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1 NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense LTDA, 2018. FILOSOFIA DO DIREITO A FILOSOFIA DO DIREITO NA ANTIGUIDADE SUMÁRIO: A história da Filosofia do Direito. Fase pré-helênica. Filosofia grega pré- socrática. Os sofistas. O pensamento socrático. A Filosofia Jurídica de Platão. O pensamento aristotélico. A Escola Estoica. A Escola Epicurista. A Filosofia do Direito em Roma. Observações finais. A HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A pesquisa histórica de nossa disciplina revela conhecimentos que serviram de base para desenvolvimentos ulteriores e outros que, ainda hoje, conservam atualidade plena. Haveria também aquele saber que não logrou nenhuma forma de projeção, configurando apenas opiniões. O presente estudo se limitará àqueles conhecimentos, pois as simples opiniões não devem ter acesso aos compêndios. Segundo Hegel, o significado de um dado histórico advém de seu liame com algum fato geral e tão somente por isso. Não se pode compreender, pensa o filósofo alemão, uma história que se limite à exposição de opiniões, pois essas podem formar unicamente “um objeto de inútil curiosidade”. A investigação apenas erudita possui esse sentido, porque “consiste em saber quantidade de coisas inúteis desprovidas de interesse intrínseco, a não ser o interesse de serem conhecidas”. 1 A investigação histórica favorece a compreensão da cultura contemporânea, pois o grande livro da sabedoria foi escrito ao longo dos séculos, cujas primeiras páginas antecederam ao pensamento helênico. A sua importância nas disciplinas filosóficas é notória, pois, como anota Del Vecchio, “(...) o presente, sem o passado, carece de sentido; e o passado revive no presente”. 2 A sabedoria humana foi alcançada pela soma de experiências de sucessivas gerações. Foi a herança cultural, ou transmissão de conhecimentos entre as gerações, que permitiu a formação das ciências. A sedimentação do saber foi constante. Em algumas épocas o processo se fez mais veloz, por intermédio de notáveis sábios, enquanto em outras registrou-se lentidão, seja em decorrência da falta de cientistas de expressão, seja pelas condições adversas do momento histórico, que ocorrem, por exemplo, em períodos de guerra e quando o regime político cerceia a liberdade em suas diversas formas de manifestação. A análise histórica é rica em perspectivas e, entre outras lições, revela os fatores que induziram as fases de apogeu e de declínio, significando isso, para os contemporâneos da ciência, a oferta de dois modelos básicos: o de êxito e o de fracasso. Os ensinamentos que a história do pensamento consigna não se limitam, portanto, à apresentação de conhecimentos específicos, pois se estendem também aos fatos relevantes que margearam o saber. Sendo a Filosofia do Direito uma reflexão sobre um objeto flexível, uma vez que a realidade a que se refere modifica-se continuamente com adaptação às condições de cada povo e de cada época, seria útil a sua pesquisa histórica? O conjunto de informações teria algo a oferecer na atualidade? Se o homo juridicus adota um positivismo radical, por certo responderá negativamente. Os autores que seguem orientação espiritualista tendem a responder de modo afirmativo, pois o Direito, embora https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg139c5178e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg139c5178e2 2 seja móvel, possui elementos invariáveis, comuns aos povos na diversidade do tempo e do espaço. É que nem tudo é convencional no Direito. Há certos princípios e normas que necessariamente devem ser consagrados pelo Estado, de vez que refletem a própria dignidade do ser humano. Há valores básicos que foram cultivados pelos cidadãos atenienses e romanos e que hoje são preservados tanto em nosso meio como em regiões estranhas, justamente porque se referem à parte estável do homem, à sua natureza. FASE PRÉ-HELÊNICA É na Grécia antiga onde vamos encontrar, propriamente, o início da Filosofia do Direito, malgrado as primeiras reflexões dessa natureza tenham precedido ao pensamento helênico, pois o Direito, de maneira empírica, envolto ainda com a Religião, Moral, Regras de Trato Social, surgira concomitante ao florescimento das civilizações do passado e, como se sabe, o pensamento jurídico exerce uma visão atrativa em relação ao filosófico. Como precioso arquivo do saber, a História da Filosofia do Direito deve registrar tão somente fatos significativos do pensamento, ideias pioneiras que levaram subsídios às ulteriores correntes jurídico-filosóficas que se formaram. 3 Onde o espírito religioso predominou pouco se pode cogitar a respeito de um pensamento jusfilosófico, pois a lei era considerada a expressão da vontade divina, e o seu acatamento, uma imposição de fé. Tal dogmatismo atuava como obstáculo ao pensamento filosófico, que requer liberdade plena, nenhum condicionamento além dos ditames da razão e da experiência. Apesar do sentido religioso da cultura dos egípcios, indianos, chineses, hebreus, é comum aos autores reportarem-se ao pensamento desses povos, vislumbrando ali meditações jusfilosóficas. No Egito antigo, o famoso Livro dos Mortos tanto revela o sentimento de justiça daquele povo quanto o domínio da Religião sobre o Direito. Perante o Tribunal de Osíris, conforme a narrativa, para obter a felicidade eterna o morto precisava proferir, diante da deusa Maat, vocábulo que significa lei, uma oração, cujo teor mostra o sentido religioso do dever de justiça, bem como a percepção de princípios e regras devidamente ajustados ao Direito Natural. Na Índia primitiva destacaram-se as doutrinas do bramanismo, budismo e jainismo. Um dos princípios filosóficos que se eternizaram no âmbito social, hoje desdobrado em várias diretrizes do pensamento, foi o da igualdade da natureza humana, proclamado por discípulos de Buda (563-484 a.C.), ao combaterem o regime de castas. Conhecido no mundo ocidental por Confúcio (551-479 a.C.), Kung-fu-tsé, ou “Mestre Kung”, projetou o pensamento chinês no âmbito da Filosofia, escrevendo algumas obras jurídico- filosóficas: Ta-hio, ou Grande Estudo; Chon-yung, ou Da Invariabilidade do Justo Médio; Lin-yu, ou Conversas Filosóficas. Para ele o valor do justo era fundamental: “Se se dispõe de homens justos, o governo prosperará; sem eles, o governo desaparecerá”; “pode-se obrigar ao povo a seguir os princípios da justiça e da razão, mas não se pode obrigar a compreendê-los” (Lin-yu, VIII, 9). Além de Confúcio, destacou-se o pensamento de seu discípulo Mêncio e de Lao-tsé, sendo que este, ao lado de Chuang-tsé, criou a chamada filosofia do taoísmo. Entre os hebreus, a reflexão jurídica se manifestou em livros religiosos, basicamente no Pentateuco, também denominado Torá ou Lei. Atribuída a Moisés, aquela obra apresenta cinco livros: Gêneses, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, que reúnem preceitos religiosos e legais, dispersos em narrativas históricas. Alguns historiadores colocam em dúvida a autoria desses https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg140c5179e1 3 escritos. Para Jorge Weber eles “procedem sem dúvida do próprio Moisés”. 4 Em frase que encerra sentido ambíguo, Ampère revela a sua admiração pela obra de Moisés: “Ou Moisés possuía uma cultura científica igual à que temos no século XIX, ou era inspirado.” 5 Da maior significação foi o Decálogo de Moisés, que contém regras gerais baseadas na ordem natural das coisas, e por isso, em grande parte, possui atualidade. Convencido de que as leis que elaborara eram justas, Moisés perguntou: “E que gente há tão grande, que tenha estatutos e juízes tão justos como toda esta lei que hoje dou perante vós?” (Deuteronômio. 4, v, 8.) No livro dos Salmos, que teria sido elaborado por David, encontram-se também numerosas referênciasà justiça e equidade, refletida esta no critério de atenuação da lei por um gesto de misericórdia divina. Referida em 58 versículos dos Salmos, a justiça se apresentava como ordenamento divino e a sua observância propiciava a perfeição individual e coletiva. FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA A Filosofia grega atingiu o seu ponto mais alto com as doutrinas de Sócrates, Platão e Aristóteles, que ainda hoje exercem fascínio nos pensadores, tal a profundidade de suas reflexões e a amplitude dos temas abordados. A vocação grega para o campo das especulações manifestou-se mais cedo, porém, com a Escola Jônica (séc. VI a.C.), a qual, de índole materialista, pesquisou no âmbito terrestre o elemento que seria a origem do mundo sensível. A filosofia desenvolvida pelos jônios foi de natureza cosmológica, e seu ponto de contato com a nossa disciplina operou-se ao conceber o Direito como fenômeno natural. Anaximandro de Mileto, um de seus integrantes, identificou a noção de justiça com o Universo, enquanto Empédocles, que desenvolvera a teoria dos quatro elementos (água, ar, fogo e terra), recorria ao valor justiça para explicar o cosmo. Com a Escola Eleática (séc. VI a V a.C.), a filosofia grega não alterou o rumo de suas investigações, mantendo-se ainda no período cosmológico. Entretanto, os eleatas, com Parmênides, Xenofontes, Zenão de Eleia e Meliso de Samos foram mais profundos em suas reflexões, passando a um plano metafísico ao sustentarem que o ser verdadeiro é uno, imutável e eterno. Para os membros dessa Escola, o ser não pode surgir do não ser. Segundo Parmênides, o Direito seria o fator da imutabilidade do ser, pois tudo no universo se achava subordinado à justiça, e esta não permitia que algo nascesse ou fosse destruído. No período pré-socrático foi a doutrina da Escola Pitagórica, ou Itálica, a que desenvolveu noções mais atinentes à nossa disciplina. Pitágoras de Samos (582 a 500 a.C.), seu fundador, fixou- se em Crotona, Sul da Itália, onde fundou uma academia, na qual se cultivou uma rigorosa filosofia moral. Por motivos de natureza política os membros da Escola foram perseguidos e expulsos de Crotona, ocorrendo a dissolução daquela associação de pensadores. Ao que tudo indica, Pitágoras não escreveu livros, mas o seu pensamento encontra-se registrado na obra Sobre a Natureza, de Filolau, seu mais notável seguidor. Pensavam os pitagóricos que a Filosofia era o meio de purificação interna, ideia essa que séculos mais tarde influenciou o idealismo ético de Platão. Objetivando a academia o preparo e formação de dirigentes, aqueles pensadores promoveram uma aproximação, em seus estudos, da Filosofia com a Política. A doutrina da Escola Pitagórica pode ser definida como um sistema filosófico fundado em números, considerados a essência de todas as coisas. Tal concepção foi aplicada aos domínios da Filosofia do Direito, pois definiram a justiça como igualdade entre o fato e a conduta https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg141c5180e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg134c5175e2 4 correspondente: um crime, uma penalidade; uma tarefa, uma retribuição. Expressa na fórmula “aquilo que um sofre por algo”, considerada certeira por Truyol y Serra, 6 a noção pitagórica de justiça como igualdade foi mais tarde desenvolvida pelo gênio Estagirita. O valor justiça foi simbolizado pela figura geométrica do quadrado, em razão da absoluta igualdade de seus lados, e pelos algarismos 4 e 9, pois resultantes da multiplicação, por si mesmos, de um número par e de um ímpar. Quanto ao Direito, este foi definido por Pitágoras como o igual múltiplo de si mesmo, concepção essa que não logrou senão vagas interpretações, entendendo Pontes de Miranda que aquele sábio desejou, possivelmente, “expressar o imutável que há na sucessão das formas e a despeito delas”. OS SOFISTAS Com o aparecimento dos sofistas houve um giro copernicano na filosofia grega, que abandonou as investigações cosmológicas em prol de indagações centralizadas no homem, iniciando-se a fase antropológica da Filosofia. O aparecimento da Sofística, no século V a.C., que teve em Protágoras, Górgias, Hípias, Trasímaco, os seus corifeus, não se registrou por acaso, mas em decorrência do fato histórico da democratização de Atenas que, à época de Péricles, renunciara ao regime aristocrático. Os sofistas eram cidadãos cultos, bons oradores, que desejavam ensinar a arte e a técnica política e por isso dedicavam especial atenção à Retórica, visando ao preparo de novos dirigentes. Outro fato que motivava os sofistas e valorizava as suas orientações era a circunstância de que, na Ágora, os cidadãos expunham oralmente, diante dos juízes, as suas próprias causas. Pelo fato de não terem deixado escritos, suas ideias são conhecidas pelas obras de seus adversários, especialmente pelos diálogos platônicos. Os sofistas não chegaram a formar uma escola, pois não adotaram uma linha única de pensamento, sendo-lhes comum a divergência ou contradição de ideias, embora convergissem seu estudo para idêntico alvo: o homem e seus problemas psicológicos, morais e sociais. Não obstante defendessem, algumas vezes, teses absurdas, provocando reações, não tinham o hábito de fundar seus argumentos em princípios religiosos, daí Hans Welzel ter realçado que o aparecimento dos sofistas trouxe para o espírito grego o advento da Ilustração. 8 Entre os autores, são classificados como individualistas e subjetivistas, além de negadores da ciência, pois entendiam que toda pessoa tem o seu modo próprio de ver as coisas, fato esse que inviabilizaria qualquer ciência, pois nenhuma delas pode constituir-se por meras opiniões isoladas. Em decorrência dessa premissa, admitiram apenas o caráter relativo da justiça e do Direito, que seriam contingentes e de expressão convencional. Colocando em análise a indagação se a justiça se fundava na ordem natural, de um modo geral negaram, sob o argumento de que “se existisse um justo natural, todas as leis seriam iguais”. 9 Coube a um sofista – Protágoras – a proclamação de que “o homem é a medida de todas as coisas”, ideia essa que fortalece a tese em torno da existência de um direito que reúne princípios eternos, imutáveis e universais, pois fundado no homem, em sua natureza. O PENSAMENTO SOCRÁTICO O período ático da filosofia grega iniciou-se com Sócrates (470 ou 469 a 399 a.C.) e foi completar-se com o pensamento de Platão e de seu discípulo Aristóteles. A exemplo dos sofistas, https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg142c5181e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg143c5182e2 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg143c5182e3 5 seus contemporâneos, Sócrates atraía ouvintes, com eles se reunindo em praças públicas, mas enquanto os primeiros proferiam palestras e cobravam, ele mantinha fecundos diálogos e nada recebia em troca. O pensamento socrático acha-se consignado nas obras Apologia e Memoráveis, de Xenofontes, e nos Diálogos de Platão. Conforme a crítica de Rafael Gambra, ambos seriam péssimos biógrafos, “o primeiro por carência, o segundo por exagero”. 10 Particularmente notável foi o método empregado pelo filósofo na sua busca do saber. Interessado em refletir sobre determinado tema, dirigia pergunta ao seu interlocutor e, de cada resposta, formulava outra indagação, provocando embaraços crescentes para o interrogando. Essa fase do método é denominada ironia. Após seu interlocutor reconhecer o equívoco das respostas, Sócrates demonstrava o que era certo, ocorrendo assim a maiêutica, cujo vocábulo deriva de maia, parto de ideia. Mais tarde a maiêutica foi aperfeiçoada por Platão, que a transformou em sua dialética. Enquanto os sofistasse intitulavam conhecedores da verdade, Sócrates afirmava: “A única coisa que eu sei é precisamente que nada sei.” Por essa expressão quis apenas mostrar que o homem da ciência deve adotar postura de humildade diante do universo do saber. Uma das premissas de seu pensamento era a inscrição do oráculo de Delfos: Nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo). Entendia não ser possível ao homem conhecer a realidade objetiva desconhecendo o seu próprio ser. Pregou, então, a filosofia do autoconhecimento. O pensador, que não se interessara pela Cosmologia e nem pelas questões políticas, não formulou um sistema sobre o Direito, deixando considerações esparsas sobre o problema da lei e da justiça. Com a consciência de cumprir os seus deveres de cidadão, ao ser indagado por Hípias quanto à noção de justiça, respondera-lhe ser desnecessário dizer com palavra o que revelava com o exemplo de sua conduta. O grande sábio identificou a justiça com a lei: “Eu digo que o que é legal é justo;” “quem obedece às leis do Estado obra justamente, quem as desobedece, injustamente.” Sócrates orientava no sentido da plena obediência à lei, proclamando ser um ato de injustiça a sua violação, pois a mesma seria uma decorrência de um consentimento dos cidadãos, implicando o desrespeito em quebra de um pacto. Nessa ideia, Guido Fassó vislumbra uma concepção contratualista. 11 Tal perspectiva de pensamento demonstra afinidade com a doutrina positivista, que somente viria surgir muitos séculos após. Na riqueza das ideias socráticas encontram-se também manifestações de natureza jusnaturalista, pois, no diálogo com Hípias, o sábio aborda sobre leis não escritas de caráter universal e que seriam de origem divina. Não apenas no pensamento do filósofo, mas também pelo último exemplo de vida, nota-se uma valorização dos princípios de segurança jurídica. Ao ser condenado injustamente a beber sicuta, sob alegação de que corrompia a juventude com alusão a novos deuses, Sócrates negou a sua fuga aos amigos, dizendo-lhes que “era preciso que os homens bons cumprissem as leis más, para que os homens maus respeitassem as leis sábias”. Com o seu gesto, Sócrates, no conflito entre os valores justiça e segurança, optou por este último. A FILOSOFIA JURÍDICA DE PLATÃO Assimilando de Sócrates, seu grande mestre, o método de reflexão por diálogos, o ateniense Platão (427-347 a.C.) produziu numerosos escritos filosóficos, notáveis pela profundidade e força https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg144c5183e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg144c5183e2 6 lógica de suas ideias e ainda pela elegância do estilo. Esse valioso conjunto de forma e conteúdo levou Bernard Shaw, após a leitura dos diálogos, a rever o seu convencimento quanto ao progresso da cultura, pois “se a humanidade produziu há vinte e cinco séculos um tal homem, forçoso é confessar que a cultura não tem progredido em todos os seus aspectos”. 12 Descendente de família nobre, Platão recebeu educação esmerada, e aos vinte anos de idade passou a acompanhar as lições de Sócrates, ao lado de quem permaneceu até que a morte lhe tirasse o grande mestre. Mais tarde, já aos quarenta anos, após haver encetado viagens ao Egito e sul da Itália, por onde conviveu com os pitagóricos e com os dois Dionísio, retornou a Atenas e ali fundou a sua Academia, na qual se cultivavam as ciências e a Filosofia, permanecendo naquele centro de estudos até o fim de sua existência. Dos vinte e seis diálogos conhecidos, A República, que mais propriamente deveria denominar- se “O Estado”, é a obra mais citada, pois nela se acham reunidas as ideias do filósofo nos domínios da Ética, Estética, Psicologia, Teologia e Metafísica. Nos diálogos, a presença de Sócrates é constante, a ponto de criar embaraços aos intérpretes quanto à distinção do pensamento dos dois filósofos. Destacam-se, ainda, com particular interesse para a nossa disciplina, os diálogos constantes em O Político e em As Leis. Enquanto no pensamento socrático a ética possui conotação utilitária, pois identificara o bem com o útil e agradável para o homem, em Platão aquela noção se apresenta desprovida de condicionamento, pois o bem teria valor em si mesmo. Muitos séculos após, Emmanuel Kant (1724-1804) desenvolveria igual linha de pensamento. De capital importância em seu sistema filosófico é a noção de ideia, a qual não se confunde com o sentido comum do vocábulo, com objeto do pensamento humano. É algo exterior, que existe no mundo da realidade objetiva e que se vê. A ideia se identifica com o universal, pois é essência depurada de individualidade. Marcado, na interpretação de alguns autores, pela condenação de Sócrates, Platão teria se preocupado em conceber o Estado perfeito, que seria governado pelos mais sábios, onde a justiça prevaleceria. Comparou o Estado com o homem em dimensão grande, pois seria dotado de organismo completo e de perfeita unidade. A análise sobre o Estado revela que a preocupação maior do filósofo não era com o Estado em si, pois esse é mostrado apenas como instrumento de realização da mais completa justiça. Este valor, portanto, é o alvo principal de todo o sistema imaginado. A justificativa para a existência do Estado revela que o filósofo o concebeu como processo de adaptação criado pelo homem para suprir as suas deficiências, pois surgiria como decorrência da impossibilidade de cada pessoa, diretamente, prover as suas mais variadas necessidades. Os laços de harmonia que devem imperar na sociedade apenas seriam possíveis em um Estado organizado racionalmente. Considerando que a propriedade e a família eram dois fatores de instabilidade social, pois provocavam divisões entre os homens e confronto do interesse geral com o particular, preconizou a extinção das duas instituições. Ao Estado seria confiada a tarefa de criar e educar os jovens, prática que induziria maior respeito entre os membros da comunidade e a extinção dos privilégios de parentesco. As uniões, por seu lado, não seriam livres, competindo aos magistrados a sua disposição. O poder do Estado seria ilimitado e, em face dele, os cidadãos não possuíam algum direito. Os indivíduos, em verdade, pertenciam ao Estado. A sociedade no Estado ideal seria formada pelos artesãos, que seriam laboriosos; pelos guerreiros, que seriam fortes; pelos magistrados, que seriam dotados de racionalidade. Entre https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg145c5184e1 7 as classes haveria uma hierarquia, pois os artesãos e guerreiros deveriam subordinar-se aos magistrados, que seriam governantes e representados pelos filósofos. Cada membro da sociedade deveria desempenhar papel correspondente às suas aptidões. Ao nascer, Deus colocaria ouro nos que iriam governar; prata, na formação dos guerreiros; ferro e bronze nos agricultores e artífices. Admitia, porém, que um tipo de metal pudesse produzir uma geração de outro metal. A justiça somente seria alcançada na medida em que as pessoas desempenhassem na sociedade um papel compatível com as suas aptidões. Conforme destaca Felice Battaglia, não há de se inscrever o nome de Platão entre os precursores do comunismo, já que as suas considerações foram de ordem ética e política, não se estendendo ao setor econômico. 13 Em sua obra As Leis, produzida na velhice, Platão alterou vários princípios que adotara em A República. Em lugar de três classes sociais, reconheceu quatro, cujo critério de distinção se basearia na renda individual. Aceitou o casamento monogâmico em todas as classes e também o direito de propriedade sobre a terra, embora com várias restrições. Platão, que concebera o estado sem lei, modelo esse que confiava aos juízes a solução justa das questões, embora convencido de seu acerto, reconheceu que o mesmo seria inexequívelnaquela época, pois não havia magistrados assim habilitados em número suficiente. Ainda quanto à lei, entendera o filósofo que os textos deveriam ser acompanhados de exposição relativa à finalidade do ato normativo. O PENSAMENTO ARISTOTÉLICO Com Aristóteles (384-322 a.C.) encerra-se o chamado período ático da Filosofia grega, iniciado com Sócrates e continuado com Platão. Essa fase áurea do pensamento estendeu-se entre os séculos V e IV a.C. e foi considerada como idade de ouro da cultura humana. Nascido em Estagira, na Trácia, Aristóteles frequentou a Academia de Platão durante duas décadas, e com a morte de seu mestre empreendeu viagens pela Grécia, exercendo, a seguir, as funções de preceptor de Alexandre, filho de Felipe, rei da Macedônia. Mais tarde, retornando a Atenas, ali fundou uma escola de Filosofia, que recebeu o nome de Liceu. Denominou- se peripatética a Filosofia ensinada naquela escola, isso em razão de o Estagirita adotar a prática da caminhada entre as alamedas cobertas (peripatoi) enquanto dissertava aos seus discípulos. Parte da extensa produção cultural do filósofo, que abrange tanto a Filosofia quanto as ciências, foi escrita naquela época, e entre as principais obras destacam-se: Organon ou Tratado de Lógica; Ética a Nicômaco e Política, estas duas com maior interesse para os nossos estudos. De todos os filósofos da Antiguidade, foi Aristóteles quem desenvolveu mais extensamente os temas ligados à Filosofia Jurídica. Para ele o Estado constituía a expressão mais feliz da comunidade humana e o seu vínculo com o homem era de natureza orgânica, pois “assim como não é possível conceber a mão viva separada do corpo, assim também não se pode conceber o indivíduo sem o Estado”. 14 Do ponto de vista social o homem foi chamado de animal político, no sentido de que possuía instinto de vida gregária. Fora da sociedade, segundo o Estagirita, o homem seria um bruto ou um deus. Para que o homem vivesse isoladamente seria necessário, portanto, que não se situasse dentro dos padrões de normalidade. Séculos mais tarde, Tomás de Aquino, seu grande seguidor na Idade Média, enumerou três hipóteses para a vida extrassocial: mala fortuna, excellentia naturae e corruptio naturae. https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg146c5185e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg147c5186e1 8 Diferentemente de seu mestre, que situava as questões filosóficas em um plano de profunda abstração, Aristóteles procurava ligar-se mais aos fatos empíricos, na contemplação dos fenômenos sociais. Apesar de desenvolver amplamente a reflexão sobre a justiça, considerou legítimo o regime da escravidão, pois a vida, ao mesmo tempo em que requeria a atividade intelectual da classe dirigente, necessitava da mão de obra dos agricultores e artífices. A escravidão, que se impunha como ordem natural das coisas, deveria extinguir-se quando pudesse ser substituída pela máquina. Del Vecchio, como tantos outros autores, procurou justificar a posição de Aristóteles, alegando que a sociedade daquela época adotava aquele modelo de organização, deixando entrever que o Estagirita fora influenciado pelos fatos de seu tempo. Tal argumento seria ponderável em função de um homem médio, não para um filósofo que exercita, permanentemente, a arte da superação; que é capaz de ver além da física; que era mestre, enfim, na ciência da abstração. Os filósofos que antecederam Aristóteles não chegaram a abordar o tema da justiça dentro de uma perspectiva jurídica, mas como valor relacionado à generalidade das relações interindividuais ou coletivas. Em sua Ética a Nicômaco, o Estagirita formulou a teorização da justiça e equidade, considerando-as sob o prisma da lei e do Direito. Tão bem elaborado o seu estudo que se pode afirmar, sem receio de erro, que muito pouco se acrescentou, até nossos dias, àquele pensamento original. Aprovando a assertiva de Teógnis, para quem “na justiça estão compreendidas todas as virtudes”, o filósofo considera justo o homem respeitador da lei e injusto o sem lei. Com esta passagem, não pretendeu expressar uma profissão de fé cega na lei, pois a sua atenção não se achava concentrada em lei de qualquer conteúdo, mas naquelas que comungam com o seu sentido virtual, conforme se pode concluir da seguinte passagem de sua Ética a Nicômaco: “(...) nas disposições que tomam sobre todos os assuntos, as leis têm em mira a vantagem comum, quer de todos, quer dos melhores ou daqueles que detêm o poder ou algo nesse gênero; de modo que, em certo sentido, chamamos justos àqueles atos que tendem a produzir e a preservar a sociedade política e felicidade e os elementos que a compõem.” 15 Ao elaborar a sua noção de justiça, Aristóteles assimilou dos pitagóricos as medidas igualdade e proporcionalidade, afirmando que a justiça envolvia pelo menos quatro termos: “(...) porquanto duas são as pessoas para quem ele é de fato justo, e duas são as coisas em que se manifesta – os objetos distribuídos.” 16 A justiça não implicaria apenas igualdade, tomada esta como proporção aritmética, mas também proporcionalidade, que “é uma igualdade de razões”. Classificou a justiça em duas espécies básicas: distributiva, que denominou proporcional, e comutativa, por ele chamada de retificadora ou corretiva. A distributiva se configuraria com a distribuição, proporcional ao mérito de cada pessoa, de bens, recompensas, honras. A comutativa ocorreria nas relações de troca, consistindo na igualdade entre o quinhão que se dá e o que se recebe. Ela poderia ser voluntária, como nos contratos, e involuntária, como nos delitos. Na última hipótese caberia ao juiz “igualar as coisas mediante penas”, aspecto esse que levou Del Vecchio a tratá-la por justiça judicial. Ao rechaçar a ideia pitagórica de reciprocidade como prática justa, revela a sua oposição à pena de talião sem, contudo, a ela referir-se nominalmente: “Ora, reciprocidade não se enquadra nem na justiça distributiva, nem na corretiva, e no entanto querem que a justiça do próprio Radamanto signifique isso: Se um homem sofrer o que fez, a devida justiça será feita.” 17 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg148c5187e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg148c5187e2 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg148c5187e3 9 A noção de equidade foi exposta por Aristóteles como “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade”. O filósofo apresentou a equidade como critério de preenchimento de lacunas: “(...) quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não é abrangido pela declaração universal, é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão...” 18 O filósofo comparou a equidade à régua de lesbos que, por ser de chumbo, possuía flexibilidade suficiente para se adaptar à forma da pedra. Analogamente o juiz deveria proceder, adaptando a lei aos fatos concretos. A genialidade do Estagirita luziu também nos domínios do Direito Comparado, ao elaborar comentários sobre inúmeras constituições de sua época, chegando aos nossos dias, porém, apenas os referentes à Constituição Ateniense. Foi original, ainda, ao preconizar a célebre divisão dos três poderes do Estado, teoria essa, muitos séculos depois, amplamente estudada por Montesquieu. A ESCOLA ESTOICA O estoicismo é uma doutrina que teve os seus antecedentes com a Escola Cínica, sobretudo no pensamento de seus corifeus Antístenes (445-370 a.C.) e Diógenes (413-323 a.C.). Para eles, os homens deveriam limitar as suas necessidades e depender menos das coisas. Cada cidadão deveria agir livremente e desatar os laços que o prendiam ao Estado e se transformar em cidadãodo mundo (cosmopolita). A atenção dos homens deveria voltar-se para as leis da virtude e não para os costumes e leis impostas pelo Estado. Pregaram o retorno ao primitivo estado de natureza. Para Ruiz Moreno, os cínicos desenvolveram “uma espécie de anarquismo passivo”. 19 Fundada por Zenão de Cítio (335-263 a.C.), a Escola Estoica teve a sua doutrina sistematizada por Crisipo, no século III a.C., e se expandiu por toda a Grécia, indo projetar-se em Roma, onde obteve notáveis seguidores: Cícero, Sêneca, Marco Aurélio, Epíteto, cujo pensamento será objeto de apreciação à parte. Sob a influência de Heráclito, os estoicos adotaram uma filosofia panteísta, sustentando que o universo seria conduzido por um princípio geral, logos, a razão, estando o mundo da matéria impregnado de racionalidade. O homem, também sujeito àquele princípio, seria essencialmente racional. Nos domínios da ética, assimilaram o pensamento dos cínicos, mas de uma forma purificada, pois para esses o homem deveria viver de acordo com a natureza em geral, enquanto para os estoicos a natureza em questão seria a comum aos homens. O bem, para eles, estaria na resignação, e verdadeiramente sábio seria o que soubesse superar as suas paixões e se livrar de condicionamento exterior. O homem sábio, portanto, desfrutaria de liberdade interna. Esta, que somente seria alcançada com o aperfeiçoamento do espírito, nivelaria os homens, pois diante dela a diferença de classes não teria sentido, desaparecendo a distinção entre as pessoas livres e os escravos. Estando o universo animado pela razão, esta seria a fonte suprema a orientar os homens e suas leis, e sendo única não poderia ditar senão um direito e um Estado; daí Zenão de Cítio ter pregado a formação de um Estado universal. Pelos princípios gerais do estoicismo se depreende a existência de um Direito Natural, que seria aquele em total harmonia com a razão que governa o universo. Com a implantação do Estado único, o Direito Natural tenderia a se efetivar espontaneamente, prescindindo de leis, pois estas não seriam mais necessárias, conforme o pensamento do fundador da Escola. https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg149c5188e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg149c5188e2 10 A ESCOLA EPICURISTA Criada por Epicuro de Samos (341 a 270 a.C.), a Escola Epicurista, do ponto de vista da ética, foi um prolongamento da Escola Cirenaica, com a virtude, todavia, de superá-la. Seu fundador teria produzido inúmeros tratados, que não chegaram, porém, aos dias atuais, salvo por abundantes fragmentos. Em Atenas, no ano 306 a.C., Epicuro fundou uma escola filosófica que levou o nome de “filósofos do jardim”, justamente porque os encontros se faziam em um jardim. A Escola Cirenaica, criada por Aristipo de Cirene, no século IV a.C., havia exposto uma doutrina ética de cunho utilitário, sendo por isso também chamada de Escola Hedonista, cujo vocábulo deriva do grego hedone, prazer. O homem deveria procurar, com as suas ações, alcançar o prazer e afastar a dor, com o prazer identificado restritamente com as sensações físicas. Negaram, os cirenaicos, a existência de um direito natural, de vez que não admitiam o justo por natureza, mas apenas como produto de convenções humanas. A ética desenvolvida pela escola de Epicuro conservou o sentido hedonista impregnado pelos cirenaicos, mas o prazer concebido já não seria o das sensações físicas, mas o provocado pelo espírito. Os epicuristas abordaram o tema de um modo mais racional e refinado do que seus antecessores. Eles chegaram a criar uma hierarquia entre os prazeres, tendo Epicuro situado o prazer da amizade em primeiro plano. Os filósofos dessa escola aconselhavam a temperança como meio de assegurar melhores condições para o homem desfrutar dos prazeres. Os epicuristas entendiam que o ser humano não era sociável por natureza, mas por conveniência. Quando em estado de natureza o homem vivia na dor, visto que permanecia em conflito com o semelhante. Para evitar a dor e favorecer a busca do prazer, os homens teriam criado o Estado. No momento, porém, em que este deixar de cumprir a finalidade para a qual foi gerado, o pacto poderá ser rompido. Ora, como o Estado se estrutura e organiza a sociedade mediante leis, estas teriam, consequentemente, o objetivo de facilitar o prazer e de afastar a dor. O epicurismo elaborou, destarte, o esboço fundamental da teoria do contrato social. A teoria do Estado, assim formulada, na visão de Giorgio Del Vecchio revelaria “situação de anarquia potencial”. 20 A FILOSOFIA DO DIREITO EM ROMA Ao gênio especulativo dos gregos corresponde, na Antiguidade, a vocação romana nos domínios da Ciência do Direito. Enquanto os primeiros foram originais na Filosofia, os segundos foram extraordinários na elaboração de seu Jus Positum. Roma não chegou, é certo, a desenvolver uma filosofia inovadora, pois seus cultores inspiraram-se em fontes gregas, contudo não seria correto afirmar-se que os romanos foram inapetentes nessa área do conhecimento. Com efeito, os romanos não disporiam de recursos intelectuais para a construção de seu sistema jurídico, apreciado e estudado ainda hoje em todas as partes, caso não fundassem seu pensamento em princípios sólidos, somente alcançáveis pela via filosófica. Das várias correntes filosóficas que lograram ramificações em Roma, o estoicismo foi a que obteve maior penetração, sobretudo com as obras de Cícero, Sêneca, Marco Aurélio e Epíteto. A influência da Escola de Zenão de Cítio é explicada, em parte, pelo caráter austero dos romanos, que se identificaram com a linha ética daquela filosofia e, ainda, pela tendência expansionista de seu povo, que encontrou apoio na teoria do Estado único. https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg150c5189e1 11 Embora tenham os romanos enfrentado o tema do Direito Natural, não se dispuseram a definir o Direito, salvo eventualmente e, ainda assim, de maneira imprecisa. Levy-Ullmann chama a atenção para o fato de que os Tribonianos definiram tanto a justiça quanto a jurisprudência, mas, em relação ao Direito, apenas se limitaram a enumerar os praecepta juris. 21 A definição deixada por Celso, amplamente conhecida, situou o Direito como ars boni et aequi, revelando que faltou ao autor a percepção de que Direito e Moral são autônomos, pois a noção de boni é de natureza ética. Em igual falha incorreu Ulpiano (170-228), autor dos famosos praecepta juris: Honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu). Embora inegável a sabedoria dos princípios, pois expressam a ordem natural das coisas e por isso têm consistência granítica, certo é que o preceito viver honestamente é de natureza moral. Justificando os princípios, Sílvio Meira sinteticamente declarou que “o Direito deve alicerçar-se no justo, no honesto, a fim de evitar que o lícito seja desonesto”. 22 Com o jurisconsulto Paulo encontramos uma sábia distinção entre o Direito e a Moral: Non omne quod licet honestum est (Nem tudo que é lícito é justo). Apesar de tal percepção, os romanos não formularam uma teoria diferenciadora entre os dois domínios, que somente apareceu no início do século XVIII, com o alemão Cristiano Tomásio. Coube a Aristóteles, no curso da história, a elaboração da teoria da justiça, mas foi Ulpiano quem formulou a definição mais famosa do valor excelso do Direito: Constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi (D. I, 1, 10, pr.). Além de retratar a justiça como virtude pessoal, a definição expressa a ideia apenas estruturalmente, sem indicar a fórmula pela qual se deve contemplar a cada um com o seu. Relativamente à noção do Direito Natural, havemos de destacar as reflexões de Marco T. Cícero (106-43a.C.), especialmente expressas em De Republicae em De Legibus. Para ele o Direito Natural seria “a reta razão em concordância com a natureza” e, por esse motivo, seria eterno, imutável e universal. Opondo-se à ideia de que seriam justos todos os costumes e leis, proclamou que a noção do justo adviria igualmente da natureza e que esse valor antecedia as leis positivas. O sentimento de justiça seria comum a todos os homens, embora não fosse idêntico. Concebeu a lei não como acordo entre os homens, mas como algo derivado da natureza “lex est ratio summa insita innatura...” (De Legibus, I, 6). Marco Aurélio (121-180), imperador romano e autor de Pensamentos e de outros escritos, adotou a filosofia estoica e concebeu um direito natural fundado na razão e válido em todas as partes. Durante o seu império promulgou leis humanitárias, onde os escravos foram beneficiados, e impregnadas de sentido universal. Para o estoico Sêneca, autor de De Providentia e de vários outros escritos, a humanidade teria vivido, em seus primórdios, uma idade de ouro, caracterizada pela inexistência de propriedade particular, leis e governo. Em suas reflexões, de natureza ética e mística, abominou o Estado e suas leis, considerando-os um dos males do mundo. Epíteto (aprox. 55-138), que fora escravo, passando depois a ensinar a sua filosofia, é um dos representantes do estoicismo romano. Embora não tenha deixado escritos, a reconstituição de seu pensamento foi elaborada por seu discípulo e historiador Flávio Arriano. Influenciado, possivelmente, por sua condição social anterior, pensava que a verdadeira liberdade era interna e que Deus fizera dos homens seres livres. A exemplo de Sócrates, orientava no sentido da obediência às leis, ainda que injustas, e submissão ao Estado. https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg151c5190e1 https://jigsaw.vitalsource.com/books/9788530978327/epub/OEBPS/Text/19_chapter12.xhtml#pg151c5190e2
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