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ANTROPOLOGIA SOCIAL Mayara Joice Dionizio Direitos étnico-culturais dos povos indígenas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever os efeitos da guerra para a Constituição dos direitos étnico- -culturais dos povos indígenas. � Reconhecer a relação do território e da floresta com a cosmopolítica dos povos ameríndios. � Analisar a demarcação das terras indígenas como um pilar existencial desses povos. Introdução Os indígenas são considerados os povos originários do Brasil, mas esse fato somente foi reconhecido jurídica e culturalmente com a Constituição Federal de 1988. Anteriormente a esse período, eles tinham seus direitos inexistentes ou tutelados por órgãos governamentais. Todas as conquistas ocorridas colocam a questão indígena em um paradoxo: direitos foram reconhecidos desde o processo de redemocratização do país, porém, para além da lei, o reconhecimento por parte da sociedade continua sendo dificultoso. A população ainda tenta compreender o modo de vida indígena a partir de um ideal com resquícios colonizadores, integrando- -o a um modelo que não é próprio a esses povos, pois não entende a cosmovisão indígena do mundo. Neste capítulo, você estudará os efeitos da Guerra da Conquista (processo de colonização do Brasil pelos portugueses), a batalha cultu- ral em que vivem os indígenas até a atualidade; os caminhos que eles percorreram até terem seus direitos reconhecidos; o que fundamenta a cosmopolítica, de que forma o território e a floresta se atrelam à cultura ameríndia; e como a demarcação de terras possibilita o modo de exis- tência desses povos. Luta pela constituição dos direitos étnico- culturais dos povos indígenas Os direitos étnico-culturais sempre foram alvo de ataques, mas atualmente, estes têm sido muito discutidos como uma forma de não compreensão do modo de vida do indígena, além da necessidade civilizatória como uma padronização e hierarquização entre as formas de vida. Para tratar dos direitos étnico- -culturais, deve-se antes compreender o que é cultura, por exemplo, a partir da diversidade, pluralismo e patrimônio cultural, ela não é pensada como um conceito fechado e terminado, mas, sim, aberto e em constante modificação. A Organização das Nações Unidas (ONU) entende como cultura: “o conjunto de traços espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que distinguem e caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os valores, as tradições e as crenças” (UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION, 2001, p. 1). Nesse contexto, evidencia-se um paradoxo cultural e de perspectiva sobre como a sociedade compreende os povos indígenas e como estes entendem a si mesmos. A maioria da sociedade parte dos pré-conceitos e preconcepções sobre seu modo de vida, alguns caracterizam-no a partir de símbolos que não representam mais (ou nunca representaram) a cultura desses povos, os quais lutam para sobreviver física e culturalmente em mundo que, ao mesmo tempo, os pertence e os excluí. Atualmente, os indígenas compartilham da realidade de vida das cidades, se vestem de forma padrão e usam tecnologias, porém, sua inserção no cotidiano urbano não é inclusivo. Mesmo nas reservas próximas às cidades, seu modo de vida está inserido no contemporâneo, com acesso às coisas utilizadas no dia a dia do cidadão comum, contudo, esse acesso por parte da população indígena é muito dificultoso. Entre todas as dificuldades, sobressaem as necessidades de atendimento médico, a demarcação de território e o combate à violência contra esses povos. Além das necessidades de caráter mais físico, há o caráter cultural, de direito cultural, pelo qual eles lutam, uma vez que seus modos de vida são incompreendidos ou rejeitados pela maioria da sociedade, que, muitas vezes, não respeita sua cultura. Entretanto, o modo não relacional ou de exclusão social dos indígenas não é relativamente novo, assim, a forma como a sociedade nacional os compreende ainda carrega a perspectiva colonizadora. Isso significa reco- Direitos étnico-culturais dos povos indígenas2 nhecer que, desde a chegada dos portugueses e do processo de colonização do Brasil, a visão eurocêntrica impôs a esses povos uma cultura valorativa. Assim, impôs-se um modelo de religião, no caso a católica, um ideal de raça, valores artísticos e de conduta aos indígenas. Nesse sentido, o reconhecimento deles, ou a dignificação justa desses povos originários, sempre foi marcada por uma guerra. Esse período ficou conhecido como a Guerra da Conquista, marcada pela exploração e dizimação dos povos indígenas pelos portugueses, mas, segundo Krenak (2019), ela dura até os dias atuais. Assim, além de uma guerra especí- fica, a existência indígena sempre esteve em um processo de batalha com as dimensões colonial e biológica. Isso significa dizer que os indígenas foram mortos não apenas pela questão cultural, como também por serem escravizados e pelas epidemias de doenças trazidas pelos colonizadores. Portanto, as constituições nacionais buscaram, desde 1891, a integração dos povos indígenas à sociedade para que se estabelecesse a hegemonia racial — eles eram escravizados — e cultural (que permanece até a atualidade). Nesse sentido, a herança colonial no modo de visão da sociedade nacional estabelecia, de forma legislativa, uma política de integração no período republicano. Com a Constituição que ocorreu a partir da Proclamação da República, a situação dos indígenas não se alterou, pois a Carta de 1891 apenas afirmou as ideias colonizadoras por meio de um conservadorismo da elite, que enxergava os indígenas como um povo a ser distinguido e inferior em todos os aspectos. Nesse contexto, um grupo de positivistas propôs que a Constituição garantisse alguns direitos aos indígenas, porém, os conservadores impossibilitaram que o projeto fosse votado. Tal proposta argumentava em prol da inserção desses povos na sociedade de modo gradativo, utilizando o processo de modernização do Brasil como o momento ideal para mudanças dessa ordem. Nesse cenário, a sociedade brasileira vivia um período de industrialização e influência cultural extremamente europeia, desde então até a Carta de 1934, nada foi alterado em relação aos direitos dos indígenas. Neste período, mais especificamente em 1918, criou-se o Serviço de Pro- teção ao Índio, que tinha como função implementar um programa de inte- gração do indígena como um trabalhador, de acordo com a visão colonialista permeada até então. Já em 1966 foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai). Contudo, na Carta de 1934, houve a primeira referência à existência de indígenas no Brasil e como povos originários, na qual não se apresentava 3Direitos étnico-culturais dos povos indígenas nada de novo, apenas eles como indivíduos dotados de identidade cultural e que deveriam ser integrados à comunhão nacional, conduzidos e moldados pelo Estado para a vida em sociedade. Porém, esta visão menos tolerante em relação à alteridade cultural e racial se aprofundou em 1937 quando a Constituição de 1934 foi revogada, devido à ascensão do fascismo no Brasil, pois vários setores do Estado novo se identi- ficavam com a ideologia nazista aplicada na Alemanha nesse período. O ideal predominante do fascismo é a padronização nacional e, no caso do nazismo, esta também é eugenista, contribuindo para o acirramento entre a sociedade e os povos indígenas que eram ignorados, senão extirpados. Nesse contexto, os índios não foram mais vistos como sujeitos a serem integrados, e sim de- finitivamente excluídos, contudo, isso não culminou em um reconhecimento identitário cultural, mas em uma exclusão e insignificância. Em 1967, adotou-se outra proposta integracionista, em que a Constituição buscou se assemelhar à visão internacional sobre o integracionismo, que tinha como baseproteger a vida e o patrimônio indígena. Assim, a Funai começou a gerir estas políticas voltadas aos direitos indígenas: preservação da cultura, estímulo ao estudo sobre esses povos e sua cultura, sua proteção e demarcação dos territórios habitados por eles. Já em 1973, criou-se o Estatuto do Índio com a finalidade de, por meio da Funai, cuidar dos povos indígenas. Portanto, o integracionismo assume o caráter tutelar, estabelecendo uma forma de proteção que culmina com uma legitimação à destruição cultural indígena, com a desculpa de se preservar esses povos. Entretanto, em 1970, houve a união dos indígenas, devido à sua exclusão, em que os povos isolados começaram a se buscar e se conhecer. Com isso, a organização indígena se articulou em relação aos diferentes contextos e problemas enfrentados, “[é] nesta fase que a troca de experiência e problemas vividos dá origem a um senso de solidariedade indígena [unidade] nunca antes vivenciado, constituindo um espírito de corporação, que é a marca desta fase e que passou a ser a base de todas as mobilizações indígenas” (NEVES, 2004, p. 89). Essa articulação foi nomeada como supraétnica por caracterizar uma identidade indígena múltipla. Para tanto, a organização indígena começou a formação de assembleias compostas de organizações religiosas e entidades de direitos humanos e indígenas. A partir disso, no ano de 1980, formou-se a União das Nações Indígenas (UNI). Contudo, as dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas, inclusive para participar das mobilizações, eram grandes uma vez que, para sair da Direitos étnico-culturais dos povos indígenas4 reserva, deveriam ter uma justificativa e ser autorizados pela Funai. Em 1980, o Brasil vivia um período de redemocratização, e os indígenas se colocaram como força atuante e uma voz a ser ouvida. Assim, as lideranças indígenas conseguiram incluir na Constituição um capítulo intitulado “Dos índios”, com dois artigos. O primeiro artigo reconhece seu modo de vida e responsabiliza a União por demarcar e defender seus territórios e bens. Já o segundo reco- nhece a autonomia dos povos indígenas e suas organizações em seus direitos e interesses, o direito de defesa diante do Ministério Público. Isso foi um grande marco para essas lideranças, pois garantia aos povos falarem por si, de seus direitos de defesa e agência por meio de organizações, o que rompe com a visão integralista e de tutela deles, ao menos em relação à Constituição de 1988 e à Carta Magna. Desde 1988, a inserção desse capítulo na Constituição se tornou um impor- tante dispositivo constitucional para a luta indigenista por romper, acima de tudo, com a lógica de dominação desses povos. A partir desse momento, eles começaram a ser vistos legalmente como diferentes, mas essa diferença não é compreendida como incapacidade. Já a concepção de tutela foi substituída pela ideia de proteção, assim, órgãos como a Funai têm o papel de proteger esses povos. Em 2008, o Brasil adotou a declaração da ONU que reconhece o direito dos indígenas à autodeterminação em relação à condição política e ao desenvolvimento econômico; o direito à autonomia quanto à sua organização interna; o direito à conservação de suas instituições políticas, jurídicas, cultu- rais e sociais; o direito, caso queiram, de participar da vida social, em ampla esfera, da sociedade nacional e do Estado; e repudia a remoção desses povos de seus territórios sem acordo prévio, passivo de indenização (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008). Apesar dessas importantes mudanças jurídicas, a realidade dos povos indígenas continua muito difícil. No sentido cultural, a visão colonialista por parte da sociedade brasileira ainda não compreende o modo de vida indígena e o rechaça. Assim, muitos indígenas enfrentam dificuldades quanto a pertencer a um mundo, uma vez que vivem, muitas vezes, isolados e não conseguem se adequar ao estilo de vida do Estado. Já os que decidem viver de modo afirmativo culturalmente e posicionados em relação às reservas e demarcações são constantemente atacados, geralmente por garimpeiros, fazendeiros e outros grupos que não respeitam os territórios e tentam explorar essas áreas. Na Figura 1, você pode ver uma das marchas em prol dos direitos indígenas. 5Direitos étnico-culturais dos povos indígenas Figura 1. Marcha em prol dos direitos indígenas. Fonte: Estado... (2015, documento on-line). Você sabia que um brasileiro é um dos maiores nomes da antropologia atual? O antropólogo e filósofo Eduardo Viveiros de Castro ocupa um lugar de destaque nesse cenário, cursou ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, bem como é mestre e doutor em antropologia social no Museu Nacional. Ele foi aluno de Claude Lévi-Strauss, o qual percebeu sua compreensão inovadora no campo da antropologia e disse que Viveiros de Castro seria o fundador de uma nova escola antropológica. Eduardo também criou a corrente perspectivista e dedica suas obras a pensar os modos de vida dos povos indígenas e descentralizar a hierarquia em que o pensamento ocidental se estabeleceu. Seus principais livros são Metafísicas Canibais (2009) e Araweté: os deuses canibais (1986). Visão cosmopolítica — relações entre território e floresta dos povos ameríndios O modo de vida dos povos indígenas ou ameríndios são, em suma, uma ou- tra forma de pensar o mundo, a natureza e a realidade. Para a sociedade ocidentalizada, a simbologia referente ao mundo está atrelada aos sistemas Direitos étnico-culturais dos povos indígenas6 matemáticos, lógicos, científicos e filosóficos, já para os povos ameríndios, a realidade refere-se a uma relação com o cosmos, embasada em tradições e culturas. A partir dessa relação conflituosa, surge o conceito de cosmopolítica, que foi formulado e utilizado pela primeira vez pela filósofa Isabella Stengers, em 1996 — posteriormente, o filósofo Bruno Latour começa a endossar seu conceito e sua argumentação. Contudo, o que é cosmopolítica e de que forma ela se relaciona com o território e a floresta em que os povos ameríndios habitam? Sem buscar uma equalização entre as compreensões de mundo, a cosmopolítica se propõe a dignificar as diferenças de visão de mundo diante de um pluriverso. Assim, tanto ela necessita de um universo plural para existir como esse universo precisa de uma cosmopolítica que garanta o respeito aos modos de se olhar o mundo. Nesse contexto, Stengers (2014) relata que o termo cosmopolítica surgiu quando se deparou com o paradigma científico de dignificação do sujeito conhecedor, que fala e pode atestar o conhecimento sobre algo. Assim, a cosmopolítica implica pensar que toda forma de conceber o cosmos está atrelada a um modo de refletir sobre a política. Portanto, para Stengers (2014), o cosmos pode ser concebido a partir das infinitas articulações que implicam em diversos modos de entender a política. Não existe universalidade política uma vez que há diferentes formas de com- preender o mundo, é apenas possível que a política de cada povo se disponha a respeitar a cosmovisão dos outros e ache modos de habitar o mesmo mundo, ainda que seja de perspectivas diferentes. Neste cenário, a reflexão sobre a cosmopolítica na atualidade segue duas correntes teóricas: a etnografia multiespécie, a qual se fundamenta em um novo materialismo que dignifica humanos e não humanos; e os pensadores que defendem uma virada ontológica em que seja considerada a alteridade de modo radical ou os mundos plurais, e não uma pluralidade cultural. Assim, essas duas correntes compõem o cosmopolitismo perspectivista na atualidade, partindo para uma relação mais direta com a cosmovisão dos povos ameríndios acerca do território e da floresta, bem como criando a “oportunidade para a emergência de uma sensibilidade um pouco diferente dos problemas e das situações que nos movem” (STENGERS, 2014, p. 17, tradução nossa). Isso significa que a cosmogonia indígena é diferente do modo deprodução simbólica da chamada cultura ocidentalizada, pois o processo pelo qual ocorre a cultura não se restringe a uma manifestação apenas, como também a uma amplitude de manifestações dos seres que vivem no mundo. Por conseguinte, a lógica dos povos ameríndios é relacional e abarca contextualizações com a realidade totalmente diferentes. Assim, se para alguns o Sol é uma estrela 7Direitos étnico-culturais dos povos indígenas posicionada no centro da via láctea e todos os planetas orbitam ao seu redor, para determinados povos ameríndios, trata-se de uma entidade. Portanto, são compreensões heterogêneas. Por exemplo, a história infantojuvenil intitulada “Onde a onça bebe água”, escrita por Veronica Stigger e baseada na obra do filósofo e antropólogo Edu- ardo Viveiros de Castro, traz uma cosmologia que ilustra um pouco da cultura indígena. Ela é protagonizada por Joaci, um indígena que gostava de se perder na mata e, certo dia, decide tomar água em um rio no qual escuta uma voz dizendo que não deveria beber água onde a onça bebe. Após ficar indignado por não saber de onde vinha essa voz, ele corre e chega a uma aldeia abandonada. Ao entrar em uma oca, se depara com uma onça que começa a falar com ele e lhe oferece cauim (bebida feita de mandioca) e frutinhas, porém, quando ele vai experimentar, percebe que a bebida era sangue; e as frutinhas, fezes de onça. O menino fica irritado, e a onça diz que, para ela, aquilo é cauim e frutas. O menino se assusta e pergunta a ela o que vê quando olha para ele, ela afirma que vê um porco-do-mato. Por fim, ao voltar ao rio e olhar seu reflexo, Joaci vê uma onça (STIGGER; VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Trata-se de uma abertura cosmológica ao que é o mundo do outro e exterior a todas as relações fundadas a partir da alteridade. Nesse sentido, o mundo dos povos ameríndios se configura em uma outra produção simbólica e relacional. O modo de vida da sociedade ocidental é fundamentado na explicação lógica e de caráter colonialista, culturalmente formado por uma tradição histórica e de pensamento que visa conquistas, descobrimento e apropriação; já a cultura ameríndia parte da relação receptiva ao que é o outro. A partir dessa compreensão da cosmologia ameríndia, surge o estudo do perspectivismo, termo cunhado por Eduardo Viveiros de Castro. Nesse sentido, o perspectivismo não trata de toda a natureza, nem se refere a todos os animais, pois, segundo a cosmologia de cada mito ameríndio, existem animais espiritualizados, considerados entidades, e outros que não o são. Os espíritos também participam e desempenham um papel em várias cosmologias, assim, eles são incorporados a estas em um contexto de comunicação entre o que é humano e o que não é. Portanto, é necessária a aplicação de uma cosmopolítica em relação ao modo de vida e a tudo que envolve cosmologicamente os povos ameríndios. Pensar o território demarcado e as florestas ocupadas por eles não deve ser apenas uma questão geográfica e baseada na herança colonialista, que os trata como uma fonte de exploração natural com finalidade lucrativa. Para tanto, deve-se compreender que os ameríndios têm uma relação espiritual e cultural com a floresta e seus territórios, pensando a partir do ponto de vista ecológico, uma vez que esses povos preservam essas regiões, o que garante um equilíbrio Direitos étnico-culturais dos povos indígenas8 ambiental para o planeta. Nesse contexto, o maior contingente populacional está localizado na Amazônia. Assim, somente a partir de uma visão cosmopolítica que se poderia instituir uma política visando a alteridade indígena. Já em relação ao sistema latifundiário, no ano de 1850, houve a Lei de Terras, em que se instituiu que a posse de terra ocorreria por meio de compra, rompendo com as concessões feitas pela Coroa (e começando as falsificações de documentos referentes a ela). No Brasil, percebe-se que a questão latifundiária aconteceu em meio a um conflito econômico e político, o qual nem sempre ocor- ria por vias legais. Nesse contexto, os povos ameríndios viveram sob a ameaça de serem expropriados de suas terras e, além da questão cultural, tiveram suas formas de vida ameaçadas, pois eles subsistiam, em geral, do que produziam nesses territórios. Essa lei ainda institucionalizou as expropriações, na medida em que oficializou de modo financeiro a posse de terras. Disso decorreu a migração dos indígenas às áreas mais remotas, que ainda não foram exploradas. Já na contemporaneidade, após o reconhecimento do direito à terra presente na Constituição de 1988 e na Carta Magna, o processo de demarcação volta a sofrer ameaças e não somente por parte da classe agrária, que demonstra interesse na exploração das riquezas naturais, como também em relação a Funai. Além do sucateamento e das diversas terceirizações, a Funai sofre com as propostas políticas que sugerem alteração nas demarcações dos povos ameríndios. Atualmente, existem no Brasil 462 terras indígenas demarcadas, o que significa 12% do território brasileiro. Apesar de todas as fissuras e ilegalidades que ocorrem em relação aos povos indígenas, pode-se notar, desde 1988, um avanço quantos aos seus direitos. Portanto, trata-se de uma importante conquista política e constitucional para os ameríndios, mesmo com os processos de expropriação e não aceitação da necessidade deles por parte da sociedade, garantindo a eles o direito aos seus territórios, como foi reconhecido ao longo da história do Brasil. Porém, os direitos também devem ser vistos como uma forma de preservar as riquezas naturais como condição de sobrevivência de todos. Importância da demarcação de terras indígenas na preservação cultural e social desses povos Segundo a literatura jurídica brasileira, o termo terra indígena foi instituído juntamente aos outros direitos na Constituição Federal, precisamente no art. 231 (BRASIL, 1988). Contudo, o direito a esses territórios data do alvará régio de 1680, em que a Coroa garantia alguns direitos aos povos em relação 9Direitos étnico-culturais dos povos indígenas aos territórios que habitavam. No ano de 1934, no período republicano, se asseguraram também os direitos às terras pela Constituição Federal: “Art. 129 — Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.” (BRASIL, [1934], documento on-line). Porém, o artigo não era totalmente respeitado pelas autoridades locais de diversas regiões do país, o que ocorreu até 1946, mas com a ressalva de que essas terras pertenceriam aos povos indígenas se eles estivessem ali permanentemente. Em 1988, reconheceu-se os direitos indígenas com destaque para o principal deles, a diferença, atribuindo aos povos a originalidade quanto ao território brasileiro e às terras ocupadas tradicionalmente. Tanto para o Estado como para os indígenas, tratava-se de um reconhecimento em relação à sua reprodução cultural e física, o que ampliou a compreensão que antes era vigente de ocupação permanente. Dessa forma, uma vez que eles se reproduzissem, precisariam de mais espaço, o que fez o processo de demarcação ser realizado com base em um lugar necessário para sua habitação, reprodução física, cultural, econômica e social. Outro aspecto importante é que, ao reconhecer os povos indígenas como originários, admitiu-se o direito às terras por meio do direito congênito, isso significa que são reconhecidos pelo Estado de Direito como os donos da terra, pois estavam aqui antes mesmo da instituição jurídica brasileira. Portanto, as terras indígenas começaram a ser reconhecidas como per- tencentes a esses povos mediante o Estado. Apesar desse reconhecimento, o modo de vida nessas áreas é complicado, pois enfrentam inúmeras dificuldades relacionadas à prestação de serviços, inclusive por parte do Estado, como saneamento, unidade de atendimento médico, etc. Muitas vezes, isso leva vários indígenas a migrarem para as cidadesem busca de acesso aos serviços básicos, porém, em geral, não há políticas públicas destinadas a esses migrantes, o que os faz viverem em situação de rua. Na prática, a demarcação de terras deve ser feita pelo órgão que dá assistência aos indígenas, a Funai, e o tempo de ocupação tende a garantir a posse permanente do território aos povos. Com efeito, essa ocupação não pode ser pensada nos moldes da propriedade privada ou pública, uma vez que esses espaços não têm finalidade pública, e a interpretação de posse do indígena é muito diferente das sociedades ocidentais. Isso significa que são espaços coletivos, que pertencem aos povos que habitam essas terras. Portanto, a relação que estabelecem é de outra ordem, carregada de espiritualidade e cultura, não se trata de um valor de mercado a ser atribuído. Há outro aspecto que aprofundou e ampliou o reconhecimento cultural em 1988. No Brasil, até a metade do século XX, a influência cultural sempre foi Direitos étnico-culturais dos povos indígenas10 de origem europeia, desde a colonização portuguesa, o que foi instituído como produção cultural se reduzia à cultura deles. Posteriormente, com as missões francesa e holandesa, a produção cultural brasileira teve uma influência mais direta dessas culturas. Assim, começou-se a imitar ou reproduzir a cultura desses países de modo geral: a moda, a arte, a comida, os modos, etc. Neste período, a história do Brasil também era contada apenas do ponto de vista dos colonizadores. Além da não dignificação e do genocídio, a história e cultura indígenas foram praticamente inexistentes, os povos ameríndios viviam à margem em todos os contextos. Portanto, desde a nova Constituição, a arte e cultura indígenas começaram a ser compreendidas por seu valor cultural imaterial, contribuindo para que tais etnias também fossem identificadas por seus aspectos culturais na medida em que se ligam à identidade e memória desses povos. Pode-se afirmar que esses direitos culturais e seu reconhecimento dignificam esses povos em seus valores, pois refletem o que são de modo a serem apreciados, respeitados e estudados. A importância das demarcações territoriais, sociais e culturais também estão presentes na história desses povos, sendo que, a partir dessas dignificações, se pode passar para as futuras gerações sua tradição e criar laços históricos com os antepassados. Assim, reconhece-se que a terra, a relação com a natureza, a produção cultural/artística e a espiritualidade também estão atreladas às demarcações de patrimônio cultural. Segundo Cureau (2011, p. 148): “nas tradições, na observação atenta e na utilização dos processos e recursos que cercam os membros das comunidades indígenas e tradicionais [...] o conceito de território deve ser compreendido como o espaço necessário à reprodução física e cultural de cada povo tradicional”. Conclui-se que, para os povos indígenas, o que é natural e cultural simboliza a mesma categoria, pois se relacionam com o ambiente em que vivem de modo outro. A posição que eles ocupam em relação à natureza também possibilita a existência da humanidade culturalmente, porque, ao preservar essas terras, conservam o ecossistema e a própria condição para o perpetuamento cultural de outros povos. Assim, simbioticamente, a natureza se torna o registro da vida indígena, e o indígena é o cuidador da natureza. Portanto, garantir os direitos indígenas é assegurar também sua relação identitária, sem a qual esses povos não podem sobreviver, pois perde-se sua dignidade e o sentido de suas vidas culturais e sociais. Além dessas garantias normativas legais, necessita-se de uma relação estabelecida entre a natureza e a cultura para que a sociedade comece a considerar os problemas ecológicos que o planeta apresenta atualmente. 11Direitos étnico-culturais dos povos indígenas Assista, no link a seguir, à defesa feita por Ailton Krenak (importante líder indígena) da emenda popular da UNI. https://qrgo.page.link/wUbPd BRASIL. [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 31. ed. Brasília: Casa Civil da Presidência da República, [1934]. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em: 16 set. 2019. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 364 p. CUREAU, S. Biodiversidade, Conhecimento tradicional associado e Patrimônio cultural imaterial. Revista Internacional de Direito e Cidadania, [S. l.], v. 4, n. esp. p. 243–256, 2011. Disponível em: http://aneste.org/biodiversidade-conhecimento-tradicional-associado- -e-patrimnio.html. Acesso em: 16 set. 2019. KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 88 p. NEVES, L. J. O. Olhos mágicos do sul (do sul): lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil. In: SANTOS, B. S. (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Porto: Afrontamentos, 2004. p. 87–116. 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