Prévia do material em texto
CENTRO UNIVERSITÁRIO FANOR WYDEN JAMILLE COSTA BENTO VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER E CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA: OS EFEITOS SOCIAIS E JURÍDICOS DA REVITIMIZAÇÃO. FORTALEZA 2021 JAMILLE COSTA BENTO VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER E CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA: OS EFEITOS SOCIAIS E JURÍDICOS DA REVITIMIZAÇÃO. Monografia ao curso de Direito do Centro Universitário Fanor Wyden, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação de conteúdo do Professor Ms. Alex Feitosa de Oliveira. FORTALEZA 2021 JAMILLE COSTA BENTO VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER E CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA: OS EFEITOS SOCIAIS E JURÍDICOS DA REVITIMIZAÇÃO. Monografia apresentada à banca examinadora e à Coordenação do Curso de Direito do Centro Universitário Fanor Wyden, adequada e aprovada para suprir exigência parcial inerente à obtenção do grau de bacharel em Direito. Fortaleza (CE), 07 de dezembro de 2021. Orientador, Ms. Alex Feitosa de Oliveira Prof. Orientador do Centro Universitário Fanor Wyden Ms. Bruna Lustosa Pellegrini Profª. Examinadora do Centro Universitário Fanor Wyden Ms. Roberto Ney Fonseca de Almeida Profº. Examinador do Centro Universitário Fanor Wyden Ao meu pai, José (in memorian), que sempre me acalentou e fortaleceu nos momentos mais difíceis! AGRADECIMENTOS À Deus, pela minha vida e saúde, e por me permitir ultrapassar todos os obstáculos encontrados ao longo da realização deste trabalho. Agradeço, também, ao meu orientador, que desde o início da graduação acreditou e incentivou toda a minha caminhada acadêmica, além de toda a dedicação do seu escasso tempo ao meu projeto de pesquisa. Aos meus amigos, que são poucos, mas foram essenciais para que eu me mantivesse forte e determinada a realizar este trabalho. À minha família, em especial ao meu irmão, que contribuiu diretamente para minha formação profissional. Aos demais professores, por todos os conselhos, ajuda e paciência com as quais guiaram o meu aprendizado. E a todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para a realização deste trabalho. “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres.” Maya Angelou RESUMO A violência contra a mulher é uma realidade no Brasil, sobretudo, a de cunho sexual, que possui inúmeras especificidades que a torna mais delicada, demandando medidas especiais antes, durante e depois do procedimento investigatório, visando o melhor tratamento para com a vítima, sobretudo no que diz respeito à saúde mental, pois ela necessita de atenção e cuidado para que forneça a melhor contribuição no processo judicial, No entanto, é nessa espécie criminosa que a mulher é submetida a maior sofrimento, visto que a revitimização é tida, desde o atendimento inicial, em que sua palavra é constantemente descredibilizada, o que acarreta no afastamento dessas mulheres da polícia e do judiciário, por temer que a violência sofrida seja intensificada, pois o sistema punitivo brasileiro não consegue dar o acolhimento e proteção necessários a mulher vítima de crime sexual. Nesse sentido, atentando para a problemática enfrentada pelas mulheres vitimadas, a pesquisa foi desenvolvida com base nos seguintes objetivos, geral: Analisar criticamente a condução legal na apuração de crimes que envolvam a violência sexual contra a mulher, bem como os aspectos jurídicos das formas e efeitos da vitimização provocada não somente no curso, mas também com o findo de processos criminais que envolvam a violência supracitada. Específicos: examinar a atuação estatal nos procedimentos investigatórios dos crimes em que envolvem violência sexual contra a mulher; apontar os fatores de vulnerabilidade da vítima e os riscos de vitimização; verificar a responsabilidade estatal na formação da revitimização tida em processos criminais de cunho sexual; e demonstrar as consequências que o desenvolvimento da revitimização produzem na vítima e na sociedade. Com relação a metodologia, a pesquisa é classificada como qualitativa, exploratória e explicativa. Por fim, em relação a estrutura do trabalho, há três capítulos, distribuídos de modo a analisar primeiramente aspectos introdutórios e conceituais, em segundo momento, expõe quais são os tipos e meios que a revitimização ocorre, e finalmente, o último capítulo ressalta as consequências que a prática da revitimização traz, não somente à vítima, mas para a sociedade como um todo. A respeito das considerações finais, haverá a exposição crítica dos elementos coletados ao longo do presente estudo. Palavras-chave: Revitimização. Violência sexual. Violência contra a mulher. Culpabilização. ABSTRACT Violence against women is a reality in Brazil, especially of a sexual nature, which has numerous specificities that make it more delicate, requiring special measures before, during and after the investigative procedure, aiming at the best treatment for the victim, especially with regard to mental health, as it needs attention and care to provide the best contribution to the legal process. However, it is in this criminal species that women are subjected to greater suffering, since revictimization is had, since the initial care, in which their word is constantly discredited, which leads to the removal of these women from the police and the judiciary, for fear that the violence suffered will be intensified, as the Brazilian punitive system is unable to provide the necessary reception and protection to women victims of sex crime. In this sense, paying attention to the problem faced by the victimized women, the research was developed based on the following general objectives: Critically analyze the legal conduct in the investigation of crimes involving sexual violence against women, as well as the legal aspects of the forms and effects of victimization caused not only in the course, but also with the end of criminal proceedings involving the aforementioned violence. Specific: to examine the role of the state in investigative procedures for crimes involving sexual violence against women; point out the victim's vulnerability factors and the risks of victimization; verifying the state's responsibility in the formation of revictimization taken in criminal cases of a sexual nature; and demonstrate the consequences that the development of revictimization has on the victim and on society. Regarding methodology, the research is classified as qualitative, exploratory and explanatory. Finally, regarding the structure of the work, there are three chapters, distributed in order to analyze firstly introductory and conceptual aspects, secondly, it exposes the types and means that revictimization occurs, and finally, the last chapter highlights the consequences that the practice of revictimization brings, not only to the victim, but to society as a whole. Regarding the final considerations, there will be a critical exposition of the elements collected throughout this study. Keywords: Revictimization. Sexual violence. Violence against women. Blaming. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO …...……………………………………………………………….……....9 2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.............................................................................................................13 2.1 GÊNERO E VIOLÊNCIA.......................................................................................142.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PANDEMIA DE COVID-19.......................................15 2.3 VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER.........................................................18 2.4 TUTELA CONSTITUCIONAL À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.............….....20 2.5 LEGISLAÇÕES ESPECÍFICAS ………………...………….....…….....………….....21 3 O PROCESSO DE APURAÇÃO DE CRIMES SEXUAIS E A CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA ………………………………..…………………………………………..…....26 3.1 FASE PRÉ-PROCESSUAL E O ATENDIMENTO PRIMÁRIO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA...................................................................................................……26 3.2 A VITIMOLOGIA E SUA IMPORTÂNCIA NOS CRIMES SEXUAIS………………27 3.3 OS PROCEDIMENTOS DE INVESTIGAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL................................................................………………….......……….….……29 3.4 A INSTRUÇÃO PROBATÓRIA...................................................................…..….30 3.5 O COMPORTAMENTO DA VÍTIMA COMO CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL.....…..32 3.6 O PROCESSO DE VITIMIZAÇÃO........................................................................33 4 ITER (RE)VICTIMAE E SEUS IMPACTOS.....………………......…..…......…….….36 4.1 O ESTADO COMO AGENTE REVITIMIZADOR.……………………………………38 4.2 AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS IMPOSTAS AO VITIMIZADOR............................................................................................................40 4.3 AS CONSEQUÊNCIAS PSICOLÓGICAS DA REVITIMIZAÇÃO..........................42 4.4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DE CASOS COM VIOLÊNCIA SEXUAL.............44 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......……………………………………………………..…48 REFERÊNCIAS..........................................................................................................51 9 1 INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é uma realidade no Brasil, fato esse tido historicamente por uma sociedade carregada de conceitos machistas e que denotam a superioridade de gênero sobre as mulheres, de modo que estas características foram notadas desde o convívio social, até a própria legislação, que em razão da cultura, reproduzia na lei, conceitos como a atribuição de honestidade ou a ausência dela em um capítulo intitulado por “crimes contra os costumes”. Nessa toada, não é hodierno que a mulher é colocada em um papel de submissão e julgamento, visto que os moldes sociais e, consequentemente, estatais, condicionam e chegam a instigar tal comportamento. Considerando isso, ao se tratar de violência sexual contra a mulher, se tem a acentuação prática desses conceitos, visto que o número de mulheres vitimadas é extremamente superior ao coeficiente de registros dessas ocorrências, fato esse ocorrido em razão do afastamento das mulheres vitimadas em âmbito sexual ante o temor em ser descredibilizada ao se submeter a um processo judicial, ou até mesmo antes dele, no procedimento .investigatório, visto que a incidência de culpabilização da vítima nessa espécie criminosa é alta. Nesse sentido, nos crimes em que ocorrem violência sexual, em regra, deveria haver um processo investigatório conduzido de forma mais específica, com medidas especiais que visem o melhor tratamento para com a vítima, sobretudo no que diz respeito à saúde mental, pois ela necessita de atenção e cuidado para que forneça a melhor contribuição no processo judicial, de modo que a condução investigativa não intensifique ou exalte a violência sofrida, e tampouco a torne tão dolorosa quanto o fato e o resultado da conduta criminosa em si. Contudo, não é este o panorama atual que vem sendo encontrado no Brasil, pois o Estado, ao invés de seguir e instigar esta tratativa, acaba, por vezes, a ser agente ativo na vitimização secundária e terciária que a vítima vem a sofrer. Por isso, se faz importante salientar não só a discussão acerca da vitimização, mas também quais seriam os agentes ativos destas etapas, sendo, na vitimização secundária o Estado, no âmbito processual e, na terciária, tem-se a sociedade como causadora dessa etapa vitimizadora. 10 Diante disso, este trabalho justifica-se pela necessária análise das etapas de vitimização que a pessoa ferida percorre em um processo criminal no Brasil, bem como a atuação do Estado na prática de tais violências, além da ausência de tratamento legal tida no ordenamento jurídico brasileiro, para que o papel estatal seja no sentido de evitar que tais etapas ocorram, tendo em vista que lei deve proteger aquele que foi lesado ou ferido, ao invés de ser agente ativo das supracitadas formas de revitimização. Ademais, de forma crítica, tem-se o não seguimento e tampouco a padronização de tratamento a essas vítimas, sendo essa a problemática em si, pois a ausência de padronização procedimental, desde o acolhimento na delegacia, assim como a condução do trâmite processual, contribui e principia as etapas vitimizadoras, salientando-se que em nenhuma hipótese, devem o inquérito policial e o processo criminal trazer mais dor e sofrimento às vítimas de uma vertente criminosa que já causa tanto trauma. Nesse sentido, busca-se, através desta pesquisa, uma análise crítica quanto aos procedimentos de apuração dos crimes que envolvem violência sexual e que por vezes, o processo investigatório, coadunado a sociedade, produz as etapas à vitimização, trazendo à vítima uma intensificação do que deveria ser repreendido. A questão suscita, portanto, a problemática central da pesquisa que é voltada à análise dos impactos extraprocessuais que a vitimização produz, como o sofrimento da vítima ao reviver a violência sofrida, pois as formas de vitimização afetam desde a violência em si, pois a mera possibilidade da sofrer as vitimizações secundárias e terciárias afastam mulheres vítimas de violência sexual da denúncia e, por conseguinte, da apuração da espécie de determinado crime. Destarte, observa-se que a possibilidade em ser alvo do processo de vitimização influi diretamente na equação desproporcional entre ocorrências e denúncias dos crimes que envolvem violência sexual. Além destes pontos, outra hipótese inicial é de que no procedimento de investigação dos crimes, recai sob a vítima primária o ônus que decorre da operação estatal para apuração e punição do crime, ocorrendo não somente a descredibilização da palavra da vítima, mas também a incidência de crimes contra a honra, sendo mais ordinária a prática de injúria ou difamação. Além disso, na vitimização terciária, que é 11 tida pela sociedade ao julgar e não promover o acolhimento da vítima de crimes sexuais, por vezes, atribui culpa maior à vítima do que ao delinquente. Logo, fica caracterizada a incidência de uma inversão de valores, que, por si só, não implica em uma conduta ilícita, no entanto, estas são independentes, devendo ser a conduta ser analisada de forma específica. Portanto, visando uma exposição crítica a cerca da condução e atendimento dado à mulher vítima de violência sexual no Brasil, bem como a revitimização como uma prática característica do sistema e da sociedade brasileira, a pesquisa consolidou o seguinte objetivo geral: analisar criticamente a condução legal na apuração de crimes que envolvam a violência sexual contra a mulher, bem como os aspectos jurídicos das formas e efeitos da vitimização provocada não somente no curso, mas também com o findo de processos criminais que envolvam a violência supracitada. Em relação aos objetivos específicos, a pesquisa pretende: examinar a adequação jurídica dos procedimentos investigatórios nos crimes em que envolvem violência sexual contra a mulher; demonstrar os fatores de vulnerabilidade da vítima e os riscos de vitimização; verificar a responsabilidade estatal na formação da revitimização tida em processos criminais de cunho sexual. Em termos metodológicos, o trabalho foi realizado através de um estudo descritivo-analítico, desenvolvido através de pesquisadocumental, com ampla análise bibliográfica, doutrinária, jurisprudencial, e utilizando ainda artigos científicos, periódicos e produções cientificas de modo geral relacionadas ao tema. Quanto aos objetivos, a pesquisa é descritiva e exploratória. Finalmente, no que se refere a divisão dos capítulos, em primeiro momento, a pesquisa demonstrará aspectos introdutórios e conceituais, tratando da violência contra a mulher como um todo, salientando seus aspectos jurídicos e sociais. Em passo seguinte, a pesquisa busca uma explanação a cerca dos procedimentos e aspectos processuais em que a revitimização da mulher vítima de violência sexual ocorre, bem como analisa as variáveis que contribuem para a incidência desta. Por fim, o último capítulo é voltado para as consequências que esta prática produz na sociedade brasileira com um todo, bem como, de forma específica, quais 12 são os traumas e malefícios que as vítimas enfrentam em razão deste processo, além da análise de como o judiciário se posiciona a respeito desta. Com relação as considerações finais, haverá a exposição crítica dos elementos coletados ao longo do presente estudo com ênfase no processo evolutivo observado e quais perspectivas foram reveladas no âmbito do desenvolvimento da pesquisa. 13 2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A violência, em um panorama geral, é tida como um problema social de larga escala, de modo que a Organização Mundial de Saúde (OMS), através do Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde, conceituou-a como: “[...] uso da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.” (OMS, 2002, texto digital). Nesse sentido, há algum tempo busca-se o enfrentamento para a prevenção de tal prática, principalmente contra as mulheres, pois essas carregam resquícios de uma sociedade carregada de patriarcado e machismo. Contudo, com a evolução social, as legislações buscaram e ainda buscam, de forma muito lenta, corrigir algumas condutas que, à época, eram tidas como aceitáveis e até costumeiras pela legislação, o que se exemplifica claramente no Código Penal de 1940, em seu título IV, que o trazia com a titulação “dos crimes contra os costumes”, em que atribuía às mulheres a classificação de “honesta” ou “desonestas” e, a depender da rotulação recebida, a mulher seria passível ou não de amparo jurisdicional, pois a desonesta, inclusive, seria merecedora do crime em que figurou como vítima (NUCCI, 2002). Com isso, convém salutar que a incorrência da violência extrapola os limites da segurança, pois esta afeta diversos ramos sociais, uma vez que traz impactos à vida, saúde - seja ela física ou mental e ao convívio em sociedade, considerando que uma vez ocorrida a violência, os traumas decorrentes dela circundam a vítima ad aeternum. Desse modo, a violência contra a mulher é vista como um sério problema de saúde pública, pois as consequências negativas associadas à sua ocorrência impedem e prejudicam o desenvolvimento de uma vida saudável, além do alto custo social, que acarreta perdas humanas e também em gastos com atendimentos no setor da saúde e no âmbito jurídico (Organização Mundial de Saúde, OMS, 2002). Ademais, a cada dia, vê-se uma crescente nos números que relatam a ocorrência de tais casos, conforme o Instituto Datafolha constata em pesquisa 14 encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que, no Brasil, uma a cada quatro mulheres afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano.1 2.1 GÊNERO E VIOLÊNCIA A violência de gênero incorre pela prática de atos violentos, que se motivam em função da classificação genética ao qual pertencem as pessoas envolvidas, ou seja, o agressor age contra a vítima pelo simples fato da mesma ser homem ou mulher. Contudo, apesar de ser abrangente, a grande maioria dos casos em que ocorrem esta, envolvem mulheres no polo passivo, fato que leva a violência de gênero a ser facilmente tida como sinônimo de violência contra a mulher (KHOURI, 2012). Ante o exposto, vê-se que, historicamente, o contexto da sociedade brasileira é de dominação e garantias somente para o sexo masculino. Contudo, com a evolução social, tem-se destacado a diversidade de gênero, buscando inibir as desigualdades entre os sexos e, por isso, cresce a necessidade de o Estado agir como instituinte e garantidor de direitos, ensejando, assim, as inovações legislativas, a fim de proteger essa parte da população vítima da violência de gênero (OLIVEIRA, 2010). Nessa toada, observa-se que a demonstração máxima da violência machista é tida pela ocorrência de feminicídio, além das inúmeras formas que essa agressividade pode ser expressada, bem como iniciada, como em estupros, torturas, mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual, que podem ser praticados antes da consumação de um feminicídio, com abusos diários dentro e fora da família. Ainda nesse sentido, de acordo com o relatório da pesquisa “Visível e Invisível”2, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Instituto Datafolha, 1 a cada 4 mulheres brasileiras foi vítima de algum tipo de violência nos últimos 12 meses, totalizando 17 milhões de mulheres sendo vitimadas com agressões físicas, psicológicas, sexuais, dentre outras. Dessa forma, independente do contexto social da época, ou do ambiente que faz parte, mulheres foram mortas pelo simples fato de pertencerem ao gênero 1 Disponível em: <\ https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/07/1-em-cada-4-mulheres-foi- vitima-de-algum-tipo-de-violencia-na-pandemia-no-brasil-diz-datafolha.ghtml \> 2 Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil - 3ª edição – 2021. Disponível em: <\ https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/infografico-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3- 3.pdf\> 15 feminino. Com isso, o legislador não poderia deixar de observar e conter o avanço de tal prática, por isso, a legislação brasileira evoluiu e incluiu o Feminicídio (assassinato motivado por razões de gênero, menosprezo ou discriminação contra mulheres) no rol dos crimes hediondos, através da Lei do Feminicídio nº 8.305/2014. É válido salientar, ainda, que a violência cometida contra a mulher possui extrema relevância e conexão com a revitimização, sendo tida nessa espécie criminosa, a maior incidência deste tipo de culpabilização da vítima. Pois, tem-se essa violência como uma construção marcada historicamente, que advém das relações e fenômenos culturais em que se destacavam o gênero, a classe e/ou a raça. Dessa forma, diante do patriarcado culturalmente cultivado, fez-se mister a ação estatal para a diminuição deste tipo de agressão. 2.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PANDEMIA DE COVID-19 Em um panorama geral, muitos são os motivos que ensejam a ocorrência de violência contra a mulher, contudo, alguns fatos hodiernos possuem maior grau de correlação para a incorrência desta. Sob essa perspectiva, é indubitável que a Pandemia do novo Coronavírus mudou a sociedade como um todo, provocando diversas crises além da sanitária, o que, dentre elas, demonstrou um crescimento de violência contra a mulher, principalmente em âmbito doméstico. Ainda considerando os números acima relatados, cabe salientar que o aumento no último ano, é tido em caráter geral, contudo, um dado torna-se relevante observar, que é a diminuição da violência contra a mulher na rua, sendo a grande maioria tida dentro de casa. Nesse sentido, observa-se que estes dados possuem relação ao cenário pandêmico de Covid-19, pois as pessoas tiveram que ficarem suas casas para conter a pandemia do coronavírus, obedecendo ao isolamento social. No entanto, essa seguridade passa a ser questionada quando observada sob a perspectiva da violência, pois, segundo a supramencionada pesquisa, 73,5% da 16 população brasileira acredita que a violência contra as mulheres cresceu durante a pandemia de Covid-193. De forma mais específica, o aumento de agressões ao gênero feminino no seio de seu lar, tido em razão do maior convívio, provoca a elevação do número de subnotificações, tendo em vista que a proximidade com o agressor intimida a vítima, de modo que os números de casos são desproporcionais ao de registros oficiais. Além do já exposto, o relatório Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil (p.7, 2021) aduz que: (...) a queda dos registros girou em torno das medidas de isolamento social impostas pela quarentena, que exigia da vítima uma permanência maior dentro de casa junto a seu agressor, em geral seu companheiro, o que a impedia de dirigir-se às autoridades competentes para denunciar o ocorrido. Ademais, para alguns indivíduos, o seu lar não é um ambiente seguro, de acordo com o relatório Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta (2020, p.2) da Organização da Nações Unidas (ONU) Mulheres, como se vê: Os riscos de violência contra mulheres e meninas, especialmente violência doméstica, aumentam devido ao aumento das tensões em casa e também podem aumentar o isolamento das mulheres. As sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais devido a fatores como restrições ao movimento de quarentena. (ONU MULHERES, 2020) Além do supracitado, tem-se, também, a demonstração de que o perfil do agressor contumaz se tornou mais uma consequência do momento atual, pois além de enfrentar todas as dificuldades que a pandemia trouxe consigo, a mulher passa a temer por sua vida no seio de seu lar, se tornando mais vulnerável, uma vez que, em razão das circunstâncias do isolamento, as pessoas passaram mais tempo em suas casas e, consequentemente, houve um crescente número em tais ocorrências, especialmente no ambiente doméstico. Outrossim, além da maior exposição pela convivência, tem-se como causas para a exacerbação das agressões: as limitações para com o atendimento das vítimas; a diminuição e até mesmo a inexistência de apoio familiar; a redução de 3 Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil - 3ª edição – 2021. Disponível em: <\ https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021- v3.pdf\> 17 renda, e o aumento nos níveis de estresse, bom como o maior consumo de álcool como consequências e fatos ocasionados pela pandemia, que podem ser tidos como fatores de exposição e/ou possibilidade para a ocorrência da manipulação de violência do agressor para com a mulher vítima. (Vieira et al, 2020; Marques et al, 2020, Fiocruz, 2020) No entanto, tais fatores são tidos como potencializadores de um risco já existente à mulher, uma vez que tais situações ensejam um comportamento construído, que não deve ser normalizado e, tampouco tido como natural. Além disso, ao analisar a construção das masculinidades, tem-se que qualquer tipo de violência cometida contra a mulher não deve ser vista em decorrência de um descontrole ou de uma explosão emocional, mas sim como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante (CONNELL, 1995). Ademais, o convívio do agressor com a vítima, sendo este conhecido e/ou integrante do ambiente doméstico, possibilita a ele mais oportunidades de praticar tais condutas por estar em ambiente doméstico e/ou familiar e, também, de silenciar a vítima, impedindo a mesma de buscar ajuda ou de denunciá-lo. Nessa toada, Hassemer e Muñoz Conde (2012, p. 190) esclarecem: Entre os grupos de vítimas que mais estão representadas nas atuais pesquisas de vitimização e que são objeto de estudos especiais e investigações, se encontram as mulheres maltratadas no âmbito familiar por seu companheiro ou cônjuge. Provavelmente nenhuma relação de convivência humana é tão conflitiva e produtora de violência como a família, e dentro dela a conjugal ou de companheirismo. (HASSEMER, W; CONDE, M. 2012) Com isso, é notável que a mulher que reside no Brasil teria que optar por qual risco correr, pois no ambiente que deveria ser propício ao seu descanso e sossego, se tornou tóxico e perigoso, tendo impacto, inclusive, no número de denúncias, visto que o isolamento proveniente da pandemia impediu a convivência com amigos e colegas que, porventura pudesse prestar assistência e servir como rede de apoio em caso de violência, limitando e/ou dificultando à vítima a busca por ajuda, até mesmo médica, pois os esforços concentravam-se no combate ao vírus da Covid-19. Além disso, a violência sexual está contida em tal pesquisa, sendo responsável por boa parte do percentual de ocorrências, pois apesar das mudanças que o isolamento decorrente da pandemia do Coronavírus causou, alguns crimes como o 18 assédio sexual não deixaram de ocorrer, mesmo com a mulher circulando menos em todo o cenário pandêmico. 2.3 VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER Restando demonstrada a magnitude da violência contra a mulher no Brasil como um todo, vale destacar, de forma mais específica, a violência sexual contra a mulher, sendo importante a análise de como o legislador brasileiro deve não somente prevê, mas também punir aqueles quem venham a cometer tais condutas e, ainda, que haja a garantia de direitos e proteção às vítimas, para que elas não tenham lesão maior que a dor já sofrida com a ocorrência do ato criminoso que lhe vitimou. A Organização Mundial da Saúde, no relatório já mencionado acima, definiu a violência sexual como: Qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários ou investidas sexuais indesejadas, ou atos direcionados ao tráfico sexual ou, de alguma forma, voltados contra a sexualidade de uma pessoa usando a coação, praticados por qualquer pessoa independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer cenário, inclusive em casa e no trabalho, mas não limitado a eles. (OMS, 2002). Assim como o legislador brasileiro, no art. 7º, inciso III, da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), trouxe a definição legal, in verbis: Art. 7. °, III: – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; [...] (BRASIL, 2006) Há de se considerar que muitas são as definições para a violência sexual, até pela universalidade do problema, mas, apesar disso, a transgressão de direitos é evidenciada por todos, principalmente no que diz respeito a capacidade sexual e reprodutiva da mulher, que ultrapassa não somente os limites físicos do corpo, mas a vida da pessoa vitimada como um todo. Nessa perspectiva, FACURI et al. aduz: A violência sexual é um fenômeno universal, em que não existem restrições de sexo, idade, etnia ou classe social. Embora atinja homens e mulheres, as mulheres são as principais vítimas, em qualquer período de suas vidas. E as mulheres jovens e adolescentes apresentam risco mais elevado de sofrer esse tipo de agressão. (FACURI et al., 2013) A visão já mencionada corrobora para o argumento de que a violência de gênero é facilmente atrelada às violações contra as mulheres, pelosimples fato de 19 que em todas as espécies de violências, o polo passivo é, em grande maioria, ocupado por uma pessoa do sexo feminino. Outrossim, se faz necessária a distinção, de que por muito tempo se teve a sexualidade como dever da mulher para com o casamento, de suportar e ser submetida aos desejos do esposo, independentemente de sua vontade. Ocorre que esse tipo de ação não pode ser confundida e tampouco legitimada como mera insistência do marido, de modo que este venha a exigir uma conduta que a mulher não deseja realizar. Nessas situações, têm-se uma violência, muito comum, infelizmente, podendo ser exemplificada no impedimento que o marido/parceiro faça à mulher de tomar contraceptivos, o que se tem no denominado estupro marital, que Viana (2017, p. 1) define: [...] consiste na conjunção carnal forçada dentro da relação conjugal, ou seja, do marido e sua mulher, tratada ao longo dos tempos como uma das obrigações do casamento, embora não existisse nada expresso”. Já o estupro marital é aquele pelo qual um dos cônjuges comete o crime contra o seu parceiro, forçando-o a ter prática do ato sexual, pelo fato de estarem casados (VIANA, 2017, p. 1). Historicamente, a mulher é colocada no lugar de submissão, obediência e de exclusão de direitos, no entanto, com o advento dos movimentos feministas, a sociedade adequa-se à necessidade de isonomia entre as pessoas e a legislação tende e deve acompanhar, para que menos direitos sejam lesados, pois houve uma resistência doutrinária e jurisprudencial quanto o reconhecimento da possibilidade de violência sexual intrafamiliar, principalmente entre cônjuges. (DIAS, 2007) É sabido que as consequências e traumas resultados da violência contra a mulher podem ser gravíssimos, principalmente por ser algo tratável, mas não curável, na maioria das vezes, tendo em vista que, havendo uma violação de direitos, dificilmente a vítima “supera” a agressão sofrida. Nesse sentido, nota-se que, nos casos em que envolvem a violência sexual, o impacto psicológico chega a ser, por vezes, mais forte que o físico, pois, por mais brutal que seja, as marcas físicas amenizam com tratamentos médico-hospitalares, mas a vitimização sofrida no âmbito psíquico, é perpétua, sendo carregada pela vítima em sua rotina. 20 Tal impacto sentido pela vítima, é tido como uma consequência em si do ato sofrido, denominando-se de vitimização primária, sendo esta praticada pelo agressor, que, ao executar o iter criminis, assume e deseja tais resultados. Além do já mencionado, é fator determinante, nos crimes sexuais, o acolhimento e atendimento para com a vítima, tendo em vista que, no Brasil, ainda há a ocorrência da descredibilização da palavra da mesma, de modo que, ao notificar ou tornar público o crime que lhe vitimou, para muitos, o primeiro passo é questionar o que a vítima fez para “merecer” a vitimização, fato esse que afasta o interesse da mulher em buscar justiça, pois a inversão de valores a que se submeteria, além de reviver os traumas já instaurados, a leva ao afastamento de um Estado que não protege e nem garante direitos, pois mesmo já estabelecidos, não são respeitados na prática, conforme se vê: No caso de registros policiais de violência não fatal e de ferimentos tratados em serviços de emergência hospitalar, fatores como gravidade da violência, idade da vítima, se o perpetrador era conhecido da vítima, e falta de acesso ou desconfiança em relação às autoridades policiais ou da área da saúde têm impacto sobre a probabilidade de que a vítima venha relatar a agressão sofrida. (OMS, 2014) Nesse diapasão, é importante salientar o papel das legislações processuais, para que estas tratem das causas que envolvam a violência sexual de acordo com a necessidade de que esta demanda, pois na maioria dos casos, os agentes estatais não possuem o preparo necessário, visto que ao tratar com crimes sexuais, há não somente a incidência e invasão do corpo da vítima, mas também violência com resquícios e traumas de cunho psicológico. 2.4 TUTELA CONSTITUCIONAL À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Considerando o amplo impacto da violência nas mais diversas searas sociais, houve movimentos que ensejavam a redemocratização e, também, por uma nova Assembleia Constituinte, que resultou na Constituição Federal de 1988. Nos movimentos da época, havia diversas lutas por instituição de direitos e, dentre eles, a necessidade de normas que inerentes a igualdade entre homens e mulheres, a fim de mudar o estigma social feminino. Nesse sentido, tem-se como importante a análise de Silvia Pimentel: É insuficiente o artigo 153 da Constituição atual. ‘Todos são iguais perante a lei sem distinção de sexo [...]’. Importa que a nova Constituição expresse que a mulher e o homem têm os mesmos 21 direitos no que diz respeito à sua vida familiar, social, econômica, política e cultural (PIMENTEL, 1985). Desse modo, a Constituição Federal de 1988, assim como os tratados internacionais os quais o Brasil é signatário, definem e garantem direitos que propiciem a igualdade entre os gêneros, através da redação dada ao art. 5º, I, CF/88, visto que a mulher, desde os prelúdios, é estigmatizada como inferior e vulnerável. Ademais, um grande avanço é tido, principalmente, pelo texto trazido no art. 226, §5º c/c §8º, in verbis: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Desse modo, tem-se a clara preocupação do constituinte em propiciar a igualdade, para que assim a violência seja evitada e coibida, especificamente no âmbito familiar. 2.5 LEGISLAÇÕES ESPECÍFICAS Considerando a demanda social e a carência de proteção legislativa referente à violência contra a mulher, o Estado buscou instituir, bem como garantir esses direitos tutelados não somente pela constituição, mas também no âmbito infraconstitucional, que se vê desde a criação de secretarias específicas para as mulheres, quanto a formação de ministérios políticos e organizacionais. Nesse sentido, convém ressaltar a importância da Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, denominada de Lei do Minuto Seguinte, em que há o fornecimento de garantias às vítimas de violência sexual, o que se exemplifica no atendimento imediato pelo Sistema Único de Saúde (SUS), bem como assistência médica, psicológica e social, com a realização de exames preventivos, que se fazem imprescindíveis, dada a violência sofrida e pelo risco de transmissão de doenças ante o fato, além de informações sobre seus direitos e procedimentos jurídicos imediatos a serem adotados. Ademais, com o advento da legislação supracitada, vê-se um claro avanço no sentido de não somente proteger a vítima, pois inúmeras são as consequências que 22 um abuso sexual pode trazer, mas também de evitar que ela seja revitimizada, uma vez que, nessa situação, predomina a falta de apoio, o temor em sua palavra ser descredibilizada (fato corriqueiro no Brasil), além do medo de represálias do agressor, sendo tomada pelos sentimentos de culpa, vergonha e de segregação social. Nesse sentido, expôs-se em norma técnica do Ministério da Saúde: A violência sexual, em razão da própria situação e das chantagens e ameaças, que humilham e intimidam quem a sofreu, pode comumente vir acompanhada de sentimentos de culpa, vergonha e medo, sendo necessário tempo, cuidado e respeito no atendimento e na escuta ofertada nos serviços de saúde e em toda a rede. (BRASIL, 2015) Além do já exposto, faz-se necessário destacar que um dos principais fatores que levam as mulheres vitimadas ao afastamento da busca por justiça é adescredibilização do depoimento da vítima, pois, nos casos em que há violência sexual, a palavra dela tem (ou deveria ter) um alto valor, tendo em vista que constitui um dos meios de prova, em que os indícios criminosos são detectados, na maioria das vezes. Nessa toada, a fim de evitar que, em razão do sistema brasileiro, a pessoa vitimada tenha esse sentimento despertado, dispôs o Ministério da Saúde: A capacidade de escuta, sem pré-julgamentos e imposição de valores, a aptidão para lidar com conflitos, a valorização das queixas e a identificação das necessidades são pontos básicos do acolhimento que poderão incentivar as vítimas a falarem de seus sentimentos e necessidades. Com isso, resta demonstrada a clara necessidade de que as searas da justiça e da saúde trabalhem interligadas, pois o não acolhimento correto em uma delas, acarreta no afastamento e a consequente impunidade em uma espécie criminosa que provoca tantas vítimas e sequelas, devendo a legislação brasileira buscar impedir a supracitada inversão de valores, em que se passa a questionar o que a vítima teria feito para que o crime ocorresse, ao invés de utilizar-se dos recursos a punição do agressor. Em um panorama geral, tem-se, também, com o advento da Lei nº 13.104/2015 (Lei do Feminicídio), a inclusão da qualificadora no crime de homicídio, que deve incidir quando o crime for executado contra mulheres em detrimento de gênero, ou seja, quando uma mulher for vítima de homicídio, seja ele tentado ou consumado, simplesmente por incluir-se no grupo feminino de pessoas. Nessa toada, é imprescindível salientar o grande marco, quando se fala em legislação referente às mulheres no Brasil, pois, apesar de haverem mudanças no aspecto constitucional, desde 1988, somente com a criação de leis que pudesse 23 possibilitar e facilitar a implementação desses direitos, é que se teria a real efetivação deles, uma vez que a mera instituição dos mesmos, por meio da CRFB/1988, trouxeram garantias gerais, mas que não tinham eficácia de fato, pois a ausência de norma específica era uma carência concreta frente a uma sociedade que tinha a subordinação da mulher como costume. Por isso, com o reconhecimento do tema como urgência social, foram criadas algumas leis, em que se pode destacar a Lei n.º 11.340/2006, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, em razão da repercussão pelo descaso e demora da justiça brasileira, além do não amparo para com a vítima, que por diversas vezes buscou a penalização do seu agressor, mas foi descredibilizada, somente sendo ouvida em âmbito internacional. Quando se fala em violência contra a mulher no Brasil, é instintivo dizer que logo se é remetido a Lei Maria da Penha, pois esta constitui grande marco na luta contra a violência de gênero, dando ao tema, a atenção necessária, inclusive em caráter internacional. Nessa toada, é cabível dizer que a Lei º 11.340/2006, evidencia o dever do Estado em garantir direitos humanos das mulheres, que são previstos em tratados internacionais de direitos humanos, os quais o Brasil é signatário, além de tratar do assunto de forma mais específica, trazendo não somente definições legais, ao que, até então, era tratado somente de forma subjetiva, mas também instituindo medidas protetivas de urgência a fim de cessar a violência, bem como medidas integradas que visam a repressão e prevenção às agressões como um todo. No que diz respeito a definição das formas de violência, se tem: Art. 7 º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I- a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II- a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III- a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou 24 que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV- a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V- a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006) Conforme se vê, o legislador preocupou-se em trazer, expressamente, ações as quais alcançariam esta lei, contudo, trouxe em rol meramente exemplificativo, ou seja, há a possibilidade de outras condutas, que não estejam elencadas, incidirem sob a referida legislação, que tem a incumbência de proibir, punir, prevenir e erradicar a violência contra a mulher. Nesse sentido, é inegável a representatividade que a edição da supracitada lei trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro, pois materializou ideais e lutas sociais que perduraram por muito tempo, de modo que esta tutela não somente a integridade física da mulher, mas também a sexual, a liberdade e dignidade. De forma mais específica, se faz mister a análise de como a Lei Maria da Penha impacta na legislação brasileira, principalmente no que tange a violência sexual. Diante disso, é importante salientar que a ocorrência desse tipo de agressão é tida não somente quando há a prática da conjunção carnal ou do ato libidinoso e, uma vez ocorrida, esta prática é considerada problema de saúde pública, pois as consequências para a vítima são imensuráveis. Além do exposto, o impacto maior é tido quanto a proteção e acolhimento para com as vítimas, pois ao ocorrer a violência, duas ações são necessárias: a denúncia e o acolhimento à vítima, contudo, a segunda deve ser tida com imediata, tendo em vista que a saúde da vítima é primordial, pois os primeiros tratamentos terão impacto sob toda a apuração do fato criminoso. Diante do mencionado, tem-se como principal implementação visando evitar o processo revitimizador, a inclusão do art. 10-A na referida Lei, com o intuito de oferecer um atendimento policial mais específico, sendo ressaltado que o acolhimento à vítima deve ser priorizado, além de realizado por profissionais próprios para tais situações envolvendo mulheres vitimadas. Com isso, a implementação de um procedimento especial para a oitiva da mulher vitimada ou testemunha em violência doméstica foi idealizada pelo legislador, ensejando a não incidência de revitimização, conforme se vê, in verbis: 25 Art. 10-A. É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados. § 1º A inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quando se tratar de crime contra a mulher, obedecerá às seguintes diretrizes: I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar; II - garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulherem situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas; III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada. Nesse sentido, a referida lei trouxe mecanismos de proteção, além de estabelecer procedimentos específicos para atender mulheres vítimas de violência doméstica, o que se vê com a implementação das medidas protetivas e integradas, de modo em que há a criação de políticas públicas, envolvendo não somente o âmbito jurídico, mas a sociedade como um todo, em diferentes frentes. No entanto, observa-se que o maior amparo relaciona-se às vítimas de violência no âmbito doméstico, de modo que, uma mulher vitimada fora desse contexto, estaria à margem da legislação, no que concerne às práticas revitimizadoras. Ademais, tais garantias são tidas em caráter formal, considerando que, apesar das disposições legais, não é esta a realidade das mulheres vitimadas no Brasil, tendo em vista que raramente tais providências são praticadas, seja pela falta de preparo dos agentes, seja pela pouca infraestrutura dos órgãos policiais, que não se assemelham ao que legislativamente fora garantido. 26 3 O PROCESSO DE APURAÇÃO DE CRIMES SEXUAIS E A CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA Considerando o que fora exposto anteriormente, é de extrema relevância a análise das formas de violência, bem como o tratamento de tais por parte não somente do Estado, como agente julgador, mas também da sociedade como um todo e, para que essa avaliação seja realizada, mister se fez entender e diferenciar como o legislador criou tratativas ao longo do tempo, assim como a sociedade evoluiu os conceitos acerca da violência de gênero, sobretudo a de cunho sexual. Diante disso, também se fez imprescindível a explanação das atividades que antecedem o processo judicial, quais sejam, os procedimentos realizados antes da denúncia ser levada ao Ministério Público, pois o atendimento às vítimas, assim como a falta dele, influenciam diretamente no encorajamento das mesmas para a denunciação de uma violência sofrida, uma vez que é nesse momento que a maioria das mulheres desistem ou mentem sobre ter sido vitimada, pois além inversão de valores, ocorre a culpabilização da vítima, em que se busca “motivos” que tivessem ensejado o agressor para a prática de tais atos. Contudo, há de se observar que mesmo com as mudanças tidas na legislação brasileira, o número de crimes sexuais cometidos contra mulheres permanece alto e, considerando os reflexos históricos, tem-se hodiernamente a uma constante culpabilização atrelada a elas. 3.1 A FASE PRÉ-PROCESSUAL E O ATENDIMENTO PRIMÁRIO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA No que concerne ao aspecto jurídico da violência contra a mulher, é mister analisar os procedimentos iniciais que visam a apuração desses fatos criminosos e, no ordenamento jurídico brasileiro, isso se dá através do inquérito policial. Contudo, muito se tratou acerca das peculiaridades do assunto, uma vez que esta demanda maior atenção, por ser, também, um problema de saúde pública. Com isso, cabe esclarecer que, apesar de existirem as delegacias especializadas para a defesa da mulher, os crimes não precisam ser denunciados exclusivamente nelas, pois a notificação em qualquer delegacia, seja ela especializada ou não, levará o caso para o tratamento por uma unidade específica, por meio de transferência interna. Com isso, após o devido registro, a autoridade 27 policial irá remeter o expediente a um juiz, que decidirá, em até 48 horas, sobre a concessão de medidas protetivas, assim como encaminhará a vítima para o exame de corpo de delito. Dessa forma, é notório o avanço tido, se comparado aos padrões e costumes acima relatados, contudo, quando se trata de violência sexual contra a mulher, mais aspectos devem ser considerados, pois a urgência primária trata-se da preservação da saúde da mulher, especialmente no que tange ao aspecto psicológico, pois uma vítima traumatizada, com medos e inseguranças, em regra, não se sente à vontade de levar o fatídico ao judiciário, pelo temor que a revitimização pode causar, tendo em vista que como se não bastasse detalhar e reviver uma situação que lhe vitimou, há sempre o receio de sua culpabilização, bem como da dúvida posta naquilo que vier a narrar. Nota-se, porém, que o procedimento de apuração criminal em casos sexuais, não possui diferenciação específica de tratamento, apesar de, em termos de consequências cotidianas, trazerem consequências que assombram a vida da vítima ad aeternum. Nesse sentido, tem-se que a legislação brasileira possui alguns mecanismos que ensejam a proteção da mulher, mas, sobretudo nos casos de violência sexual, não prevê hipóteses que de fato sejam combatam ou evitem a revitimização, de modo que, por vezes, no processo inquisitório, há o afastamento da vítima na busca pela “justiça”, pois o sofrimento que essa busca causa, muitas vezes pelo próprio Estado, em razão da falta de preparo, traz danos irreparáveis, que afetam, inclusive a reinserção ao convívio em sociedade. 3.2 A VITIMOLOGIA E SUA IMPORTÂNCIA NOS CRIMES SEXUAIS Nessa toada, inicialmente, cabe aduzir quanto ao conceito de culpabilização, que pode ser tido, também como culpabilidade no âmbito do Direito Penal, em que representa uma reprovação e censura ao indivíduo que pratica uma ou mais elementares de um tipo penal. De forma mais clara, aquele que pratica um crime fará jus ao juízo de culpabilidade, não sendo, contudo, um crime em si, mas um requisito 28 a ser observado na aplicação da pena, conforme trazido pelo artigo 59, caput, do Código Penal Brasileiro.4 Contudo, a culpabilização ora trabalhada destina-se a outro sentido da palavra, que se baseia não somente no crime em sentido estrito, mas também compreende a esfera social como um todo, vez que traz o sentido literal de inculpar, ou seja, atribuir culpa a alguém e, no contexto inserido, esta é realizada, principalmente, perante a mulher vítima em crimes que envolvem violência sexual. Ainda no que concerne a culpabilização, é importante salutar a classificação vitimológica idealizada precipuamente por Benjamín Mendelsohn, de forma a analisar a vítima em perspectivas diferentes e assim estabelecer uma classificação interdisciplinar, sendo inicialmente dividida em dois lados: a vítima culpável e a vítima inocente, sendo a essas adotados os extremos, de forma a serrem inteiramente de um lado, ou de outro. De forma mais específica, tem-se para a inocente, a figura da vítima ideal, que não colaborou para o evento criminoso. Em contrapartida, para a culpável, tem-se a infratora que comete a infração e termina como vítima, a simuladora que imputa falsamente a prática de um delito a outrem, e a imaginária que imagina ter sido vítima por psicopatia (GONZÁLES, 1983, p. 18). Considerando isso, é importante salutar que tal classificação é notada de extremo patriarcado e moralismo, pois a vítima ocupa o polo passivo da relação criminosa, devendo a esta ser fornecido amparo legal necessário por ter o seu bem tutelado ferido, de forma que a culpa do autor, em hipótese alguma deve ser transferida ou amenizada para que se culpabilize a vítima. Com isso, observa-se que há o intento da atribuição de culpa tanto sob o criminoso, esta sendo dada, pelo próprio Código Penal, mas também há a vertente que buscar atrelar culpa à vítima e, à última, dedica-se maior atenção neste estudo, vez que, mesmo que de maneira não intencional, há a provocação de uma culpabilização em vítimas de crimes sexuais, pois a normalização do questionamento 4 Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à condutasocial, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime [...] (BRASIL, 1940) 29 não somente do comportamento, mas também de aspectos como a vestimenta da mulher à época do crime, endossam a inversão de valores, bem como a inculpação da vítima para a prática, ao invés de atentar-se ao criminoso, que de fato seria o agente que detém culpa. Nesse sentido, o Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA) realizou a pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres” e trouxe dados relevantes acerca da concordância da população com frases de cunho machista e sexista, com destaque para o número de 65% (inicialmente divulgado) de concordância com a frase: “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.”, contudo, após grande repercussão, o mesmo instituto emitiu uma errata, informando que o percentual estava equivocado, sendo, na verdade, de 26%.5 No entanto, apesar do equívoco supracitado, os demais dados vinculados à pesquisa permanecem de forma válida, conforme explica: “Os demais resultados se mantêm, como a concordância de 58,5% dos entrevistados com a ideia de que se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros. As conclusões gerais da pesquisa continuam válidas, ensejando o aprofundamento das reflexões e debates da sociedade sobre seus preconceitos” (2014, online). Com isso, se vê, de forma prática, que a sociedade possui esses valores enraizados, de modo a influenciar diretamente no juízo de valor, sem nem mesmo atentar-se aos detalhes e/ou particularidades das condutas criminosas em si, debruçando os mecanismos sociais e jurídicos com enfoque somente na busca da atribuição de culpa, sem proteger o bem jurídico tutelado, qual seja, a dignidade da pessoa humana. 3.3 OS PROCEDIMENTOS DE INVESTIGAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL Antes de iniciar o processo em si, é importante salientar que o sistema criminal brasileiro é composto por diversos órgãos, sendo a delegacia de polícia o ente primário de contato com o sistema, pois é através dela que se inicia o procedimento para apuração e a consequente persecução penal. 5 Dados obtidos no site oficial do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada-IPEA (2014, online). 30 Por isso, a análise de informações que venham a incidir em uma conduta criminosa, bem como o colhimento de dados e fatos que comprovem não somente a existência material do delito, mas também o agente responsável pela promoção da ocorrência da mesma se faz primordial, pois é nesta fase que os elementos de convencimento são apurados, para que o próprio Ministério Público analise-os e decida quanto ao oferecimento da denúncia e, a partir disso, iniciar o processo judicial criminal. Em regra, os crimes trazidos no código penal brasileiro possuem sua ação penal pública incondicionada, o que implica que a ciência da ocorrência de um fato criminoso, por si só, já faz jus ao procedimento de investigação pelos agentes policiais, sem a necessidade de uma formalização ou de queixa. Dessa forma, há de se salientar que a notitia criminis possui algumas formas, podendo ser tida de modo espontâneo, em que os agentes tomam conhecimento através do exercício de suas atividades rotineiras, há, também a de cognição mediata, em que há a comunicação da ocorrência do delito por escrito, como o boletim de ocorrência e, ainda, há o tipo coercitivo, com a apresentação do suspeito, bem como a forma anônima (LIMA, 2016). No que concerne aos crimes que envolvem violência sexual, cabe salientar a importância da denúncia por parte da vítima, pois segundo os dados fornecidos pelo IPEA, através do “Atlas da Violência 2018”, no Brasil, 90% dos casos de estupro não são notificados, o que se depreende um número de aproximadamente 500 mil estupros no Brasil a cada ano. Diante desses dados, tem-se que a subnotificação dos casos que ocorrem violência sexual é uma realidade, sendo diversos os fatores que influenciam para a crescente de tal número, além de que, a maioria dos casos são tidos em condições que não deixam outras formas de produção de provas, por não ser praticado ante testemunhas, sendo o depoimento da vítima de grande valia para a comprovação do delito, bem como o exame pericial. 3.4 A INSTRUÇÃO PROBATÓRIA Conforme já mencionado, a produção de provas é primordial para que se chegue ao objetivo da persecução penal, que é a punição do infrator, contudo, esta depende outros fatores que antecedem o processo judicial, de modo que a falha e/ou 31 erro no momento de apuração incorre em fatos sem valor probatório, prejudicando o processo com um todo, pois o convencimento do julgador deve basear-se em provas. Nesse sentido, tem-se a fase de instrução criminal como o momento processual adequado para a produção das provas necessárias para o convencimento do julgador, de modo que as evidências tidas na fase de investigação policial devem ser novamente apresentadas em âmbito judicial. Nessa toada, leciona Nestor Távora: A prova é tudo aquilo que será utilizado na formação do convencimento do órgão julgador. A prova pode ser entendida como o ato de provar (instrução probatória); o meio para provar: são os instrumentos para a demonstração da verdade; e o resultado obtido com a análise do material probatório, isto é, o efeito ou o resultado da demonstração daquilo que se alega (TÁVORA, 2016). Ademais, ressalta-se que a legislação brasileira, através do Código de Processo Penal, traz diversos meios de prova, no entanto, no sistema judiciário evidencia-se a verbalização como principal recurso para a produção de evidências, em que se tem a oitiva das partes envolvidas, bem como de possíveis testemunhas dos fatos. Por isso, a instrução probatória em processos que envolvam crimes sexuais deve ser tida com mais zelo e preparo, pois, em regra, nos crimes sexuais poucos são os indícios colhidos, uma vez que esta espécie criminosa normalmente comprova-se somente por meio pericial e pela palavra da vítima, pois os criminosos sexuais tendem a praticar os crimes em locais escuros e que não seja passível de prova testemunhal. Dessa maneira, fica clara a importância da oitiva da vítima, principalmente quando esta é tida em crimes sexuais, pois, na maioria dos casos, poucos são os meios de provas possíveis, pelo modus operandi em que essas condutas são realizadas, em regra, além do comum retardo na denúncia, por medo, na maioria das vezes, o que impossibilita ou dificulta o exame pericial, restando, somente, a palavra da vítima como instrumento de prova. Assim, há de se ressaltar que os crimes que contém violência sexual contra a mulher tendem a ter a fase probatória permeada de dor para a vítima, uma vez que, do modo que a persecução penal é desenvolvida no Brasil, há uma tendência para a prática da revitimização, vez que a dúvida e distorção para com a palavra da mesma, bem como o julgamento da características de gênero, classe social, vestimenta, 32 dentre outros, fazem com que a mulher vitimada afaste-se, cada vez mais da busca pela justiça, pois o sofrimento, assim como as consequências e traumas psicológicos que são tidos pela repetição e detalhamento da conduta que lhe causou o mal primário, combinado com a realidade machista que permeia o ambiente policial e judicial, são causas desse afastamento. 3.5 O COMPORTAMENTO DA VÍTIMA COMO CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL Ao tratar de violência sexual contra a mulher, mister se faz destacar que, nesses casos, há uma necessidade de tratamento e análise específicos, uma vez que é clara a limitação quanto a instrução e produção probatória, em razão das condições em que geralmente tais espécies criminosas ocorrem, tendo, portanto, uma valoração maior aos fatoscolhidos por meio da oralidade. Superada a fase probatória, se tem a prolação de sentença pelo juiz, que contempla a análise das prozas produzidas, a fim de estabelecer seu convencimento e, a partir disso, com a condenação, fazer a aplicação de uma referida pena ao acusado. Nesse sentido, atentando-se à individualização da pena, o juiz deve ater-se aos critérios estabelecidos no código penal, precisamente em seu artigo 59, para a aplicação da pena-base e, nessa etapa, há a análise das circunstâncias judiciais, em que comtempla o comportamento da vítima, a fim de estabelecer algum nível de culpabilidade e/ou participação para o resultado na conduta criminosa, sendo esta analisada na fase de dosimetria da pena, podendo diminuir a pena-base imposta ao agressor. Ademais, é notório ressaltar que, em regra, todas as circunstâncias judiciais podem ter caráter favorável, neutro ou desfavorável ao réu, contudo, o comportamento da vítima tem caráter excepcional, não podendo ser usado para fundamentar uma elevação da pena, ou seja, esta não pode ser utilizada como justificativa para endurecê-la. Sob esse aspecto, se tem: “Comportamento da vítima: É a atitude da vítima, que tem o condão de provocar ou facilitar a prática do crime. Cuida-se de circunstância judicial ligada à vitimologia, isto é, ao estudo da participação da vítima e dos males a ela produzidos por uma infração penal. [...] o comportamento da vítima apenas 33 deve ser utilizado em benefício do réu, devendo tal circunstância ser neutralizada no caso de não interferência do ofendido na prática do crime” (Masson, Cleber. Código penal comentado. 3. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015, p. 337). “A circunstância judicial do comportamento da vítima apresenta relevância nos casos de incitar, facilitar ou induzir o réu a cometer o crime” (Lima, Rogério Montai de. Guia prático da sentença penal condenatória e roteiro para o procedimento no tribunal do júri. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 33). Ademais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o assunto, conforme se vê: “O comportamento da vítima apenas deve ser considerado em benefício do agente, quando a vítima contribui decisivamente para a prática do delito, devendo tal circunstância ser neutralizada na hipótese contrária, de não interferência do ofendido no cometimento do crime, não sendo possível, portanto, considerá-la negativamente na dosimetria da pena” (STJ. HC n. 255231, julgado em 26/2/2013. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze). Dessa maneira, vê-se que, no sistema de justiça brasileiro, há uma utilização do comportamento da vítima somente em benefício do acusado, sendo que, especificamente em crimes que envolvem violência sexual, este comportamento é carregado de uma sociedade e de um sistema predominantemente sexista, em que a mulher é analisada pelo seu comportamento antes, durante e após ser vitimada, uma vez que a revitimização é uma realidade nos processos criminais que possuem mulheres como vítimas. Por isso, a vitimologia se faz importante, uma vez que esta demonstra, sob o viés criminológico, que a tratativa meramente processual penal, por vezes, é insuficiente ou pouco eficaz, atendo-se à individualização da pena do acusado, mas esquecendo da importância da vítima como principal ente processual. 3.6 O PROCESSO DE VITIMIZAÇÃO Inicialmente, cabe conceituar a vitimização e analisar a extrema relevância e conexão que a violência sexual cometida contra a mulher possui com a (re)vitimização, ressaltando-se que nessa espécie criminosa, há uma maior incidência deste tipo de culpabilização da vítima. Considerando o exposto, Mendelsohn (1963) a define como um fenômeno específico que ocorria com as categorias de vítima qualquer que fosse sua situação. De forma mais específica, se tem a vitimização primária aquela causada pelo agente criminoso, sendo o resultado da violência causada pelo crime em si. 34 Por conseguinte, cabe aduzir quanto o processo vitimizador de modo secundário, que é provocado pelo Estado perante a apuração dos crimes em que envolvem violência sexual contra a mulher, em que há o descrédito à palavra da vítima, bem como a agressão psicológica institucionalizada pela falta de preparo do Estado, sendo potencializados os efeitos do crime primário por quem deveria proteger o bem jurídico tutelado. Nessa perspectiva, Andreucci aduz: Como exemplos de vitimização secundária pode-se citar o mau atendimento que eventualmente receba a vítima em delegacias de polícia, institutos médico-legais, fóruns e varas criminais. Também o preconceito da sociedade, amigos e pessoas da família em relação à vitimização primária. Na maioria dos casos, a vítima comparece sozinha e às suas expensas às repartições policiais e fóruns, enfrentando toda a sorte de dificuldades, não tendo geralmente um advogado a acompanhá-la, aconselhá-la ou instruí-la (ANDREUCCI, 2016, s.p). Em análise, resta evidenciado que o Estado tem relação direta com a vitimização secundária, sendo este o cerne desta pesquisa, uma vez que o controle estatal nesses casos específicos, devem atender não somente ao procedimento penal, mas sobretudo ao acompanhamento da vítima, de forma a não maximizar os efeitos já provocados pelo agente infrator. Em caráter prático, a sobrevitimização tem influência direta no número de denúncias e, consequentemente, de processos que tratem de violência de cunho sexual, pois com a alteração quanto ao tipo de ação penal, que tornou a mesma pública incondicionada, retirou das vítimas, desde que seja de conhecimento das autoridades, a possibilidade de deixar optar ou não em expor o fato criminoso. Contudo, o Estado, na busca pela verdade real, acaba por trazer à tona não somente o crime, mas também os traumas e vivências negativas sofridas pelo indivíduo que ocupa o polo passivo. Dessa forma, o Estado deve garantir às vítimas não somente a expectativa de punibilidade, mas também deve assegurar os direitos e garantias fundamentais no curso do processo penal. A cerca disso, elucida Andreucci: As vítimas passam por diversos constrangimentos físicos, morais, patrimoniais devido à ocorrência do delito, ao passo que são poucos 35 os mecanismos que buscam, efetivamente, minorar as consequências por ela experimentadas, e, por conseguinte, o abandono da vítima colabora para que esta permaneça no anonimato, por ter receio de ser revitimizada (ANDREUCCI, 2016, s.p). Ademais, há também a vitimização terciária, que não fica à cargo do Estado, uma vez que esta é desenvolvida pela sociedade, ao promoverem o afastamento e segregação pelo fato do estigma que recai sobre a pessoa vítima de crimes sexuais. Nesse sentido, especificamente a família, trazida pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, como base social mais íntima, pode vir a praticar esse afastamento. Destarte, este trabalho busca relacionar os efeitos que a vitimização provocada pelo Estado, qual seja, a secundária, traz às vítimas de crimes que envolvam violência sexual, portanto, dessa análise se tem que o papel estatal não deve ser unicamente desenvolvido na busca da verdade real, uma vez que para que esta seja alcançada, a pessoa que primariamente foi alvo de outro tipo de violência, tenha que a reviver e maximizá-la em detrimento do não atendimento do Estado, enquanto agente garantidor, do procedimento em que não seja necessário gerar uma violência para combater outra, tendo em vista que o direito penal visto como última ratio deve ser considerado também. 36 4. O ITER (RE)VICTIMAE E SEUS IMPACTOS Considerando que as lições mencionadas nos capítulos anteriores trouxeram definições e teorias acerca da violência contra a mulher em si, bem como sua dinâmica de desenvolvimento na sociedade atual,este dedica-se a explanar sobre a relação que revitimização de mulheres vítimas de crimes sexuais possuem com os problemas sociais, bem como estes desenvolvem consequências não somente para a vítima, mas para os que a rodeiam e, em decorrência disso, há uma série de efeitos que fazem com que a coletividade adote e chancele condutas que devem ser reprovadas em todos os âmbitos. Nesse sentido, é importante aludir que, do mesmo modo que o agente causador promove o iter criminis, ou seja, determina e executa as etapas para a consumação do crime, quais sejam, os atos preparatórios e afins, a vitimologia ocupa-se na análise do iter victimae, que em tradução literal do latim significa “o caminho para a vítima”, referindo-se às etapas percorridas pela pessoa até que ela se torne vítima do crime primário. Segundo o autor Cleber Masson (2015, p.355), o iter criminis ou caminho do crime, corresponde às etapas percorridas pelo agente para a prática de um fato previsto em lei como infração penal. Nesta toada, declara o autor Cezar Roberto Bitencourt (2012, p.522), há um caminho que o crime percorre, desde o momento que germina, como ideia, no espírito do agente, até aquele em que se consuma no ato final. Nesse mesmo diapasão, expõe Edmundo Oliveira: “Iter Victimae é o caminho, interno e externo, que segue um indivíduo para se converter em vítima, o conjunto de etapas que se operam cronologicamente no desenvolvimento de vitimização”. (OLIVEIRA, 2001). Ademais, a doutrina majoritária aduz que o iter victimae possui as mesmas etapas que o iter criminis, sendo elas a intuição - também denominada de fase interna, que abrange a cogitação, deliberação e resolução, a preparação, o início da execução, a execução em si e a consumação do delito. 37 Em breve resumo, estas definem-se nas palavras de Nucci: “O iter criminis é um conjunto de fases que se sucedem para a realização de um crime, que vai desde à cogitação à consumação. Divide-se em duas fases – interna e externa –, que se subdividem: A) fase interna, que ocorre na mente do agente, percorrendo, como regra, as seguintes etapas: a.1) cogitação: é o momento de ideação do delito, ou seja, quando o agente tem a ideia de praticar o crime ; a.2) deliberação: trata-se do momento em que o agente pondera os prós e os contras da atividade criminosa idealizada; a.3) resolução: cuida do instante em que o agente decide, efetivamente, praticar o delito. Tendo em vista que a fase interna não é exteriorizada, logicamente não é punida. B) fase externa, que ocorre no momento em que o agente exterioriza, através de atos, seu objetivo criminoso, subdividindo-se em: b.1) manifestação: é o momento em que o agente proclama a quem queira e possa ouvir a sua resolução. Embora não possa ser punida esta fase como tentativa do crime almejado, é possível tornar -se figura típica autônoma, como acontece com a concretização do delito de ameaça; b.2) preparação: é a fase de exteriorização da ideia do crime, através de atos que começam a materializar a perseguição ao alvo idealizado, configurando uma verdadeira ponte entre a fase interna e a execução. O agente ainda não ingressou nos atos executórios, daí por que não é punida a preparação no direito brasileiro. Excepcionalmente, diante da relevância da conduta, o legislador pode criar um tipo especial, prevendo punição para a preparação de certos delitos, embora, nesses casos, exista autonomia do crime consumado. Exemplo: possuir substância ou engenho explosivo, gás tóxico ou asfixiante ou material destinado à sua fabricação (art. 253, CP) não deixa de ser a preparação para os crimes de explosão (art. 251, CP) ou de uso de gás tóxico (art. 252, CP), razão pela qual somente torna- se conduta punível pela existência de tipic idade incriminadora autônoma; b.3) execução: é a fase de realização da conduta designada pelo núcleo da figura típica, constituída, como regra, de atos idôneos e unívocos para chegar ao resultado, mas também daqueles que representarem atos imediatamente anteriores a estes, desde que se tenha certeza do plano concreto do autor. Exemplo: comprar um revólver para matar a vítima é apenas a preparação do crime de homicídio, embora dar tiros na direção do ofendido signifique atos idôneos para chegar ao núcleo da figura típica “matar”. b.4) consumação: é o momento de conclusão do delito, reunindo todos os elementos do tipo penal. (NUCCI, 2020, grifo nosso)” 38 Com a compreensão da lição trazida por Nucci, observa-se que o direito penal, enquanto seara de estudo do crime em si, traz, primeiramente, as referidas etapas para que o delito se desenvolva e, nessa toada, este estudo busca realizar a análise comparativa das etapas supracitadas, considerando o ramo da vitimologia, especificamente, nos caminhos que levam a mulher que já fora vítima de um crime, ser novamente exposta a outros tipos de violências, que teriam como agentes ativos o Estado e a sociedade. Com todo o exposto, cabe a análise deste conceito ora supracitado no contexto da vitimologia, em que pese considerar o já mencionado iter victimae, uma vez que se faz essencial para a compreensão de como a mulher, especificamente, em crimes que envolvem violência sexual, defronta-se com isso não somente quando sofre a violência, mas ao procurar os entes responsáveis pela punição de seus agressores, considerando todo o julgamento e culpabilização da mulher vítima de violência sexual no Brasil, conforme se expôs em linhas anteriores, o que propicia um processo de revitimização, sendo o Estado nesses casos, agente ativo no iter victimae? 0.1. O ESTADO COMO AGENTE REVITIMIZADOR Ante o exposto, cabe aludir não somente sobre a revitimização em si, mas, sobretudo, quanto aos meios que possibilitam e fazem com que esta seja uma realidade nos crimes sexuais contra a mulher em geral, pois o Estado, enquanto agente garantidor de direitos, possui participação em diversas etapas, uma vez que este participa desde a instituição de direitos, até a aplicação e execução das atividades que visam garantir tais prerrogativas, que, em suma, buscam assegurar a dignidade da pessoa humana. De maneira mais específica, destaca-se, para este estudo, a vitimização secundária, vez que esta é tida quando há uma nova reprodução de violência por parte do Estado para com a vítima de crimes, especialmente os de cunho sexual contra as mulheres, pois são nestes que ocorrem com maior incidência. Sobre o aludido, aduz Calhau: “(...) a sobrevitimização do processo penal ou vitimização secundária é o sofrimento adicional que a dinâmica da Justiça Criminal (Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias e sistema penitenciário), com suas mazelas, provoca normalmente nas vítimas. No processo penal ordinário e na fase de 39 investigação policial, a vítima é tratada com descaso, e muitas vezes com desconfiança pelas agências de controle estatal da criminalidade.” (CALHAU, L, B. 2009) Nessa perspectiva, o Estado é tido como agente revitimizador nos casos de violência sexual contra a mulher quando promove, ao invés de proteção, descrédito e culpabilização à vítima, além disso, o atendimento primário à mulher em tais condições faz toda a diferença não somente à vítima, mas também a todo o trâmite processual que deveria advir de uma violência. Ademais, conforme já mencionado, o Atlas da Violência trouxe os números de casos de estupro no Brasil, comprovando que a subnotificação deles é absurdamente alta, chegando a 90%. Diante disso, é cabível dizer que as mulheres, ao serem vítimas de crimes sexuais, tendem a se afastar da busca pela justiça, fato este ocorrido pela alta incidência da revitimização pelo ente estatal. Desse modo, o Estado falha na incumbência de garantidor de direitos, uma vez que a violência trazida pelo criminoso, por si só, já produz dores e traumas que não podem ser apagados pela vítima e,