do século XIX para tratar do uso da palavra vulnerável no campo da medicina naquele período. Com relação ao uso da vulnerabilidade no campo do Planejamento em Saúde, trabalhamos com documentos da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS, 1965), e bibliografia que trata do assunto. (TEIXEIRA, 2010). Sobre a emergência da noção de vulnerabilidade no campo dos Direitos Humanos usamos os Yearbooks da Organização das Nações Unidas. Para análise da lateralidade normativa na noção de vulnerabilidade no campo do direito usamos o Código do Direito do Consumidor (BRASIL, 1990), publicações do Diário Oficial de São Paulo e da União. No campo da saúde recorremos ao Guia de Vigilância Epidemiológica (BRASIL, 1985; 1998), à Política Nacional de atenção ´HIV/AIDS e DST (1999), e a entrevistas realizadas com pesquisadores e docentes componentes do NEPAIDS. Para analisar as transições normativas entre mercado e saúde pública, recorremos à análise da governamentalidade proposta por Foucault (2008b), a publicações do campo das políticas de AIDS (manuais, boletins, normas técnicas, políticas nacionais), publicações do ministério da saúde sobre promoção da saúde e redução de vulnerabilidade, além de notas sobre a construção na PNPS. A seguir explicaremos o modo como foi organizado esse estudo. 1.3 Organização da Tese Esta tese está organizada em seis capítulos, iniciando pela Introdução, que apresenta as motivações e os objetivos deste estudo, além do percurso metodológico da pesquisa, indicando o tipo de pesquisa, os procedimentos e as técnicas de análise desenvolvidas. No capítulo 2, O uso da Palavra, realizamos uma breve problematização acerca dos usos da noção de vulnerabilidade por profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo-SP. Verificamos a proximidade e o distanciamento desses usos da noção de vulnerabilidade em relação às diretrizes e bibliografias especializadas, além das inflexões singulares no seu uso nas práticas cotidianas dos atores da Atenção Básica em Saúde do município de São Paulo. Percebendo que a noção é usada pelos trabalhadores para indicar prioridades na atenção à Saúde, procedemos por uma breve história da construção de prioridades no campo da saúde pública a fim de situá-la historicamente em sua singularidade. Verificamos que, em diferentes contextos e momentos historicamente datados, a sociedade brasileira se valeu de noções diferentes para definir prioridades, com a oléstia so sco , e produziu usos distintos da noção de vulnerabilidade, o que nos motivou a indagar: quais as diferentes proveniências e funções da noção de vulnerabilidade? No capítulo 3, Proveniências e Funções, abordamos as proveniências e as funções da noção de vulnerabilidade em momentos historicamente datados diferentes. Buscamos analisar a relação entre tais proveniências e funções e o modo como a vulnerabilidade pôde se tornar um objeto de intervenção para a Saúde Pública. Identificamos tais usos, proveniências e funções dessa noção, no campo da Saúde Pública no Brasil, verificando os sistemas de regras e valores aos quais essas proveniências e funções se remetiam. No capítulo 4, Direitos, Humanos e Saúde, analisamos a propagação dos usos da vulnerabilidade no campo da Saúde Pública no Brasil, sobretudo após o período de redemocratização do Brasil, em 1988, e sua relação com o direito e a economia. A propagação dos usos dessa noção compõe os modos como se tornou objeto de intervenção para a Saúde Pública. Concentramos-nos em fontes primárias referentes a políticas públicas, medidas legais e às manifestações da economia e do mercado em relação à noção de vulnerabilidade. No capítulo 5, Dispositivo da Vulnerabilidade, analisamos o aspecto produtivo dos discursos acerca da vulnerabilidade. A partir do conceito de dispositivo e a estratégia analítica que ele possibilita, conforme afirma Foucault (1984a), abordamos especificamente códigos, diretrizes, enunciados e aparelhos de coerção que lhes dão vigência. Nomeamos sua rede de relações como Dispositivo de Vulnerabilidade. Ou seja, o Dispositivo da Vulnerabilidade se refere aos conjuntos de elementos dispostos a fazer ver e falar da vulnerabilidade, propostos para o desenvolvimento das relações do indivíduo consigo mesmo a partir da noção de vulnerabilidade. O dispositivo convoca ao exame de si e dos outros, a decifração de si e dos outros e a reflexão sobre si e sobre os outros a partir dessa noção. Analisamos os usos da noção de vulnerabilidade e os conjuntos de elementos que puderam levar seres humanos a serem identificados como sujeitos vulneráveis e/ou a identificar sujeitos vulneráveis no contexto da Atenção Básica à Saúde no município de São Paulo-SP. Por fim, apresentamos as considerações finais deste estudo, destacando as questões éticas e políticas despertadas durante o seu desenvolvimento. Longe de estar acabado, este estudo percorre e inicia caminhos que manifestam a necessidade de serem aprofundados. 2 O USO DA PALAVRA 2.1 Uma ou várias vulnerabilidades? Agendamos uma reunião em novembro de 2015 para discutir as adequações e os caminhos viáveis de realização desse estudo. Eu buscava verificar, junto a dois gestores de um território sanitário, se haveria interesse na realização desta pesquisa naquela região da cidade por parte da Supervisão Técnica de Saúde (STS) Regional. A região é considerada de alta vulnerabilidade, devido à densidade populacional, precariedade habitacional e altos índices de violência. Sobretudo, o uso da palavra vulnerabilidade foi o foco de minha atenção desde aquele momento. Essa primeira conversa com Emerson e Eleonor12 inaugura minha observação participante nesta pesquisa. Na STS uma TV anuncia informações sobre alimentação saudável e prevenção de doenças. Apresento-me à recepcionista, que pede que eu me sente e aguarde Emerson. Há um sem-número de caixas, com rótulos diversos, empilhadas por todas as partes do espaço interno do estabelecimento. Um dos funcionários sai de sua sala para conversar com o vigia posicionado na recepção e exclama sua dificuldade de se desfazer de grande parte dos materiais de escritório que tem, pois não sabe quando virão novos materiais. O acúmulo de papeis e materiais de escritório estava relacionado à possibilidade de não obter nenhum deles novamente. Minutos depois Emerson chega e me convida para tomar café. Ele diz que toda equipe daquele estabelecimento se mudaria em poucas semanas para um novo endereço. o volume de caixas empilhadas no estabelecimento afirma. Emerson informa que a mudança ocorreria devido às obrasdo metrô que ocorreriam no espaço do estabelecimento, tal como estava ocorrendo no terreno ao lado. Eleonor chega em seguida, junto a sua estagiária. Depois do último gole de café, nos dirigimos à sala de reuniões. Tanto Emerson quanto Eleonor haviam lido o projeto e já sabiam de sua ideia geral. A eles interessa os modos como a noção de vulnerabilidade chega nos trabalhadores. do que os textos e documentos das políticas públicas A relevância recai sobre a possibilidade de acesso dos gestores da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) os efeitos 12 Todos os nomes aqui utilizados são fictícios, a fim de garantir o sigilo e o anonimato dos participantes da pesquisa. das políticas em profissionais e usuários são pouco conhecidos e levados em c . Emerson inicia suas considerações afirmando que ocorre muitas vezes uma confusão com o termo Vulnerabilidade, pois muitos acham que se trata sempre de vulnerabilidade social , devido à proposta de leitura dos Determinantes Sociais da Saúde13. Contudo, devido à formação das ciências da saúde, que privilegia um olhar sobre a doença ou sobre os aspectos biológicos, em grande parte das vezes, se estabelecem leituras orientadas para a análise da ulnerabilidade genética , da ulnerabilidade hereditária , dentre outras. Nesses casos, considera-se a fragilidade, mas sem colocá-la como social, estabelece-se uma leitura biológica. Eleonor corrobora com tal afirmação dizendo que existe certa polaridade entre olhares voltados para o social e aqueles voltados para os aspectos biológicos. Ocorre uma inflexão. Enuncia-se a palavra vulnerabilidade de modo não subordinado às definições da literatura científica especializada. Tal enunciação não parece estar condicionada à ordem das palavras e das definições componentes da literatura científica acerca da vulnerabilidade no campo da Saúde Pública. Vimos que No campo da medicina, da Saúde Pública, da Saúde Coletiva e da Saúde Mental, no Brasil, Ayres (2012) destaca como dimensões constitutivas das análises de vulnerabilidade, a dimensão individual, a dimensão social e a dimensão programática. s definições do campo da saúde pública para a noção da vulnerabilidade às vezes são pautadas tal como a definição da vigilância sanitária, que acaba por ajustar os efeitos sociais a uma leitura biológica, ou ainda, psicossomática Emerson toma como exemplo a classificação de risco nos hospitais que subdividem o grau de risco com pulseiras de cores diferentes, a partir da descrição de sintomas físicos. Separam-se assim prioridades de atendimento. Ou ainda quando ocorrem reuniões ou decisões acerca de estratégias e medidas a serem executadas, por parte da Atenção Básica, sempre se recorre às noções de risco e vulnerabilidade. Determinantes Sociais de Saúde (DSS), [...] são as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham ou as características sociais dentro das quais a vida transcorre. Portanto, os DSS estão relacionados às condições que movem o "andar a vida" dos indivíduos, dos grupos sociais e dos sujeitos coletivos. Essa discussão ocorre nos países desenvolvidos, especialmente no Canadá e em certos países europeus. De certo modo, esse debate sobre determinação também vinha sendo realizado, de uma forma contra-hegemônica, no Brasil e na América Latina, com a emergência da epidemiologia social latino- americana nos anos 70 . (PAIM, 2009, p. 30). Destacamos aqui um segundo ponto de inflexão. Para identificar prioridades parece ser mais importante o uso da palavra vulnerabilidade como um marcador, do que sua definição. Importa menos seu fundamento teórico ou correspondência às definições científicas e acadêmicas, do que seu uso. ue vulnerabilidade é essa? O que leva a ela? E quando emerge essa noção de vulnerabilidade? , indaga Emerson. Respondo que, à primeira vista, a noção aparece em documentos de políticas públicas no Brasil no início da década de 1990, ainda que já tenha sido discutida e operada em outros momentos no campo da saúde pública. Eleonor ressalta que em um índice recente dos equipamentos da DST/AIDS, a maior incidência de AIDS vem ocorrendo em grupos de homossexuais, negros, prostitutas e jovens que não viveram a epidemia da AIDS da década de 1980. ode ser um indicativo do modo como vem sendo trabalhada a atenção em saúde para estas pessoas , sublinha Eleonor, e sua relação com o uso da noção de vulnerabilidade . Indago Emerson e Eleonor sobre os possíveis espaços e momentos nos quais eu poderia analisar os usos da vulnerabilidade em profissionais e usuários. Emerson cita as reuniões com as equipes, sobre casos que necessitam de estratégias intersetoriais. Na sequência, afirma que os casos se iniciam com um indivíduo e que, aos poucos, os agentes comunitários vão ampliando a leitura da equipe para a família e demais vínculos sociais. Na maioria das vezes as reuniões intersetoriais são demandadas pelos Gerentes de Unidade que solicitam à coordenação regional tal reunião. Tais casos geralmente envolvem situações de violência, abandono, drogadição e enfraquecimento ou extinção de laços familiares. Com relação às entrevistas com os usuários, Emerson afirma que talvez eu tenha alguma dificuldade para realizar tal procedimento. Primeiro pela complexidade dos casos que muitas vezes impedem o acesso das próprias equipes de NASF e PSF, devido à localização da residência da pessoa. Depois, pelo desafio de estabelecer vínculos de confiança, ou de acesso às pessoas devido à fragilidade dos laços familiares ou sociais. Emerson aventa hipóteses de casos para o início da pesquisa: 1 caso que tenha mobilizado diversos serviços, 1 caso que de saúde mental, 1 caso de reabilitação, dentre outros. Respondo que estas são indicações muito interessantes e oportunas, mas que eu havia pensado em escolher os casos junto às equipes da UBS, que seriam por sua vez indicadas pela STS. Emerson concorda e diz que essa indicação deverá ser feita junto à Supervisora da STS. Ele enumera ainda outros espaços e momentos possíveis nos quais eu poderia verificar o uso da noção de vulnerabilidade. (1) Encontro de articulação de rede, conforme a demanda dos serviços; (2) Espaços de matriciamento14; (3) Fórum de violência; (4) Oficinas de integralidade15, a serem implementadas pela Coordenadoria da Regional; (5) Comitê de materno-infantil; (6) Reunião de tuberculose. Tratava-se de uma taxionomia de possíveis espaços de identificação de vulnerabilidades16. Sobre os critérios de regulação, Emerson narra um caso de uma senhora acumuladora de lixo, que foi encontrada em estado de saúde precária, desidratada, convivendo com animais mortos em estado de decomposição avançado. Emerson narra que a equipe que a acompanhava precisou insistir vigorosamente junto aos profissionais de um hospital para conseguir internar a senhora. A ideia era que a senhora passasse um período no hospital até que se recompusesse, e que as equipes conseguissem para ela condições melhores de moradia. A equipe do hospital por sua vez avaliara somente as funções vitais biológicas da senhora, que apesar de tudo não sofria grandes agravos ou disfunções físicas. Pelo fato de não apresentar sintomas físicos a equipe do hospital se negava a efetivar a internação. Para Emerson tal dificuldade foi identificada justamente pelos critérios de regulação de sua prática. Depois de muita insistência a senhora foi internada, porém se a tentativa tivesse sido feita por telefone, o desfecho teria sido outro provavelmente , afirma. É possível encontrar elementos que indicam a agonística de práticas direcionadas e operadas a partir de concepções de vulnerabilidade diferentes. Umas relacionadas à vulnerabilidade biológica e outra relacionada aos aspectos sociais, históricos, afetivos etc. 14 num processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção pedagógico- (BRASIL, 2011b, p. 13).