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O ideal de justiça na � loso� a grega clássica: o Direito na Grécia Antiga Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a importância da � loso� a grega para o Estado e para o Direito. Conhecer os principais � lósofos gregos e as suas contribuições para o Direito. De� nir o ideal de justiça na � loso� a grega clássica. Introdução A filosofia da antiga Grécia teve forte influência na evolução da política e do Direito, por meio dos seus pensadores, cujas reflexões racionais levaram à elaboração de teorias sobre as formas de Estado, Governo e Justiça, destacando as normas jurídicas como garantidoras de um modelo ideal. Neste capítulo, você vai ler a respeito da importância da filosofia grega para o Estado e para o Direito, conhecerá os seus principais filósofos e identificará o ideal de justiça na Filosofia grega clássica. Filosofia grega versus Estado Conceito de filosofia Antes de falarmos sobre a fi losofi a grega, é necessário, primeiramente, entender- mos o que é a fi losofi a. A fi losofi a tem como objeto de estudo a constante busca do ser humano pelo conhecimento. Estamos sempre à procura de respostas, da “verdade”, de conclusões sobre a mente, a linguagem, os valores morais e estéticos. Portanto, é considerado um ato fi losófi co o homem refl etir, criticar e argumentar. Na verdade, a filosofia surgiu dos anseios do homem, que precisava de respostas a respeito da sua origem, de como proceder na vida, de aonde iria após a morte e do motivo de as coisas acontecerem como acontecia durante a sua jornada no mundo. Esses questionamentos vieram como consequência do seu processo evolutivo, que lhe impedia de continuar se satisfazendo com explicações mitológicas ou religiosas para tudo o que acontecia. A partir das reflexões filosóficas, foram surgindo os diversos ramos da ciência, pois, mais adiante, o homem sentiu a necessidade de provar as suas teses, o que só seria possível pela criação dos métodos científicos sistemáticos que conhecemos hoje. Vale ressaltar que as reflexões filosóficas ainda têm transformado o mundo, pois o homem nunca está totalmente satisfeito com as respostas que possui. Filosofia na Grécia Antiga A fi losofi a nasceu na Grécia Antiga, no século VI a.C., tempo em que Pitá- goras se denominou amante do saber. A Grécia Antiga estava acostumada a encarar e entender as coisas e situações de acordo com a mitologia, carregada da sua perspectiva primitiva. Logo, todo e qualquer fenômeno da natureza ou eventos advindos das relações entre os indivíduos eram explicados com uma ideia mística. Na mitologia grega, existia um deus para cada fenômeno que eles não conseguiam explicar de forma racional. Os gregos depositavam nesses deuses as explicações sobre a origem do homem e do mundo, uma ótica que a filosofia mudou, pois os filósofos queriam refletir sobre tudo de forma crítica, a fim de encontrar uma explicação racional para os fenômenos, sem recorrer à figura dos mitos. A filosofia surge e se desenvolve em meio à expansão comercial e marítima, a consolidação das cidades-Estados, a invenção da moeda, do calendário, entre tantos outros eventos que lhe influenciaram e inspiraram. A filosofia está inserida na história, e os temas de que se ocupa mudam de acordo com evolução social que lhe fornece um novo campo de reflexão. O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga30 Alguns autores não aceitam a ideia de que a filosofia tenha nascido na Grécia, pois alegam que já antes existiam outros povos que faziam esse exercício de reflexão. Porém, se o fizeram, não foi de forma tão sistemática e influenciadora como ocorreu na Grécia. A genialidade dos gregos até hoje é muito elogiada, causando espanto e admiração, devido à época em que viveram. Eles foram precursores não só da filosofia como também das artes, política, literatura, educação, música e arquitetura. A filosofia dessa época influenciou o mundo ocidental e a religião cristã, uma vez que Aristóteles influenciou Tomás de Aquino, dando origem ao cristianismo católico, enquanto Platão influenciou Agostinho de Hipona, que veio a influenciar Martinho Lutero e Calvino no que diz respeito à Reforma Protestante. Esse período foi marcado por Sócrates, sendo dividido em período pré- -socrático (antes de Sócrates), socrático (no período de Sócrates) e helenístico (depois de Sócrates). Durante o período pré-socrático, a filosofia foi utilizada apenas para buscar explicações sobre a origem do homem, do mundo e de tudo o que nele há (coisas). Somente no período socrático é que foram iniciadas as reflexões sociais. Os gregos criavam deuses para explicar a natureza, os sentimentos e as relações entre as pessoas. Entre os principais deuses da mitologia grega, podemos citar: Zeus (deus supremo), Ares (deus da Guerra), Afrodite (deusa do amor), Aristeu (protetor dos caçadores, dos pastores e dos rebanhos), Asclépio (deusa da medicina), Euro (vento que sopra do oriente), Hades (deus dos mortos), Himeneu (deus do casamento), Hipnos (deus do sono), Morfeu (deus dos sonhos) e Noto (o vento sul). Nesse contexto, acreditavam, então, que, se perdessem uma guerra, era por castigo de Ares; se quisessem o amor de alguém, deveriam agradar à deusa Afrodite; se desejassem que os seus rebanhos permanecessem saudáveis, deveriam prestar sacrifícios a Aristeu. 31O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga Influência da filosofia no Estado/Governo A fi losofi a levava os pensadores a refl etirem sobre as formas de Estado e Governo anteriores, identifi cando os seus pontos de sucesso e fracasso, para assim possibilitar a criação de um novo modelo político ideal. Platão e Aristóteles fizeram as primeiras reflexões sobre as formas de Estado e Governo, adentrando no tema de forma direta, observando o modo como vinham se organizando as cidades. Os socráticos eram contra a ditadura política. Platão defendia que os filósofos deveriam governar, pois, afinal, eram os que possuíam maior conhecimento. Segundo Platão, a ética é inseparavelmente ligada à política, como garanti- dora da paz de um governo. A sua tarefa seria promover o nivelamento entre os indivíduos, ajustando as suas diferenças em benefício da coletividade, limitando a liberdade entre eles, buscando suprir as diferenças econômicas e sociais. Ele era contrário à democracia direta porque acreditava que a distribuição do poder desvirtuava o homem, fazendo-o buscar a felicidade individual acima da coletiva. Platão criou a ideia do Estado Ideal, garantidor da liberdade realizada por meio do exercício da justiça, ficando essa ideia conhecida como República Platônica. Esse filósofo defendia que a monarquia era a melhor forma de organização do Estado. Aristóteles defendia que os governantes deveriam ser generosos e que o Estado precisava garantir a justiça, pois isso faria os cidadãos felizes e ao mesmo tempo garantiria a manutenção da ordem política em seus territórios. Acreditava que uma pessoa só seria completamente feliz com o seu total desenvolvimento intelectual. Aristóteles, que era da linhagem socrática, buscava um equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade do governo para compartilhar o poder com o povo. Para ele, o melhor modelo de democracia seria a representativa, devendo o sujeito ser preparado em conhecimento, para governar com prudência, sabedoria e justiça. O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga32 Para ele, havia três modelos de governo: Politeia, Aristrocacia e Monarquia, possuindo cada um desses um desvio de finalidade, gerando outros modelos impuros: a democracia, oligarquia e tirania, respectivamente. Para Aristóteles (1999) na obra Étiva a Nicomacos, há três formas puras de constituição (Estado) e também um número equivalente de desvios ou corrupções dessas formas. A melhor é a realiza; a pior é a timocracia.O desvio da realiza é a tirania. Ambas são o governo de um só, mas o tirano busca a própria vantagem, enquanto o rei busca o melhor para os seus súditos. A Aristocracia (governo dos melhores, dos mais excelentes) se converte na oligarquia (governo de uns poucos) devido à maldade dos governantes que não distribuem o que o Estado tem a oferecer em conformidade com o mérito. A timocracia (uma constituição baseada em uma classificação da propriedade), conhecida posteriormente por república, converte-se em democracia (sim, para Aristóteles a democracia é um desvio, uma forma impura de Governo), o governo de muitos, do povo. Com a criação da moeda no século VIII, a sociedade começou a se reor- ganizar em torno das relações que tinham se modificado, surgindo grandes grupos de agricultores e artesãos, que foram despertados pelas reflexões filosóficas quanto aos seus direitos e necessidades, passando eles a almejar uma maior valorização. Pitágoras, pré-socrático, foi o primeiro a desenvolver estudos sobre ques- tões políticas e religiosas. Heráclito constatou que a vida está em constante evolução e transformação, considerando que a luta contra os adversários era o que impulsionava tais mudanças. Todas essas constatações levaram ao surgimento da democracia, dando início à modificação das formas de governo. A Grécia vivenciou a monarquia, a oligarquia, a tirania e a democracia. Contribuição dos filósofos gregos para o Direito Embora no dia a dia todos sejamos capazes de elaborar uma chamada “fi losofi a de vida”, a refl exão realizada por um fi lósofo especialista é bem diferente da nossa. Isso se dá pelo fato de ele conhecer com profundidade a tradição dos antigos pensadores, criando conceitos, de maneira metódica, rigorosa e 33O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga sistemática, procurando, por vezes, invalidar a teoria de antigos fi lósofos, ou até mesmo adaptando as suas teorias para entender fenômenos atuais. Na Grécia Antiga, existia também a figura dos filósofos sofistas, que eram educadores, amantes da retórica e oratória, ensinando como os indivíduos deveriam se portar frente à vida pública, ensinando-os a defender as suas ideais, com argumentos, em um discurso que levasse ao convencimento de quem os ouvisse (o que depois foi aplicado largamente aos profissionais de Direito). Sócrates utilizava, para ensinar, um método bem interessante e inovador, pondo em dúvida tudo o que o indivíduo conhecia para possibilitar o surgimento de um novo conhecimento. A filosofia começou a refletir sobre a existência do Direito, levando em consideração a ética já exercida pelos homens, a qual estabelecia um padrão moral de conduta. Antes da filosofia, os gregos seguiam as normas que acreditavam terem sido esta- belecidas por Zeus, sendo transmitida de forma consuetudinária de acordo com um saber primitivo. Os sofistas começaram a analisar as leis e costumes da época, de acordo com a diversidade cultural e as mudanças das instituições, constatando, frente a essa diversidade e evolução social, qual era o melhor modelo de Estado, go- verno e normas de Direito que deveriam ser criadas, modificadas ou revogadas. Eles lutavam pela criação de leis que reduzissem as desigualdades entre as pessoas, estampada nos privilégios de classes, na escravidão, na subordinação da mulher ao marido e na discriminação entre gregos e bárbaros. Em contrapartida, também havia uma reflexão, buscando saber se a ausência de certas regras poderia ter determinado o fracasso de algumas sociedades ou se a existência de algumas delas é que lhe deram fim. Apenas em 1820 Friedrich Hegel deu início ao que chamamos de filosofia do Direito ou filosofia Jurídica, estudada até hoje pelos alunos de Direito. Esse é um ramo da filosofia que se reocupa única e exclusivamente do entendimento do universo jurídico. Ressaltamos que as teorias dos filósofos socráticos não foram aceitas logo que apresentadas, tanto que Sócrates foi condenado à morte por discordar da O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga34 mitologia, sendo considerado ateu, já que estaria atacando os deuses gregos ao discordar dos mitos. A filosofia exercitava sua reflexão sobre diversas áreas. Por isso, houve um tempo em se começou a se perceber a necessidade de desmembramento do estudo da filosofia, dividindo-a por áreas, a fim de que pudesse cuidar de forma mais completo e eficaz de seu ramo de reflexão, nascendo, então, a Filosofia do Direito, a Filosofia da Educação, Filosofia Cristã, Filosofia Política, entre outras. Ideal de justiça na filosofia grega clássica Para Sócrates, o objeto real de estudo da fi losofi a seria a alma humana, com as suas inquietudes, desejando entender o mundo e os fenômenos com o intuito de alcançar nada mais que a felicidade, ainda que esta seja considerada de formas diferentes por cada um. Pelo pensamento sofi sta, a felicidade só pode ser alcançada por meio de uma conduta correta e bondosa, que é expressa pela ética socrática, que entende que o homem deve ser virtuoso, buscando um bom convívio comunitário e agindo de acordo com o bem da coletividade, reprimindo vontades que possam gerar algum dano a terceiros. Sócrates defendia que as leis advinham das exigências da própria natureza humana, acreditando também na existência de leis instituídas diretamente por deus, estando estas fixadas na consciência humana, fundamentando e servindo como base para a criação das normas pelo homem. O homem na filosofia grega clássica, para ser considerado justo, deveria cumprir todas as leis baseado no melhor convívio para com o próximo e como uma obrigatoriedade para com o Estado. Sólon, legislador e poeta, acreditava que a justiça só era possível onde não existisse uma desigualdade excessiva entre os moradores da pólis. Para Sócrates, o homem praticava o mal por lhe faltar o conhecimento do que seria o conceito do bem para as demais pessoas, defendendo que era mais digno sofrer com uma ação injusta do que tê-la praticado. Platão entendeu a corrupção como sendo algo natural da sua época, con- fiando que a filosofia, por meio dos seus estudos, poderia resgatar a ordem e a 35O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga justiça nas relações sociais. A justiça era uma regra suprema, na qual deveria estar pautado o governo da pólis. Para ele, não seria necessário um Direito Positivo, pois os magistrados deveriam decidir de forma particular caso a caso. Mais tarde, mudou o seu olhar, exaltando, em uma das suas obras, a defesa à família e à propriedade particular, e afirmando que o governo deveria evitar que uns fossem mais abastados do que outros, pois isso seria o motivo maior da discórdia entre o povo. Para Platão, a justiça é a norteadora do Direito, e o Direito é garantidor da justiça. Para Aristóteles (1999), a justiça era uma virtude que só poderia ser praticada de forma consciente — ou seja, segundo o filósofo, o indivíduo precisava ser levado a conhecer os ideais de justiça do seu povo para, assim, poder corroborar com ela. A justiça seria nada mais que ações que visam garantir a felicidade da população. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. Brasília: UnB, 1999. Leituras recomendadas ALMEIDA, Y. Filosofia clássica grega. 2009. Disponível em: <http://bloghistoriacritica. blogspot.com.br/2009/11/filosofia-classica-grega.html>. Acesso em: 25 out. 2017. ALVES, P. V. A importância da filosofia. 2009. Disponível em: <http://www.administra- dores.com.br/informe-se/artigos/a-importancia-da-filosofia/34349/>. Acesso em: 25 out. 2017. BOBBIO, N. Estado governo sociedade. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. BONAVIDES, P. Ciência política.10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. DINIS, P. A importância da filosofia. 2008. Disponível em: <http://thinknow77.blogspot. com.br/2008/01/importncia-da-filosofia.html>. Acesso em: 25 out. 2017. JAEGER, W. W. Paidéia: a formação do homemgrego. São Paulo: Martins Fontes, 1989. PAVIANI, J. Platão e a república. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. Referência O ideal de justiça na filosofia grega clássica: o Direito na Grécia Antiga36 A justiça e o Direito segundo Aristóteles Para compreender a concepção aristotélica de justiça e Direito, é importante ter uma noção do contexto mais amplo em que está inserida — como uma parte (livro V) de Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1984b). Tendo isso em mente, você precisa saber pelo menos três coisas: o que é ética, qual é a sua finalidade e, no contexto aristotélico, qual é a relação entre ética e virtude. A ética, do grego ethos, cujo significado original denota “hábito” ou “cará- ter”, é tanto a conduta do homem que visa ao bem quanto o ramo da filosofia prática que toma como objeto de investigação o bem humano. Dado que nós somos seres dotados de liberdade, isto é, que temos capacidade de deliberar e escolher meios para a realização de certos fins, a ética aristotélica se propõe a estudar aquele que seria, entre todos os fins das nossas ações, o mais perfeito e completo — o bem supremo ou a felicidade (eudaimonia). Com relação à questão da finalidade da Ética, segundo Aristóteles, quando estamos lidando com disciplinas práticas (como é o caso), “o fim que se tem em vista não é o conhecimento, mas a ação” (1095a5). Não parece fazer muito sentido estudá-la tão somente para que você saiba o que é o bem, a despeito do valor prático que isso tem para a sua vida. Assim, a finalidade ou o valor da investigação ética está justamente naquilo que ela pode proporcionar para a vida de alguém (o bem agir e o bem viver), e não pura e simplesmente para o seu mero conhecimento teórico. A ética de Aristóteles é comumente vinculada à noção de virtude (do grego areté). Nesse contexto, o filósofo estabelece uma distinção entre dois tipos de virtude: a virtude intelectual e a virtude moral. O critério distintivo entre ambas repousa sob o seu modo de aquisição. Enquanto a virtude intelectual é gerada graças ao ensino e requer tempo e experiência, a virtude moral é um hábito adquirido pelo exercício. Quanto a esta última, Aristóteles afirma que “as coisas que temos que aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo” (1102a30). Assim, por exemplo, tornamo-nos corajosos praticando atos corajosos e temperantes praticando atos temperantes. Tendo isso em mente, o filósofo afirma que é da natureza das virtudes morais serem destruídas tanto pelo excesso quanto pela falta, e define a virtude como um meio-termo ou uma “mediania” entre ambas. Para entender a simplicidade da ideia, perceba que, se você é daqueles que habitualmente teme tudo, não fazendo nada frente às adversidades, é considerado covarde. Contrariamente, se você não teme absolutamente nada e vai ao encontro de todos os perigos, torna-se temerário. Do mesmo modo, aquele que se entrega aos prazeres e nunca se abstém de nenhum deles torna-se 5A filosofia do Direito de Aristóteles alguém intemperante, ao passo que, se a pessoa evita todos os prazeres, acaba por tornar-se insensível. Com efeito, a virtude moral é um meio-termo entre dois vícios. No caso da coragem, entre a covardia e a temeridade; já a virtude da temperança é o meio-termo entre a intemperança e a insensibilidade. Dito isso, imagino que você esteja se perguntando: mas, afinal de contas, qual é a relação disso tudo com a justiça? Atribui-se a Aristóteles a ideia de que a justiça é um termo polissêmico e, conforme mencionado anteriormente, também o mérito por ter identi- ficado e classificado, de modo harmônico e integrado, diversas acepções do termo em questão. É interessante que você saiba algo sobre a estratégia ou o método comumente em- pregado nas obras de Aristóteles — o método da harmonização das endoxa. A palavra grega endoxa significa “opinião reputada”. Isto é, as ideias que os estudiosos e sábios defendiam acerca do assunto. Trata-se de um método com duas etapas. A primeira parte do método em questão consiste em coletar todas as endoxa sobre um determinado tema. Tais ideais geralmente formavam um conjunto inconsistente. Em um segundo momento, Aristóteles procura colocar todas elas em perspectiva, mostrando que, sob algum aspecto, tais e tais endoxa estão corretas, sob outro as- pecto, outras estão corretas. Com base nisso, ele apresentava uma concepção única, harmônica e integrada do assunto. Para que você seja capaz de compreendê-las, precisa saber que a justiça é, para ele, sobretudo uma virtude que deve ser cultivada pelo hábito. Além disso, há também a ideia de que a justiça é a mais desejável entre todas as virtudes morais, pois ela as acompanha, mas não pode ser avaliada a despeito do próximo. Por exemplo, de modo bem simplificado, se você afugenta um animal selvagem que colocava a sua vida em risco, você agiu com coragem. Agora, se você fizer isso para proteger uma criança indefesa, além de agir com coragem, você agiu com justiça. Nas palavras de Aristóteles, “a justiça vem do outro” (1130a). A justiça apenas aparece no contexto das relações interpessoais, sendo impróprio dizer que a questão sobre a justiça ou a injustiça acontece no âmbito das ações de um homem consigo mesmo. Nesse contexto, ele afirma que “pelos atos que praticamos em nossas relações com as outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos” (1102a30). A filosofia do Direito de Aristóteles6 Depois de apresentar as ideias de que a justiça é uma virtude que se rela- ciona com o outro e de que toda virtude é um meio-termo entre dois vícios, Aristóteles chama a atenção para duas acepções da injustiça. De um lado, é injusto não obedecer às leis (nomos) e, de outro lado, é injusto alguém receber mais ou menos do que lhe é devido. E, por contraste, é justo obedecer às leis e não receber nem mais nem menos do que o devido. Dito isso, a primeira acepção é chamada de justo total, ao passo que a segunda é chamada de justo particular. Quanto a elas, antes de abordar cada uma em separado, é importante que você perceba que, embora sejam acepções distintas, isso não significa que sejam completamente independentes. Pois para que a justiça particular seja passível de reconhecimento e aplicação, faz-se necessário algum critério ou padrão determinado previamente. Isto é, sem algo que nos permita saber de antemão o que é devido a cada um, não é possível considerar e avaliar a justiça em sentido estrito. Tal critério é estipulado, em alguma medida, pelas próprias leis que regem e estabilizam as relações em sociedade. Assim, é no contexto das normas jurídicas que avaliamos o que é legitimamente devido a cada um. Dito isso, vejamos um pouco mais sobre cada uma delas, começando pela justiça total. Justiça total: no cerne da justiça total está a ideia do respeito as normas estabelecidas, tendo em vista o bem comum. Quanto a isso, Eduardo Bittar e Guilherme Almeida afirma que: [...] se a lei (nomos) é uma prescrição de caráter genérico e que a todos vincula, então seu fim é a realização do bem da comunidade, e, como tal, do Bem Comum. A ação que se vincula a legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos é dirigida; como tal, essa ação deve corresponder a um justo legal [...] (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p.147). Assim, se alguém não observa as normas, então é dito injusto nesse sentido total, pois age apenas para si e por si, a despeito do outro e do bem comum da sociedade em que está inserido. Por oposição, o homem justo, em sentido total, é aquele que observa o outro e tem por hábito ou disposição de caráter respeitar as leis. Justiça particular: se a justiça total tem um caráter mais geral e abstrato, o mesmo não ocorre com acepção de justiça em sentido particular. Quanto a ela, basta você pensar que a justiça particular é aquela que se aplica aos casos 7A filosofia do Direito de Aristóteles concretos — nas relações entre os particulares. Nesse caso, é correto afirmar que aquele que age com justiça no casoparticular também estará sendo justo no sentido total e vice-versa. Além disso, há um elemento adicional fundamental para que se possa compreender a justiça particular: a observância à igualdade, pois a justiça particular trata de ações em que a questão da igualdade deve ser observada. Tal acepção de justiça subdivide-se em outras duas: � justiça particular distributiva — tal espécie de justiça particular trata fundamentalmente da questão da distribuição equilibrada de ônus e bônus, por parte dos governantes da pólis, para aquele que fazem parte dela. Assim, ela trata de repartir os bens, os cargos, as obrigações, as honras e etc., entre os membros da sociedade. A justiça particular distributiva possui basicamente três características: a subordinação, a subjetividade e a materialidade. A característica da subordinação aparece em função da relação assimétrica entre dois tipos de seres — os governantes e governados, aqueles que distribuem e aqueles que rece- bem os benefícios e os encargos. Já as características da subjetividade e da materialidade surgem da ideia de que os ônus e os bônus devem ser distribuídos de modo equilibrado e proporcional às capacidades e às necessidades das pessoas que compõem a pólis. Além disso, na medida em que a própria distribuição tem por objetivo a realização do bem comum, ela também tem por objetivo corrigir desigualdades e previamente estabelecidas. Nas palavras de Aristóteles, “se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais” (1131a20). Ou seja, há uma vinculação da justiça distributiva com a ideia de igualdade material, isto é, que devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Nesse contexto, a justiça distributiva é aquela que se encontra no meio-termo entre o excesso e a falta. Assim, os governantes não distribuem e os governados não recebem nem mais, nem menos do que lhes é devido; � justiça particular corretiva — tal espécie de justiça particular consiste na aplicação de reparações nas relações entre os indivíduos, com vistas à manutenção da igualdade. Isto é, ela trata da correção e do resta- belecimento da igualdade violada por algum fato injusto como, por exemplo, a quebra de um contrato de locação ou um roubo. As principais características da justiça corretiva são a coordenação, a objetividade e a formalidade. Ela é coordenada pois, diferentemente da justiça dis- tributiva que depende de uma relação de subordinação, trata de seres hierarquicamente idênticos e simetricamente relacionados. Assim, se A filosofia do Direito de Aristóteles8 você pensar na distinção que fazemos, em nosso ordenamento jurídico, entre Direito Público e Direito Privado, enquanto a justiça distributiva diz respeito às relações públicas entre o Estado e os seus membros, a justiça corretiva diz respeito as relações entre civis. Além disso, com relação ao seu caráter objetivo e formal, diferentemente da justiça corretiva, que avalia aspectos subjetivos e materiais de cada indivíduo, a aplicação da justiça corretiva não envolve esse tipo de consideração. Aristóteles ainda divide a justiça particular corretiva em duas outras su- bespécies, a saber, a corretiva voluntária e a corretiva involuntária. Enquanto a voluntária trata da correção da igualdade na relação entre os indivíduos que escolheram, de modo deliberado, estabelecer um certo vínculo como, um contrato de compra e venda, a justiça corretiva involuntária diz respeito às relações estabelecidas sem o consentimento das partes como, um furto, um sequestro ou uma difamação. Justiça legal versus justiça natural: além das acepções supracitadas, Aris- tóteles também apresenta uma distinção entre aquilo que é justo por natureza (physis) e aquilo que é justo por lei (nomos). Enquanto o justo por natureza é independente da decisão positiva e não está aberto ao debate, o justo legal é aquele estabelecido ou formalizado por convenção, dependendo de um ato legislativo. Nesse contexto, a justiça natural equivale a uma espécie de núcleo duro ou o conjunto de princípios que deriva da natureza mesma do homem. Além disso, segundo Eduardo Bittar e Guilherme Almeida, “é a justiça natural o princípio e a causa de todo movimento realizado pela justiça legal; o justo legal deve ser construído com base no justo natural” (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 166). Assim, há uma prioridade da justiça natural sobre a justiça legal, pois esta retira o seu fundamento de validade daquela. Justiça e equidade: as leis são elaboradas de tal modo que possam abarcar o maior número de casos possíveis. É em função disso que dizemos que lei é geral e abstrata, pois ela lida com o usual. Porém, graças àss suas próprias características essenciais, nem sempre ela será capaz de levar em conta o matiz infinito de possibilidades no caso concreto. Disso resulta um sem número de casos incomuns em que se aplicarmos rigidamente a normativa, acabaremos por gerar uma situação de flagrante injustiça. É justamente para dar conta desse problema que surge a figura da Equidade. Ela vem dar conta das especificidades da aplicação das normas jurídicas ao caso particular e “serve para atenuar os rigores da lei” (1137b10), pois, embora a lei 9A filosofia do Direito de Aristóteles seja rígida, o seu aplicador deve ser prudente, ponderado e flexível. Quanto a isso, cabe ressaltar que não se trata de mera arbitrariedade judicial, mas de um mecanismo para corrigir falhas ou omissões legislativas, em vistas ao próprio projeto de bem comum preestabelecido. A propósito da aplicação da equidade, Aristóteles afirma que “[...] é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão — em outras palavras, dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso” (1137b20). O valor do legado aristotélico para atualidade Existem basicamente três razões que justificam o estudo das ideias aristotélicas nos dias atuais: 1. suas reflexões sobre o Direito e a justiça formaram as bases do debate filosófico sobre o tema; 2. a história da filosofia do Direito posterior consiste, em grande medida, em um movimento de aproximação ou afastamento das ideias que constam nas obras de Aristóteles; 3. o Direito tal qual o conhecemos é profundamente marcado por diversas ideias aristotélicas. Para você ter uma ideia da penetração das suas reflexões no nosso Direito atual, basta perceber que diversos dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico tem origem no pensamento aristotélico. Por exemplo, se você tomar como referência o princípio da legalidade expresso no art. 37 da Constituição Federal (CF), perceberá que se assemelha à ideia da justiça total, já que na essência de ambos está a observância às normas jurídicas postas (BRASIL, 1988). Além disso, você pode traçar diversos paralelos entre o princípio da igualdade, que consta no inciso I do art. 5º da CF, e a justiça distributiva de Aristóteles. Segundo o Art. 5, I, CF, “homens e mulheres são iguais em Direito e obrigações [...]” (BRASIL, 1988). A filosofia do Direito de Aristóteles10 Embora uma leitura literal do dispositivo constitucional possa sugerir que adotamos uma concepção estritamente formal da igualdade, isto é, uma concepção que não leva em conta as diferenças dos indivíduos, em verdade abraçamos uma concepção material da igualdade. Assim, se na base da justiça distributiva está a ideia de que os ônus e os bônus devem ser distri- buídos de tal modo a preservar o justo-meio e propiciar igualdade material entre os cidadãos, com vistas ao bem comum, o nosso princípio da igualdade indica que devemos tratar de modo igualitário aqueles que estão em mesmas condições e de modo desigual aqueles que estão em condição desigual, na medida das suas desigualdades. Ainda no que diz respeito à relação entre o nosso princípio da igualdade e a justiça distributiva de Aristóteles, a aproximação se torna ainda maisforte quando você pensa nas diversas políticas que adotamos em nosso ordenamento jurídico, como, por exemplo, os casos de ações afirmativas, pois, com elas, acabamos distribuindo benefícios maiores para porções desfavorecidas da sociedade, visando diminuir desigualdades historicamente estabelecidas. Quanto a isso, segundo o Superior Tribunal Federal: [...] o legislador constituinte não se restringira a proclamar solenemente a igual- dade de todos diante da lei. Ele teria buscado emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, para assegurar a igualdade material a todos os brasileiros e estrangeiros que viveriam no país, consideradas as diferenças existentes por motivos naturais, culturais, econômicos, sociais ou até mesmo acidentais. Além disso, atentaria especialmente para a desequiparação entre os distintos grupos sociais. Asseverou-se que, para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista — a abranger número indeterminado de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir grupos socialmente determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares (SUPREMO..., 2012). Outro ponto bastante debatido contemporaneamente, cuja origem se en- contra no legado aristotélico, é a equidade na aplicação judicial das normas positivadas, pois nem sempre o legislador é capaz de abarcar com as suas normas gerais e abstratas as peculiaridades do caso concreto. Sobre isso, por exemplo, se você procurar no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que declara que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito”, não será di- fícil perceber uma clara alusão ao justo equitativo de Aristóteles. Na própria sequência da referida lei, no seu art. 5º, que diz que “na aplicação da lei, o juiz 11A filosofia do Direito de Aristóteles atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum”, encontramos novamente a ideia aristotélica de equidade com vistas ao bem comum (BRASIL, 1942). Enfim, os exemplos de ponto de contato entre a nossa concepção e a con- cepção aristotélica do Direito e da justiça são incontáveis. Mas se isso tudo não for suficiente para perceber a importância de Aristóteles para a atualidade, gostaria de oferecer uma última razão adicional. O Direito é uma disciplina altamente sofisticada e elaborada e tentar compreendê-lo é uma tarefa digna de uma vida inteira. Um caminho para isso é encontrar modelos harmônicos e funcionais que sejam mais acessí- veis. Embora a filosofia do Direito de Aristóteles não seja especialmente simples e suscite uma infinidade de questões de interesse exclusivo dos aristotélicos, ela abre um caminho que merece ser percorrido e tem um valor inestimável para todos aqueles que se propõem a compreender mais a fundo o Direito. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1984b. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Abril Cultural, 1984a. BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. Curso de filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Dispo- nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado. htm>. Acesso em: 07 dez. 2017. BRASIL. Decreto-lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília, DF, 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 08 dez. 2017. MEDEIRO, A. M. Aristóteles. Consciência Política, Parintins, 2017. Disponível em: <http:// www.portalconscienciapolitica.com.br/o-site/>. Acesso em: 08 dez. 2017. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Políticas de ação afirmativa e reserva de vagas em universidades públicas — 2. Informativos STF, Brasília, DF, n. 663, 23–27 abr. 2012. Dis- ponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo663. htm>. Acesso em: 10 dez. 2017. A filosofia do Direito de Aristóteles12 Leituras recomendadas FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão dominação. São Paulo: Atlas, 1990. MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2016. MORRIS, C. Os grandes filósofos do Direito: leituras escolhidas em Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. PLATÃO. Hípias Maior. Curitiba: Ed. Universidade Federal do Paraná, 1980. PLATÃO. Hípias Menor. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. PLATÃO. Protágoras. Lisboa: Relógio D´água, 1999. PLATÃO. Sofista. São Paulo: Victor Civita, 1972. PLATÃO. Teeteto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. REALE, M. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 2015. REALE, M. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. VILLEY, M. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 13A filosofia do Direito de Aristóteles
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