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CompementL bulletin de psychologle /tomo 70 (4)/ 550/julho-agosto 2017 A RELAÇÃO DE IMPLICAÇÃO (E NÃO DE APLICAÇÃO) ENTRE AS FENOMENOLOGIAS FILOSOFICA E CLINICA: O PONTO DE VISTA DE ARTHUR TATOSSIANbe Lucas Blocd Virginia Moreira Mareike Wolf-Fédida' Jeanine Chamond9 Resumo: As obras de Minkowski, Binswanger, Boss, Strauss, Ey e von Gebsattel foram as primeiras a interrogar os aportes da fenomenologia filosófica no domínio da clínica (psicopatologia, psiquiatria e psicoterapia fenomenológica). Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir o ponto de vista de Arthur Tatossian que, mais recentemente, se voltou à questão da relação entre as fenomenologias filosófica e clínica para destacar a importância de uma relação de implicação, e não de aplicação, na metodologia entre esses dois domínios. Tatossian construiu uma psicopatologia da clínica e para a clinica, e seu ponto de vista está sustentado por uma ética da consideração do outro e de seu vivido e do fenômeno que se apresenta -dimensões originárias de toda fenomenologia clinica. LA RELATION D'IMPLICATION (ET NON D'APPLICATION) ENTRE LES PHENOMENOLOGIES PHILOSOPHIQUE ET CLINIQUE LE POINT DE VUE D'ARTHUR TATOSSIAN Résumé: Les travaux de Minkowski, Binswanger, Boss, Strauss, Ey et von interroger les apports de la phénoménologie philosophique au domaine de la clinique (psychopathologie, psychiatrie et psychothérapie phénoménologique). Cet article a pour objet présenter et discuter le point de vue d'Arthur Tatossian qui, plus récemment, est revenu sur la question de la relation entre les phénoménologies philosophique et clinique pour souligner 'importance d'une relation d'implication, et non d'application, dans la Tatossian construit une Gebsattel ont été les premiers deux domaines. méthodologie entre psychopathologie de la clinique et pour la clinique, et son point de vue est sous- tendu par une éthique de la considération de l'autre et de son vécu et du phénomène qui se montre dimensions originaires de toute phénoménologie clinique. ces a http://www.bulletindepsychologie.net Texto recebido em 25 de juiho de 2015 e aceito em 13 de junho de 2016. Tradução para o português de Georges Boris. Universidade Denis Diderot- Paris ViI, França, Universidade de Fortaleza, Brasil. Universidade de Fortaleza, Brasil. Universidade Denis Diderot - Paris VIl, França. Universidade de Montpellier 3, França. THE RELATION OF IMPLICATION (AND NON-APPLICATION) BETWEEN PHILOSOPHICAL AND CLINICAL PHENOMENOLOGY: ARTHUR TATOSSIAN'S POINT OF VIEWN Abstract: The works of Minkowski, Binswanger, Boss, Strauss, Ey and Von Gebsattel were the first ones to debate philosophical phenomenology beyond philosophy in the clinical domain (psychopathology, psychiatry and phenomenological psychotherapy). This article aims at presenting and discussing the point of view of Arthur Tatossian, who, most recently, pursued the matter of the relationship between philosophical and clinical phenomenologies in order to highlight the importance of a relation of implication and non-application between these two areas concerning methodology. Tatossian builit a psychopathology from clinics and for clinics and his point of view is supported by an ethics that takes the pther person into consideration, as well as his/her lived experience and the phenomenon that presents itsel-dimensions originating in every clinical phenomeñology. INTRODUÇÃO O nascimento da fenomenologia está associado às obras de Edmund Husserl no início do século XX. Ele tomou como objetivo refundar o caráter rigoroso do conhecimento, propondo um movimento de "retorno às coisas mesmas". Por meio deste novo método, diferente de uma perspectiva metafisica e afastado das ciências positivas, Husserl queria dar à filosofia um estatuto de saber fundador, saber que teria por vocação ser evidente e capaz de compreender a vida psíquica, isto é, de se tornar um método genuino. Outros filósofos, como Heidegger, Merleau-Ponty, Lévinas e Sartre, entre outros, continuaram a desenvover, de uma maneira propria a cada um, trabalho inicial de Husser. Eles são os principais representantes da fenomenologia filosófica e suas contribuições são fontes de inspiração para a constituição posterior da fenomenologia clínica. O termo "fenomenologia" tem um sentido amplo. Sua meta, como método, é descrever o que aparece e se apresenta também como estilo ou maneira de pensar (Dastur, 2005; Merleau-Ponty, 1945). Assim, a filosofia e seus métodos se tornaram capazes de inspirar diversos saberes e impõem, portanto, a exigência de examinar o que se apresenta, bem como de se interessar pelas condições de uma representação possível da realidade. No começo dos anos 1920, o debate inicial, interno à fenomenologia filosófica, transbordou o campo da filosofia. Os psiquiatras Minkowski e Binswanger, seguidos de Boss, Strauss, von Gebsattel e Ey, foram os primeiros a explorar o campo clínico a partir da psicopatologia e da psiquiatria fenomenológicas. Tratavam-se de abordagens dos problemas mentais que, a partir desta época, receberam várias denominações: fenomenologia psiquiátrica, psicopatologia fenomenológica, análise fenómeno-estrutural, andálise existencial, Daseinsanálise, antopologia fenomenologica das psicoses e fenomenologia clínica (Charbonneau, 2010). Ainda que cada denominação tenha suas especificidades, todas se aproximam da fenomenologia e têm seu lugar no diálogo aberto entre fenomenologia e psiquiatria. Nosso objetivo, neste artigo, não é diferenciá-las: queremos mostrar que estas diferenças constatadas testemunham o desejo dos psiquiatras de dialogar com a flosofia (Dastur, 2014), de acordo com o movimento particular e direto característico das perspectivas da psiquiatria fenomenológica. Nosso interesse está centrado justamente nesta relação estabelecida e plena de possibilidades Neste artigo0, escolhemos a denominação fenomenologia clinica" em razão de sua eficiência para dar conta do sentido clínico, seja de uma clínica psiquiátrica ou psicológica, seja de modelos de psicoterapia de natureza fenomenológica. Ela nos permite levar em consideração a construção do discurso teórico da psicopatologia, a partir do contato clínico. Insistimos no fato de que, desde o inicio, a psiquiatria e a psicopatologia fenomenológicas acentuarama dimensão clinica, tanto para constituir o plano teórico quanto para elaborar o tratamento do doente, o que justifica também esta escolha. De um ponto de vista histórico, podemos datar o nascimento da fenomenologia clínica no ano de 1922, mais precisamente na ocasião. da 63 sessão da Sociedade Suiça de Psiquiatria de Zurique, durante a qual Minkowski * e Binswanger apresentaram seus trabalhos sobre a melancolia e a esquizofrenia, cada um segundo uma perspectiva fenomenológica. No início, surgiram algumas dificuldades de distinguir os passos da fenomenologia filosóficae da fenomenologia clínica. Este emaranhamento era devido à penetração da filosofia no domínio clínico, induzindo uma falta de delimitação clara entre estes dois dominios, o que produziu mal-entendidos. O pior deles consistiu em querer simplesmente "aplicar a fenomenologia filosófica à clínica (Tatossian, 1979/2002). As consequências deste mal-entendido foram, por exemplo, uma sistematização do vivido, que não é aplicável em um passo fenomenológico, e a produção de um campo clínico inconsistente e contraditório consigo mesmo. É necessário, então, esclarecer esta relação. Esta questão foi, particularmente, uma preocupação no pensamento de Arthur Tatossian, psiquiatra francês de origem armênia (nascido em 1929 e morto em 1995), que teve um papel central no desenvolvimento da fenomenologia clínica na França. Ele manteve aberto, especialmente, o debate entre fenomenologia e psiquiatria no momento em que a psicanálise tinha um ugar dominante na França. Seulivro A Fenomenologia das Psicoses (1979) se mantém como a obra de referência da psiquiatria fenomenológica (Dastur, 2014) e é considerado um dos mais importantes livros fenomenológicos sobre as psicoses do pós-guerra na França. Tatossian desenvolveu uma psicopatologia e uma clínica fundada sobre o conceito de Lebenswelt (mundo vivido ou mundo da vida). E em referência às obras de Tatossian que queremos abordar aqui as relações entre fenomenologia filosófica e fenomenologia clínica. Com efeito, o autor destaca a importância de uma relação de implicação epistemológica e metodológica, que vai de encontro a uma simples relação de aplicação entre estes dois dominios. A RELAÇÃO ENTRE FENOMENOLOGIA FILOSÓFICA E CLÍNICA, DIFICULDADES E MAL-ENTENDIDOS Tatossian atribui as dificuldades da fenomenologia à sua maneira de penetrar no domínio clínico, pois ela parece mais uma contracorrente formal que perturba a hegemonia normativa com aquela com que estava habituada a compreender a ciência. Neste sentido, ele escreve: "A fenomenologia não se interessa pelas realidades como tais, mas com as suas condições de possibilidades, e então ela não começa senão após haver, de uma ou de outra forma, praticado a redução fenomenológica, que suspende a atitude natural e suas afirmações" (Tatossian, 1979/2002, p. 14). Com efeito, a redução fenomenológica consiste em suspender nossas crenças ingênuas e juízos sobre o mundo, e visa a evitar que o clinico sucumba à ilusão instrumental, classificatória e estatistica (Lantéri-Laura & Grenouilloux, 2005), ainda que a consideração de Merleau-Ponty seja sempre válida: "O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa" (Merleau-Ponty, 1945/1992). Mas, então, se ela não pode ser completa, quais seiam sua importancia e sua necessidade? Abordamos, aqui, um ponto filosófico e metodológico central de um grande potencial olinico, na medida em que a redução fenomenológica pode ser uma ferramenta preclosa para a compreensão do vivido dos pacientes. Para nós, dois argumentos podem justificar sua importância e sua necessidade. o primeiro, numa ótica clínica, permite insistir no que a redução pode produzir no encontro clínico: na medida em que o clínico tenta manter distância suas Pções prévias, ele pode se aproximar muito mais livremente do fenômeno ue se apresenta a ele, sem se apegar em excesso nem à teoria nem às impressões prévias. Este argumento justifica o uso da redução como artificio metodológico para permitir acesso à experiência. O segundo argumento é que a redução fenomenológica é um freio às tentações classificatórias que, com frequência, enclausuram os pacientes em quadros nosográficos rigidos nos quais eles se mantêm presos. Quando Tatossian afirma que o movimento da redução fenomenológica dá condição a uma critica da razão psiquiátrica" (Tatossian, 1986), ele reconhece a potencialidade da reduçäão para manter o clinico frente aos conteúdos que se mostram a ele. A redução permite evitar a classificação induzida por inferências que tornam impossível o encontro clínico autêntico e a compreensão do vivido dos pacientes. Uma fenomenologia clinica sem a redução ou mesmo somente a tentativa de a praticar não é possivel, pelo menos aquela proposta por Tatossian: ela é, ao mesmo tempo, sua condição de possibilidade e de dificuldade Mas estes argumentos seriam admissiveis se a redução fenomenológica completa fosse possivel? 0 fato de que ela não possa jamais ser completa não significa, no entanto, uma falha do método, porque ela resulta de nossa inegável conexão com o mundo. Dito de outro modo, como sujeitos mundanos, não podemos nos afastar completamente do mundo, pois somos este mundo e, de certa maneira, somos constituidos por todas as nossas experiências, tanto paelas do cotidiano quanto pelas que fazemos como clinicos. Esta condição de ser-no- mundo é, ao mesmo tempo, o que nos permite uma proximidade com os outros e com nossos pacientes. Ela põe em evidência o que nos é comum, o que é universal. Mas ela mostra também tudo o que deveria ser necessário para poder afastar para permitir a aparição da dimensão subjetiva. Como resultado, somos confrontados com um paradoxo, cuja origem é o resultado de uma proposição fenomenológica da clínica. Apesar da necessidade e da importância da redução fenomenológica, dizer simplesmente e de forma ingênua que se deveria pôr entre parênteses todos os nossos conhecimentos não é suficiente para construir um ponto de vista fenomenológico da clínica: isto seria um mal-entendido ligado à tentativa de aplicar a fenomenologia a um contexto que não é o seu. Aqui, há um verdadeiro paradoxo, cuja solução poderia ser encontrada numa compreensão da ambiguidade (Tatossian, Moreira, Chamond et coll., 2016). Esta posição, Tatossian Sustenta, a partir de sua compreensão da filosofia fenomenológica, essencialmente pelo conceito de Lebenswelt de Husserl e pela fenomenologia da ambiguidade de Merleau-Ponty, bem como a partir de sua grande experiência clínica. Ela está no centro de sua proposição, da qual não se pode senão destacar a originalidade. Na verdade, o ponto de vista de Tatossian consiste em constatar nossa condição mundana em sua integralidade e, ao mesmo tempo, em defender a necessidade de tentar nos livrar de todos nossos juízos e análises prévios. O ambíguo reside neste duplo e incessante movimento de estar com este sujeito em sua singularidade e também de reconhecer nossa inegável condição de sujeito do mundo composto de sua história, de seu saber, de seus valores, de seus juízos etc. Esta compreensão é oposta à teoria sistemática da psicoterapia ou da psicopatologia, pois "a fenomenologia recusa todo prejulgamento eo sistema de resultados de uma psico(pato)logia fenomenológica seria um também" (Tatossian, 1979/2002, p. 15). A abordagem fenomenológica clinica recusa os dogmas, as verdades ou as sistematizações estritas. Sua meta é, ao contrário, alcançar a experiência propriamente fenomenológica da doença mental, o que apenas se torna possivel com o recurso à redução fenomenológica. Conforme Tatossian, nenhuma fenomenologia autëntica pode ser "a aplicação" à situação intersubjetiva atual de um esquema "teórico" preestabelecido e seu trabalho deve sempre ser feito a novos custos e sem preconceitos. E por isso que a fenomenologia compreende a "teoria como uma forma de práxis e prática como teoria traduzida em obra" (Tatossian, 1994, p. 313). A fenomenologia não é uma aplicação trivial de uma teoria flosófica, mas antes uma forma de "questionamento" e de investigação da compreensão do doente mental (Tatossian & Samuelian, 2002). Tatossian reconhece o caráter precioso e mesmo necessário da fenomenologia filosófica, mas ele não poderáà jamais substituir o trabalho fenomenológico efetuado pelo clínico. Tomar a fenomenologia como base da clínica põe o clínico na posição de sempre questionaro paciente e se questionar a si mesmo sobre os fenômenos que se apresentam. Na medida em que estes questionamentos não existam mais, somos confrontados com as verdades supostamente inegáveis que, no domínio clinico, não são nem suficientes nem fenomenológicas. Entre os mal-entendidos, a falta de delimitação clara entre estes dois domínios leva a equívocos e produz práticas clínicas confusas, que omitem-se de se explicar sobre o tipo de relações estabelecidas com a fenomenologia filosófica. Uma outra dificuldade reside na diversidade das fenomenologias específicas, nas quais podemos nos inspirar, sem alcançar a síntese de cada uma destas perspectivas. Estas diferentes fenomenologias filosóficas nos dão, efetivamente, recursos para trabalhar a fenomenologia clinica, constituindo sua base epistemológica. No entanto, é necessário sempre lembrar que a condição para que a fenomenologia possa fornecer postulados práticos é que elanão contradiga sua própria natureza (Madioni, 2004). Observamos as consequências resultantes da falta de distinção clara entre fenomenologia filosófica e fenomenologia clinica, como a tecnicização da segunda para se destacar da primeira. Quando a fenomenologia filosóficaé utilizada somente como recurso metodológico, ela perde muito de seu valor epistemológico e filosófico, tornando-se um simples pragmatismo. Por sua vez, a fenomenologia clínica não é, não se propõe e não deve ser uma aplicação da fenomenologia filosófica. Diferentes noções filosóficas surgem durante a experiência fenomenológica e não simplesmente como reflexões sobre a experiência. Dito de outro modo, é a partir da clínica, do contato com os pacientes, que as noções filosóficas podem ser úteis. Tatossian vê nela a maneira pela qual o clínico se define e que ele deve usar como ponto de partida. Isto o orienta em direço a um posicionamento, que é o de não se enclausurar diante do que é considerado como o mais importante para a fenomenologia: a experiência. Isto não quer dizer que a teoria não seja importante, mas que ela não pode se sobrepor aos dados que se apresentam clinicamente. E necessário sempre retornar o mais próximo possivel da experlêncla: é o movimento proposto a partir da construção da fenomenologia, quer ela seja filosófica ou clínica. Quando falamos da clinica, é certo que há diferenças, por exemplo, entre uma clínica psiquiátrica e uma psicoterapla, mesmo se ambas tenham recorrido à fenomenologla em seu campo clínico. Os objetivos não são os mesmos, mas há sempre um encontro clínico com o paclente presente nestas duas situações clinicas. O olhar fenomenológico na clínica é, ao mesmo tempo, complexO e ingênuo, na medida em que o clínico deva assumir uma atitude fenomenológica em cada novo encontro, ou seja, "uma operação interminável" (Madioni, 2004). A fenomenologia se recusa a seguir uma lógica explicativa da vida subjetiva, buscando uma via compreensiva (Benvenuto, 2006). No campo clínico, trata-se de uma construção permanente; ou seja, que, no projeto da fenomenologia clinica, é necessário seu inacabamento como condição de possibilidades. E uma posição dificil, que exige estabelecer bem a relação entre as fenomenologias filosófica e clínica. ARELAÇÃO DE IMPLICAÇÃO ENTRE AS FENOMENOLoGIAS FILOsÓFICA E CLÍNICA Tatossian propõe um ponto de vista particular da relação difícil entre fenomenologia clinica e fenomenologia filosófica. Quando a fenomenologia entra no domínio da clínica, isto significa uma maneira de trabalhar em fluxo, pois ela não permite uma compreensão estática; ou seja, que ela assume uma posição sempre atenta ao que se apresenta na experiência fenomenológica. Isto demanda uma relação entre as fenomenologias que ultrapassa a. simples aplicação. Tatossian concebe a fenomenologia filosófica a partir de uma demanda emergente no contato e na experiência com o paciente e servindo, assim, de inspiração. Ele considera que, para alcançar a experiência fenomenológica, o clínico "deve preferir obrigatoriamente o trato direto como que está em quest�o: a loucura e o louco" (Tatossian, 1979/2002, p. 18). Como resultado, as noções filosóficas não devem jamais serem postas como uma reflexão fenomenológica sobre a experiência, mas emergir no como e na medida em que a experiência se apresenta. Não se trata de uma reflexão sobre sua experiência vivida, sobretudo durante o momento do encontro clinico, mas de uma implicação em direção à consideração de suas experiências tais como elas surgem. A relação de implicação entre as fenomenologias filosófica e clínica, proposta por Tatossian, significa o estabelecimento de uma base sólida, permitindo um olhar especfico sobre a experiência. Trata-se de um lugar de inquietude e de questionamento. Estar implicado significa estar engajado; ou seja, se manter em coerência com a base sobre a qual nós n0s propomos a trabalhar. Este engajamento é a condição do compartilhamento entre o clínico e o paciente, criando a dimensão intersubjetiva de um encontro. Como escreve Tatossian (1979/2002), "a fenomenologia não se caracteriza por seu modo de responder, mas por seu modo de questionar a doença menta" (p. 225). Suas questões são produzidas no contato comno paciente e a partir dos fenomenos que ali se apresentam. Ele continua: "A experiência, aqui, não é um ponto de partida do trabalho psiquiátrico, mas um objetivo, não um terminus a quo, mas um terminus ad quem. E neste sentido que a fenomenologia é uma 'escola da experiência" (Tatossian, 1986, p. 129). E necessário precisar as expressões "questionar a doença mental" e "a escola da experiência". A primeira, frequentemente utilizada por Tatossian, nos reenvia a dois sentidos relacionados. O primeiro destaca a importância de formular precisamente questões ao paciente para que ele possa revelar e exprimir seu vivido o melhor possivel. O segundo acentua a necessidade de pôr a doença mental em dúvida. Dito de outro modo, duvidando, podemos, ao mesmo tempo, permitir a livre expressão das experiências e a inflexão, a partir do que se mostra, seja em direção 'confirmação" do que se compreènde como doença mental, seja em direção à recomposição a partir do que se.apresenta. Nesta perspectiva, a experlência ultrapassa a investigação de um ponto de partida na compreensão da doença mental, pois ela está sempre em movimento e continua a se transformar e a trazer novos elementos para uma melhor compreensão do vivido do paciente. Quando Tatossian reconhece a fenomenologia e seu potencial clinico como uma "escola da experiência", ele quer dizer que ela não está fechadae hUma fronteira a partir da qual (N.T.). 'Uma fronteira pela qual (N.T.). não se orienta em função dos elementos previamente dados, mas que ela se compoe com a experiência, "aprende" com a experiência. A experiência do paciente nos ensina sempre alguma coisa e, para que isto seja possivel, o clíinico deve estar disponível e sempre aberto à possibilidade de reformular seus conceitos. Este questionamento toca verdadeiramente nas relações entre teoria e prática e pode se configurar como uma das dificuldades atuais do fenomenóiogo clínico. Isto pode ser uma configuração evidente, mas muitas vezes ignorada diante das demandas imediatas e práticas. A diferença entre as fenomenologias filosófica e clínica é que esta concepção se apresenta como condição de possibilidade de um caminho verdadeiramente fenomenológico. O PARADoxO ENTRE TEORIA E PRÁTICA Tatossian pensa que há, de fato, na abordagem fenomenológica, um entre teoria e prática. Por um lado, a psiquiatria fenomenológica "aceita ou mesmo reivindica como ponto de partida o sentido propriamente cientifico do conhecimento do homem doente mais do que um sentido prático da ação terapêutica" (Tatossian, 1980, p. 59) e, por outro lado, não se sabe ou não se quer limitar esta teoria fenomenológica por uma prática especifica fechada. Então, há uma "recusa clara de toda teoria, de todo prejulgamento na relação do homem doente. (..) A experi�ncia concreta não é apenas seu ponto de parida, mas igualmente seu ponto de chegada, e se apresenta como simples práxis" (Tatossian, 1980, p. 59). Para Tatossian (1997a), a teoria e a prática estão sempre em statu nascendi, pois elas são sempre construidas entre o fato clínico e o paciente, o que, para ele, estabelece "a importância decisiva da constituição: da vida cotidiana do mundo e da realidade pela prática psiquiátrica" (p. 181). Teoria e prática se fundam numa unidade fenomenológica, numa experiência, na qual "sujeito e objeto, Eu e Mundo, Eu e Outro, não estão ainda isolados e opostos, e esta experiência é preobjetiva e pré-teórica, no.que Husserl denominou de 'mundo da vida' (Lebenswelt" (Tatossian, 1980, p. 61). Cada doente impõe novamente reinventar a teoria e transformar a prática em teoria.Neste sentido, a teoria, em fenomenologia, funciona como uma tentativa de evitar a "submissão Estado de gestação (N.T.). despercebida dos prejulgamentos teóricos: ela é, assim, sempre prática como 'escola da experiência'. A relação entre teoria e prática, ou melhor, entre os dois aspectos que mantemos relacionados, aqui, é, então, de implicação e não de aplicação" (Tatossian, 1980, p. 62). Assim, podemos constatar que a relação entre as fenomenologias filosófica e clinica é de implicação, mas que a relação entre teoria e prática também o é. No pensamento clínico de Tatossian (1980; 1986; 1997a; 1979/2002), não parece haver uma delimitação clara entre teoria e prática, mas antes um entrelaçamento destes aspectos igualmente necessários, que são ferramentas fundamentais para compreender a doença mental e implementar práticas clinicas. Deve-se também acrescentar que, na prática clínica de Tatossian, esta concepção não tinha por consequência o desprezo pelo uso de medicamentos. Ele prescrevia medicamentos, mas sempre de uma maneira critica, em diálogo com os pacientes no seu cotidiano. Para Blankenburg, cujas obras sobre a psicose levaram às mesmas conclusöes que Tatossian (Azorin, Naudin & Pringuey, 2002), a ideia inicial da ausência de relação interna entre a teoria (fenomenologia) e a prática, indiferente uma à outra, estava ultrapassada. De acordo com ele, "não se pode dizer que uma concepção teórica nasce sem qualquer referência a uma certa prática (por exemplo, na relação com as doenças psíquicas); e, por outro lado, a longo prazo, uma concepção teórica não permanece jamais sem consequência sobre a prática (Blankenburg, 2009, p. 142). Podemos perceber, aqui, uma convergência entre estes dois autores contemporáneos da psicopatologia fenomenológica. A posição tomada por Tatossian de assumir uma relação de implicação-e não de aplicação entre teoria e clinica tem por consequência dar à liberdade uma importäncia capital. Trata-se sempre de permitir a abertura de possibilidades no domínio clinico e de poder ouvir o paciente, como afima Tatossian (1997b) como subjetividade ou possibilidade de subjetividade. Quando a teoriaé estática, ela não pode senão compreender o paciente de uma maneira heterônoma. Desta forma, ela não dá conta da experiência fenomenológica (Moreira & Bloc, 2016). E necessário ir além do sintoma, sem o esquecer, e alcançaro fenômeno como modo de ser global do paciente (Tatossian, 1979/2002), como estilo existencial, capaz de mostrar as particularidades do vivido, mas também seu vínculo indissociável com o mundo. A fenomenologia clínica consiste na compreensão do fluxo experiencial. Então, é sempre necessário duvidar do que já está posto, pois a experiência humana deve ser compreendida em seu próprio movimento cotidiano. O constante questionamento do lugar do homem no seio da psicopatologia é propriamente a meta da pesquisa fenomenológica. A experiência do sujeito requer a possibilidade de que a teoria seja, a cada vez, recomposta (Moreira& Bloc, 2016; Wolf-Fédida, 2007). Para Tatossian, o método fenomenológico tem como mérito restabelecer a riqueza da experiência pré-cientifica do Lebenswelt e suprimir a indistinção entre a teoria e a prática, mas sem a amputá-la do essencial, como o faz a psicologia positiva: "Ameta não , então, construir teorias a partir da experiência, mas criar um novo modelo de experiência, se necessário, pelo intermédio de teorias" (Tatossian, 1979/2002, p. 81). Esta argumentação mostra que Tatossian quer se distanciar do uso da teoria como pura técnica, ou seja, como aplicação prática, e destacar o aspecto dinâmico na compreensão da constituição mútua da teoria e da prática. Quanto mais as práticas clínicas se tornam técnicas, mais elas se distanciam da fenomenologia. Esta crftica destaca o uso inapropriado e indiscriminado de um saber prático pouco conectado com a experiência do sujeito e suas demandas uma pura repetição e reprodução de modelos. Para Tatossian (1980), a noção de técnica está ausente da fenomenologia, na medida em que ela "implica uma manipulação do homem pelo homem" (p. 62-63). Além disso, "uma abordagem que não prejulga nada e pretende restaurar: em cada momento.o: que ela encontra demonstra uma mobilidade que ameaçaria o componente técnico de uma psicoterapia" (p. 63). Poder-se-ia admitir o uso de uma técnica clínica senão num sentido ligado a um método com. suas ferramentas para permitir as intervençóes e a facilitação do.processo clínico. No entanto, quando esta técnica é posta como reprodução acrítica de um suposto saber teórico, ela perde seu escopo e seu papel clínico. Poderiamos adiantar que, segundo Tatossian, não existiria uma clara delimitação entre teoria e prática, o que é fundamental na compreensão da doença mental, mas igualmente na elaboração de uma clínica fenomenológica. O ponto central é, acima de tudo, a experiência. Psicopatologia e clínica são, assim, entrelaçadas numa lógica que não permite as dicotomias entre teoria e pratica, entre singular e universal, entre homem e mundo. Trata-se de um trabalho ambliguo situado na interseção da psicopatologia fenomenológica e da clínica, constituida pela experiência do paciente. A prática clinica revela sempre a singularidade de cada paciente, mesmo após o diagnóstico ou no caso de sintomas referentes a distúrbios especificos (Moreira & Bloc, 2016). Teoria e prática são compostas e recompostas, assim, pela experiência, redistribuindo a relação sujeito-objeto-sujeito. Isto põe o sujeito em cotato com a psicopatologia segundo uma dialética estruturante pela experiência pré- cientifica (Tatossian, 1979/2002). É necessário considerar a objetividade de um vivido, que seja concebido como psicopatologia e já estabelecido teoricamente, bem como o fuxo da experiência, que impede um enrijecimento numa objetividade pura. Para Tatossian, há um mal-entendido persistente, que consiste em pensar que a fenomenologia propõe uma teoria do homem em geral e do homem doente em particular, pronta a ser aplicada. Esta aplicação é um equívoco próprioà fenomenologia. O encontro clínico ocupa um papel central na consideração da experiência do paciente num duplo sentido: objetivoe subjetivo. Pode-se dizer que tudo está posto por esta experiência. Ela é objetiva no sentido em que pode ser comparada com outras patologias na sua construção mundana, quantificada ou ainda compreendida a partir de experiências anteriores do clínico. Mas ela é também subjetiva, no sentido em que ela permite reconhecer a singularidade de cada paciente, seu movimento existencial e suas próprias possibilidades. Diante de um paciente psicótico, por exemplo, não estamos apenas com a psicose. Estamos com ele e com a psicose. Para designar alguém como psicótico, é necessário ter referências anteriores, evidências para afirmar isso. Por outro lado, esta conclusão não é possivel sem o paciente. Trata-se de trabalhar na interseção dao empirismo da experiência, que se mostra, sobretudo, na clínica, e da teoria, um tipo de a priori construido para compreender psicopatologia. o que demonstra a ambiguidade e também a dificuldade da relação entre teoria e prática proposta por Tatossian- uma autêntica ancoragem fenomenológica da clinica. Seu diálogo e sua mútua constituição säão irrefutáveis e dão a condição de uma verdadeira fenomenologia clínica. A titulo ilustrativo, recorremos à tese de doutorado defendida por Tatossian, Estudo Fenomenológico de um Caso de Esqulzofrenla Paranoide (1957/2014), recentemente republicada, que propões uma compreensão fenomenológica da existência esquizofrênica de Hélène Jacob. Esta tese inovadora, primeiro estudo fenomenológico francés de um caso de esquizofrenia (Darcourt & Tatossian, 2014), demonstra, desde o inlcio de sua carreira, a amplitude de conhecimentos fenomenológicosde seu autor e seu uso como alternativa teórica e clínica à psiquiatria, na segunda metade do século XX, num momento no qual a fenomenologia clínica era pouco utilizada na França. Em razão da densidade e da amplitude deste caso, vamos destacar apenas alguns pontos que se relacionam à nossa discussão sobre a teoria e a prática de Tatossian. Sua tese é dividida em duas partes, uma descritiva e uma análise fenomenológica do caso, e Tatossian (1957/2014) se recusa a produzir uma análise do caso afastada do sentido clínico de um encontro: "Nós aceitamos, com prazer, que a análise de Hélène seja preferencialmente interpretada como uma análise de nosso encontro com ela" (p. 53). O encontro é sustentado por uma reciprocidade essencial que "não é de forma alguma um nivelamento do ego e do alter ego, bem ao contrário; o encontro não postula a fusão dos dois mundos confrontados, mas simplesmente a atualização de sua coexistência" (Tatossian, 1957/2014, p. 61). Ele insiste na importância de não visar o ente como coisa, pois isto implicaria o abandono de qualquer projeto de sentido. Quando ele aborda, por exemplo, a gravidez "imaginária" de Hélène, ele rejeita sua interpretaçãoe as conclusões prévias sobre esta: experiência, tudo isso visando a que "o sentido saia do registro existencial, no movimento da existência (Tatossian, 1957/2014, p. 56-57). Para vislumbrar o modo de ser de Hélène, é necessário compreender seu movimento. Seu delírio se mostra como sintoma visível, mas ele deve ser compreendido também como fenômeno, ou seja,.como modo de funcionamento que atinge a totalidade de Hélène numa experiência fenomenológica, composta pelas significações e os vividos. Não se trata de dispor causalmente os "fatos objetivos", mas buscar um "sentido de ser, um estilo existencial cuja emergência nos domínios da memória ou da linguagem é também täo original quanto naquele da percepção 'atual'. O vivido fenomenológico não conhece o 'estilo indireto" (Tatossian, 1957/2014, p. 75). O não-reconhecimento de um estilo indireto significa que ele sustenta uma clinica na qual 'a única compreensão posslvel é fenomenológico-ontológica" (Tatossian, 1957/2014, p. 75), Ou seja, que se estabelece nesta investigação de um sentido que se mostrará na relaç�ão construlda num terreno compartilhado entre o paciente e o médico. Segundo Tatossian (1957/2014), "nosso problema é a comunicação com a 'pessoa" (p. 76), e esta comunicação é implementada por meio da redução como atitude para a revelação do vivido do paciente, tornando possível sua compreensão. Abandonando a attude natural para adotar uma atitude fenomenológica, visa-se à experiência como fluxo, como possibilidade, dimensão amplamente valorizada por Tatossian. Num texto sobre o uso da redução fenomenológica em psiquiatria, escrito em homenagem a Tatossian, Naudin, Pringuey e Azorin (1999), discipulos de Tatossian e continuadores da tradição fenomenológica em psiquiatria no sul da França, fazem uma analogia entre a redução e o ato de piscar os olhos. Este ato permitiria a aparição, num instante, de uma realidade despojada de prejulgamentos. Não se trata de duvidar da existência de uma coisa, mas de faze-la "simplesmente reaparecer como se a tivéssemos perdido de vista por um instante, por assim dizer, neutralizada (.) É necessário ainda sermos capazes de nos surpreender (p. 612). A partir deste ponto de vista, a teoria em psicopatologia continuaria a funcionar como uma referência, mas suas concepções prévias poderiam variar frente a cada paciente ou mesmo serem recriadas no momento de um encontro (Naudin, Pringuey & Azorin, 1999). Sem surpresa, não há abertura ao que pode se apresentar como novo ou diferente. Como resultado, poderlamos compreender que a fenomenologia clinica de Arthur Tatossian está, como sempre, em construção, pois ela está sempre fundamentada na experiência, no movimento mesmo da experiência. Não há uma intenção de ser definitiva, fechada ou ainda exata. A base epistemológica, que orienta sua direção clínica, configura-se como a condição de possibilidade desta compreensão. cONCLUSÃO Em razão das diferentes fenomenologias filosóica e clínica, Tatossian nos apresenta um fio condutor para compreender melhor como fazer uso destas orientações tão próximas quanto opostas. A psicopatologia como teoria não pode ser separada da clinica, pois se consttui a partir dela. Ao mesmo tempo, a criação de um discurso teórico sobre o vivido psicopatológico contribui para compreender melhor o vivido do paciente e para se aproximar de sua experiência, sempre mantendo uma atitude fenomenológica. Em toda sua vida, Tatossian elaborou uma psicopatologia da clínica e para a clínica. Para tornar isto possível, é necessário manter a posição de abertura e de implicação entre elas. Isto não representa uma mistura, mas uma troca induzida pela maneira pela qual a clínica é constitulda. Como se trata de uma escola da experiência, as fenomenologias estäo sempre disponiveis à experiência que, sozinha, é capaz de refundar o que aparentemente era evidente. A proposição de investigare de aprender a partir da experiência não significa não buscar a resposta, mas não se habituar nem se contentar com ela. Em nossa opinião, esta posição assumida por Tatossian traz uma dimensão ética fundamental na medida em que ela dá prioridade à consideração do outro e de seu vivido, que se localiza a montante do fenômeno que se mostra - dimensão originária e indispensável de toda fenomenologia clínica. REFERÊNCIAS Azorin, J.-M.; Naudin, J. & Pringuey, D. (2002). Préface, dans A. Tatossian. La phénoménologie des psychoses [1979]. Paris: Le Cercle Herméneutique, p. 9 12 Benvenuto, S. (2006). Le projet de la psychiatrie phénoménologique. L'évolution psychiatrique, 71, p. 11-29 Blankenburg, W. (2009). Sur le rapport entre pratique psychiatrique et phénoménologie, dans P. Fédida & M. Wolf-Fédida. Phénoménologie, psychiatrie, psychanalyse. Paris: Le Cercle Herméneutique, p. 133-140. Charbonneau, G. (2010). Introduction å la psychopathologie phénoménologique. Tome I. Paris: MJW Fédition. Darcourt, G. & Tatossian, J. (2014). Présentation, dans A. Tatossian. Psychiatrie phénoménologique. 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