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Saulo Tavares da Mota

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 
PUC-SP 
 
 
 
 
Saulo Tavares da Mota 
 
 
 
 
 
 
Usos e desusos da noção de vulnerabilidade na saúde pública no 
Brasil 
 
 
 
 
 
 
 
Doutorado em Psicologia Social 
 
 
 
São Paulo 
2018 
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 
PUC-SP 
 
 
 
 
Saulo Tavares da Mota 
 
 
 
 
 
 
 
Usos e desusos da noção de vulnerabilidade na saúde pública no 
Brasil 
 
 Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo, como exigência 
parcial para obtenção do título de Doutor em 
Psicologia Social sob a orientação da Profa. Dra. 
Maria Cristina Gonçalves Vicentin. 
 
Doutorado em Psicologia Social 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2018 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Banca Examinadora 
 
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À minha companheira na vida, Angela Di Paolo, que torna possível as potências nos 
bons encontros. 
À minha filha, Isadora, que já torna tudo mais alegre. 
 
O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de 
Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq - No 140136/2015-0. 
 
 
AGRADECIMENTO S 
 
 Agradeço à Angela, minha companheira, pela parceria e apoio fundamental 
nesta caminhada, e pela partilha da vida. 
 Aos meus pais, pelo incentivo, celebração e amparo nos momentos mais difíceis. 
 À Maria Cristina Gonçalves Vicentin, a Cris, orientadora desse trabalho, por 
acreditar nesse projeto e pela sustentação incansável dos bons encontros, no NUPLIC, 
na pesquisa, na vida. Que a vida nos brinde sempre com tantas potências quanto as 
produzidas ao longo desses anos de parceria. 
 À profa. Mary Jane P. Spink pelo aprendizado durante minha trajetória 
acadêmica e pelos fundamentais apontamentos no exame de qualificação dessa tese. 
 Ao prof. José Ricardo Ayres por aceitar participar desse debate acerca da noção 
da vulnerabilidade. Além do aprendizado, sua contribuição tem valor ético e político 
nesses tempos em que é necessário construir e sustentar coletivamente práticas 
comprometidas com a afirmação dos diversos modos de vida no campo da saúde 
pública 
À profa. Elisabeth Lima pelo aceite em participar de minha banca de doutorado 
e pela partilha de conhecimentos e de vida no GT Subjetividade Contemporânea. 
estudo durante as disciplinas e para além delas. 
 Agradeço à profa. Heliana Conde pela afirmação de seu modo de viver, que 
ensina e inspira a multiplicação de possíveis a cada texto, pesquisa, aula, encontro. 
 À profa. Cecília Bonini pelo aceite em participar dessa banca de doutorado e 
pela contribuição para a realização de parte dessa pesquisa realizada no contexto da 
Atenção Básica à Saúde de São Paulo-SP. 
 Aos amigos(as) e colegas do Núcleo de Pesquisa em Lógicas Institucionais e 
Coletivas, pela partilha da conhecimentos, dores e alegrias, e pela experiência de 
reinvenção de si. 
À todos os profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo-SP que 
contribuíram generosamente com essa pesquisa, compondo com o compromisso ético 
de fortalecimento do SUS e aperfeiçoamento de suas estratégias. 
Ao CNPq pelo apoio e financiamento dessa pesquisa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde 
esteja aprisionada pelo homem e no homem? 
Gilles Deleuze 
Usos e desusos da noção de vulnerabilidade na saúde pública no Brasil 
Saulo Tavares da Mota 
 
RESUMO 
 
O objetivo deste estudo é analisar o modo como a Vulnerabilidade se tornou um 
problema e um objeto de intervenção para as políticas de Saúde Pública no Brasil, e os 
modos como vem sendo usada por profissionais da Atenção Básica à Saúde no 
município de São Paulo - SP. A noção de Vulnerabilidade foi adotada no Brasil pelo 
Ministério da Saúde como um dos objetos de intervenção fundamentais da Política 
Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), produzindo mudanças profundas no modo de 
definir, identificar, intervir e priorizar a população a ser atendida, produzindo alterações 
nas práticas dos funcionários e dos usuários de serviços de Saúde Pública no país. Como 
método de pesquisa, partimos da genealogia desenvolvida por Michel Foucault. 
Enquanto analítica dos modos de subjetivação, a genealogia permitiu entrever as 
condições históricas da produção de saberes, conjuntos de regras e modos pelos quais 
profissionais de saúde reconhecem situações de vulnerabilidade e usam essa noção em 
suas práticas. A pesquisa foi desenvolvida a partir da análise de arquivos e documentos 
do campo das políticas de Saúde Pública, observação participante de atividades por 
profissionais realizadas em unidades de Atenção Básica à Saúde, além de entrevistas 
com tais profissionais. Verificou-se que a noção de vulnerabilidade é usada não somente 
para dar sentido a realidades complexas, mas para a ação concreta sobre os problemas 
que ela nomeia e propõe. Historicamente produziram-se usos e funções estratégicas 
diferentes para a noção de vulnerabilidade no Brasil, em meio a disputas, confrontos, 
transformações e resistências. Se, por um lado, a emergência de tal noção no campo da 
atenção ao HIV/AIDS no Brasil se constituiu como resistência e problematização do 
conceito de risco em saúde, por outro lado, sua propagação e seu uso em outros campos 
da saúde pública sofreram apropriações que agenciaram funções estratégicas diferentes 
e que se afastaram da inicial postura crítica. O processo de constituição da noção de 
vulnerabilidade como problema e objeto de intervenção na saúde pública historicamente 
envolveu estratégias de controle e práticas de resistência. No cotidiano das práticas dos 
profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo articulam-se, por um lado, 
estratégias de governamentalidade por meio de instituições, procedimentos, análises, 
cálculos e táticas que permitem estabelecer relações de poder sobre a população, com o 
intuito de torná-la útil e participativa, por meio de uma racionalidade neoliberal, 
interessada no incremento das capacidades e de estratégias de segurança, controlando e 
evitando riscos. Por outro lado, nesse mesmo contexto, as práticas de recalcitrância 
deslocam essas estratégias com resistências, contraposições, esquivas, inversões de 
posicionamentos e afirmam de modos de viver muitas vezes inconformes às diretrizes 
de atuação preestabelecidas. Em consonância com Judith Butler entendemos que é 
fundamental a atenção à situação de violência e precariedade a que muitas pessoas estão 
expostas, porém também é necessário a recusa de políticas que vitimizem ou 
estigmatizem essas pessoas com o argumento da proteção ou salvação, de modo que 
ofereçam recursos para seu fortalecimento e potencializando seus modos de viver. 
Palavras-chave: Saúde Pública; Promoção da Saúde; Atenção Primária à Saúde;
Vulnerabilidade; Biopolíticas. 
Uses and disuse of the notion of vulnerability in public health in Brazil 
Saulo Tavares da Mota 
ABSTRACT 
 
 
Keywords: Public Health, Health Promotion, Primary Health Care; Vulnerability; 
Biopolitics. 
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 
 
SUS Sistema Único de Saúde 
MS Ministério da Saúde 
ONU Organização das Nações Unidas 
OMS Organização Mundial da Saúde 
PNPS Política Nacional de Promoção da Saúde 
SMSSP - Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo 
UNAIDS - Programa das Nações Unidas para a AIDS 
ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS 
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
NEPAIDS Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS 
CIOMS - Council for International Organization of Medical Sciences 
SBB - Sociedade Brasileira de Bioética 
GET - Grupo Executivo de Trabalho 
CEPS - Comitêsde Ética em Pesquisa 
CNS - Conselho Nacional de Saúde 
BM Banco Mundial 
UBS Unidade Básica de Saúde 
GVE Guia de Vigilância Epidemiológica 
SVS Secretaria de Vigilância em Saúde 
PNUD Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento 
Sumário 
 
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 13 
1.1 História e Experiência: um percurso metodológico .............................................. 25 
1.1.1 Acontecimentalizar......................................................................................... 29 
1.2 Fontes Documentais e Empíricas .......................................................................... 31 
1.3 Organização da Tese ............................................................................................. 35 
2 O USO DA PALAVRA .............................................................................................. 37 
2.1 Uma ou várias vulnerabilidades? .......................................................................... 38 
2.2 Seguindo o Coelho ................................................................................................ 42 
2.3 A construção de prioridades.................................................................................. 45 
3 PROVENIÊNCIAS E FUNÇÕES ............................................................................... 55 
3.1 Provém a palavra .................................................................................................. 56 
3.2 O vulnerável na medicina do século XIX ............................................................. 57 
3.3 Planejamento em Saúde: critérios para a seleção dos danos mais importantes .... 61 
3.4 Vulnerabilidade e atenção à AIDS ........................................................................ 65 
3.4.1 Vulnerabilidade: proveniências da ONU e da Declaração Universal dos 
Direitos Humanos .................................................................................................... 67 
4 DIREITOS, HUMANOS E SAÚDE ........................................................................... 72 
4.1 A lateralidade da norma ........................................................................................ 73 
4.2 Transição dos Direitos .......................................................................................... 74 
4.2.1 Tutela x Autorregulamentação ....................................................................... 77 
4.3 Transição das Políticas de Saúde .......................................................................... 86 
4.3.1 Vigiar e Interferir: vigilância das doenças prioritárias nos anos 1990 ........... 86 
4.3.2 Proteger da ciência o vulnerável .................................................................... 93 
4.3.3 Situando os usos da noção de risco ................................................................ 98 
4.3.4 Para além do risco ........................................................................................ 102 
4.3.5 AIDS e Promoção da Saúde ......................................................................... 112 
4.4 Transição das Relações dos Humanos ................................................................ 115 
4.4.1 Humano como capital................................................................................... 118 
4.4.2 As incapacidades: em busca do Sujeito (Neo)Liberal .................................. 123 
4.4.3 Redução e Proteção ...................................................................................... 130 
4.4.4 Notas sobre a construção da Política Nacional da Promoção da Saúde ....... 133 
5 DISPOSITIVO DA VULNERABILIDADE ............................................................. 141 
5.1 Dispositivo .......................................................................................................... 147 
5.2 Promoção da Segurança: ou da gestão dos riscos diferenciais ........................... 149 
5.2.1 Mães e crianças como foco de gestão dos riscos ......................................... 149 
5.2.2 Riscos Diferenciais do Idoso ........................................................................ 164 
5.2.3 A acamada .................................................................................................... 171 
5.3 Recalcitrâncias .................................................................................................... 176 
5.3.1 A acumuladora ............................................................................................. 185 
5.4 Modos de Vida .................................................................................................... 190 
5.4.1 Território ...................................................................................................... 198 
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 202 
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 210 
ANEXO 1 ..................................................................................................................... 231 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
O objetivo deste estudo é analisar o modo como a Vulnerabilidade se tornou um 
problema e um objeto de intervenção para as políticas de Saúde Pública no Brasil, e os 
modos como vem sendo usada por profissionais da Atenção Básica à Saúde no 
município de São Paulo - SP. 
Há um extenso volume de estudos acerca da emergência da noção de 
vulnerabilidade no campo das políticas de atenção à AIDS no Brasil. Essa produção 
enfatiza as contribuições dessa noção para o aumento das possibilidades de prevenção e 
cuidado dessa e de outras doenças, bem como de suas formas de acometimento, a partir 
de fatores contextuais da vida das pessoas. 
Em minhas experiências de atuação como profissional psicólogo e como 
pesquisador das políticas de saúde pública, identifiquei controversos usos dessa noção 
em campos de atuação diferentes das políticas de prevenção a AIDS, como nas políticas 
e estratégias de Saúde Mental, Saúde do Idoso, Saúde do Imigrante, Saúde da 
População em Situação de Rua e Saúde da População Negra. Tais fatores motivaram a 
busca por compreender os usos da noção de vulnerabilidade em contextos da saúde 
pública diferentes das políticas de prevenção e atenção ao HIV/AIDS1. 
Propomos-nos, portanto, a ampliar o estudo dos modos como a noção de 
vulnerabilidade se tornou um problema e um objeto de intervenção em outros campos 
da saúde pública no Brasil. Iniciamos nosso estudo por políticas de saúde pública com 
abrangência nacional, como a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a Política 
Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) e de práticas cotidianas de profissionais da 
Atenção Básica à Saúde do município de São Paulo-SP. 
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) tem como objetivo de 
esenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das 
2012a, p. 19). No uso de suas tecnologias de cuidado, propõe a observação dos 
idade, resiliência e o imperativo ético de que toda 
demanda, neces a, 
p.19). 
1 A decisão por esse trajeto de pesquisa foi ainda reforçada por José Ricardo de Mesquita Ayres, que no 
exame de qualificação dessa tese reafirmou que há uma extensa produção de pesquisas sobre a noção de 
vulnerabilidade no campo da prevenção à AIDS e que seria importante a discussão dos usos dessa noção 
em outros contextos e populações. 
A PNAB 
para a organização da atenção básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o 
a, p. 13), 
considerando e baseando-se na Política Nacional de Promoção da Saúde. Essa política 
articula a AB com importantes iniciativas do SUS, como a ampliação das ações 
intersetoriais e de promoção da saúde (BRASIL, 2012a, p. 11). 
A Política Nacional de Promoção daSaúde (PNPS) foi aprovada em 2006 pelo 
Ministério da Saúde (MS) promover a qualidade de vida e reduzir 
vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e 
condicionantes . (BRASIL, 2006, p. 17). A política vem produzindo mudanças no 
modo de definir, identificar e intervir junto às populações a serem atendidas, e 
provocando alterações nas práticas dos profissionais e dos usuários de serviços de 
Saúde Pública no país. 
2002 (BRASIL, 2002a), foram entendidos como determinantes da saúde e da melhoria 
modos de viver, condições de trabalho, habitação, 
ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais (BRASIL, 
2006, p. 17). 
Em 2015, a Vulnerabilidade foi retomada como objetivo geral das PNPS, na 
minuta de revisão das PNPS de 2006. Nesta, a PNPS se compromete a promover a 
melhoria das condições de vida, ampliando a potencialidade da saúde individual e 
coletiva, reduzindo vulnerabilidades e riscos à saúde decorrentes dos determinantes 
sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais (BRASIL, 2015a, p. 10). 
A noção orienta ainda diferentes políticas e serviços de Saúde Pública, e se 
atualiza também em ações mais singularizadas como a Equipe de Saúde da Família 
Especial, direcionada ao atendimento de população em Situação de Rua e alta 
Vulnerabilidade Social, que foi implantada pela Secretaria Municipal de Saúde de São 
Paulo (SMS-SP) na capital paulista. (SÃO PAULO, 2014). 
Na década de 1990, a noção de Vulnerabilidade passou a ser utilizada em 
pesquisas relacionadas ao combate à pobreza. Em 1999, foi utilizada pela Comisión 
Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL, 1999) para definir a situação de 
carência de recursos necessários para subsistência, pela qual padeciam determinados 
indivíduos de países em desenvolvimento da América Latina. Esse documento, 
intitulado como América Latina , tinha o objetivo de construir 
orientações para metodologias e programas de redução da pobreza.
Nos anos 2000, foram desenvolvidos instrumentais para mensurar índices de 
vulnerabilidade social, entre diversos municípios, a partir de critérios de faixa-etária, 
local de residência, aspectos culturais, dentre outros. O Índice Paulista de 
Vulnerabilidade Social (IPRS) foi criado em 2000, a partir da solicitação da Assembléia 
Legislativa do Estado de São Paulo à Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados 
(SEADE), para a construção de indicadores que expressassem o grau de 
desenvolvimento social e econômico dos municípios do Estado de São Paulo. Em 2007, 
o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) definiu que as situações de 
vulnerabilidade social podem ser identificadas no confronto entre os recursos 
acumulados pelos indivíduos e as oportunidades acessíveis a esses para empregá-los, de 
tal maneira que não só o dinheiro que tais indivíduos possuem deve ser avaliado, como 
também a capacidade destes em conduzir suas próprias vidas. (FUNDAÇÃO SEADE, 
2007). 
Em 2010, o IPVS (FUNDAÇÃO SEADE, 2010, p. 8) afirmou que a 
 efere-se a sua maior 
ou menor capacidade de controlar as forças que afetam seu bem-
prefeitura Municipal de Belo Horizonte publicou o 
 afirmando que a abordagem das relações de, 
fundamenta necessariamente o argumento norteador da construção dos indicadores de 
vulnerabilidade, para a análise da situação sanitária municipal. (BELO HORIZONTE, 
2013). 
Atribui-se à noção de vulnerabilidade determinada história, ou ao menos, 
determinadas periodizações acerca do início de seu uso no campo da Saúde Pública no 
Brasil, mais especificamente no contexto das políticas de atenção e combate ao 
HIV/AIDS. 
Ayres et al. (2009) afirma que a epidemia de AIDS na década de 1980 
demandou novas problematizações do conceito de risco em saúde, e a noção de 
vulnerabilidade se estabeleceu como uma possibilidade de construção de novas teorias e 
práticas de prevenção e cuidado de portadores do HIV. (AYRES, 2009). 
Na perspectiva de Ayres, Paiva e Buchalla (2012) a noção de vulnerabilidade foi 
AIDS in the World , publicado em 1992 no 
formato de coletânea, por Jonathan Mann, Daniel Tarantola e Thomas Netter nos 
Estados Unidos. O livro foi produzido pela Coalizão Global de Políticas contra a AIDS, 
que se caracterizava como um formato inicial do Programa das Nações Unidas para a 
AIDS (UNAIDS), com o apoio da Associação François-Xavier Bagnoud e da Harvard 
School of Public Health. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). O texto apresentava 
procedimentos para avaliar a exposição individual à infecção pelo HIV, propondo, 
segundo Ayres, Paiva e Buchalla (2012), pela primeira vez, uma análise da situação 
mundial da epidemia em termos de vulnerabilidade. Partia-se do aspecto 
comportamental e dos riscos epidemiologicamente apresentados, para em seguida 
identificar fatores sociais e de acesso a serviços que poderiam aumentar ou diminuir a 
capacidade individual de percepção e ação sobre o risco de exposição. Assim, o grau de 
exposição e de proteção de populações de diversos países do mundo foi analisado. A 
partir dessa análise um ranking de classificação de alta, média e baixa vulnerabilidade 
foi desenvolvido, com base em uma escala elaborada a partir de indicadores de saúde, 
sociodemográficos e de avaliações de programas de combate à AIDS. (AYRES; 
PAIVA; BUCHALLA, 2012). 
Quatro anos mais tarde, produzido pela Coalizão, Aids in the Word II2 foi 
publicado, após a instituição do Center for Health and Human Rights da Harvard School 
of Public Health (FXB-C). O livro retoma o tema da vulnerabilidade em seção 
Direitos Humanos
Direitos Humanos como recurso para avaliar situações de vulnerabilidade e produzir 
diretrizes e ações para sua redução. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). 
Ayres, Paiva e Buchalla (2012) afirmam que a produção brasileira acerca da 
vulnerabilidade e Direitos Humanos começou aproximadamente no mesmo momento, a 
partir do trabalho de grupos que se dedicavam ao estudo da epidemia de AIDS no 
Brasil, como o Instituto de Medicina Social da UERJ e a Associação Brasileira 
Interdisciplinar da AIDS (ABIA), no Rio de Janeiro. Além disso, apontam grupos de 
pesquisadores dos campos da Medicina, Psicologia, Saúde Pública e o NEPAIDS 
(Núcleo de Estudos e Pesquisa em AIDS), da USP e do Instituto de Saúde e Programa 
de DST/AIDS de Secretaria de Estado da Saúde, em São Paulo. Nessa perspectiva, ao 
longo dos anos 1990, o quadro da vulnerabilidade e Direitos Humanos foi desenvolvido 
2 Livro ainda não traduzido para o português.
no Brasil de modo peculiar, já que ocorreu durante o processo de redemocratização do 
país, que passava pela Reforma Psiquiátrica assim como pela construção do Sistema 
Único de Saúde (SUS). Ayres, Paiva e Buchalla (2012) ressaltam, nesse sentido, as 
propostas de modelos de atenção integral à saúde, impulsionadas pelos movimentos de 
mulheres e de luta antimanicomial, assim como as mobilizações de grupos da sociedade 
civil organizada ante a epidemia de AIDS. A academia brasileira desempenhou suas 
atividades por meio da tradição crítica da Saúde Coletiva, da epidemiologia, da 
Psicologia Social e da Educação, fortemente influenciada pelo pensamento de Paulo 
Freire. Nessa perspectiva, esses aspectos ajudariam a compreender porque esse quadro 
da vulnerabilidade e Direitos Humanos assumiu no Brasil caráter mais radical do que 
nos Estados Unidos, já que se buscou desde o início a construção e legitimação de 
múltiplas sínteses transdisciplinares ou, ainda, novos modos de pensar e agir no campo 
da saúde. (AYRES; PAIVA; BUCHALLA, 2012). 
Ayres, Paiva e Buchalla (2012) argumentam que, com relação à noção de 
vulnerabilidade, tem abordado a dicotomia entre o individual e o coletivo por meio do 
manejo de três dimensões constitutivas das análises de vulnerabilidade: a dimensão 
individual, a dimensão social e a dimensão programática. A dimensão individual é 
entendida como intersubjetividade,como identidade pessoal em constante construção 
nas interações eu-outro. A dimensão social, sempre em contexto de interação, é 
identificada nos espaços de experiência da intersubjetividade, atravessados por 
normatividades e poderes sociais, com base na organização política, econômica, nas 
tradições culturais, crenças, relações de gênero, raciais, geracionais, dentre outros. Por 
sua vez, a dimensão programática, é caracterizada pelas formas institucionalizadas de 
interação, que se referem a conjuntos de políticas, serviços e ações organizadas e 
disponibilizadas conforme processos políticos e segundo padrões de cidadania 
operantes. Segundo Ayres, Paiva e Buchalla (2012), por esse motivo o foco orientador 
das análises passaria a ser menos as identidades pessoais/sociais, como as identidades 
de mulher, negra, adolescente, pobre, em direção a relações sociais que estariam na base 
das situações de vulnerabilidade, como relações de gênero, relações raciais, relações 
geracionais, relações socioeconômicas etc. 
Entre os séculos XX e XXI, no Brasil, emerge ainda uma distinta referência à 
vulnerabilidade em outro segmento da saúde pública: as pesquisas que envolvem seres 
humanos. Nesse campo, os Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos tem se 
. (MACKLIN, 2004, p. 
60). Para Macklin (2004) destaca-se como principal característica da vulnerabilidade 
nessa diretriz a limitação da capacidade ou da liberdade para consentir na pesquisa ou se 
recusar a participar dela. A diretriz tem na sua sequência um comentário no qual são 
relacionados grupos que podem ser considerados vulneráveis no contexto da pesquisa. 
 
Incluem-se aí membros subordinados de grupos hierárquicos como os 
militares ou estudantes, pessoas idosas com demência e residentes em asilos, 
pessoas que recebem benefícios de seguridade ou assistência social, outras 
pessoas pobres e desempregadas, pacientes em sala de emergência, alguns 
grupos étnicos e raciais minoritários, sem-teto, nômades, refugiados ou 
pessoas deslocadas, prisioneiros, e membros de comunidades sem 
conhecimento dos conceitos médicos modernos. (MACKLIN, 2004, p. 61). 
 
Além da construção histórica da noção de vulnerabilidade no campo das 
políticas públicas de Saúde, é possível identificar uma ampla variedade de abordagens e 
definições da vulnerabilidade em diversos campos do saber. 
Destacamos a perspectiva de Delor e Hupert (2000), que afirmam que a relação 
entre a noção de vulnerabilidade e a elaboração de programas de prevenção à AIDS, 
presente em diversos campos do conhecimento e em todos os continentes, resulta de um 
processo que pode ser dividido em pelo menos três etapas. 
A primeira etapa remonta à década de 1980, quando se fortalece a construção 
social do risco de HIV/AIDS, referindo-o a grupos específicos como homossexuais e 
haitianos. Buscava-se erradicar o risco da maior parte da população em detrimento 
desses grupos específicos, uma vez que se definia que o risco de HIV/AIDS era 
exclusivo desses grupos. 
A segunda etapa 
causa viral, na qual o risco passou a ser associado a práticas específicas, como a 
penetração anal. Trata-se da transição do paradigma do mecanismo causal, que antes se 
concentrava nas características de um grupo específico e passou a focar o 
comportamento individual. Tal mudança teria ocorrido quando grupos específicos, 
apontados como de risco, reagiram tenazmente denunciando tal discriminação, 
afirmando que o vírus agia de forma indiscriminada sobre a população. Nessa etapa, o 
objetivo principal das campanhas voltou-se sobre os comportamentos e seu foco 
continuava a ser o da erradicação da AIDS. 
Na terceira e mais recente etapa, Delor e Hupert (2000) apontam para o 
recrudescimento da perspectiva de que leva em conta as características das relações e 
interações em que o risco ocorre, enfatizando os programas de intervenção que visam a 
habilitação e a capacitação dos sujeitos frente à epidemia. Nessa etapa o objetivo de 
erradicar o risco parece ter ganhado status de ilusório, sendo gradualmente substituído 
pelo objetivo de redução do risco. Passou- co zero sexo 
seguro para todos e sempre, para campanhas de redução do risco, do sexo 'mais seguro'. 
Nesse sentido, para Delor e Hubert (2000), a identificação e a descrição de situações de 
vulnerabilidade, que possam basear programas de intervenção, tornou-se uma 
prioridade. O conceito de vulnerabilidade estaria se tornando central diante da 
dificuldade de sua aplicação à diversidade de situações nas quais os indivíduos ou 
grupos estão mais expostos ao HIV, sendo, portanto, necessário buscar esclarecê-lo. 
Porém, ainda na década de 1980, Trostle (1986) apontara que em meados de 
1900 já havia o interesse no envolvimento do comportamento humano nos processos de 
saúde-doença, por determinados segmentos da epidemiologia e da antropologia, 
provavelmente provocado pelo aumento da mobilidade das populações. Alves e Rabelo 
(1998) apontam nesse sentido que, envolvendo populações pobres, projetos de 
intervenção e pesquisas relacionadas ao tema caminharam para a extinção e o 
aniquilamento, nos anos seguintes a 1900, devido a cortes de recursos, ainda que fossem 
bem sucedidas tecnicamente. 
Antes disso, no século XIX já havia sido atribuída importância à relação entre 
questões sociais e a saúde, tal como ressaltou Edwin Chadwick com a Poor Law3 em 
1834 na Inglaterra (ROSEN, 1994), Villermé na França, chamando a atenção para as 
condições das fábricas têxteis, e na Alemanha Virchow, Neumann e Leubuscher, que 
buscavam estabelecer conhecimentos fundados na relação entre a doença e a situação 
sanitária. (AROUCA, 1975; NUNES, 1998). 
No século XX, John Cassel (1976) foi um dos pesquisadores da epidemiologia 
moderna que se dispôs a discutir o envolvimento dos aspetos culturais e sociais no 
processo saúde-doença, nas décadas de 1960 e 1970. Em 1976, é publicado o artigo 
, no qual Cassel afirma 
que a problematização estabelecida na pesquisa epidemiológica referia-se ao dilema da 
3 Lei dos Pobres (tradução livre). 
existência ou não de categorias e classes de fatores ambientais capazes de mudar a 
resistência humana e de fazer conjuntos de pessoas ficarem mais ou menos suscetíveis 
aos agentes onipresentes em nosso ambiente. Entretanto, para Cassel (1976), quando se 
pensava nessa questão, costumava-se pensar em termos gerais como estado nutricional, 
fadiga, excesso de trabalho, entre outros, sendo que em sua perspectiva há outra 
categoria de fatores ambientais capazes de produzir efeitos profundos no grau de 
susceptibilidade das pessoas a agentes de doenças ambientais, sendo esses fatores 
aspectos do ambiente social. Cassel (1976) se contrapôs inclusive a pesquisadores que 
adotavam a perspectiva biológica, que afirmavam que a explicação do 'stress' não seria 
mais necessária, pois é evidente que qualquer processo de doença pode ser influenciado 
por meio da reação do indivíduo ao seu ambiente social ou a outras pessoas. Em sua 
perspectiva, os processos psicossociais atuam como estressores condicionais que 
alteram o equilíbrio do sistema endócrino do corpo aumentando a susceptibilidade do 
organismo a agentes patógenos. Processos psicossociais são entendidos por Cassel 
(1976) como reforçadores da susceptibilidade à doença, como por exemplo, as 
consequências do rompimento de relações sociais importantes para a saúde, como a 
morte de um cônjuge. 
Muito ainda pode ser apresentado sobre os diversos usos da vulnerabilidade. 
Esta revisão de literatura sobre a noção de vulnerabilidade é irrisória frente à extensão 
de seu uso na bibliografia nacional e internacional. Certamente não encerraremos aqui o 
infindável e quase inapreensível número de citações desta palavra nos séculos XX e 
XXI, assim como não percorreremos a totalidade dos múltiplos sentidos e definições 
atribuídos a ela. O que parece certo é que a partir da segunda metade do séculoXX 
passa a ser crescente a insistência em se falar sobre a vulnerabilidade de grupos e 
indivíduos em determinadas circunstâncias e, em grande parte das vezes, em termos de 
falta, ausência, seja de recursos, capacidades, segurança, moradia, saúde, informação, 
apoio social, institucional, dentre outros. 
Essa insistência em identificar vulnerabilidades e apontar soluções para reduzi-
las está enunciada na PNPS, que tem como um de seus objetivos a redução de 
vulnerabilidades (BRASIL, 2006; 2015). 
Contudo, para Souza, Mello e Ayres (2013), a despeito do desenvolvimento de 
estratégias de redução de vulnerabilidades pelo governo, os serviços ainda estão 
criando, ou deixando de reduzir vulnerabilidades. Identifica-se nos discursos e 
propostas das P
individuais [...] articulados a uma regulação biopolítica4 . (FERREIRA 
NETO; KIND, 2010, p. 55), produzindo o que Tedesco e Nascimento (2013) entendem 
por individualização de questões sociais. Tais práticas muitas vezes acabam por 
diminuir a autonomia, a responsabilização e a participação social, em vez de aumentá-
las. (ROSA, 2012). 
E ainda, numa perspectiva analítica, Rose (2007) e Ferreira Neto e Kind (2010) 
afirmam que nos séculos XX e XXI, no campo das políticas de saúde, houve um 
deslocamento do foco de intervenção que passou a priorizar menos a doença e mais a 
capacidade dos indivíduos de gerenciar e garantir sua própria saúde e seu bem-estar. 
Nesse contexto, percebe-se que tanto nos documentos governamentais, quanto 
nas práticas de promoção de saúde, existe um crescente incremento de estratégias de 
ações sobre os corpos, os comportamentos e as vidas das pessoas, determinando 
estratégias de capacitação e regulação dos indivíduos, bem como o estabelecimento de 
políticas públicas capazes de esquadrinhar e controlar as populações vulneráveis. 
(ROSA, 2012). 
Para Sposati (2011), nesse contexto, ainda é possível perceber discursos e 
práticas que acabam por culpabilizar o indivíduo por sua situação de vulnerabilidade ou 
doença, deslocando-o das condições históricas e sociais que determinaram tal situação. 
Para a pesquisadora, é preciso ressaltar sempre que a superação da Vulnerabilidade 
depende de um conjunto de suportes que envolve a presença e a qualidade de políticas 
públicas. (SPOSATI, 2011). 
Méndez (2014) afirma que através da própria noção de Vulnerabilidade, 
utilizada para legitimar o direito e a prioridade de atenção à saúde, pode-se produzir 
sujeitos fragilizados, na medida em que são tomados como objetos de intervenção de 
uma política que os classifica como frágeis. Para o pesquisador, muito mais do que um 
jogo de palavras, a construção e a classificação do sujeito como frágil, realizada através 
da noção de Vulnerabilidade, produz efeitos reais. Para Méndez (2014), no campo dos 
direitos da criança e do adolescente, foi em nome da proteção das crianças entendidas 
como vulneráveis que muitas vezes se estabeleceu mecanismos promotores, e não 
protetores, de vulnerabilidades. 
4 Esse conceito será abordado no capítulo 2. 
Mais especificamente no campo da Promoção da Saúde, Castiel (2004) afirma 
que não há uma teoria unificada para a Promoção da Saúde, de tal maneira que podem 
ser identificadas posturas mais conservadoras, direcionadas para a responsabilização dos 
indivíduos por sua saúde e para a diminuição dos custos da saúde pública; e posturas 
radicais e libertárias, direcionadas para a mudança de relação entre cidadãos e Estado, 
com ênfase em políticas públicas e mudanças sociais mais profundas. Ferreira Neto e 
Kind (2010) afirmam por sua vez que os posicionamentos e debates no campo da 
Promoção da Saúde são configurados por relações de força, tensões, confrontos, sendo 
necessário pensá-lo como um campo constituído simultaneamente por dimensões 
regulatórias e disciplinares, e dimensões participativas e emancipatórias. 
Quanto aos usuários, Silva, Val e Nichiata (2010) afirmam que, apesar do 
potencial de articulação das Estratégias de Saúde da Família em seu território, junto a 
serviços que podem reduzir a Vulnerabilidade da população, ainda é possível perceber 
baixa adesão às medidas de prevenção. 
Os usuários chegam de modos muito distintos ao encontro dos trabalhadores dos 
serviços de saúde, motivados por sofrimentos, preocupações e expectativas diferentes, 
ressalta Ayres (2009). Essas pessoas trazem consigo saberes advindos de vivências 
profundas que, segundo o pesquisador, deveriam ser o motivo central do encontro com 
o trabalhador, contudo em muitos encontros, os saberes científicos continuam a assumir 
uma posição excludente com relação a qualquer outro saber. Uma série de condições 
que possibilitam tal assimetria de poder na relação entre o profissional e o usuário, que 
pode resistir, se esquivar ou se assujeitar a ser objeto de conhecimento e intervenção do 
profissional da saúde. (AYRES, 2009). 
Em pesquisa realizada com famílias consideradas em situação de 
Vulnerabilidade, Pettengill e Ângelo (2005) relatam que o significado de 
equipe. Os conflitos entre equipe e família, caracterizados pela falta de diálogo e pela 
percepção da família de que está sendo inferiorizada e afastada do processo e das 
tomadas de decisão, ou ainda desrespeitada, constituem um contexto de intensificação 
da Vulnerabilidade da família, que se percebe ameaçada em sua autonomia. 
Nesse sentido, pode-se perceber que o uso da noção de Vulnerabilidade vem 
sendo estabelecido em relação a três âmbitos: (1) o desenvolvimento de campos de 
conhecimentos diversos, relacionados tanto a mecanismos biológicos como a variantes 
individuais e sociais de comportamento; (2) a instauração de um conjunto de regras e 
normas que se apoiam nos cálculos econômicos, em instituições judiciárias, de 
assistência social e de saúde; (3) mudanças no modo pelo qual os indivíduos são 
orientados e levados a reconhecer e atribuir sentido e valor a sua conduta, seus deveres, 
sentimentos e desejos. (FOUCAULT, 1984b). 
A extensão do uso vulnerabilidade não se restringe a um só campo do 
conhecimento e tampouco ao âmbito conceitual teórico. Essa noção se tornou 
organizadora de políticas públicas de abrangência nacional no Brasil (especialmente na 
assistência social)5, e produz efeitos diretos e indiretos na atenção à saúde da população. 
Considerando a amplitude de políticas públicas que tomam a vulnerabilidade como 
objeto de intervenção, decidimos nos restringir ao seu uso no campo da Saúde Pública, 
identificando sua relação com outras políticas públicas e campos do conhecimento. 
Nesse contexto, questionamos: de que modo a noção de Vulnerabilidade se 
tornou um problema e um objeto de intervenção para a Saúde Pública no Brasil? Por 
meio de que condições de possibilidade historicamente datadas? De que modo tem sido 
usada por trabalhadores da Saúde Pública? Como tal noção vem sendo acionada nas 
práticas em saúde? 
 
 
5 m 2004, quando foi instituída, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) explicitou em seu 
texto que a vulnerabilidade social, expressa por diferentes situações que podem acometer os sujeitos em 
seus contextos de vida, é o campo de atuação de suas ações. A concepção de vulnerabilidade denota a 
multideterminação de sua gênese não estritamente condicionada à ausência ou precariedade no acesso à 
renda, mas atrelada também às fragilidades de vínculos afetivo-relacionais e desigualdade de acesso a 
bens e serviços públicos . (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. A partir dos anos 1990, inicia um esforço 
teórico para a compreensão do fenômeno da pobreza e suas consequências para além do enfoque nas 
variáveis puramente econômicas. Essa é a tônica levada a cabo por organismos internacionais, 
incorporando o conceito de vulnerabilidade, de caráter mais amplo, às políticas sociais brasileiras, 
reorientando a política pública de assistência social. As imbricações entre os conceitos de risco e 
vulnerabilidade nocampo da assistência social levam a concepções que tomam desde a dimensão mais 
individual do primeiro sobre o segundo, passando pela assunção daquele como a condição da frágil 
sociedade contemporânea e deste como a condição dos indivíduos inseridos nesta sociedade, culminando 
por atrelar a situação de vulnerabilidade dos sujeitos a um certo risco (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 
7). 
1.1 História e Experiência: um percurso metodológico 
 
Nesse estudo nos interessará menos os motivos pelos quais determinadas 
pessoas ou populações estariam em situação de vulnerabilidade. Tampouco o modo 
mais adequado de identificar e avaliar sua vulnerabilidade. Nem a especificidade dos 
estudos da vulnerabilidade. Menos ainda a melhor definição da própria noção de 
vulnerabilidade. Nosso interesse primeiro é analisar o motivo de dizermos com tanto 
empenho que há vulnerabilidade, que certas pessoas e populações estão vulneráveis. O 
foco de interesse é o próprio processo pelo qual nossa sociedade chegou a tomar a 
vulnerabilidade como noção que define um problema que demanda intervenção, 
passando a incrementar conhecimentos acerca dos tipos de vulnerabilidade, a entendê-la 
como falta, ausência, afirmando que é preciso intervir sobre ela no campo da Saúde 
Pública6. Quais os motivos desta insistência em falar sobre vulnerabilidade? O que 
sustenta e motiva tal insistência? 
Trata-se de analisar a vulnerabilidade como um foco de experiência 
historicamente singular. 
Para analisar o modo como a noção de vulnerabilidade se tornou um problema e 
um objeto de intervenção na saúde pública buscamos fazer uma história, procedendo 
por uma análise fundamentada na genealogia proposta por Michel Foucault (1984b), 
que se caracteriza pela análise da correlação entre campos de saber, tipos de 
normatividade e modos de subjetivação7. Para tal análise, segundo Foucault (1984b), é 
necessário definir o modo como se estabeleceram saberes e normas a partir das 
problematizações e interpretações de uma sociedade acerca de um acontecimento, em 
um dado momento historicamente datado. E em seguida, identificar formas e 
modalidades por meio das quais as pessoas puderam se reconhecer como sujeitos, a 
partir dessas normas e saberes. (FOUCAULT, 1984b; 2010a). Ou seja, uma genealogia 
demanda a análise da correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e modos 
6 Problematização baseada na genealogia desenvolvida por Michel Foucault em História da Sexualidade 
(1984). 
7 Entendemos nesse estudo que através desses modos de objetivação, aos poucos, os seres reconheceram-
se como sujeitos. Como define Foucault (
objetivados apropriam-
eito dos processos de objetivação de si. 
de subjetivação disparados a partir de determinadas problematizações. (FOUCAULT, 
1984b). Recusamos, portanto, a hipótese de que o presente é o resultado natural e 
necessário de certo passado, procurando questionar o que somos e fazemos, assim como 
o modo como nos relacionamos conosco mesmos e com os outros. (FOUCAULT, 
1984b). 
Valemo-nos de alguns parâmetros para o desenvolvimento de tal análise. 
Primeiro, a genealogia demanda um afastamento da tarefa de tudo dizer sobre certo 
período. Escolhas são incontornáveis neste modo de pesquisar, que implica que sejam 
estabelecidos recortes, egundo pontos determinantes, e uma extensão de [análise] 
segundo relações , e não segundo um período pré-determinado. 
(FOUCAULT, 2003a, p. 327). A pertinência está, portanto, nos momentos de ruptura, 
nos cortes, inversões, descontinuidades, que configuram a emergência de campos de 
saberes, conjuntos de normas e modos de ser e de pensar relacionados à noção de 
vulnerabilidade. Isso porque, seguindo as pistas de Foucault (1979), entendemos que 
um saber não é feito para compreender, mas para cortar. Ele é fruto de relações de força, 
de poderes confiscados, de vocabulários retomados e voltados contra seus utilizadores, 
de dominações enfraquecidas sob a espreita de outras que tocaiam sua entrada, 
. (FOUCAULT, 1979, p. 28). 
Para Foucault (1979) uma história efetiva não se apoia em nenhuma constância, pelo 
contrário, ela produz o descontínuo em nosso próprio modo de ser. 
Nesse sentido a genealogia não pretende reencontrar as raízes ou a origem de 
nossa identidade, não busca desvelar o surgimento necessário de algo que durante muito 
tempo já vinha sendo preparado para ocorrer. Trata-se de identificar as cenas em que 
ocorrem afrontamentos, acidentes, em que se distribuem atores uns frente aos outros, 
uns acima dos outros, através da qual trocam-se ameaças e palavras, que viabilizam a 
continuidade, a descontinuidade ou a emergência de uma problematização. 
(FOUCAULT, 1979). 
Além disso, a fim de analisar o uso da noção de vulnerabilidade por 
profissionais da Atenção Básica à Saúde de São Paulo SP, além da análise da 
correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e modos de subjetivação, 
partimos do conceito de ispositivo proposto por Foucault (1984a), valendo-nos de 
sua estratégia analítica. Procedemos por uma analise do dispositivo que congrega 
diversas práticas e estratégias que fazem ver e falar sobre a vulnerabilidade: o 
Dispositivo da Vulnerabilidade. O dispositivo é definido por Foucault (1979, p. 244) 
como um conjunto [...] que engloba discursos, instituições, organizações 
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados 
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas . Trata-se da própria relação 
que se estabelece entre esses elementos. Abordamos tal discussão acerca do dispositivo 
no capítulo 5. Essa abordagem permite verificar os aspectos produtivos do poder que, 
segundo Foucault (2010a), não somente reprime, vigia, controla, mas também faz os 
sujeitos verem, falarem, agirem. A dimensão produtiva do poder poderá ser verificada 
no contexto da Atenção Básica à Saúde nas cenas observadas nesta pesquisa e narradas 
por profissionais entrevistados que nela atuam. 
 Mas como identificar tais cenas? Seria possível flagrá-las? 
Para essa tarefa outro afastamento nos será necessário. Iniciaremos um exercício 
de distanciamento do já enunciado malogro das Ciências de buscar revelar o mundo e o 
homem, sua finalidade, seu destino, sua profundidade, sua essência.8 
Foucault (2001b) suscitara a questão de que ao invés de cumprir a promessa de 
desvendar ou revelar o homem e a realidade, as Ciências Humanas, como experiência 
cultural geral, agiram na construção de realidades e na criação de subjetividades através 
de um processo de redução do ser humano a um objeto de conhecimento. (FOUCAULT, 
2001b; FOUCAULT, 2010a). Através dos modos pelos quais se propunham a conhecer 
e explicar os seres humanos, tomaram-nos como objeto de estudo, investigação e 
exame, ou seja, através de modos de objetivação, foram produzidas novas 
subjetividades e não revelações. (FOUCAULT, 2001b; FOUCAULT, 2010a). Desse 
modo, também as Ciências Sociais e as Ciências Naturais9 nunca possibilitaram ao 
A descrença de que a ciência pode desvendar o mundo é retratada em Nietzsche, Freud e Marx por 
Foucault (2000). 
Foucault (2001b) refuta a ideia de que essa produção do homem pelo homem consiste essencialmente na 
afirmação de que as sociedades de classes manteriam os homens longe de sua essência fundamental, 
alienados, sendo necessário libertá-los desse processo para que retomassem sua essência. Para Foucault 
(2001), diferentemente, através de tal processo se
emergência de algo totalmente diferente. Novamente, trata-se de uma inovação no modo de viver, e não 
um afastamento da essência do homem. Até mesmo as Ciências Naturais, como a Biologia, assistem 
embates constantes ainda hoje sobre as interpretações e representações da vida biológica. Assim como 
outras ciências, afirma Laqueur (1990), a biologia constrói suas próprias verdades em seus estudos sobre 
os seres vivos, oscilando continuamente em seus modos derepresentar e de construir sentidos. É através 
da literatura acerca das Ciências Biológicas que é gerado não apenas um conteúdo, mas, por exemplo, a 
diferença sexual, que está para além da diferença entre a mulher e o homem (LAQUEUR, 1990), podendo 
homem encontrar a finalidade, ou a essência fundamental, dele próprio. (FOUCAULT, 
2001b). 
No curso de sua história, os seres humanos vêm alterando continuamente sua 
subjetividade, produzindo uma série infinita de diferentes e múltiplas subjetividades, de 
tal forma que esse movimento nunca os colocará em face de algo que seria a sua 
essência. (FOUCAULT, 2001b). Segundo Foucault (2001b), os homens estariam 
envolvidos neste processo que os deslocam e, ao mesmo tempo, os deformam, os 
transformam e os transfiguram como sujeitos. 
Assim, o objetivo da historiografia proposta por Foucault (2001b) não é atender 
aos historiadores profissionais, mas, através de um conteúdo histórico específico, 
convidar as pessoas para experimentar o que somos, não somente o que fomos no 
passado, mas o que somos no presente. É necessário, portanto, que aquilo que o texto 
diz seja academicamente verificável, historicamente verificável, pois não se trata de um 
Romance. Entretanto, nesse caso, o mais importante não seria o conjunto de resultados 
reais ou historicamente verificáveis, mas a experiência que o texto pode produzir. Essa 
experiência não é nem verdadeira e nem falsa, é sempre uma ficção, ou seja, algo 
fabricado, uma artificialidade, que não existia antes e que depois se verificou existir. 
Declara Foucault, (2001b) que o texto transforma aquilo que ele pensa quando o 
termina. 
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição 
dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o 
descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão 
de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber 
diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a 
refletir. (FOUCAULT, 1984b, p. 13). 
 
Foucault (2001b) declara escrever para mudar a si mesmo, justamente para não 
pensar a mesma coisa que antes10. Assim, o filósofo enuncia a sua busca por um 
ser referida às diversas identidades sexuais que se possa citar. (BUTLER, 1999). Em outro campo, 
quando as tecnologias de visualização do corpo vivo se concretizam, como os exames de raios X 
construídos por Roentgen em 1895, e o interior do corpo passa a ser colonizado, aparecem as tentativas de 
atribuir sentidos, valores, identidades e marcas de singularização a esse novo espaço. Esse processo 
ocorre não sem efeitos e consequências para os sujeitos, assim como verificamos com os modelos de 
organização médica e urbana suscitados pelo miasma, o germe e a bactéria, produzindo também modos de 
subjetivação. (ORTEGA, 2008).
Por isso Foucault (2001b) se considera um experimentador e não um teórico, já que este último constrói 
um sistema geral de dedução ou análise, e o aplica de modo uniforme a diferentes campos.
trabalho que, quando lido, impediria que cada leitor fosse o mesmo, ou que tivesse 
consigo mesmo, com os outros e com as coisas, a mesma relação que mantinha antes de 
ler o texto. Eis a definição de um texto-experiência, que se opõe ao texto-verdade, que 
busca revelar o mundo, ou a verdade do ou no sujeito, à espera de ser descoberta; e que 
se opõe ao texto-demonstração, que busca conservar, repetir e aplicar com rigor modos 
de pensar, valores vigentes, métodos, dentre outros. (FOUCAULT, 2001b). 
Nesse estudo, elegemos a experiência da historiografia buscando identificar 
cenas em que ocorrem afrontamentos e acidentes, nas quais se distribuem atores uns 
frente aos outros. Tal processo ocorreu por meio da produção de acontecimentos. Ou 
seja, seguindo algumas pistas de Foucault (2003a; 2003b), para esse estudo foi 
necessário que o acontecimento se tornasse um verbo e se constituísse como um 
procedimento de análise. Mas como realizar tal procedimento? 
 
1.1.1 Acontecimentalizar 
 
Aos vinte e sete anos, Artaud enviara alguns poemas a uma revista, os quais o 
diretor, Jacques Rivière, recusou polidamente. Na narrativa de Blanchot (2013, p. 63), o 
sofre de tal abandono de pensamento que não pode negligenciar as formas, mesmo que 
troca de cartas entre Rivière e Artaud, escritas em torno daqueles poemas não 
publicáveis. O diretor da revista propõe então subitamente ao escritor a publicação das 
cartas sobre os poemas, que agora seriam parcialmente admitidos, para serem 
publicados como exemplo e testemunho. Sob a condição de não falsear a realidade, 
Artaud aceita a proposta. Esta célebre correspondência entre o escritor e o diretor da 
revista é um acontecimento, e de grande significação para Blanchot (2013). 
Na leitura de Blanchot (2013) é a narrativa da experiência da insuficiência e da 
indignidade dos poemas que os completam e que os fazem deixar de ser falhos. É como 
se o que era seu defeito, se tornasse plenitude e acabamento justamente pela expressão 
aberta do que lhe era falho, do que lhe faltava, e pelo aprofundamento de sua 
necessidade. É a experiência da obra, mais do que ela própria, que interessou a Rivière. 
Mais ainda, este malogro, que não o atraíra inicialmente, atrairá àqueles que escrevem 
sobre ele ou somente o leem. (BLANCHOT, 2013). 
Entretanto, o que significa dizer que um acontecimento pode não ter a mesma 
importância para pessoas diferentes? Ora, um acontecimento não tem relação de 
identificação com os significados atribuídos por aqueles que produziram elaborações a 
seu respeito, e tampouco determina a priori aqueles para quem fará diferença. Nesse 
caso, nos referimos aos apontamentos de Stengers (2002) sobre o fato de que o 
acontecimento carece tanto de um representante privilegiado quanto de um alcance 
legitimado de antemão. Isso porque seu alcance faz parte de seus desdobramentos e dos 
problemas agenciados no futuro criado pelo ele próprio. Ele se torna objeto de múltiplas 
interpretações, assim como pode ser obtido pela própria multiplicidade destas 
interpretações. Todos que, à sua maneira, se remetem a um acontecimento inventam 
neste ato um modo de se servir dele, a fim de mostrar sua própria posição, de afirmar 
sua diferença, dando sequência ao acontecimento. (STENGERS, 2002). 
Porém, se o acontecimento não se constitui automaticamente e se não possui 
representantes ou significado finalizado, de que modo se efetua? Ele precisa ser 
produzido. Ele é fruto de um processo de produção, de invenção, é, portanto, uma 
. (FOUCAULT, 2003a). Mas, afinal, do que se trata? 
Primeiramente de uma ruptura. Onde tentadoramente se poderia referir a uma constante 
histórica, a um evidente modo de pensar e fazer, a um traço antropológico, faz-se 
emergir uma singularidade. O acontecimento constitui-se pelo que Stengers (2002) 
circuito nos argumentos, que 
opõe um contra-poder aos poderes, e que compõe a topografia do campo de invenção 
das ciências. 
Mais precisamente, trata-se de mostrar como algo não era tão necessário assim, 
ou 
benéficos assim. É a busca por explicitar, por exemplo, como certo procedimento foi 
realizado com um doente ou um delinquente, e mostrar como não era tão evidente que o 
melhor a fazer com eles seria interná-los, ou que um louco deve ser visto como doente 
mental, ou ainda que as causas da doença devem ser buscadas no exame individual do 
corpo. Operam-se dessa maneira rupturas das evidências, sobre as quais se apoiam 
nossos saberes, nossas práticas, nossas regras, nossas prioridades, nossos 
consentimentos. (FOUCAULT, 2003a). 
Se, no século XIX houve um momento preciso a partir do qual a taxa de proteína 
na alimentação aumentou e a parte de cereais diminuiu, houve um acontecimento 
histórico, econômico, biológico. Se houve um momento preciso no mesmo século, no 
qual se passou a proibir a atuação dos cirurgiões, sangradores e curandeirosna prática 
de cura no Brasil, houve um acontecimento científico, econômico, social, religioso etc. 
Eis o interesse do genealogista, e deste estudo, no acontecimento: curto-circuitos em 
dinâmicas de poder naturalizadas. (FOUCAULT, 2003a). Encontrar desestabilizadores 
de relações estabelecidas, evocando cenas, contingências, situações, práticas, 
discursivas ou não, que possam evidenciar que algo naquilo que fomos e somos não é 
fatalmente necessário, que não é assim tão inevitável, ou ainda, que não é incontornável. 
A análise proposta neste estudo toma a acontecimentalização como estratégia 
para uma historiografia da noção de vulnerabilidade. Os usos dessa noção foram 
tomados como focos de experiência historicamente datados e compuseram esta pesquisa 
que tem como referencial a genealogia11 proposta por Foucault (1984b). 
 
1.2 Fontes Documentais e Empíricas 
 
Descreveremos nessa sessão o conjunto de fontes que foram a base desse estudo 
e modo como foram utilizadas. 
Essa escolha por analisar práticas dos profissionais da Atenção Básica à Saúde e 
políticas de saúde pública de abrangência nacional, nos permitiu seguir indícios e 
indicações dos próprios profissionais acerca dos usos da noção de vulnerabilidade que 
Numerosos e diferentes usos dessa noção foram identificados. Desse modo, consideramos oportuno 
tomar como ferramenta conceitual para esse estudo os três modos de fazer uma história da moral 
propostos por Foucault (1984b), a saber, a história das moralidades, a história dos códigos e a história das 
tais indivíduos ou tais grupos são conformes ou não às regras e aos valores que são propostos por 
 
de regras e valores que vigoram numa determinada sociedade [...], [...] os aparelhos de coerção que lhes 
dão vi
fim, a história das práticas de si se refere ao modo pelo qual os seres humanos puderam ser levados a se 
constituírem como sujeitos. Trata-se da história dos modelos propostos para o desenvolvimento das 
relações do indivíduo consigo mesmo, para o exame, a decifração e a reflexão sobre si, visando a 
 
destinadas a assegurá- , p. 29). As fronteiras entre essas modalidades de 
historiografia muitas vezes se sobrepuseram durante esse estudo. Nos valemos dessa divisão para facilitar 
o desenvolvimento das análises propostas. 
se referem a populações específicas, como a população em situação de rua, a população 
imigrante, a população negra, assim como a figuras nomeadas a partir dessa noção 
, m situação de 
 dentre outras. 
A incorporação relativamente recente da noção como conceito organizador de 
certas ações no campo da saúde nos levou a realizar entrevistas com gestores e o 
acompanhamento de práticas de saúde com profissionais de saúde. 
Analisamos as práticas de trabalhadores da Saúde Pública que atuam em um 
território sanitário da região norte da cidade de São Paulo que abrange 31,5 km2, cuja 
população em 2010 era 407.245 habitantes. (TAKEITI, 2014). A população é 
constituída, sobretudo, por negros, jovens e mulheres e está localizada entre os distritos 
com mais alto índice de homicídios juvenis. (ROSA et al., 2016). Além disso, a 
precariedade das condições de habitação restringe as possibilidades de emprego formal 
que, quando presentes, oferecem baixos salários. Somada à privação de condições de 
obter trabalho e renda adequadas, estão a precarização das condições de saúde, a 
habitação, o acesso ao sistema educacional de qualidade e demais garantias legais, que 
foram mapeadas pelo Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), em 2010. 
(FUNDAÇÃO SEADE, 2010). Desse modo, a essa região são atribuídos índices de alta 
vulnerabilidade. 
Contribuiu também para a decisão de aproximação da pesquisa a este território 
de saúde o fato da Faculdade de Ciências humanas e da Saúde da PUC-SP ter 
continuada e sistemática relação de ensino, extensão e pesquisa com o mesmo, sendo o 
tema das vulnerabilidades uma das demandas de formação dos serviços dirigidas à 
universidade. 
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais e grupais, com o 
consentimento dos profissionais envolvidos, em torno do modo como a vulnerabilidade 
é usada para identificar indivíduos, grupos e populações específicas e a resposta 
oferecida para as situações de vulnerabilidade identificadas. 
Atentamo-nos a dois planos da Atenção Básica à Saúde: o plano de gestão e o 
plano de execução. 
Nesta etapa foram entrevistados 8 profissionais pertencentes à Coordenação de 
Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. 
A Coordenação de Atenção Básica da Secretaria de Saúde de São Paulo possui 
ao menos 5 áreas técnicas destinadas ao atendimento à populações específicas, 1) área 
técnica de atenção à saúde da população indígena, 2) área técnica de atenção à saúde da 
população de rua, com o consultório na rua, 3) área técnica de atenção à saúde da 
população negra, 4) área técnica de atenção à saúde da população imigrante, 5) área 
técnica de atenção à saúde da população LGBTT. (ENTREVISTA, 2016; SÃO 
PAULO, 2016). Por meio de tal estratégia a Secretaria Municipal de Saúde de São 
Paulo contempla uma determinação da própria PNPS, que destaca a importância de 
 Políticas Nacionais de Saúde Integral de Populações 
 
Cada área técnica é composta por profissionais que atuam produzindo estratégias 
de atenção à saúde à respectiva população de sua área, junto às Supervisões Técnicas de 
Saúde de São Paulo, aos próprios serviços, às equipes e aos profissionais de saúde de 
cada região da capital paulista. Desse modo, é possível às áreas técnicas atuarem de 
maneira descentralizada, considerando a especificidade de cada serviço e equipe em 
suas regiões, respeitando suas diversidades. 
A Coordenadora de Atenção Básica, a Assessora Técnica da Coord. de Atenção 
Básica e os Coordenadores das áreas de saúde de população específicas: População 
Indígena, População Imigrante, População Negra, População em Situação de Rua e 
População LGBT foram entrevistados, assim como os técnicos analistas em saúde, 
responsáveis por cada uma dessas áreas técnicas. 
Além disso, foram entrevistados seis profissionais da Supervisão Técnica de 
Saúde da Zona Norte de São Paulo, como a Supervisora e os apoiadores institucionais 
que apoiam o conjunto dos serviços da rede de saúde desta região em suas demandas de 
gestão e planejamento e avaliação da assistência. 
A escolha dos profissionais ocorreu a partir de revisão bibliográfica e das 
atribuições definidas dela PNPS, de que as estratégias de promoção da saúde devem ser 
em todos os níveis de atenção, com ênfase na atenção básica, voltadas às 
ações de cuidado com o corpo e a saúde (BRASIL, 2006, p. 20), além de indicações 
dos próprios profissionais entrevistados. 
Foram também acompanhadas, pelo pesquisador, algumas reuniões de equipe da 
Estratégia Saúde da Família e visitas domiciliares em torno de casos e situações que os 
profissionais classificavam como situações de vulnerabilidade. Fragmentos destas 
conversas, reuniões e visitas; assim como vinhetas dos casos foram utilizados ao longo 
dos diferentes capítulos, mas foram objeto de apresentação e/ou análise mais específicas 
nos capítulos 1 e 5. O período de realização das entrevistas e do acompanhamento foi 
entre os anos de 2016 e 2017. 
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todos 
os entrevistados e participantes, sendo que esta pesquisa teve a aprovação do Comitê de 
Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e da Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo, sendo aprovada no parecer consubstanciado da 
Plataforma Brasil. 
Além das entrevistas, procedemos pela observação participante, definida como 
o processo pelo qual se mantém a presença do observador no contexto social, com o 
objetivo de realizar uma pesquisa científica, no qual o observador colhe dados e se torna 
parte do contexto, modificando e sendo modificadopor este ao mesmo tempo. 
(MINAYO, 2004). As observações foram registradas em um diário de campo e 
utilizadas com a autorização dos participantes. Realizamos a observação participante em 
encontros de articulação de rede, que ocorreram conforme a demanda dos serviços, em 
espaços de matriciamento, relacionados ao plano de atendimento dos casos-traçadores 
escolhidos, em atividades das equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), e nas 
reuniões realizadas junto aos profissionais da Unidade Básica de Saúde (UBS) e da 
Supervisão Técnica de Saúde (STS). 
Para a análise do processo de construção de prioridades em saúde no Brasil 
partimos de publicações da Academia Brasiliênse de Medicina do século XIX no Brasil 
(ANNAES DE MEDICINA BRASILIÊNSE, 1853; 1880, 1882; UNIÃO MÉDICA, 
1886), os Boletins Semanais da Campanha de Erradicação da Varíola (BRASIL, 1968; 
1969), e publicações que tratam do assunto. (FOUCAULT, 2008a). 
Para o estudo das proveniências e funções recorremos ao Vocabulario 
portuguez & latino Bluteau (BLUTEAU, 1728), Dicionário da 
Língua Portugueza (BLUTEAU, 1879), Dicionário da Língua Brasileira de 1832 e o 
Novo Diccionario da Lingua Portuguesa de 1922. Além disso, recorremos às 
publicações da Academia Brasiliênse de Medicina do século XIX para tratar do uso da 
palavra vulnerável no campo da medicina naquele período. Com relação ao uso da 
vulnerabilidade no campo do Planejamento em Saúde, trabalhamos com documentos da 
Organização Pan-americana de Saúde (OPAS, 1965), e bibliografia que trata do assunto. 
(TEIXEIRA, 2010). Sobre a emergência da noção de vulnerabilidade no campo dos 
Direitos Humanos usamos os Yearbooks da Organização das Nações Unidas. 
Para análise da lateralidade normativa na noção de vulnerabilidade no campo do 
direito usamos o Código do Direito do Consumidor (BRASIL, 1990), publicações do 
Diário Oficial de São Paulo e da União. No campo da saúde recorremos ao Guia de 
Vigilância Epidemiológica (BRASIL, 1985; 1998), à Política Nacional de atenção 
´HIV/AIDS e DST (1999), e a entrevistas realizadas com pesquisadores e docentes 
componentes do NEPAIDS. Para analisar as transições normativas entre mercado e 
saúde pública, recorremos à análise da governamentalidade proposta por Foucault 
(2008b), a publicações do campo das políticas de AIDS (manuais, boletins, normas 
técnicas, políticas nacionais), publicações do ministério da saúde sobre promoção da 
saúde e redução de vulnerabilidade, além de notas sobre a construção na PNPS. 
A seguir explicaremos o modo como foi organizado esse estudo. 
 
1.3 Organização da Tese 
 
Esta tese está organizada em seis capítulos, iniciando pela Introdução, que 
apresenta as motivações e os objetivos deste estudo, além do percurso metodológico da 
pesquisa, indicando o tipo de pesquisa, os procedimentos e as técnicas de análise 
desenvolvidas. 
No capítulo 2, O uso da Palavra, realizamos uma breve problematização acerca 
dos usos da noção de vulnerabilidade por profissionais da Atenção Básica à Saúde de 
São Paulo-SP. Verificamos a proximidade e o distanciamento desses usos da noção de 
vulnerabilidade em relação às diretrizes e bibliografias especializadas, além das 
inflexões singulares no seu uso nas práticas cotidianas dos atores da Atenção Básica em 
Saúde do município de São Paulo. Percebendo que a noção é usada pelos trabalhadores 
para indicar prioridades na atenção à Saúde, procedemos por uma breve história da 
construção de prioridades no campo da saúde pública a fim de situá-la historicamente 
em sua singularidade. Verificamos que, em diferentes contextos e momentos 
historicamente datados, a sociedade brasileira se valeu de noções diferentes para definir 
prioridades, com a oléstia so sco , e produziu usos 
distintos da noção de vulnerabilidade, o que nos motivou a indagar: quais as diferentes 
proveniências e funções da noção de vulnerabilidade? 
No capítulo 3, Proveniências e Funções, abordamos as proveniências e as 
funções da noção de vulnerabilidade em momentos historicamente datados diferentes. 
Buscamos analisar a relação entre tais proveniências e funções e o modo como a 
vulnerabilidade pôde se tornar um objeto de intervenção para a Saúde Pública. 
Identificamos tais usos, proveniências e funções dessa noção, no campo da Saúde 
Pública no Brasil, verificando os sistemas de regras e valores aos quais essas 
proveniências e funções se remetiam. 
No capítulo 4, Direitos, Humanos e Saúde, analisamos a propagação dos usos 
da vulnerabilidade no campo da Saúde Pública no Brasil, sobretudo após o período de 
redemocratização do Brasil, em 1988, e sua relação com o direito e a economia. A 
propagação dos usos dessa noção compõe os modos como se tornou objeto de 
intervenção para a Saúde Pública. Concentramos-nos em fontes primárias referentes a 
políticas públicas, medidas legais e às manifestações da economia e do mercado em 
relação à noção de vulnerabilidade. 
No capítulo 5, Dispositivo da Vulnerabilidade, analisamos o aspecto produtivo 
dos discursos acerca da vulnerabilidade. A partir do conceito de dispositivo e a 
estratégia analítica que ele possibilita, conforme afirma Foucault (1984a), abordamos 
especificamente códigos, diretrizes, enunciados e aparelhos de coerção que lhes dão 
vigência. Nomeamos sua rede de relações como Dispositivo de Vulnerabilidade. Ou 
seja, o Dispositivo da Vulnerabilidade se refere aos conjuntos de elementos dispostos a 
fazer ver e falar da vulnerabilidade, propostos para o desenvolvimento das relações do 
indivíduo consigo mesmo a partir da noção de vulnerabilidade. O dispositivo convoca 
ao exame de si e dos outros, a decifração de si e dos outros e a reflexão sobre si e sobre 
os outros a partir dessa noção. Analisamos os usos da noção de vulnerabilidade e os 
conjuntos de elementos que puderam levar seres humanos a serem identificados como 
sujeitos vulneráveis e/ou a identificar sujeitos vulneráveis no contexto da Atenção 
Básica à Saúde no município de São Paulo-SP. 
Por fim, apresentamos as considerações finais deste estudo, destacando as 
questões éticas e políticas despertadas durante o seu desenvolvimento. Longe de estar 
acabado, este estudo percorre e inicia caminhos que manifestam a necessidade de serem 
aprofundados. 
 
 
 
 
 
 
 
 
2 O USO DA PALAVRA 
2.1 Uma ou várias vulnerabilidades? 
Agendamos uma reunião em novembro de 2015 para discutir as adequações e os 
caminhos viáveis de realização desse estudo. Eu buscava verificar, junto a dois gestores 
de um território sanitário, se haveria interesse na realização desta pesquisa naquela 
região da cidade por parte da Supervisão Técnica de Saúde (STS) Regional. A região é 
considerada de alta vulnerabilidade, devido à densidade populacional, precariedade 
habitacional e altos índices de violência. Sobretudo, o uso da palavra vulnerabilidade foi 
o foco de minha atenção desde aquele momento. Essa primeira conversa com Emerson e 
Eleonor12 inaugura minha observação participante nesta pesquisa. 
Na STS uma TV anuncia informações sobre alimentação saudável e prevenção 
de doenças. Apresento-me à recepcionista, que pede que eu me sente e aguarde 
Emerson. Há um sem-número de caixas, com rótulos diversos, empilhadas por todas as 
partes do espaço interno do estabelecimento. Um dos funcionários sai de sua sala para 
conversar com o vigia posicionado na recepção e exclama sua dificuldade de se desfazer 
de grande parte dos materiais de escritório que tem, pois não sabe quando virão novos 
materiais. O acúmulo de papeis e materiais de escritório estava relacionado à 
possibilidade de não obter nenhum deles novamente. 
Minutos depois Emerson chega e me convida para tomar café. Ele diz que toda 
equipe daquele estabelecimento se mudaria em poucas semanas para um novo endereço. 
 o volume de caixas empilhadas no estabelecimento afirma. Emerson informa 
que a mudança ocorreria devido às obrasdo metrô que ocorreriam no espaço do 
estabelecimento, tal como estava ocorrendo no terreno ao lado. 
Eleonor chega em seguida, junto a sua estagiária. Depois do último gole de café, 
nos dirigimos à sala de reuniões. Tanto Emerson quanto Eleonor haviam lido o projeto e 
já sabiam de sua ideia geral. A eles interessa os modos como a noção de vulnerabilidade 
chega nos trabalhadores. do que os textos e documentos das 
políticas públicas A relevância recai sobre a possibilidade de acesso dos 
gestores da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) os efeitos 
12 Todos os nomes aqui utilizados são fictícios, a fim de garantir o sigilo e o anonimato dos participantes 
da pesquisa. 
das políticas em profissionais e usuários são pouco conhecidos e levados em 
c . 
Emerson inicia suas considerações afirmando que ocorre muitas vezes uma 
confusão com o termo Vulnerabilidade, pois muitos acham que se trata sempre de 
vulnerabilidade social , devido à proposta de leitura dos Determinantes Sociais da 
Saúde13. Contudo, devido à formação das ciências da saúde, que privilegia um olhar 
sobre a doença ou sobre os aspectos biológicos, em grande parte das vezes, se 
estabelecem leituras orientadas para a análise da ulnerabilidade genética , da 
ulnerabilidade hereditária , dentre outras. Nesses casos, considera-se a fragilidade, 
mas sem colocá-la como social, estabelece-se uma leitura biológica. Eleonor corrobora 
com tal afirmação dizendo que existe certa polaridade entre olhares voltados para o 
social e aqueles voltados para os aspectos biológicos. 
Ocorre uma inflexão. Enuncia-se a palavra vulnerabilidade de modo não 
subordinado às definições da literatura científica especializada. Tal enunciação não 
parece estar condicionada à ordem das palavras e das definições componentes da 
literatura científica acerca da vulnerabilidade no campo da Saúde Pública. Vimos que 
No campo da medicina, da Saúde Pública, da Saúde Coletiva e da Saúde Mental, no 
Brasil, Ayres (2012) destaca como dimensões constitutivas das análises de 
vulnerabilidade, a dimensão individual, a dimensão social e a dimensão programática. 
 s definições do campo da saúde pública para a noção da vulnerabilidade às 
vezes são pautadas tal como a definição da vigilância sanitária, que acaba por ajustar os 
efeitos sociais a uma leitura biológica, ou ainda, psicossomática Emerson 
toma como exemplo a classificação de risco nos hospitais que subdividem o grau de 
risco com pulseiras de cores diferentes, a partir da descrição de sintomas físicos. 
Separam-se assim prioridades de atendimento. Ou ainda quando ocorrem reuniões ou 
decisões acerca de estratégias e medidas a serem executadas, por parte da Atenção 
Básica, sempre se recorre às noções de risco e vulnerabilidade. 
 Determinantes Sociais de Saúde (DSS), [...] são as condições sociais em que as pessoas vivem e 
trabalham ou as características sociais dentro das quais a vida transcorre. Portanto, os DSS estão 
relacionados às condições que movem o "andar a vida" dos indivíduos, dos grupos sociais e dos sujeitos 
coletivos. Essa discussão ocorre nos países desenvolvidos, especialmente no Canadá e em certos países 
europeus. De certo modo, esse debate sobre determinação também vinha sendo realizado, de uma forma 
contra-hegemônica, no Brasil e na América Latina, com a emergência da epidemiologia social latino-
americana nos anos 70 . (PAIM, 2009, p. 30).
Destacamos aqui um segundo ponto de inflexão. Para identificar prioridades 
parece ser mais importante o uso da palavra vulnerabilidade como um marcador, do que 
sua definição. Importa menos seu fundamento teórico ou correspondência às definições 
científicas e acadêmicas, do que seu uso. 
ue vulnerabilidade é essa? O que leva a ela? E quando emerge essa noção 
de vulnerabilidade? , indaga Emerson. Respondo que, à primeira vista, a noção aparece 
em documentos de políticas públicas no Brasil no início da década de 1990, ainda que já 
tenha sido discutida e operada em outros momentos no campo da saúde pública. 
Eleonor ressalta que em um índice recente dos equipamentos da DST/AIDS, a maior 
incidência de AIDS vem ocorrendo em grupos de homossexuais, negros, prostitutas e 
jovens que não viveram a epidemia da AIDS da década de 1980. ode ser um 
indicativo do modo como vem sendo trabalhada a atenção em saúde para estas pessoas , 
sublinha Eleonor, e sua relação com o uso da noção de vulnerabilidade . 
Indago Emerson e Eleonor sobre os possíveis espaços e momentos nos quais eu 
poderia analisar os usos da vulnerabilidade em profissionais e usuários. Emerson cita as 
reuniões com as equipes, sobre casos que necessitam de estratégias intersetoriais. Na 
sequência, afirma que os casos se iniciam com um indivíduo e que, aos poucos, os 
agentes comunitários vão ampliando a leitura da equipe para a família e demais vínculos 
sociais. Na maioria das vezes as reuniões intersetoriais são demandadas pelos Gerentes 
de Unidade que solicitam à coordenação regional tal reunião. Tais casos geralmente 
envolvem situações de violência, abandono, drogadição e enfraquecimento ou extinção 
de laços familiares. 
Com relação às entrevistas com os usuários, Emerson afirma que talvez eu tenha 
alguma dificuldade para realizar tal procedimento. Primeiro pela complexidade dos 
casos que muitas vezes impedem o acesso das próprias equipes de NASF e PSF, devido 
à localização da residência da pessoa. Depois, pelo desafio de estabelecer vínculos de 
confiança, ou de acesso às pessoas devido à fragilidade dos laços familiares ou sociais. 
Emerson aventa hipóteses de casos para o início da pesquisa: 1 caso que tenha 
mobilizado diversos serviços, 1 caso que de saúde mental, 1 caso de reabilitação, dentre 
outros. Respondo que estas são indicações muito interessantes e oportunas, mas que eu 
havia pensado em escolher os casos junto às equipes da UBS, que seriam por sua vez 
indicadas pela STS. Emerson concorda e diz que essa indicação deverá ser feita junto à 
Supervisora da STS. 
Ele enumera ainda outros espaços e momentos possíveis nos quais eu poderia 
verificar o uso da noção de vulnerabilidade. (1) Encontro de articulação de rede, 
conforme a demanda dos serviços; (2) Espaços de matriciamento14; (3) Fórum de 
violência; (4) Oficinas de integralidade15, a serem implementadas pela Coordenadoria 
da Regional; (5) Comitê de materno-infantil; (6) Reunião de tuberculose. Tratava-se de 
uma taxionomia de possíveis espaços de identificação de vulnerabilidades16. 
Sobre os critérios de regulação, Emerson narra um caso de uma senhora 
acumuladora de lixo, que foi encontrada em estado de saúde precária, desidratada, 
convivendo com animais mortos em estado de decomposição avançado. Emerson narra 
que a equipe que a acompanhava precisou insistir vigorosamente junto aos profissionais 
de um hospital para conseguir internar a senhora. A ideia era que a senhora passasse um 
período no hospital até que se recompusesse, e que as equipes conseguissem para ela 
condições melhores de moradia. A equipe do hospital por sua vez avaliara somente as 
funções vitais biológicas da senhora, que apesar de tudo não sofria grandes agravos ou 
disfunções físicas. Pelo fato de não apresentar sintomas físicos a equipe do hospital se 
negava a efetivar a internação. Para Emerson tal dificuldade foi identificada justamente 
pelos critérios de regulação de sua prática. Depois de muita insistência a senhora foi 
internada, porém se a tentativa tivesse sido feita por telefone, o desfecho teria sido outro 
provavelmente , afirma. 
É possível encontrar elementos que indicam a agonística de práticas 
direcionadas e operadas a partir de concepções de vulnerabilidade diferentes. Umas 
relacionadas à vulnerabilidade biológica e outra relacionada aos aspectos sociais, 
históricos, afetivos etc. 
14 
num processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção pedagógico- 
(BRASIL, 2011b, p. 13).

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