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TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIA: fundamentos históricos, teórico-metodológicos e técnico-operativos TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIA: fundamentos históricos, teórico-metodológicos e técnico-operativos Solange Maria Teixeira 2017 FICHA CATALOGRÁFICA Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco T266t Teixeira, Solange Maria. Trabalho social com família: fundamentos históricos, teórico- metodológicos e técnico-operativos / Solange Maria Teixeira. – Teresina: EDUFPI, 2017. 182 p. ISBN: 978-85-509-0289-0 1. Família. 2. Trabalho Social. 3. Assistência Social. 3. Políticas Públicas. I. Título. CDD 362.82 EDITORAÇÃO ELETRÔNICA John Kennedy Costa Pereira UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ Reitor José Arimatéia Dantas Lopes Vice-Reitora Nadir do Nascimento Nogueira Superintendente de Comunicação Jacqueline Lima Dourado Editor Ricardo Alaggio Ribeiro EDUFPI - Conselho Editorial Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente) Acácio Salvador Veras e Silva Antonio Fonseca dos Santos Neto Cláudia Simone de Oliveira Andrade Solimar Oliveira Lima Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz Viriato Campelo Editora da Universidade Federal do Piauí - EDUFPI Campus Universitário Ministro Petrônio Portella CEP: 64049-550 - Bairro Ininga - Teresina - PI - Brasil Todos os direitos reservados À minha filha Larissa, no desabrochar de sua feminilidade; Ao meu companheiro de vida, Maurício Reis. Amo vocês! “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” (Eduardo Galeano) SUMÁRIO Prefácio ................................................................... 13 1INTRODUÇÃO ...................................................... 17 Primeira Parte: Trabalho Social com Família: aspectos conceituais, históricos e teórico-metodológicos 2 TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS: ASPECTOS CONCEITUAIS ........................................................ 23 2.1 Categoria trabalho e processo de trabalho .......................... 23 2.2 TSF: a construção de um conceito ..................................... 33 2.3 Finalidades do trabalho social com famílias ....................... 35 2.4 Finalidades do trabalho social com famílias na política de Assistência Social .............................................................. 38 2.5 As possibilidades e limites da ruptura com a alienação do trabalho ................................................................................. 44 3 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DO TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS ....................... 49 3.1 Fundamentos teórico-metodológicos e as repercussões no trabalho social com famílias. ............................................. 50 3.1.1 Referencial positivista/funcionalista e sistêmico............. 51 3.1.2 Trabalho com famílias iluminado por esta perspectiva teórico-metodológica. ............................................................ 55 3.1.3 Teoria sistêmica ............................................................ 56 3.2 Referencial marxista-histórico dialético ou da teoria crítica .................................................................................... 59 3.3 Trabalho social com famílias na perspectiva crítica/protetiva .................................................................... 67 4 TRAJETÓRIA HISTÓRICA E ATUALIDADE DO TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS: O CASO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL ............................................. 73 4.1 Política social e a tradição histórica do trabalho social com famílias .......................................................................... 74 4.2 Centralidade na família e as novas perspectivas de trabalho social com famílias ................................................................ 78 4.3 Contradições da política de Assistência Social contemporânea ...................................................................... 82 4.4 Desvio de alvo da assistência social: problemas com a teoria dos vínculos .......................................................................... 90 Segunda Parte: Trabalho Social com Família: aspectos técnico- operativos 5 TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS EM BASES CRÍTICAS: TRABALHO EM REDE E TRABALHO SOCIOEDUCATIVO EMANCIPATÓRIO ...................... 99 5.1 Enfrentamento às situações de vulnerabilidades e riscos sociais pelo trabalho em rede ................................................ 102 5.2 Trabalho socioeducativo com dimensões emancipatórias . 110 5.3 A dimensão socioeducativa do TSF na proteção social básica .................................................................................. 113 5.4 A dimensão socioeducativa do TSF na proteção social especializada .............................................................. 118 5.5 TSF: limites e possibilidades na atual conjuntura ............. 121 6 POTENCIALIDADES DO TRABALHO EM GRUPO NO TSF ....................................................................... 131 6.1 A predominância de abordagens individualizantes nos processos de trabalho das políticas sociais ............................. 132 6.2 As contradições e tensões do desenho da política de Assistência Social ................................................................ 141 6.3 Trabalho com grupos numa perspectiva crítica na Psicologia e Serviço Social ................................................................... 148 6.4 Grupo como estratégia do TSF: aspectos técnico-operativos ................................................................ 156 CONCLUSÃO ........................................................ 169 REFERÊNCIAS ............................................................ 14 PREFÁCIO O direito à assistência social, inscrito e formalizado mediante normativa constitucional, como ocorreu em 1988 no Brasil, expressou a intensa mobilização dos movimentos sociais no sentido de romper com as ações voluntaristas, caritativas e beneméritas que historicamente marcaram a assistência social. O percurso [mesmo de percalços] para constituir este direito social colocou em movimento uma estrutura organizada ao longo dos últimos 30 anos. É inegável a dimensão assumida pela Política de Assistência Social, expressa por seus serviços, programas, população atendida, equipamentos, quadro técnico profissional, assim como também o é suas contradições. Dentre as quais está aquela que envolve sua intrínseca relação com a família. A assistência social protagonizou a retomada da centralidade da família na Política Social brasileira gerando dois vieses nessa aproximação. De um lado apontou a necessidade de abarcar conhecimento científico e técnico para as ações desenvolvidas com as famílias, irrompendo com um trabalho historicamente caracterizado pelos valores morais e pelo senso comum. De outro, abriu espaço para ações voltadas à perspectiva racionalizadora, com enfoque na focalização do atendimento às famílias extremamente pobres, aonde a solução para a situação de pobreza encontra- 15 se no fortalecimento da própria família em proteger/cuidar os seus. As tensões advindas dessa relação contraditória [família e assistência social] se refletem no desenvolvimento do trabalho social com família. E encara-las, a partir da perspectiva crítico-dialética, é o objetivo da presente obra “Trabalho social com família: fundamentos históricos, teórico- metodológicos e técnico-operativos” da reconhecida pesquisadora Solange Maria Teixeira. Ao analisar os fundamentos históricos, teórico- metodológicos e técnico-operativos do trabalho social com família na assistência social provoca-nos a refletir sobre os referenciais que embasam tanto a intervenção dos profissionais quanto a direcionalidade dessa política social, expressanos serviços e programas específicos. As contrarreformas voltadas às políticas sociais, estabelecidas pós golpe parlamentar de 2016, atingem sobremaneira a assistência social através do ataque direcionado ao desfinanciamento dos serviços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Considerando que o Sistema é uma construção recente e os serviços ofertados ainda não possuem a capilaridade necessária para enfrentar as situações de vulnerabilidade social impostas pelos limites orçamentários dados pela Emenda Constitucional n. 95/ 2016, vislumbra-se a tendência de se colocar em risco os avanços obtidos na área desde a Constituição Federal de 1988. A clareza das disputas societárias, onde, pelo projeto neoliberal se reforça o pluralismo de bem-estar, exigindo uma família participativa, com vínculos fortalecidos e disposta a assumir ao máximo sua capacidade 16 protetiva é o desafio dos profissionais no cotidiano do trabalho social com famílias. Os profissionais que atuam nas políticas sociais são chamados ao esforço de desvelar a realidade, criando fundamentos para ressignificar a prática profissional em consonância aos princípios da ética e da justiça social, defendidos por seu projeto profissional – no caso dos assistentes sociais, seu Projeto Ético-Político Profissional. Este livro se constituirá num importante referencial aos profissionais que desenvolvem o trabalho social com famílias, não somente na Política de Assistência Social, mas nas demais políticas públicas. Primeiro por sistematizar um debate fundamental, às profissões interventivas, como é o caso do Serviço Social, que no seu decurso histórico relegou este debate a segundo plano, o que se refletiu na escassez de produções sobre o tema. Segundo pela lógica propositiva em pensar o trabalho social com família para além da dimensão do atendimento individual, na perspectiva do trabalho socioeducativo emancipatório. O esforço empreendido nesta obra é justamente oferecer aos interessados no debate da família e das formas de intervenção com famílias, uma problematização a partir de bases críticas a fim de enfrentar a retomada de posturas conservadoras. “Afinal, as instituições públicas ou não, continuaram sendo o grande campo de trabalho para os assistentes sociais e nelas as famílias continuaram como sujeitos privilegiados de intervenção” (Mioto, 2010, p.166)1. Enfim, trata-se de um livro que instiga reflexões, inspira ações e contribui para reavivar a importância de seguir 1 Mioto, R. C. T. Família, trabalho com famílias e Serviço Social. Serviço Social e Revista, Londrina, v. 12, n.2, p. 163-176, 2010. 17 pensando sobre a intervenção profissional nas políticas sociais, com destaque para aquelas que envolvem as inúmeras famílias usuárias dos serviços sociais brasileiros. Florianópolis, 10 de fevereiro de 2018. Keli Regina Dal Prá Professora da Universidade Federal de Santa Catarina 18 1 INTRODUÇÃO O trabalho social com família é um trabalho profissional, técnico e especializado desenvolvido por equipes interdisciplinares no contexto do processo de trabalho nas políticas sociais. É um trabalho fundamentado de modo ético, teórico-metodológico e técnico-operativo. A finalidade desse trabalho é tensionada pela direção da política com suas diretrizes e princípios, que se materializam em serviços, programas e benefícios, bem como pelo projeto profissional dos trabalhadores da política. Esse projeto profissional, como destacam Mioto e Lima (2009, p. 36), “expressa uma direção ético-política calcada em uma determinada matriz teórico-metodológica e que orienta os profissionais,” segundo as autoras ele está fundado na defesa de um projeto societário. “Expressa os valores que condicionam a finalidade das ações profissionais”. (Idem). Essa tensão é possível por causa da relativa autonomia profissional, do caráter contraditório das políticas sociais e dos interesses nelas envolvidos, além dos impactos desta na reprodução social. Aqui a reprodução social não é entendida apenas como manutenção, conservação, reforço e busca de consensos para a manutenção da ordem, mas também como espaço de contra-hegemonia, formação de uma nova cultura ou projeto hegemônico alternativo. A reprodução social não é apenas material, é também imaterial e ideopolítica. 19 Como ressalta Iamamoto (2003, p. 64), “[...] falar em consenso diz respeito não apenas à adesão ao instituído, é consenso em torno de interesses das classes fundamentais, seja dominada ou dominante”, ou seja, continua a autora, “contribuição na hegemonia vigente ou de uma contra hegemonia da vida social” (idem). Conforme Adriano e Borges (2016, p. 05), “a hegemonia pressupõe, assim, a conjunção de forças sociais capazes de projetar e construir ‘uma situação histórica global’ - isto é, o bloco histórico, com a mediação privilegiada dos intelectuais”. Esses intelectuais desempenham funções educativas e organizativas vinculadas a uma visão de mundo das classes em disputa. Ao atuar nos serviços da política (e tendo esta função de reprodução social), esse trabalho social dos profissionais com as famílias tem necessariamente uma dimensão socioeducativa, cuja direção depende das diretrizes e princípios da política, das instituições que executam seus serviços e/ou da fundamentação teórico- metodológica e ético-política que guiam os profissionais, que podem ser ou não similares. No desenho das políticas e seu corolário, nos programas, serviços e benefícios, evidencia-se a adoção de determinado referencial teórico-metodológico. Assim, nas políticas com centralidade na família, o trabalho social com família está embasado nesse referencial e condiciona o modo de inserir as famílias nos serviços, de compreendê-las, as expectativas sobre elas e suas funções, a forma de organizar os serviços, seus objetivos, metas e os impactos esperados. Goldani (2005) destacou que a política brasileira é “referida à família” e não “para a família” porque seu foco 20 são as funções familiares e sua potencialização. Outros estudos de Teixeira (2016) já apontaram a marca do familismo na política social brasileira, embora tenham destacado inovações significativas nessas políticas se comparadas ao seu passado. Considerando o papel preponderante das referências históricas e teórico-metodológicas, questiona- se: quais as principais matrizes teórico-metodológicas que podem e vêm fundamentando o trabalho social com família? Quais as implicações dessas referências na condução desse trabalho? O que é trabalho social com família? Como se deu sua trajetória histórica e as inovações atuais, em especial na política de Assistência Social? Quais seus aspectos técnicos e operativos? Quais instrumentos melhor expressam objetivos mais amplos e de emancipação? Nessa perspectiva, o trabalho social com família (doravante denominado pela sigla TSF) é o objeto de estudo e investigação desse livro. O objetivo geral foi analisar o TSF nos seus aspectos conceituais, históricos e teórico- metodológicos, além de apresentar uma proposta de trabalho a partir do referencial crítico-dialético, com sugestões da técnica de grupo por melhor expressar as potencialidades críticas desse trabalho. O livro é resultante da pesquisa, ainda em andamento, denominada “Trabalho social com famílias no âmbito da Política de Assistência Social: experiências municipais no Piauí”, na qual agregam-se orientandos de mestrado e doutorado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), de iniciação científica e trabalhos de conclusão de curso, que investigam diferentes realidades municipais no estado. Apresentam-se nesta obra os 21 resultados da investigação teórica que gerou como produto uma proposta de intervenção com a utilização do trabalho com grupos. Vale ressaltar que desde 2009, quando realizei o estágio pós-doutoral no Núcleo de pesquisa sobre família na PUC-SP, venho me dedicando a pesquisar sobre TSF e a política de Assistência Social. Os produtos dessas pesquisas estão publicados em vários periódicos, livros e anais de eventoscientíficos em Serviço Social e socializados em inúmeros minicursos, palestras, conferências, mesas- redondas, cursos de capacitação, dentre outros. Neste livro apresento aspectos pouco abordados na literatura, o TSF sob a perspectiva do projeto ético-político do Serviço Social. Assumo o desafio destacado por Mioto (2010) de demarcar tanto o foco de estudo sobre família que interessa ao campo do Serviço Social – enquanto profissão e área do conhecimento –, como a construção do debate em torno do trabalho com famílias ancorado nas premissas da teoria social crítica e do projeto ético-político da profissão. Considerando a (re)atualização nos processos de trabalho das políticas sociais, das demandas pelo TSF postas pela centralidade na família nas políticas, em especial na assistência social, tanto na proteção social básica quanto na especializada, um estudo sobre o TSF poderá contribuir muito para entender as direções desses trabalhos, sua fundamentação, conceitos e redirecioná-lo de forma cada vez mais consciente e racional. Além disso, contribui também para o acúmulo científico sobre a temática e sua difusão nos meios acadêmicos e das práticas profissionais. O método adotado nessa investigação foi o histórico-dialético, que “fornece as bases para uma 22 interpretação dinâmica e totalizante da realidade concreta, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser considerados isolados, abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais” (Gil, 1999, p. 32). O referido método possibilita apreender o fenômeno em seu trajeto histórico e nas suas relações com outros fenômenos, de maneira a perceber seu processo de transformação, suas contradições e potencialidades. Nesse sentido, o método crítico-dialético permite analisar os fenômenos estudados articulando e desvendando as relações entre singularidade, particularidade e totalidade, de tal modo que se chegue a um todo que é síntese de múltiplas determinações e supere o todo caótico de onde partiu a investigação, superando a imediaticidade e a aparência fenomênica do real. A pesquisa foi do tipo teórica, que, segundo Demo (2000, p. 20), “é dedicada a reconstruir teoria, conceitos, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos”, o que se pretendeu fazer nessa investigação. Os resultados dessa investigação foram organizados em 06 capítulos. O primeiro é essa introdução, na qual se apresenta a temática, a problematização, os objetivos e a metodologia da pesquisa. A primeira parte da obra, denominada “Trabalho Social com Família: aspectos conceituais, históricos e teórico- metodológicos”, é constituída de três capítulos. O segundo capítulo, “Trabalho Social com Família: aspectos conceituais”, teve por objetivo discutir o conceito de TSF, apresentando uma definição conceitual. Para isso, faz uma incursão na discussão de trabalho na perspectiva marxista, 23 de onde saem as bases para o conceito de TSF apresentado. O terceiro capítulo, “Fundamentos Teórico-Metodológicos do Trabalho Social com Família”, teve por objetivo apresentar sinteticamente a caracterização de duas das principais matrizes teórico-metodológicas de análise da vida social (o positivismo e o marxismo) e as implicações na condução, nos valores e nos princípios metodológicos do TSF, apresentando também elementos caracterizadores de um trabalho em bases marxistas. No quarto capítulo, “Trajetória Histórica e Atualidades do Trabalho Social com Família: o caso da Assistência Social”, o objetivo foi descrever e analisar a trajetória histórica do TSF, delimitado pela forma de inserir a família na política e as referências que serviram de base. Toma como exemplo a política de Assistência Social, destacando suas inovações atuais e suas limitações e contradições no seu desenho em relação ao TSF. A segunda parte, denominada “Trabalho Social com Família: aspectos técnico-operativos”, é composta de mais dois capítulos. No quinto capítulo, “Trabalho Social com Família em bases críticas: Trabalho em Rede e Trabalho Socioeducativo Emancipatório”, o objetivo foi apresentar uma proposta de TSF a partir da matriz marxista, abordando a dupla dimensão desse trabalho (o de inserção na rede de serviços para o enfrentamento das vulnerabilidades e o trabalho socioeducativo que promove autonomia, protagonismo, participação social numa perspectiva emancipatória). No sexto e último capítulo, “Potencialidade do trabalho em grupo no TSF”, o objetivo foi apresentar as vantagens de se trabalhar com o procedimento do grupo e suas técnicas de dinâmica de grupo no trabalho socioeducativo, indicando pistas úteis para organização desse trabalho em diferentes políticas sociais. 24 2 TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS: ASPECTOS CONCEITUAIS O trabalho social com famílias – TSF é demandado por várias políticas sociais. Na política de Assistência Social, ele se transforma em serviços, dada a sua importância estratégica na materialização do princípio da matricialidade sociofamiliar. Nesse contexto, inúmeras profissões executam esse trabalho, embora ainda sejam escassas as produções bibliográficas sobre a temática, principalmente as que enfrentam o desafio de defini-lo conceitualmente, explicitando as bases teórico- metodológicas dessa definição. Na tentativa de construir um arcabouço conceitual de TSF e com base no referencial crítico-dialético, essa discussão nos remete a outras categorias analíticas, como a de trabalho e processo de trabalho, que fundamentaram a definição de TSF apontada neste capítulo. Assim, o objetivo deste capítulo é apresentar essa fundamentação e uma conceituação de TSF compatível com esse referencial teórico-metodológico. 2.1 Categoria trabalho e processo de trabalho O trabalho em Marx (2003) é definido como toda ação de transformação de um objeto natural, mediada por meios ou instrumentos guiados por uma finalidade que visa um produto para atender necessidades humanas. 25 É um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta- se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos - a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (Marx, 2003, p. 211). Para Marx, a categoria trabalho é central por apresentar um papel fundante na construção e no desenvolvimento da humanidade e do ser social. Pelo trabalho o homem se humaniza, distingue-se de outros animais, controla seu metabolismo com a natureza, gera as condições de sua produção e reprodução material e social. Por essa capacidade de trabalhar, de transformar, além de planejar ou projetar, de criar e pensar de forma consciente aquilo que pretende fazer, distingue-se o homem dos animais: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. 26 Ele não transforma apenas o material sobre o qual operar; ele imprime sobre o material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade (Marx, 2003, p.212). O processo de trabalho é mais amplo e envolve, além do trabalho propriamente dito, enquanto ato ou ação de trabalhar, de dispêndio de energia e forças para transformar, também o objeto sobre o qual incide o ato de transformação, aos meios ou instrumentos de trabalho, a finalidade que guia essa ação e o produto desse trabalho. Esses elementos são inerentes a todo tipo de trabalho em diversas sociedades. Merece ressalva o caráter racional do trabalho:“o trabalho é, portanto, resultado de um pôr teleológico que (previamente) o ser social tem ideado em sua consciência, fenômeno este que não está essencialmente presente no ser biológico dos animais” (Lukács, 1980 apud Antunes, 2001, p. 136). Entretanto, a teleologia ou finalidade, típica da consciência, não é anterior à existência e nem sobre ela se sobrepõe. Contrário ao idealismo que colocava a finalidade como “motor da história”, o materialismo histórico dialético inverte essa dialética: são as condições materiais que engendram os tipos de consciências. Para Lukács (1980 apud Antunes, 2001, p. 136), “naturalmente a busca de uma finalidade, de uma posição teleológica, é resultado de necessidades humana social”, ou ainda, como destaca Antunes (2001, p. 136), “teleologia nasce da prática, das condições de vida objetivas, não pode ser pensada para além 27 da esfera da práxis social, como uma categoria cosmológica universal”. Portanto, o trabalho envolve duas dimensões: 1) o pensar/planejar que coloca a finalidade e os meios para realizá-lo; 2) o produzir/fazer enquanto ato de trabalhar, de intervir, de desgaste de energia para produzir, realizar a concreção do fim pretendido. Teleologia, enquanto colocação de finalidades, é utopia fora da práxis e não transforma a realidade. Mas, ao mesmo tempo, não se transforma a realidade sem um fim, sem uma teoria/ conhecimento, logo teoria e prática são processos intercambiáveis e se retroalimentam. Como ressalta Hartmann (apud Antunes, 2001, p. 138), “para que ele (o trabalho) se concretize é necessária uma investigação dos meios, isto é, o conhecimento da natureza deve ter atingido o seu nível apropriado [...]”, o que remete que o conhecimento das propriedades do objeto que se quer modificar é fundamental. Assim, o conhecimento é importante para a definição de finalidades, de objetivos e se constitui também em um meio de trabalho. Mas o trabalho é que se constitui em ato, em prática, em ação que altera a realidade. Nessa perspectiva, como destaca Antunes (2001, p. 139) citando Lukács, “através do trabalho, uma posição teleológica é realizada no interior do ser material, com o nascimento de uma nova objetividade”, de um novo objeto para atender necessidades, logo com valor de uso. Nascem assim as condições para a vida em sociedade. Esse ato é a protoforma da práxis social, prova inconteste de que a realidade natural, política ou social pode ser modificada, transformada. 28 Nessa perspectiva, o trabalho é fonte de liberdade, de autonomia enquanto possibilidade de escolha, enquanto processo criativo. O processo de trabalho no qual está inserido esse trabalho determina sua condução, seus fins e seus produtos. O processo de trabalho é definido pelo modo como se produz e reproduz em uma determinada sociedade. Embora seus elementos sejam comuns a todo tipo de trabalho e em todos os tipos de sociedade, os fins com que se produz e o modo como se produz são determinados pelo modo de produção hegemônico. Nas sociedades capitalistas, o processo de trabalho está submetido aos fins postos pelo detentor dos meios de produção, ou seja, como o capitalista é detentor dos meios de produção e há predominância do valor de troca das mercadorias sobre o valor de uso, na busca incessante pelo lucro e por condições adequadas de reprodução ampliada, o fim é a produção de riqueza, que é apropriada por poucos, e a reprodução da ordem. O trabalhador detém apenas sua força de trabalho, que, para se efetivar, no entanto, depende do capitalista empregador, que compra não seu trabalho, mas sua força de trabalho e determina o que, como e para que se trabalha. Isso ocorre porque o trabalho na sociedade capitalista tem uma dupla dimensão: o trabalho concreto e o trabalho abstrato. O trabalho concreto é o ato de transformar objetos naturais em outros objetos para atender necessidades humanas, logo o objeto criado tem um valor de uso. O trabalho abstrato é o trabalho assalariado ou trabalho para produzir mercadorias vendáveis, isto é, com valor de troca. Nessa última perspectiva, o trabalho é medido 29 pelo tempo socialmente útil para construção da mercadoria. Assim, todos os trabalhos assalariados se igualam, independentemente do que produzam. Há, então, a predominância do valor de troca sobre o valor de uso, a subordinação deste em relação àquele. Além de o capitalista deter os meios de produção, a divisão do trabalho se amplia e gera distinções entre quem pensa e quem executa. Somam-se a esse quadro outras determinações: o fim sobre o que se produz não é definido pelo produtor direto/trabalhador e o produto não lhe pertence. Sobre esse processo de alienação, Marx (2012, p. 96) destaca: O despojamento do operário do seu produto tem o significado não só de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência exterior, mas também de que ele existe fora dele, independente e estranho a ele, de que a vida, que ele emprestou ao objeto, o enfrenta de modo estranho e hostil. O trabalhador também é uma mercadoria, definida pelo tempo socialmente útil para sua reprodução, uma força material de produção que tem valor de uso e de troca nas relações capitalistas, visto como uma “coisa” e, nessa condição, ele pode ser trocado, substituído e descartado. O trabalho abstrato gera alienação e pobreza. O operário torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção cresce em poder de volume. O operário torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadoria cria. [...] O 30 trabalho não produz apenas mercadoria; produz-se a si próprio e o operário como uma mercadoria, e com efeito na mesma proporção em que produz mercadorias em geral (Marx, 2012, p.95). Nessa dimensão, o trabalho perde a liberdade de escolha entre alternativas, perde a dimensão criativa, perde o poder de pôr finalidade ao processo. Tudo está sobre o controle do capitalista. O trabalho se torna um instrumento de opressão para o trabalhador, algo estranho a ele, impossibilitando que este desenvolva toda a sua capacidade criativa, é apenas um meio para o aumento crescente da produção de riquezas concentrada nas mãos do capitalista. Nesse trabalho alienado, o homem não se reconhece no produto do seu trabalho, não o vendo como sua criação porque o processo é fragmentado; o trabalhador está alienado quanto ao ato de produção, em relação aos outros homens e ao ser genérico. Por isso Marx (2012, p. 102) diz que a alienação do trabalho se expressa na alienação do homem. O modo de produção capitalista impõe essa lógica para o trabalho. Os trabalhos são desiguais, muito especializados, fragmentados, mas combinados e inseridos nessa arquitetura. Todos os tipos de trabalho formam o trabalho coletivo ou trabalhador coletivo. Assim, tanto o trabalho produtivo quanto os outros ramos que se incluem nos serviços (públicos, privados ou não governamentais) não podem fugir dessa lógica do trabalho assalariado, ou seja, o trabalho produtivo e os que atuam sobre a reprodução social não escapam da alienação do trabalho, da submissão à produção de riqueza e reprodução da ordem, o que não 31 significa adesão incondicional e consciente a essa estrutura, ausência de resistências, de lutas, de contraposição e de alternativas. O TSF está inserido nos processos de trabalho das políticas sociais, sob o controle e regulação do Estado. Como destaca Mérzàros (2000), o Estado capitalista é a estrutura política de comando do capital, mas, por ser perpassado pela luta de classes, juntamente com a política social, são espaços contraditórios de projetos societários antagônicos e de disputa pelo fundo público e seu uso para atender necessidades e demandas. Ressalta-se que há de acentuar as diferenças do trabalho em serviços. Sem essa mediação teríamos uma transposição de uma leitura do trabalho produtivo para todos os ramos, embora todos tenham os mesmos elementos do processo de trabalho (objeto, trabalho, meios e produto). Conforme Schutz e Mioto (2012 apud Brasil, 2016, p. 16/ 17 grifos do documento), Dentreas características do trabalho em serviço destaca-se o fato de que existe uma simultaneidade entre a produção e o consumo do serviço e de que ele não é gerador de um produto que possa ser armazenado. Tal característica faz com que o trabalho em serviços também se caracterize pela intangibilidade, embora possa conter elementos tangíveis no processo de trabalho. Isso remete a outra característica do trabalho em serviços que é a sua natureza relacional, pois implica o estabelecimento de uma relação entre o prestador e o usuário do serviço. As características do trabalho em serviço impedem que ele seja totalmente 32 controlado ou capturado e, portanto, a sua qualidade e direção dependem também da relação que se estabelece entre o prestador e o usuário do serviço. No trabalho em serviços ainda subsiste uma relativa autonomia, apesar das condições de trabalho hoje impostas aos trabalhadores em serviços no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. A exploração dessa “autonomia relativa” se torna fundamental na condução do TSF no contexto das disputas de projetos societários e interesses divergentes presentes no campo da política social, que são mediados pelos serviços sociais. Como destaca Sousa (2017), na prestação de serviços o trabalho não produz um objeto vendável, um produto a ser comercializado e consumido passivamente. A ideia é que a intervenção profissional seja feita em uma perspectiva que impacte a realidade social, visando à transformação efetiva na vida dos sujeitos assistidos, além de estar pautado nas relações sociais cotidianas tecidas entre profissionais e usuários. Isso não exclui aspectos contraditórios, funções ideológicas e políticas exercidas mediante esses serviços. Como destaca Chiachio (2011), quando se trata de serviços, sejam públicos ou privados, são apontadas algumas características gerais, tais como: sua execução requer trabalho profissional especializado; sua ação não gera um produto material propriamente dito; possibilita transmitir atitudes ou valores; facilita e melhora a vida de seus usuários ou consumidores. Isto é: os serviços compõem uma gama diversificada de atividades que não geram um produto em si, rentável, vendável e com fins de lucro. No 33 caso dos serviços sociais, há ainda outra especificidade, esses incidem sobre os processos das relações sociais e pessoais, logo sobre a reprodução social. O TSF como trabalho especializado, técnico, profissional, que exige formação superior, nessa condição, como destaca Faleiros (2006, p. 39/40), “a relação profissional define-se pelo saber, pelo conhecimento legitimado e legalizado, por uma proposta sócio-técnica, por um sistema articulado de pesquisa, diagnóstico e intervenção”. Essa condição gera relativa autonomia aos profissionais, posta por sua especialidade, pelo seu saber acumulado e específico que legitima e guia seu fazer. Nessa condição de trabalho profissional, no ramo dos serviços, com impactos na reprodução social e não diretamente na produção de riquezas, distingue-se do trabalhador/operário da produção, embora ambos estejam sob as condições do assalariamento. O TSF, além de envolver o trabalho profissional, envolve também o trabalho em equipe, como processo em constante construção sem modelos rígidos definidos a priori. Como destaca Brasil (2016, p.16), “enquanto processo, o Trabalho Social com Famílias não é dado a priori. Ele se desenvolve, de forma coletiva, por meio de um conjunto de ações profissionais que envolve diferentes profissionais, serviços e instâncias políticas e administrativas”. Chiachio (2011) considera que os serviços sociais compreendem a dimensão finalística de cada política, ou seja, como “produto final”, conferem materialidade às políticas públicas, cujo trabalho profissional que as implementam executam suas ações no âmbito de processos de trabalho dessas políticas. 34 2.2 TSF: a construção de um conceito O ponto de partida para conceituarmos o TSF é a definição de trabalho de maneira geral, inserido em processos de trabalho; de trabalho em serviços no contexto das políticas públicas e da reprodução social e, de trabalho social. Para Carvalho (2014), trabalho social é a mediação indispensável na programática da política pública. São processos, procedimentos, ações que materializam a política pública. Essas mediações produzidas pelo trabalho social são indispensáveis, segundo a autora, para a apropriação e o usufruto efetivo pelos usuários dos serviços e programas sociais priorizados pelas políticas, que incidem na mudança das suas condições de vida e situações de vulnerabilidade social. Costumamos dizer que é pela via do trabalho social que a política social se materializa. Ou melhor, a política social como ação do Estado tem intencionalidades, diretrizes, planos, prevendo desenhos para a implementação das metas e resultados a serem perseguidos. Mas ela depende de processos que a concretizem no território, produzam adesão e participação dos cidadãos. A essa ação chamamos de trabalho social (Carvalho, 2014, p. 17/18). O trabalho social não é somente a execução da política. Essa materialização implica um processo mais amplo que envolve o planejamento, a execução, o monitoramento e a avaliação da política ou dos serviços e programas sociais e até a gestão da política e dos serviços. Destacamos dessa concepção essa noção de mediação entre usuários e serviços e o contexto da política 35 pública. Nessa perspectiva, o TSF é um trabalho especializado, técnico, portanto, fundamentado teórico- metodologicamente, ético e técnico-operacional, desenvolvido por equipes interdisciplinares no contexto da materialização da política social, junto à família e seus membros ou em prol dessa. Assim não é qualquer tipo de ação junto à família ou feita por qualquer um que se define como TSF. Ao remeter a procedimentos, processos, ações planejadas, pensadas, articuladas e visando a um fim, portanto a um processo de trabalho no contexto da política social, aproximamo-nos da discussão de trabalho das análises marxistas, da racionalidade, intencionalidade, do conhecimento necessário, do processo de planejamento, organização e execução. Mas o contexto do assalariamento e do controle do processo de trabalho impõe atribuições e competências às profissões, às equipes de trabalhadores com formação superior, inseridas em serviços que materializam a política, que em tese limitam sua autonomia, entretanto o TSF não é dado preliminarmente, constrói-se na relação com as demandas e com outros profissionais das equipes, com espaço de movimento, de criação. Nessa perspectiva, como já comentado, não é qualquer tipo de ação que é um TSF, pois este envolve, necessariamente, o contexto das políticas públicas, dentre elas a da política social, e o contexto profissional, ou seja, processos de trabalho nas políticas sociais. O TSF como trabalho especializado que media a relação instituição/usuário e promove com suas ações a materialização da política social dirigida às famílias e seus 36 membros tem seus objetivos tensionados por: 1 - os fins postos pela política (legislação); 2 - fins postos pelos profissionais, fundamentados nas perspectivas teórico- metodológica e ético-política que assumem. Esses fins podem coincidir ou não entre si. É importante destacar que o modo como a política insere a família define o modo de organizar os serviços, seus objetivos e fins e as expectativas sobre a família. Todavia sua implementação depende também do trabalho profissional dos executores, dos processos de trabalho. 2.3 Finalidades do trabalho social com famílias Para compreendermos a finalidade do TSF no âmbito das políticas sociais da esfera pública é necessário desvendar o modo como a família é inserida na política, ou como e para que são criadas políticas sociais dirigidas às famílias e seus membros. Analisando o contexto da América Latina e Brasil e a trajetória das políticas públicas dirigidas às famílias, Goldani (2005) identifica três modalidades: política “de família”; política “referida àfamília”; e política “para a família”, desvendando o modo como elas incluem a família na proteção social. As políticas “de família” “seriam um conjunto de medidas e instrumentos que visam intervir no modelo de família existente, tratando de ‘conformar’ estruturas familiares para expandir um certo modelo ideal de família” (Goldani, 2005, p. 7). Nessas políticas se incluem as de controle da natalidade, de planejamento familiar, dentre outras. 37 As políticas “referidas à família” tratariam de um conjunto de medidas e instrumentos de políticas públicas cujo objetivo é fortalecer as funções sociais das famílias, de modo a contar com sua parceria na proteção social. Entre essas funções, destacam-se: “a reprodução e socialização de seus membros; a filiação e herança; garantir as condições materiais de vida; a construção da subjetividade de seus integrantes [...]” (Goldani, 2005, p. 9). Nessas políticas, conforme a autora, se incluem tanto as universais (educação e saúde) como as focalizadas de combate à pobreza, à violência doméstica dentre outras. As políticas “para a família” são políticas, serviços e programas voltados para a proteção social da família e seus membros pela condição de cidadania. Remete à responsabilidade da sociedade e do Estado em oferecer apoios às famílias para o cuidado dos filhos. A valorização da família passa pela consideração desta como bem público que deve ter seus custos de cuidado e assistência garantidos pelo fundo público e que permita aos genitores conciliar vida familiar e trabalho. Vale ressaltar que a maioria das políticas dirigidas às famílias na América Latina e Brasil é do tipo políticas “referidas à família”, que ampliam as responsabilidades das famílias, mesmo que estas sejam vulneráveis e em situação de risco, sob a alegação de que as famílias têm capacidades, potencialidades e não apenas necessidades e vulnerabilidades. A intencionalidade implícita é transferir responsabilidade sob a denominação de parcerias, de gerar processos participativos, vínculos com a família e território. 38 [...] o trabalho social instaura processos que partem de identidades, vocações e contextos locais, possibilitando a máxima participação e autoria dos seus grupos, ao intervir com novos e velhos princípios centrados no e com o território, na ação integrada e intersetorial e no fortalecimento de aportes culturais e vínculos sociorrelacionais (Carvalho, 2014, p. 22). A lógica das parcerias, do trabalho em rede, da divisão de responsabilidades é bem clara e mostra o sentido do protagonismo buscado. “Assim, agindo transforma comunidades demandantes em comunidades empreendedoras” (Carvalho, 2014, p.23), utilizando as potencialidades do território, ou, ainda conforme a autora, “desenvolve parcerias estreitas entre os diversos grupos de interesse (organizações comunitárias, produtores locais, etc.), o governo, a sociedade e o mercado, instaurando novos valores” (idem, p.23). Entretanto pode haver outras finalidades postas pelos projetos ético-políticos das profissões que implementam as políticas sociais e executam o TSF. Com efeito, a implementação de uma política também é um processo de decisão em que se pode afastar do desenho da política, intencionalmente ou não, ou conformá-lo como legislado. É comum no Brasil o hiato entre a legislação e sua aplicação prática. Profissões como a dos assistentes sociais assumem claramente uma finalidade crítica e voltada para os interesses dos usuários, ao seu acesso aos bens e serviços na condição de direitos de cidadania, como mediação para a emancipação humana, para a autonomia e participação ativa do cidadão. 39 Essa categoria assume e busca materializar princípios éticos: da defesa dos direitos humanos, da equidade e justiça social, na perspectiva da universalização do acesso a bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais; a ampliação da cidadania como condição para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais às classes trabalhadoras; defesa da democracia e compromisso com a competência e com a qualidade dos serviços prestados. Desse modo há a adesão ao projeto que luta e defende os direitos sociais em oposição a sua mercantilização e na constituição de uma nova ordem social como mediação para a emancipação humana, portanto para a construção de uma nova ordem sem exploração e opressão. 2.4 Finalidades do trabalho social com famílias na política de Assistência Social Na política de Assistência Social o trabalho com famílias se transformou em um serviço, dado seu caráter estratégico, sistemático e contínuo, sendo definido como: Conjunto de procedimentos efetuados a partir de pressupostos éticos, conhecimento teórico- metodológico e técnico-operativo, com a finalidade de contribuir para a convivência, reconhecimento de direitos e possibilidades de intervenção na vida social de um conjunto de pessoas, unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade – que se constitui em um espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias –, com o objetivo de proteger seus direitos, apoiá-las no desempenho da sua função de proteção e socialização de seus membros, bem como 40 assegurar o convívio familiar e comunitário, a partir do reconhecimento do papel do Estado na proteção às famílias e aos seus membros mais vulneráveis (Brasil, 2012, p. 12). Dessa definição se sumariza que o trabalho com famílias é um trabalho social especializado, profissional e técnico, fundamentado ética, teórico-metodológico e técnico-operacional, numa tentativa de profissionalizar o campo que historicamente foi visto como atividades que qualquer um podia efetivar. Como destaca Sposati (2007, p. 444/445), A assistência social sempre foi muito aceita e entendida no senso comum como uma prática da sociedade sem lhe exigir, como componente, a qualidade de trabalho técnico-profissional com suporte científico-metodológico para garantir resultados em suas ações, serviços, atividades e programas. Ela foi sendo caracterizada como ação voluntária de ajuda material presidida mais pela atitude do que pelo conhecimento e pela razão [...]. A partir da definição do Serviço de Atenção e Proteção Integral à Família – PAIF, vemos ainda o conceito de família que o rege e os fins desse trabalho. Está implícita uma concepção de família para quem se dirige o trabalho social: ampliada, plural e heterogênea, mas idealizada como o “reduto da felicidade”, como “espaço sagrado” e “insubstituível” e não como uma instituição contraditória e ambígua que sofre as influências da estrutura social. O trabalho com essas famílias tem por 41 objetivo proteger seus direitos, quando, na verdade, quem deve ser protegida, apoiada e ajudada é a família, como forma de o Estado garantir o direito das pessoas de viverem em família, amenizando essas funções de proteção, de cuidado, de assistência mediante acesso aos serviços oferecidos pela rede pública socioassistencial a seus membros dependentes. A intencionalidade fica mais clara nos objetivos do PAIF. Aqui destacamos dois deles: Fortalecer a função protetiva da família e prevenir a ruptura dos seus vínculos, sejam estes familiares ou comunitários, contribuindo para melhoria da qualidade de vida nos territórios; apoiar famílias que possuem, dentre seus membros, indivíduos que necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de escuta e troca de vivências familiares (Brasil, 2009, p. 6). A ideia subjacente a esses objetivos é de que a prevenção dos riscos se efetiva se a família desenvolver suas funções de proteção social. Assim, terminamos atribuindo a ela o papel de prevenção dos riscos e o enfrentamento das vulnerabilidades sociais, como se ambos não tivessem causas estruturais e conjunturais, ou seja, como se não decorressem das desigualdades sociais geradas pela ordem capitalista, mas sim da falta de vínculos, amor, solidariedade. Ainda sobre o PAIF, dentre os procedimentos do TSF está o plano de acompanhamento familiar. Este segue alguns passos: 42 1-levantamento das demandas e das necessidades da(s) família(s) - as vulnerabilidades a serem superadas; 2 - as potencialidades que o(s) grupo(s) familiar(es) possui(em) e que devem ser fortalecidas, a fim de contribuir nas respostas às vulnerabilidades apresentadas pela(s) família(s); 3 - Os recursos que o território possui que podem ser mobilizados na superação das vulnerabilidades vivenciadas pela(s) família(s); 4 - As estratégias a serem adotadas pelos profissionais e pela(s) família(s) no processo de acompanhamento familiar; 5 - Os compromissos da(s) família(s) e dos técnicos (como representantes do Estado) no processo de superação das vulnerabilidades; 6 - O percurso proposto para o acompanhamento (Brasil, 2012, p. 60-61). Não resta dúvida de que o serviço demanda a parceria da família, que prevê divisão de responsabilidades, que a visão de prevenção dos riscos é uma dupla que inclui as funções da família e o papel do Estado. Essa intervenção do Estado não é exclusiva nem mesmo quando há ruptura do vínculo familiar, pois a inserção nos serviços de provisão material e outros que garantam o direito à convivência familiar e comunitária também depende de uma rede socioassistencial (formada por instituições públicas, privadas e não governamentais). Está subjacente a noção de “família recurso” e o trato de suas necessidades no âmbito desses recursos e do território. Nessa perspectiva, a impossibilidade de cumprir as funções de proteção, de cuidado, educação, de 43 administração do lar pela família (em especial pelas mulheres, a quem recai socialmente e culturalmente essas funções e papéis) é vivida como falha individual, incapacidade, culpa das mulheres, reforçada pelo TSF, que visa fortalecer essas funções no âmbito da família. Fatores que dificultam o exercício desses papéis, como a pobreza, a ausência de suporte social público e estatal, a vulnerabilidade de vínculos conjugais, a necessidade de prover a família com trabalhos precários, distantes de casa, com longas jornadas de trabalho, dentre outros não são remetidos ao contexto histórico e social que os produziram. Na proteção social especializada de média complexidade, o serviço que materializa a centralidade na família é o PAEFI – Serviço de Atenção Especializado a Famílias e Indivíduos, definido como: Serviço de apoio, orientação e acompanhamento a famílias com um ou mais de seus membros em situação de ameaça ou violação de direitos. Compreende atenções e orientações direcionadas para a promoção de direitos, a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais e para o fortalecimento da função protetiva das famílias diante do conjunto de condições que as vulnerabilizam e/ou as submetem a situações de risco pessoal e social (Brasil, 2009, p.18). Portanto, não restam dúvidas sobre qual é o tipo de política: é aquela “referida à família”, conforme definição de Goldani (2005), que reforça e visa potencializar suas funções sociais, de modo a impulsionar uma parceria, denominada de participação, autonomia e protagonismo. 44 As possibilidades para redirecionar a finalidade da ação profissional se dão porque a política é contraditória, atende a interesses antagônicos, está colocada na esfera pública e assume discursos aparentemente progressistas. Uma possibilidade é o reconhecimento da assistência social como política pública, não contributiva e garantidora de direitos sociais. Além disso, o TSF, na proteção social básica e especializada, tem outros objetivos que podem ser mobilizados, como centralidade no atendimento às famílias, tais como: Promover aquisições materiais e sociais, potencializando o protagonismo e autonomia das famílias e comunidades; promover acessos à rede de proteção social de assistência social, favorecendo o usufruto dos direitos socioassistenciais; promover acessos aos serviços setoriais, contribuindo para a promoção de direitos (Brasil, 2009, p. 6). Sem dúvida, um trabalho que enfrenta vulnerabilidades sociais deve contar com um aparato estatal de serviços sociais de inclusão dos membros da família que atenda suas múltiplas demandas e necessidades, com acesso pela condição de cidadania e trabalho socioeducativo de cunho participativo e emancipatório. Nessa condição, a família é tomada como sujeito de direito, direito a ser protegida, amparada e apoiada e não como agente principal de proteção social. Embora a família desenvolva essas funções de reprodução social, as condições de vulnerabilidade indicam que ela precisa de suporte efetivo para desempenhar também essa função. Como o desenho da política e dos serviços adotam categorias centrais para o seu desenvolvimento, tais como 45 de proteção social, direitos de cidadania, autonomia, protagonismo, necessidades humanas e também de família, isso abre espaços para compreendê-las numa perspectiva teórico-metodológica crítica. São justamente essas concepções, a partir de uma matriz crítica, a qual visa à emancipação, que vão sustentar as finalidades almejadas com o TSF e estruturar a proposta de intervenção junto às famílias. Outra possibilidade é dada pela natureza do trabalho profissional especializado. Apesar da condição de trabalho assalariado, é executado por um profissional que detém um saber específico e um poder definido em lei e no processo de sua legitimação, por profissionais que repensam a si mesmas e a sua intervenção e têm direcionamentos políticos, que podem ser colocados a serviço da construção de uma nova cultura. Como destaca Faleiros (2006, p. 41), o espaço público “[...] é um espaço em que se dá o enfrentamento entre hegemonia e contra-hegemonia e onde mudam as condições de trabalho de acordo com as correlações de forças políticas e sociais”, podendo criar condições objetivas para os redirecionamentos profissionais em favor dos usuários e seus direitos. Os produtos do trabalho social são materiais, sociais e ideológicos, com repercussões nos valores e comportamentos dos usuários, logo têm implicação na formação de consensos hegemônicos ou na formação de novos consensos ou até de contra-hegemonia. 2.5 As possibilidades e limites da ruptura com a alienação do trabalho Na atividade produtiva, com o esfacelamento das tarefas e distinção entre quem planeja e quem executa, o trabalho é mera atividade repetitiva, apenas um conjunto 46 de atos em virtude dos quais um sujeito ativo modifica uma matéria, perdendo o caráter de práxis, de liberdade e de escolha entre alternativas, ou seja, é um trabalho alienado. O trabalho profissional especializado, no qual o trabalhador detém um saber específico (a depender de sua fundamentação teórico-metodológica e da articulação dessa fundamentação com princípios éticos, projetos políticos e dimensão técnico-operativa) pode ser um antídoto contra a alienação do trabalho. No trabalho profissional, devido à relativa autonomia profissional, há espaço de movimento para que o trabalhador planeje, pense, ou seja, com um processo que se inicia pela antecipação de um resultado que se deseja obter, como um resultado ideal, e termina com um resultado ou produto efetivo. Em virtude dessa teleologia e planejamento, a ação profissional tem um caráter consciente, racional. É a vitória do comportamento consciente. Como destaca Lukács (1980 apud Antunes, 2001, p. 142-143): O homem que trabalha deve planejar cada momento com antecedência e permanentemente conferir a realização de seus planos, crítica e conscientemente, se pretende obter no seu trabalho um resultado concreto o melhor possível. Esse domínio do corpo humano pela consciência, que afeta uma parte da esfera da sua consciência, isto é, dos hábitos, instintos, emoções etc., é um requisito básico [...]. Entretanto, como vimos, a finalidade do TSF tem uma tensão entre os fins do serviço e os dos profissionais. 47 Além disso, esse trabalho profissional também está sujeito à alienação, enquanto processo estrutural das relações de trabalho assalariado, portanto, sujeito a rotinização das ações, padronização das intervenções,burocratização dos atendimentos, imediatismo das demandas e dos atendimentos. As demandas no TSF (nos processos de trabalho das políticas sociais) aparecem como imediatizadas, fragmentadas e heterogêneas, daí o risco de cair em “casos de famílias”. As ações correm o risco de serem assistemáticas, pontuais, espontâneas e imediatas. Romper com essa lógica exige uma teoria crítica capaz de desvendar as determinações e conexões que articulam essas demandas. Sem as mediações do conhecimento crítico, do planejamento de estratégias, ações e instrumentos e meios necessários para se alcançar o fim pretendido, as respostas profissionais ficam aquém das possibilidades de uma ação consciente, crítica e competente. Como destaca Guerra (2000), devemos negar a ação puramente instrumental, imediata e espontânea e reelaborá-la em níveis de respostas socioprofissionais mais qualificadas e críticas. Nessa perspectiva, compreender o processo de alienação é importante na sua superação parcial, tendo em vista que a total ruptura com esse processo remeteria à necessidade de alteração radical do modo como se produz e se reproduz na sociedade capitalista, das condições materiais da existência nesse tipo de sociedade. Assim, o saber e poder profissional, expressos em capacidade técnica, competência e compromissos com os usuários dos serviços, podem ser um contraponto à alienação, à subordinação enquanto ato individual. Mas a 48 ruptura com a alienação remete a um ato coletivo de classes contra a ordem estabelecida. Essas finalidades do trabalho dependem também dos referenciais teórico-metodológicos, que incidem também sobre a política social e o TSF, objeto de discussão no próximo capítulo. 50 3 FUNDAMENTOS TEÓRICO- METODOLÓGICOS DO TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS A incorporação da família como referência na política social brasileira desde os anos 1990, principalmente na Política de Assistência Social, impulsionou os debates em torno do trabalho social com famílias (TSF), em diferentes profissões que compõem as equipes de referência dos serviços, tais como Serviço Social, Psicologia, Direito, Pedagogia, dentre outras. Todavia a família foi alvo ou sujeito de intervenções dessas profissões bem anterior a essa centralidade contemporânea e, conforme os fundamentos teórico-metodológicos que as regiam, estes iluminaram formas ou modos diferentes e antagônicos de se trabalhar com esse coletivo. Na contemporaneidade, em face da centralidade da família na política social, reativaram-se os debates e relevância da família e do TSF como objetos de conhecimento científico e de práticas profissionais, bem como a necessidade de explicitar as matrizes que fundamentam esse fazer profissional e que estão implícitas nos desenhos das políticas e das normativas. O contexto dessa centralidade da família é marcado por dois processos: a conjuntura dos anos 1980 e os movimentos sociais, em especial os de reforma psiquiátrica 51 que lutavam pela reinserção da pessoa com transtorno mental na família e comunidade, o movimento de meninos e meninas de rua pela construção do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e pela proteção integral ao segmento como sujeito de direitos, pelo fim da institucionalização e garantia do direito à convivência familiar e comunitária, dentre outros movimentos pela desistitucionalização; de outro lado, as reformas neoliberais e o processo de desregulamentação do Estado, com o repasse de suas demandas para os chamados agentes “naturais” de proteção social, tais como mercado, sociedade, família e indivíduos. Nesse contexto, há novas demandas e expectativas em torno do TSF que, em muitos casos, mantém e reatualiza perspectivas conservadoras, mas também em função das contradições, das tensões e projetos societários em disputas nas políticas públicas, abre possibilidades para pensar em formas diferentes, críticas e progressistas no modo de trabalhar as famílias e enfrentar os problemas que vivenciam em seu cotidiano de vida. Nessa perspectiva, o objetivo deste capítulo é caracterizar e analisar as diferentes perspectivas teórico- metodológicas que historicamente embasaram essas intervenções profissionais e as repercussões em modos peculiares e característicos de se trabalhar com a família. 3.1 Fundamentos teórico-metodológicos e as repercussões no trabalho social com famílias Partiremos das observações de Mioto (2004b, 2004c) que sintetizam esses fundamentos em duas grandes matrizes que abrigam várias correntes: 1 – Referencial positivista/funcionalista e sistêmico ou eixo da 52 normatividade e estabilidade (modelo burocrático e psicossocial individualizante); e 2 – Referencial marxista ou eixo do conflito e da transformação (com ações profissionais direcionadas às famílias, enquanto sujeitos de direitos, objetivando a construção da cidadania e a materialidade de seus direitos). A adoção implícita ou explícita desses referenciais engendra diferentes direções no trabalho social com famílias. 3.1.1 Referencial positivista/funcionalista e sistêmico O positivismo1 e, mais especificamente a corrente funcionalista (cujos autores desenvolveram um tipo de teoria especialmente aplicável à compreensão da estrutura social e da diversidade cultural, compatíveis com a visão da sociedade como um todo tendente à estabilidade e à coesão, com semelhança e em analogia com o organismo biológico), é complexa e com diferentes autores, também com diferenças entre eles e aproximações. Dentre os principais princípios ou fundamentos dessa corrente, destacamos, conforme Minayo (1993): 1 Apresentaremos apenas um esquema simples sobre as características desse paradigma, considerando os limites desse estudo e a riqueza de detalhes e características daquele, logo noções muito gerais que orientam a delimitação e identificação da perspectiva teórico-metodológica. As ideias centrais, segundo Löwy (2000) são: 1) a sociedade humana é regulada por leis naturais ou por leis semelhantes às naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humana; 2) os métodos e procedimentos para conhecer a sociedade são semelhantes aos utilizados para conhecer a natureza; 3) assim como as ciências da natureza são ciências objetivas, neutras, livres de juízo de valor, de ideologias, pré-noções às ciências sociais devem funcionar exatamente segundo este modelo de objetividade científica. As teses centrais são: a realidade se constitui naquilo que nossos sentidos podem perceber (empírica e objetiva); metodologia das ciências naturais e ciências sociais são semelhantes, distingue-se apenas o objeto, havendo uma distinção entre fato e valor. 53 a) as sociedades são totalidades que se constituem como organismos vivos. São compostas por elementos que interagem, relacionam-se e são interdependentes. São sistemas em que cada parte se integra no todo como subsistema, produzindo equilíbrio, estabilidade e sendo passível de ajustes e reajustes; b) cada sociedade tem seus mecanismos de controle para regular as influências eventuais de elementos externos ou internos que ameacem seu equilíbrio; c) “desvio” e “disfunção” fazem parte da concepção do sistema que, por meio dos mecanismos próprios de controle tendem a ser absorvidos, produz a integração; d) a integração se consegue pelo consenso a partir de crenças, valores e normas compartilhadas socialmente pelo subsistema que interagem constantemente e se reforçam mutuamente; e) progresso, desenvolvimento e mudanças são adaptativos, direcionam-se para a revitalização do sistema e são absorvidos no seu interior. As mudanças não atingem a estrutura. Como destaca Mioto (2004b; 2010), nessa perspectiva teórico-metodológica a família era vista como problema e o tipo de atendimento proposto estava relacionado aos objetivos institucionais e não pelas necessidades apresentadas pelas famílias. Centrava sua intervenção na dinâmica interna (nos conflitos) das famílias, nas personalidades de seus membros, nos recursos internos. As ações profissionais estavam calcadas na perspectiva da funcionalidade erelacionadas a processos de integração e controle social (Mioto, 2004a). 54 Em relação aos estudos da família que iluminaram as intervenções e as práticas sociais de um modo geral, evidenciamos as referências teóricas de Ariès e Parsons, com discussões da família moderna, nuclear, marcada pelas características do casal heterossexual com filhos, de isolamento e independência em relação à parentela, relações afetivas entre os membros, privacidade, dentre outras, além da ideia parsoniana de família como fábrica da formação da personalidade e, consequentemente, das patologias. Os valores e papéis integrativos não são questionados, antes reforçados para a integração e harmonia do todo, fundados nos papéis sexistas do homem provedor e a mulher como dona de casa, cuidadora e socializadora. O modelo nuclear descrito por Ariès (1981) e Parsons (1980) foi retratado como modelo ideal e hegemônico da sociedade burguesa, ao qual a superestrutura jurídica, ideológica e política buscou difundir e proteger, considerando como ilegítimos e ilegais as outras formas de vida familiar que não se adequavam ao modelo. Dentre as repercussões no trabalho com famílias, destacam-se: o enfoque orientador do trabalho nessa perspectiva é psicologizante e moralizador, centrado no indivíduo e na família, em que os profissionais atuam normativamente na vida da família (com base nos papéis esperados para cada sexo e em como manter a harmonia familiar, gerando personalidades sadias). Os problemas sociais são vistos como resultantes da crise de formação moral, intelectual e social dos membros da família, portanto são tratados no âmbito individualizado e como foco no comportamento e conduta dos indivíduos. 55 Conforme Mioto (2010), esse referencial teórico- metodológico trouxe como consequências: • Compreensão das relações sociais no plano imediato e a solução dos problemas sociais como responsabilidade dos próprios indivíduos (e famílias); • O acesso aos auxílios e serviços vinculados a mudanças nos modos de vida das famílias; • Trabalho com famílias numa perspectiva terapêutica e seus problemas como alvo de terapias individual ou grupal; • O enfrentamento dos problemas é visto e analisado como tratamento e busca de cura; logo visto como doença, desvio, desajustamento do sujeito; • Problemas decorrentes das incapacidades individuais de gerir os problemas da família e cumprir com suas funções de criar, cuidar, educar seus membros; • Foco da ação socioterapêutica e socioeducativa nos conflitos internos e na aprendizagem de habilidades e novos comportamentos. Ainda conforme a autora, os procedimentos profissionais como os estudos sociais e psicossociais apresentam julgamentos morais mais que as condições objetivas e subjetivas de vida das famílias, numa sociedade que gera desigualdades sociais. Os instrumentos e técnicas são majoritariamente direcionados para o processo de averiguação e controle dos modos de vida das famílias. Esse referencial fundamentou ainda uma visão da intervenção social como temporária e esporádica, depois de esgotada as possibilidades e recursos da própria 56 família ou até a família aprender a resolver os problemas sozinha. Esse referencial teórico-metodológico promove a alienação do trabalho social, encarado numa perspectiva de tratamento/cura dos problemas sociais, como se estes fossem individuais, uma intervenção que é cerceadora da autonomia das famílias, da sua condição de sujeito e da realidade social como totalidade contraditória. Além disso, esse referencial contribui para a difusão do modo de organização familiar hegemônica (nuclear) e de vida burguês (valores). 3.1.2 Trabalho com famílias iluminado por esta perspectiva teórico-metodológica Segue uma lógica programática (do que já foi programado pelo profissional ou equipe), centralizado e verticalizado, em que o planejamento e avaliação não inserem os indivíduos e representantes familiares. Consequentemente, as ações não são negociadas, ao contrário, são autoritárias, verticalizadas, regidas pela autoridade do profissional e do seu saber, adequadas aos objetivos institucionais. Trabalho socioeducativo como transmissão de conhecimentos e informações unidirecional e sem problematização ou discussão e de modo que a família siga regras impostas institucionalmente ou socialmente e culturalmente esperadas para os sexos. As práticas profissionais são, nessa direção, atravessadas pela reprodução de estereótipos de gênero e gerações e reproduzem valores hegemônicos não problematizados. Essas ações são fundadas em julgamentos morais na prescrição de papéis associados à posição do sujeito na família e ao seu sexo. 57 Nessa perspectiva dos papéis, o papel do profissional é ditar comportamentos que julgam saudáveis e em série e o papel do usuário é cumprir indiscriminadamente tudo que lhe é imposto. Veem-se os comportamentos familiares como geradores dos problemas sociais que enfrentam, sendo esses alvos de julgamentos, punições, de críticas, sem situá-los no contexto social mais amplo gerador de desigualdades e exclusões que afetam as relações familiares. O foco da intervenção são as relações familiares (resolução de conflito ou mediação extrajudicial de conflitos), e não a política social e o suporte que pode oferecer, os serviços, a garantia de direitos, entre eles o direito à convivência familiar e comunitária. O atendimento individual é de mero aconselhamento e o acompanhamento grupal é numa perspectiva terapêutica/reforma intelectual e moral das famílias, de modo que aprendam umas com as outras e do aconselhamento de como cuidar e educar seus filhos, promover socializações menos rebeldes, gerir recursos internos advindos de benefícios ou não, administrar seus conflitos, ser bons pais e cumprir seus papéis adequadamente. 3.1.3 Teoria sistêmica A teoria sistêmica é outra corrente positivista e próxima ao funcionalismo. Foi formulada por Von Bertalanffy em 1936 e tem sido aplicada por diversas profissões das Ciências Sociais, Psicologia, Filosofia, Ciências Médicas, Serviço Social, Psiquiatria e em diferentes áreas como a saúde, a assistência social, sociojurídico, educação, dentre outras. 58 Segundo Silva (2006), a definição de sistemas estaria atrelada a um conjunto de partes inter-relacionadas e interdependentes, arranjadas de forma a produzir um todo integrado e harmônico, semelhante à perspectiva funcionalista. De acordo com Pinto, Oliveira e Coutinho (2011, p. 6): Sistemas possuem estruturas e processos. A estrutura é formada pela relação dos componentes entre si e entre outros sistemas. Os processos envolvem transmissão de matéria, energia, ou informação dentro de um sistema ou em cruzamento de fronteiras sistema- ambiente. Pensando o objeto família para essa corrente, ela (a família) influencia e é influenciada pelos outros sistemas, e adota estratégias para manter o equilíbrio e o bem-estar familiar. Para Minuchin (1999), família é um sistema com estrutura, padrões e características que formam a estabilidade e mudanças. A família significaria uma pequena sociedade humana, onde os membros possuem contato direto, laços emocionais e uma história compartilhada. A abordagem sistêmica enfatiza que a família é um sistema constituído pelo microambiente e pelo macroambiente. O microambiente é composto pelo sistema social, vizinhos, parentes, indivíduos, dentre outros. O macroambiente integra os sistemas político, religioso, econômico, cultural, etc. Em ambos os sistemas ocorrem interações entre os componentes da família e as redes 59 sociais, sendo assim, estão sujeitos a alterações na estrutura e organização, especialmente no que se refere aos papéis e às normas de cada indivíduo. O pensamento sistêmico é uma maneira de olhar a realidade como uma ferramenta para imaginarmos o mundo, ressaltando o interesse pelas relações e interconexões entre as partes, uma forma de pensar, compreendendo e observando os elementos, colocando-os dentro de um contexto (Capra, 1996). A dificuldade dessa corrente para análise dafamília e da realidade social em que se insere está na compreensão da realidade como um todo, que é resultante das somas das partes, harmônicas entre si, e visando sempre o equilíbrio. As mudanças, quando ocorrem, são adaptativas. Entretanto a família não é um todo ou uma parte deste, homogênea e indiferente às diferenças, contradições e desigualdades, ela é conflituosa, ou seja, a família é ambígua e contraditória, perpassada por relações de poder, hierarquias, diferenças de gênero e gerações, dominação e subjugação e também de cooperação, solidariedade e afetividade. Os papéis sociais, para essa corrente teórica, são diferentes, mas complementares e essenciais para o equilíbrio do todo, logo não são problematizados e compreendidos como dominadores e reprodutores de desigualdades, como traços culturais fundados no sexismo, no patriarcado moderno, nas assimetrias de gênero. Uma postura de neutralidade ou parcialidade multilateral é assumida por essa perspectiva teórica, que termina reproduzindo a tradicional divisão sexual do trabalho e os papéis sexistas, além de culpabilizar a família, especialmente as mulheres/mães, pelos problemas enfrentados pelos filhos. 60 A interação familiar, a resolução de conflitos e problemas buscados pelas terapias familiares tornam totalmente invisíveis as diferenças de poder no interior das famílias, compreendendo os problemas vividos como patológicos e sujeitos à cura pela terapia. As análises micros, embora contextualizadas, não se relacionam com a totalidade, enquanto relações de produção e reprodução da sociedade capitalista, em diferentes contextos ou modelos de acumulação. Assim as análises macro não atingem a totalidade contraditória. A realidade é uma totalidade contraditória e não um todo harmônico e integrado, é síntese de múltiplas determinações em processo de construção, reprodução e mudanças, unidade de contrários. 3.2 Referencial marxista/histórico dialético ou da Teoria Crítica O marxismo2 parte de uma compreensão da realidade na sua dimensão histórica (dinamicidade, provisoriedade e transformação) e ontológica. Portanto a realidade como uma totalidade de fenômenos econômicos, políticos, sociais e culturais inter-relacionados (denominado de modo de produção) em que a consciência é produto das condições materiais de existência3, por isso, uma 2 As ideias do marxismo, para os fins desse artigo, são apenas esquemáticas, necessárias exclusivamente para identificar a perspectiva teórico-metodológica a partir de um punhado de características, não esgotando a complexidade do referencial, das diferenças e aproximações entre as correntes que a compõem. 3 Segundo Marx e Engels (1989, p. 20), “a produção das ideias, das representações e da consciência está a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida material. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparece aqui como emanação direta de seu comportamento material”. 61 superestrutura (jurídica, política e ideológica), com relação orgânica com a infraestrutura. Nessa perspectiva, a totalidade é uma unidade de contrários, portanto é dialética. Essa dialética exprime o modo se ser do real e o método de apreendê-lo, exprime o movimento contraditório do real e suas tendências de negatividade e transformação. Porém essa realidade é também histórica, perspectiva que rompe com o determinismo, pois compreende a realidade em seu movimento interno e ontológico e de construção permanente. Realidade como criação dos homens sob condições determinadas4. Homens, enquanto classe, podem promover mudanças nas condições de produção e na superestrutura política, jurídica e ideológica. Essa perspectiva, materialista histórico-dialética, oferece uma interpretação da história a partir das relações sociais de produção e reprodução social e com destaque para a luta de classe como motor dessa história. O método para conhecer essa realidade, para além da sua aparência, é também o dialético crítico ou materialista histórico-dialético, diferente do método dialético hegeliano, porque o ponto de partida e de chegada é sempre a realidade ontológica: Não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação 4 Ainda de acordo com Marx e Engels (1989, p. 20), “são os homens que produzem suas representações, suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas que estas podem tomar”. 62 e na representação dos outros, para depois chegarmos aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir do seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital (Marx; Engels, 1989, p. 19). Embora o papel da ciência seja superar a aparência dos fenômenos, nem sempre ela conseguiu superar essa aparência, pela limitação dos métodos e concepções de mundo. A concepção marxista leva em conta aspectos da realidade, especialmente aquela enfatizada pela sociedade capitalista, que parte do fato concreto5 (todo caótico) ao abstrato (que retrata as categorias simples) e deste abstrato ao concreto pensado (totalidade rica de determinações e mediações), ou seja, a realidade desnudada, na sua essência6. Analisando os impactos da adoção dessa perspectiva teórico-metodológica na profissão de Serviço Social, desde os anos 1980, Mioto (2010) destaca que esse 5 Os primeiros elementos do fenômeno que se quer conhecer aparecem como algo que pode ser capturado pelos sentidos, algo ainda superficial, imediato, aparência, ou seja, a realidade empírica como se apresenta. Essa visão é de um todo caótico que, mediante análises, chega a conceitos mais simples, “[...] através de uma determinação mais precisa, através de uma análise chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples” (Marx, 2003, p. 247). Depois desse percurso, é preciso voltar ao ponto inicial: “[...] seria necessário caminhar em sentido contrário até chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e relações numerosas” (idem). 6 Para Fernandes (2005, p.5), “na relação entre fenômeno e essência, esta não se manifesta diretamente aos investigadores porque fenômeno e essência não se dão ao mesmo tempo. A essência, apenas sob certos aspectos, de forma parcial, se manifesta no fenômeno. O fenômeno esconde a essência, ao mesmo tempo em que a indica de alguma maneira. A “coisa em si”, a “estrutura oculta da ciosa” deverá ser desvendada por quem quer compreender o real”. 63 novo paradigma operou duas mudanças fundamentais para se repensar o trabalho com famílias: 1) uma nova possibilidade de interpretação da demanda e dos problemas sociais (não são vistos como problemas individuais/familiares, não são casos de famílias, não estão no campo da competência ou incompetência dos sujeitos) analisados como expressões de necessidades humanas não satisfeitas e decorrentes da estrutura desigual e excludente da sociedade capitalista; 2) nova direcionalidade das ações profissionais: a categoria dos Direitos e da Cidadania passa a mediar o encaminhamento das ações profissionais, que tratam as famílias como sujeitos de direitos e que precisam ser cuidadas, apoiadas e protegidas para que se garanta o direito à convivência familiar e comunitária. Ainda segundo a autora, dentre os requisitos para o trabalho com famílias numa perspectiva crítica destacam- se os seguintes. 1 - A delimitação de determinada concepção de família que supere as visões clássicas e hegemônicas de família, compreendendo essa como um espaço que se constrói e se reconstrói, histórica e cotidianamente, a partir