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Santa Beatriz da Silva - Francisco Senra Coelho

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Senra Coelho
SANTA BEATRIZ DA SILVA
2
Pré-impressão: PAULUS Editora
Impressão e acabamento: www.artipol.net
Depósito legal: 333 173/11
ISBN: 978-972-30-1587-4
© PAULUS Editora, 2011
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Preâmbulo
A memória dos santos não se apaga. Como estrelas no firmamento, as suas vidas
continuam a brilhar e a servir de guia aos que as contemplam na escuridão da noite.
Santa Beatriz da Silva é disso um bom exemplo. Cinco séculos após a sua morte, o
exemplo da sua vida continua a atrair muitas jovens, que habitam os cento e
cinquenta e seis mosteiros, espalhados por quinze países e quatro continentes.
Esta curta biografia, escrita pelo padre Senra Coelho, com rigor histórico e beleza
literária, dá-nos a conhecer o contexto em que nasceu, cresceu e viveu Santa Beatriz.
Levanta o véu que lhe cobria a face para nos mostrar a beleza da sua profunda
espiritualidade. E apresenta-nos os frutos maduros da sua maternidade espiritual,
espalhados pelo mundo.
Qual ourives que escolhe e prepara o metal onde vai encastoar uma pedra preciosa,
assim o autor, de forma sóbria e criteriosa, coloca Beatriz da Silva no contexto
familiar, histórico e cultural, onde melhor se entende a origem da sua fé e da sua
devoção à Virgem, características pessoais que concedem especial brilho à sua alma
de eleição. E, por outro lado, justificam a renúncia ao fausto da corte e às alegrias
familiares, para optar pelos desposórios místicos, dando origem a uma nova família
monástica. Porém, qual mãe que morre de parto, também ela não viu os frutos da sua
maternidade. Partindo desta vida no dia em que as primeiras doze discípulas
deveriam emitir os seus votos, continuou a acompanhar espiritualmente a nova
família, que se mantem viva e florescente.
merece especial louvor a iniciativa tanto do autor e como da editora, que,
certamente, contribuirá para o brilho das comemorações jubilares em curso.
† José Alves, arcebispo de Évora
4
Prefácio
Foi com muita honra que aceitei o amável convite do Senhor Padre Doutor
Francisco Senra Coelho para escrever um prefácio ao seu livro sobre Santa Beatriz da
Silva. O mérito académico do autor, e, sobretudo, a sua dignidade sacerdotal,
dispensam certamente o meu comentário. Do primeiro falarão os percursos pelas
universidades, as aulas, as publicações. Do segundo falará o alto desígnio espiritual
da sua vocação e as suas múltiplas actividades pastorais, nomeadamente enquanto
pároco na arquidiocese de Évora. Não me poderia sentir mais honrado quando, para
além do autor, tanto me diz o tema do livro.
Com efeito, tenho vindo a estudar a figura de Santa Beatriz da Silva e a sua Ordem
da Imaculada Conceição. Em 2008, publiquei em Portugal uma biografia da santa,
resultado de seis anos de investigação em diversos arquivos, a qual sairá em breve em
Espanha. Publicarei também, no próximo ano, um estudo sobre a identidade desta
ordem religiosa feminina, uma das mais interessantes do monaquismo peninsular e,
ao mesmo tempo, uma das mais desconhecidas, na medida em que os estudos têm
sido ainda pouco profundos e em número que considero manifestamente insuficiente.
Santa Beatriz da Silva e a Ordem da Imaculada Conceição constituem uma imensa
riqueza, não apenas para a Igreja Católica, como para as culturas nacionais em que
marcaram ou marcam presença. Portugal foi a pátria da santa, que foi filha de
nobilíssimas linhagens lusitanas e natural da vila alentejana de Campo maior.
Portugal foi também agraciado com a fundação de vários mosteiros concepcionistas
do século XVI ao século XVIII, com numerosas monjas e ricos patrimónios, desbaratados
no século XIX, aquando da expulsão das ordens religiosas. Conta actualmente com dois
mosteiros activos, nos quais ingressam todos os anos várias mulheres portuguesas.
Não podemos aceitar, pois, que tanto Santa Beatriz da Silva como a sua ordem,
começada a fundar em Castela por ela e por outras portuguesas, sejam tão ignoradas
em Portugal. Um povo que não reconhece e que não valoriza as suas figuras
históricas, religiosas ou não, tenderá a desnortear a sua própria identidade.
No que toca a Santa Beatriz da Silva e à sua ordem, o problema não fica somente
pelo pouco conhecimento geral que delas ainda existe. Creio que mais grave que o
desconhecimento foi e continua a ser o ânimo leve com que se toleram os abusos
praticados por investigadores e biógrafos mal formados, os quais têm vindo a
dissertar sobre diferentes aspectos da sua vida e obra com tal à-vontade que, neste
momento, é mais o joio que o trigo na literatura existente. Saem lesados aspectos
fundamentais como o local do seu nascimento (disparatadamente deslocado para
Ceuta, hoje território de Espanha), a sua própria nacionalidade (chegando a ser dita
espanhola), a data da sua morte, as suas reais intenções fundacionais, etc. Diríamos
que a memória de Santa Beatriz e das suas discípulas não merecia ser tão maltratada.
Diríamos que os seus conterrâneos – ao menos esses – deviam ser menos
condescendentes com tão mau serviço.
O presente livro sintetiza alguns momentos importantes da biografia de Santa
Beatriz, juntamente com outras informações que facilitam uma necessária
contextualização da sua vida e da sua obra. Pela sua singeleza e brevidade está
5
seguramente dotado de maior atracção para os leitores menos interessados em
questões detalhadas. Convida-os a um conhecimento rápido, na linha do que vários
opúsculos têm tentado nas últimas décadas do século XX, destinados a um público
devoto, piedoso, mas tantas vezes acrítico. O autor do presente livro, porém,
demarcar-se-á. Não arrastará os leitores para visões romanescas. Fará referência ao
estilo hagiográfico das primeiras biografias da santa (escritas no início do século XVI) e
apresentará correcção geral quanto a dados históricos, dela e do tempo em que viveu.
Datas e nomes relacionados com Santa Beatriz da Silva, por exemplo, são dados que
convidam os leitores a pesquisar sobre a sua época e, portanto, sobre ela própria.
Resta-me agradecer o convite para realizar este prefácio, ao qual é inevitável juntar
novo agradecimento ao autor, agora de um modo ainda mais incisivo: pela ideia que
teve de escrever o livro, ao constatar o desconhecimento geral que ainda há desta
portuguesa e da sua ordem. Com efeito, era livro bem necessário. Bem-haja por isso.
José Félix Duque - CEC/FL – Universidade de Lisboa
6
Introdução
Ao celebramos o V centenário da Bula Ad Statum Prosperum (17-09-1511), do
Papa Júlio II (1503-1513), pela qual «se aprova e se concede a todas as
Concepcionistas uma nova regra, própria para elas, distribuída em doze capítulos»1,
recebi o convite da PAULUS Editora para participar na publicação de uma breve
síntese biográfica de Santa Beatriz da Silva, a fim de proporcionarmos ao grande
público um conhecimento biográfico desta santa portuguesa.
A publicação obedece a alguns critérios: é breve e concisa, tem em conta as
últimas investigações histórico
-científicas e não descora a espiritualidade e a religiosidade da biografada.
Ancorado na sólida e fecunda investigação de José Félix Duque, estudando as
principais fontes publicadas da biografia da santa e da documentação da ordem,
coloco ao dispor de todos esta breve síntese biográfica acompanhada da tradução da
referida bula com a Regra de Vida das monjas Concepcionistas Franciscanas.
Pareceu-me oportuno dar também a conhecer a vasta expansão da ordem, presente em
vários países. Por isso, anexamos um apêndice com esta informação.
1 omAchevArriA, 1976: 23.Contexto Histórico
Isabel I, a Católica2(1451-1504), filha de D. João II de Castela e de D. Isabel,
infanta de Portugal, neta materna Castela e de D. Isabel, infanta de Portugal, neta
materna
-1442), celebrou, em 1469, o seu matrimónio com Fernando, rei da Sicília e
herdeiro de Aragão (10-03-1452
– 25-01-1516). Por morte do seu meio-irmão, o rei Henrique IV de Castela (06-01-
1425 – 12-12-1474), foi proclamada rainha de Castela (1474-1504), depois da derrota
de D. Joana, a Beltraneja (1462-1530), filha de D. Joana de Portugal e de Henrique
IV de Castela (06-01-1425 – 12-12-1474).
Ajudada pelos cardeais mendonza (03-05-1428
– 11-01-1495) e Jiménez de Cisneros (1436 – 08-11-1517), D. Isabel I afirmou a
autoridade da monarquia absoluta sobre a Igreja de Espanha. No fim da Reconquista,
com a tomada de Granada (1492), a rainha mostrou grande firmeza na governação,
também sobre a Igreja. Assim, obteve dos Papas o direito do Patronato sobre os mais
altos cargos eclesiásticos no reino de Granada.
2 O título de Maiestas Catholica foi-lhe conferido pelo Papa Alexandre XI em 1496.
Esta supremacia da monarquia sobre a Igreja de Espanha foi-se impondo
paulatinamente, fruto de várias diligências junto dos Romanos Pontífices. A partir de
Sisto IV (1471-1484), os Reis Católicos obtiveram o direito de nomear os bispos. O
Papa Alexandre VI reconheceu oficialmente este direito em 1523.3
O episcopado espanhol de nomeações régias foi dos melhores da Europa e tornou-
se precursor da futura reforma tridentina. Os Reis Católicos não escolheram os
candidatos ao episcopado guiados exclusivamente por motivos políticos, mas
deixaram-se conduzir pelo zelo religioso. Deste modo, foram nomeados pelo Papa
7
bispos doutos, moralmente exemplares e provenientes da classe média da sociedade
espanhola. Estes bispos zelosos, influentes e com autoridade na corte régia,
dedicaram
-se com ardor à reforma das suas dioceses, antecipando, assim, os efeitos
tridentinos na nossa península.
Neste contexto, as ordens religiosas não foram esquecidas. Nos anos de 1473 e de
1512, realizaram-se importantes sínodos provinciais cujos decretos de reforma por
eles promulgados foram efectivamente aplicados com as consequentes implicações na
vida dos religiosos. Assim, nas ordens mendicantes foi seguida a estrita observância e
os mosteiros beneditinos foram todos obrigados a aderir à congregação de Valladolid.
3 Bula Eximial devotionis affectus (06-09-1523).
Sabemos que a rainha D. Isabel I conheceu, desde jovem, Santa Beatriz da Silva,
que serviu sua mãe, D. Isabel, esposa de D. João III, rei de Castela. A rainha, nas suas
frequentes visitas a Toledo, conheceu de perto a sua vida exemplar e, por isso,
apoiou-a convicta e empenhadamente na fundação da sua primeira comunidade de
monjas concepcionistas, sediada nos antigos palácios de Galiana, em Toledo. Deste
modo, crescia e sobretudo aprofundava-se a reforma da Igreja em Espanha.
O contributo de D. Isabel I foi importante, pois obteve de Roma todos os suportes
jurídico-canónicos de que Santa Beatriz da Silva carecia para executar os planos que
Deus lhe inspirara através da sua grande devoção à Imaculada Conceição da Virgem
maria.
O Concílio de Constança (1414-1418) tinha indicado a toda a Igreja a necessidade
de caminhos novos de reforma transversal desde a cabeça da Igreja, o Papa, até às
suas bases, o Povo de Deus. Assim se fez na sessão 39, de 9 de Outubro de 1417, e na
sessão 40, de 30 de Outubro do mesmo ano.
As dificuldades de conciliar as disposições gerais do Concílio com as necessidades
peculiares de cada nação levaram à publicação de sete decretos de reforma na sessão
43, de 21 de março de 1418. Vários aspectos referidos nestes decretos diziam respeito
ou produziam efeitos também na vida das ordens religiosas.
A vida de Santa Beatriz da Silva desenvolveu-se nesta atmosfera marcada pelo
desejo de mais vida evangélica nas estruturas da Igreja e em cada cristão. Ela é
simultaneamente fruto do seu tempo e grande contributo para os ideais da sua época.
Agradecimentos
Um agradecimento a José Félix Duque pelo prefácio que fez a esta breve
publicação, bem como a sugestão da sua capa.
Ao mosteiro de Campo maior, na arquidiocese de Évora, os nossos agradecimentos
por todo o apoio dado, sobretudo na execução dos apêndices.
Dedico este modesto trabalho aos benévolos leitores, especialmente aos jovens. A
todos os jovens em espírito devolvo a nossa Santa Beatriz da Silva, na beleza da sua
vida e da sua mensagem.
Padre Senra Coelho
8
Capítulo I
Sua família, seu nascimento e sua infância
Santa Beatriz da Silva nasceu pouco depois da crise vivida por Portugal entre os
anos de 1383 e de 1385. A nossa nação recuperava dessas difíceis vicissitudes
quando, por volta de 1437, D. Isabel de meneses deu à luz aquela que haveria de ser a
primeira portuguesa canonizada. A canonização realizou-se em Roma, sob a
presidência do Papa Paulo VI (26-09-1897 – 06-08-1978; Papado: 21-06-1963 – 06-
08-1978).
Seu pai, Rui Gomes da Silva, era conselheiro do rei
Seu pai, Rui Gomes da Silva, era conselheiro do rei-1433 – 09-09-1438) e alcaide-
mor de Campo maior e de Ouguela. Sua mãe era uma das filhas naturais de D. Pedro
de meneses (1370 – 22-09-1437), 1.º conde de Vila Real e 2.º conde de Viana do
Alentejo.
Voltando à História de Portugal, recordemos que a crise de 1383-1385 aconteceu
porque a herdeira do trono português, D. Beatriz (1373-1412), filha legítima e
herdeira do rei D. Fernando (31-10-1345 – 22-10-1383; reinado: 18-01-1367 – 22-10-
1383), se tinha casado com o rei de Castela, D. João I (24-08-1358 – 09-10-1390;
reinado: 25-07-1379 – 09-10-1390). Para evitar a junção das duas coroas no rei de
Castela, perdendo Portugal a sua independência, o tio paterno de D. Beatriz, D. João,
mestre da Ordem militar de Avis, conseguiu chegar ao trono coadjuvado pelo
Condestável, São Nuno álvares Pereira (24-06-1360 – 01-11-1431). Com a vitória de
Aljubarrota (14-08-1385), iniciou-se a nova Dinastia de Avis, fundada pelo rei D.
João I (11-04-1358 – 14-08-1433; reinado: 6-04-1385 – 14-08-1433).
A família da mãe de Santa Beatriz da Silva, os meneses4, era partidária da rainha
D. Beatriz e de sua mãe e regente, a rainha D. Leonor Teles (1350 – 27-04-1386;
reinado: 1371-1383), que eram suas parentes. Devido a esta relação, os meneses
foram espoliados. Uns sofreram a morte e outros conseguiram exílio em Castela.
Fruto desta situação adversa sofrida pela família, D. Pedro de meneses foi levado
para o exílio em criança, pela sua mãe, a condessa D. maior de Portocarreiro, esposa
do conde D. João Afonso Telo de meneses, que fora assassinado, vivendo algum
tempo em Castela, na corte da rainha D. Beatriz. Ainda menino, regressou com sua
mãe a Portugal, onde se integrou na corte do rei D. João I, atingindo aí as funções de
alferes-mor do infante D. Duarte, herdeiro do trono. Foi no desempenho deste cargo
que o avô de Santa Beatriz da Silva, D. Pedro de meneses, participou na conquista de
Ceuta, de onde chegou a ser governador.
4 Ditos também Telo de meneses ou Teles de meneses.
Durante esta estada em Ceuta, o fidalgo Rui Gomes da Silva, um dos escudeiros do
infante D. Duarte, ali presente desde a conquista da cidade, desposou-se com D.
Isabel de meneses, filha natural de D. Pedro de meneses5. A celebração deste
matrimónio aconteceu entre 16 de Novembro de 1422 e 12 de Julho de 1423.6
Quando Santa Beatriz da Silva nasceu, já os seus pais moravam em Campo maior.
9
De facto, a 24 de março de 1427, uma carta régia determinava que Rui Gomes da
Silva deveria pagar anualmente as sisas da vila de Campo maior, com retroactivos
desde o dia 1 de Janeiro, no almoxarifado de Campo maior. Provavelmente,
regressaram a Portugal na segunda metade de 1426.
5 D. Pedro de meneses teve duas filhas, de mulher desconhecida, quando ainda solteiro, D. Aldonça de meneses e
D. Isabel de meneses.
6 A data de 16-12-1422 refere-se ao contrato de casamento e o dia
12-07-1423 à concessão de uma indulgência pontifícia, a qual nomeia RuiGomes da Silva e D. Isabel de menezes
como marido e esposa. Cf. Félix Duque, 2008: 28.
A 23 de Novembro de 1433, foi confiado o Castelo de Ouguela a Rui Gomes da
Silva, e a 8 de Abril de 1435 recebeu as funções de alcaide-mor de Campo maior. Há
referências documentais a afirmarem que Santa Beatriz da Silva e seus pais residiam
em Campo maior dentro das muralhas, na vila velha, junto à Porta do Sol.7 mas
devido a algumas diferenças de opinião sobre o lugar de nascimento de Santa Beatriz
da Silva vamos conhecer as principais fontes históricas onde nos poderemos
esclarecer e fundamentar historicamente.
Entre 1512 e 1526 escreveram-se quatro biografias de Santa Beatriz da Silva. A
primeira é atribuída a madre Joana de São miguel, na ocasião vigária do mosteiro da
Conceição de Toledo. Esta religiosa conheceu pessoalmente e conviveu com Santa
Beatriz da Silva. Tudo indica que foi ela quem ditou o conteúdo desta primeira vida
da santa. O texto é situado cronologicamente pelos especialistas entre 1511 e 1512 e
foi encontrado em 1618 devidamente assinado por Joana de São miguel, dentro de um
tubo fechado e selado, no interior da urna funerária de Santa Beatriz da Silva. O
original desapareceu, mas subsistem duas cópias, quase sem diferenças entre si. Uma
integrada num compêndio documental conservado no arquivo do mosteiro da
Conceição de Toledo e a outra conservada no mosteiro também intitulado da
Conceição, mas de Sevilha.
7 Cf. Idem, ibidem, p. 23.
A segunda biografia, intitulada Vida I, foi redigida por volta de 1517, por autor
anónimo. O original estava inserido no «Primer Libro y Registro antiguo […]». Desta
segunda biografia, cujo original também desapareceu, conserva-se uma cópia feita no
século XIX por frei miguel de San Román.
A terceira biografia, chamada Vida II, é uma versão enriquecida da Vida I. Foi
escrita por autor anónimo, em 1526, e intitula-se La Historia de como se Comezo e
Instituio las Hordens e Regla de las Monjas de la Purissima Concepcion. O original
da Vida II também não existe, tendo todavia chegado até nós uma cópia seiscentista,
feita e guardada no arquivo do mosteiro da Conceição de Toledo. Em 1660, foi
analisada e anotada por frei Pedro de Quintanilla y mendonza.
A quarta biografia é a Vida III, que se assemelha muito aos textos da Vida I e da
Vida II. O original da Vida III dataria do século XVII e foi pertença do mosteiro da
Conceição de Tourijos, fazendo parte do seu livro de registo das entradas, profissões
e óbitos das monjas. O original da Vida III perdeu-se na Guerra Civil Espanhola
(1936-1939).
Voltando à questão da naturalidade de Santa Beatriz da Silva verificamos que, na
primeira biografia, madre Joana de São miguel apresenta Santa Beatriz da Silva
nascida em Campo maior.
10
A Vida I, segundo a transcrição feita no século XIX por miguel de São Romão, refere
o lugar do nascimento de Santa Beatriz da Silva como sendo Campo maior.
A Vida II diz que Santa Beatriz da Silva era natural do reino de Portugal, mas não
concretiza o local do seu nascimento.
Durante o século XVII, toda a tradição oral e escrita atribui a Campo maior o lugar de
nascimento de Santa Beatriz da Silva. Só no século XIX, ao ser publicada a História de
la Ciudad de Ceuta, da autoria de Jerónimo de mascarenhas, se afirmou que Santa
Beatriz da Silva teria nascido em Ceuta por volta de 1426.
Em 1918, ao ser publicada em Espanha esta obra, divulgou-se a negação da
tradição de cinco séculos sobre a naturalidade de Santa Beatriz da Silva em Campo
maior, propagando-se que o local autêntico da naturalidade seria de facto Ceuta.
Jerónimo de mascarenhas era um português que não aceitara a restauração de 1640.
Servindo na Espanha o rei D. Filipe IV (08-04-1605 – 17-09-1665; rei de Espanha:
31-03-1621 – 17-09-1665; rei de Portugal, como Filipe III: 31-03-1621 – 01-12-
1640), teria preferido que Santa Beatriz da Silva tivesse nascido em Ceuta, território
que deixara de ser português e passara a ser da Coroa Espanhola.
Verifica-se que Jerónimo de mascarenhas utilizou como única fonte histórica a
crónica de Gomes Eanes de Zurara, escrita pouco depois da conquista de Ceuta. Sem
consultar o manuscrito de madre Joana de São miguel, Jerónimo de mascarenhas
decidiu ser ele o primeiro a afirmar que Ceuta era a terra natal de Santa Beatriz da
Silva.
As investigações realizadas por José Félix Duque e publicadas na obra por nós
citada, Santa Beatriz da Silva, Vida e Obra de Uma Mulher Forte8 encerram o
assunto referente à localidade do nascimento de Santa Beatriz da Silva, ficando
superada a hipótese de Ceuta e reafirmada historicamente a localidade de Campo
maior como terra da sua naturalidade.
Sobre a infância de Santa Beatriz da Silva, não podemos saber muito. Tudo indica
que tenha decorrido em Campo maior9, com algumas temporadas de permanência em
Ouguela10.
Segundo uma tradição viva no século XVIII, a pia baptismal em que foi baptizada
Santa Beatriz da Silva é aquela que se conserva no baptistério da actual Igreja matriz
de Nossa Senhora de Expectação, em Campo maior. Na ocasião do baptismo, a
referida pia baptismal estaria na antiga Igreja de Santa Clara, fundada no século XIII11,
onde Santa Beatriz da Silva teria sido baptizada.
8 Cf. idem, pp. 25-37.
9 A família não residia em Ouguela, pois seu pai nomeou um alcaide para aquele castelo, em sua representação,
João Vasques.
10 No século xvi, a Herdade das Figueiras, em Ouguela, era propriedade dos descendentes da família de Santa
Beatriz da Silva.
A documentação disponível e a generalidade dos genealogistas dizem-nos que
Santa Beatriz da Silva teve pelo menos 12 irmãos, com quem conviveu em criança:
seis varões e seis donzelas. Desconhece-se a ordem exacta dos nascimentos dos filhos
e filhas do casal Rui Gomes da Silva e D. Isabel de meneses, pois era costume
nomear-se primeiro a listagem dos varões. Santa Beatriz da Silva é geralmente
nomeada no terceiro lugar da lista feminina.
11
Os seus irmãos foram Pedro Gomes da Silva, Afonso Teles, João de meneses12,
Fernando da Silva de meneses, D. Diogo da Silva de meneses e Aires da Silva, que
morreu jovem em virtude de uma queda do cavalo. As suas irmãs foram D. Branca da
Silva, D. maria de meneses, D. Guiomar de meneses, D. mécia de meneses, D.
Leonor de meneses e D. Catarina de meneses.
11 A Igreja de Santa Clara foi posteriormente desmantelada, restando dela apenas a Capela do Senhor do Castelo.
12 Frei Amador, fundador dos frades amadeitas da Ordem de São Francisco, é venerado como beato Amadeu.
No século XVIII, havia uma tradição que atribuía aos Franciscanos a educação dos
filhos de Rui Gomes da Silva e de D. Isabel de meneses. Fernando da Soledade fez
eco desta memória. De facto, os Franciscanos tinham convento em Estremoz,
localidade não muito distante de Campo maior e a família dos meneses mantinha
relação com este convento.13
madre Joana de São miguel faz referências na sua biografia à especial devoção que
Santa Beatriz da Silva nutria por São João Baptista. Curiosamente, esta é uma
característica da devoção popular de Campo maior, ao ponto de São João Baptista ter
sido declarado padroeiro daquela vila alentejana. Há contexto histórico para
enraizarmos essa devoção de Santa Beatriz da Silva nas suas práticas de piedade
vividas em criança na vila de Campo maior.
A Vida II diz-nos, no seu capítulo IV, que Santa Beatriz da Silva era também
profundamente devota da Imaculada Conceição da Virgem maria. De facto, seu pai
era originário da arquidiocese primacial de Braga, cuja Sé celebra a festa da
Imaculada com procissão, desde 8 de Dezembro de 1325. Foi certamente nesta
devoção mariana de seu pai, posteriormente por ele convivida na corte do rei D.
Duarte14, de quem foi escudeiro e conselheiro, que Santa Beatriz bebeu a sua
primeira devoção à Imaculada Conceição da Virgem maria.
13 Há algumas notícias indicativas de que os meneses tinham uma estreita relação com os Franciscanos. Rui Gomes da Silva, pai de Santa Beatriz da Silva, frequentava muito Estremoz
para receber a sua tença noAlmoxarifado. Cf. Félix Duque, op. cit., p. 38.
Seu irmão, frei Amadeu Hispano, conhecido na infância como João meneses,
falecido a 10 de Agosto de 1482 foi confessor e secretário particular do Papa Sisto IV
(21-07-1414 – 12-08-1484; Papado: 09-08-1471
– 12-08-1484). Foi este Papa franciscano que começou a celebrar solenemente a
festa da Imaculada Conceição da Virgem maria.15
14 D. Duarte defendeu a Conceição Imaculada da Virgem maria no seu livro Leal Conselheiro.
15 Cf. mArtínez cAviró, 1990: 259.
12
Capítulo II
Sua experiência na corte régia
No tempo em que viveu Santa Beatriz da Silva, muitas das jovens pertencentes à
classe social da nobreza eram enviadas pelos seus pais para a Corte real, tornando-se
acompanhantes permanentes e servindo com cultivada lealdade as rainhas, as infantas
e as princesas. A possibilidade de pertencer à Corte Régia era muito prestigiante para
as famílias nobres e era também uma provável garantia de bom futuro para a donzela
cortesã.
Terá sido seu pai, Rui Gomes da Silva, na sequência da sua relação com D. Duarte,
e então também conselheiro de D. Afonso V (15-01-1432 – 28-08-1481; reinado: 09-
09-1438 – 28-08-1481), quem introduziu na Corte Santa Beatriz da Silva, quando esta
contava sete anos de idade, ficando entregue à infanta D. Isabel, mãe, para se tornar
dama de D. Isabel, filha, a futura rainha, ao tornar-se segunda esposa D. João II de
Castela (06-03-1405 – 20-07-1454; reinado: 25-12-1406
– 20-07-1454). Santa Beatriz da Silva, ao partir para a Corte, seguiu os exemplos
do que já tinha sucedido com as suas irmãs, D. Branca, D. Guiomar e D. maria, e
viria a acontecer também às irmãs mais novas, D. mécia e D. Leonor.
Junto de D. Isabel, mãe, Santa Beatriz da Silva recebeu atenta formação humanista,
própria daquele tempo, bem como novo impulso na sua devoção imaculada à
Conceição da Virgem maria. De facto, a Corte portuguesa ficara marcada pela
personalidade culta e religiosa da rainha de origem inglesa, D. Filipa de Lencastre
(1359 – 19-07-1415), avó paterna de D. Isabel, mãe, e pelo testemunho indelével do
Santo Condestável, avô da infanta, que, por volta de 1414, fizera construir a Igreja de
Santa maria de Vila Viçosa, colocando ali a imagem de Nossa Senhora da Conceição,
que segundo várias informações foi esculpida em pedra na Inglaterra.
Sabemos que a infanta D. Isabel, mãe, tinha três filhas: D. Isabel, de quem viria a
ser dama Santa Beatriz da Silva, em Castela; D. Beatriz e D. Filipa. A segunda filha,
D. Beatriz, que veio a ser mãe do rei D. manuel de Portugal, quando já casada com o
infante D. Fernando, irmão do rei D. Afonso V, fundou o mosteiro de Nossa Senhora
da Conceição, em Beja, o qual foi entregue à Ordem das Irmãs Clarissas. Constata-se
e confirma-se assim que na Corte, Santa Beatriz da Silva viveu num ambiente devoto
e defensor da Imaculada Conceição da Virgem maria.
Foi o casamento de D. Isabel, filha mais velha da infanta D. Isabel, com o rei D.
João II de Castela que fez Santa Beatriz da Silva partir para Castela. O casamento
aconteceu como parte de um acordo diplomático entre Castela e Portugal, por decisão
do infante D. Pedro, o regente e seu tio paterno. Uma das cláusulas do contrato
determinava que D. Isabel podia levar consigo para Castela um reduzido grupo de
damas, que posteriormente o rei de Castela aumentaria com fidalgas castelhanas. De
Portugal seguiriam com a futura rainha apenas uma dama e quatro ou cinco donzelas.
Sabemos que uma das donzelas foi Santa Beatriz da Silva.
Os esponsais deste matrimónio celebraram-se no início de 1447, na vila das
Alcáçovas, próxima da cidade de Évora. Representou o rei de Castela, D. João II,
13
Garcia Sánchez de Valladolid, e esteve presente, vindo de Évora, o rei D. Afonso V e
o seu regente, o infante D. Pedro.
O séquito real seguiu para Lisboa, prosseguindo para Coimbra e dirigindo-se
depois para o Norte, chegando até ao Castelo de Pinhel. Dali partiu para a fronteira,
deixando Portugal e chegando a madrigal, no reino de Castela, em meados de Junho.
D. João II não pôde ir pessoalmente àquela vila receber a princesa, voltando a mandar
representantes para o fazerem em seu nome.
O rei D. João II de Castela era filho do rei D. Henrique III (04-10-1379 – 25-12-
1406; rei de Castela e Leão: 1390 – 25-12-1406) e da rainha D. Catarina (21-01-1507
– 12-02-1578), meia-irmã da rainha D. Filipa de Lencastre, avó paterna de D.
Isabel. Portanto, o rei de Castela e D. Isabel eram primos, tendo sido necessário para
o seu casamento a dispensa da consanguinidade, obtida junto da Santa Sé. O rei
contava quarenta e dois anos de idade e tinha enviuvado havia poucos meses. Do
primeiro casamento tinha só um filho, o príncipe D. Henrique, que lhe sucedeu no
trono como rei D. Henrique IV de Castela (06-01-1425 – 12-12-1474; rei de Castela e
Leão: 22-07-1454 – 12-12-1474). O reinado de D. João II foi marcado por fortes
tensões entre o poder real e a velha nobreza. Na sua Corte vivia-se um momento feliz
de renovação cultural, com a participação de vários escritores, poetas e compositores.
O contrato de casamento celebrado a 10 de Outubro de 1446, no Paço Real de
Évora, estabelecia que o rei D. João II se devia casar com D. Isabel diante da Igreja,
com toda a solenidade, no prazo de trinta dias após a chegada dela ao reino de
Castela. Esta cláusula cumpriu-se no dia 22 de Julho de 1447, na Sala Grande do
Paço Real de madrigal, sob a presidência de D. Pedro de Castela, bispo de Plasência e
tio do monarca. Entre os vários portugueses presentes destacavam-se o Prior do Crato
e os bispos de Évora16 e de Coimbra17.
O quotidiano da jovem Santa Beatriz da Silva seguia o da rainha, sua senhora. Os
dias seriam ocupados em actividades que incluíam a oração, os bordados, os jogos e a
tertúlia no estrado. Pela descrição feita na Vida II, capítulo II, é-nos dito que Santa
Beatriz da Silva «pertencia à casa da rainha com muito mérito», depreendendo-se que
para além de muito formosa, era também simpática.
Seria muito normal supor que Santa Beatriz da Silva viesse a casar. Sobre isto
afirma a madre Joana de São miguel: «[…] Esta dicha Sra. por su grande ermosura y
linaje fue demandada de munchos Condes i Duques en casamiento […].»18 mas
Santa Beatriz da Silva não se quis casar. madre Joana de São miguel diz, muito
sucintamente, que ela fez um voto de virgindade «[…] en medio de estos combates
del mundo […]»19.
A Vida II, no mesmo capítulo II, relata um acontecimento dramático pelo qual terá
passado Santa Beatriz da Silva e que terá originado o seu voto de virgindade.
Segundo esta fonte, a rainha terá tido ciúmes de Santa Beatriz da Silva e levada pela
fúria tê-la-ia encerrado num cofre durante três dias, onde ela permaneceu sem se
alimentar e sem beber.20 Foi após a libertação deste cativeiro que a donzela
portuguesa fez o voto de virgindade e decidiu partir para o mosteiro de São
Domingos, o Real, em Toledo.
16 D. Vasco Perdigão (1443 – 27-02-1463).
17 D. Luís Coutinho (1444-1453).
14
18 Cf. Félix Duque, op. cit., p. 56.19 Idem, ibidem, p. 57.
Procuremos discernir sobre os acontecimentos descritos com critérios científicos.
Se o texto de madre Joana de São miguel é biográfico, o texto da Vida II é sobretudo
hagiográfico. Apesar de conter dados biográficos exactos de Santa Beatriz da Silva,
coloca também alguns elementos que pretendem enaltecer a sua vida através do
realce das suas virtudes e da atribuição de fenómenos sobrenaturais, como aparições,
visões, bilocações e milagres.
20 Em 1618, Francisco Bivar foi o primeiro autor, por nós conhecido, a referir que perante a formosura de Santa
Beatriz da Silva, para além dos nobres da Corte de Castela a pedi-la em casamento, também o rei D. João II de Castela
manifestara interesse por ela. Por este motivo, a rainha enciumara-se e encerrara-a num cofre.
Há notícias de que o monarca tinha três filhas bastardas, provavelmente fruto de relações com mulheres da Corte,
as quais moravam desde pequenas no mosteiro de Santa Clara, a Real, de Tordesilhas, junto doPaço Real. Estes factos
da vida do rei contribuíram para o alastramento dos boatos sobre o seu interesse pela formosa Santa Beatriz da Silva.
A referência a um possível assédio de monarca a Santa Beatriz da Silva surgia já estabelecido na tradição oral de dois
testemunhos do Processo de 1636.
A maioria das notas biográficas e biografias contemporâneas continuam a referir-se ao suposto interesse do rei por
Santa Beatriz da Silva, sem, porém, demonstrarem a atenção na conveniente verificação das fontes. Cf. Félix Duque,
op. cit., p. 215.
O texto da Vida II situa-se na longa tradição hagiográfica mediterrânica das
também chamadas “legendas”. Estes textos eram utilizados na leitura espiritual dos
frades e das monjas e reproduzidos nos frescos e nas telas das paredes das igrejas, dos
mosteiros e dos conventos.
Assim, a Vida II, no capítulo II, descreve uma aparição da Virgem maria vestida de
azul e branco, quando Santa Beatriz da Silva ainda estava na Corte de Castela. A
aparição deu-se dentro do cofre, quando a rainha D. Isabel, por ciúmes da sua beleza,
a encerrou durante três dias seguidos, sem comer e sem beber.
Sabe-se que a partir de 1451, e após o nascimento do primeiro filho, a rainha
sofreu uma depressão profunda, e progressiva, acompanhando-a ao longo da vida até
à morte. Foi por essa altura que Santa Beatriz da Silva saiu da Corte e foi para
Toledo. Nestas circunstâncias, é historicamente admissível que, num momento de
maior desequilíbrio mental, a rainha tenha encerrado pelas próprias mãos Santa
Beatriz da Silva num cofre.
Em relação aos dias de cativeiro, o número três pode ser eminentemente simbólico,
como bem interpreta José Félix Duque.21 Inspirando-se como modelo nos três dias
em que o veterotestamental Jonas esteve no ventre do animal marinho e em que
Cristo esteve morto no sepulcro, ressuscitando ao terceiro dia, é evocada a dimensão
pascal do voto de Santa Beatriz da Silva: morte para o mundo e vida nova para Deus,
ressaltando-se assim, a mudança de vida naquela que é já apresentada como modelo
de santidade, sobretudo pela sua passagem da Corte para o mosteiro. Deste modo, ao
indiciar-se a frivolidade e a maldade da rainha, exalta-se o martírio em Santa Beatriz
da Silva.
Verifica-se que a aparição da Virgem é um elemento comum nas hagiografias. Ao
ser eleita por Deus para fundar uma ordem, Santa Beatriz da Silva encontra-se com
aquela a quem vai dedicar a sua obra, a Virgem da Conceição. Ao deixar a Corte e ao
ingressar no mosteiro de Toledo, Santa Beatriz da Silva passou a ser pertença de
Deus pelo seu voto de virgindade, ora maria é o modelo perfeito da total pertença a
Deus.
15
Por ser de Deus pela sua consagração total, Santa Beatriz da Silva nunca mais
poderia ser desrespeitada por ninguém, por isso, ao consagrar-se para sempre à
Virgem, passou também a ser livre para sempre.
21 Idem, ibidem, p. 215.
16
Capítulo III 
Santa beatriz da silva em toledo
Antes da reforma monástica do final do século XV e início do século XVI, era
frequente que entre as mulheres nobres algumas procurassem nos mosteiros
segurança, assistência religiosa, alguma vida cultural, independência da família,
enfim uma espécie de morada alternativa. Os mosteiros ofereciam, então, um serviço
de hospedagem permanente e segura a muitas damas solteiras ou viúvas. Assim, nos
mosteiros, para além das monjas, viviam hospedadas também algumas das suas
parentes, algumas donzelas adolescentes ou jovens, bem como as criadas de todas
estas. Todas as hóspedes ocupavam aposentos separados das monjas. Dormiam e
comiam à parte, sem qualquer obrigação em relação ao cumprimento da regra de vida
monacal.
Em Toledo, o mosteiro de São Domingos, o Real, era um dos mais procurados da
cidade e dos mais requisitados no reino de Castela. A Vida II testemunha, no capítulo
II, que foi este mosteiro que Santa Beatriz da Silva elegeu para si. A mesma fonte diz
ainda que Santa Beatriz da Silva contava com duas criadas: maria de Saavedra e
Isabel Vasques, possivelmente duas portuguesas de idade muito jovem que
dependiam económica e socialmente de Santa Beatriz da Silva e com ela formavam
uma família laica, conjuntamente com dezenas de outras que habitavam no mosteiro.
Acerca do lugar da morada de Santa Beatriz da Silva em Toledo, desenvolveu-se
bastante investigação histórica. Alguns biógrafos contemporâneos dizem-na
moradora no mosteiro de São Domingos, o Antigo, e não, o Real. Neste caso, Santa
Beatriz da Silva teria vivido num mosteiro de monjas cistercienses, dedicado a São
Domingos de Silos, e não num mosteiro de monjas dominicanas, dedicado a São
Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores, ou Dominicanos.1
Podemos comprovar a localidade da sua habitação em Toledo na Vida II, capítulo
II, que diz: «[…] esto determinó venirse a la ciudad de Toledo al monasterio de Sto.
Domingo el Real, que es de monjas de Sto. Domingo […]». Também numa carta,
maria de Saavedra, uma das criadas de Santa Beatriz, declara ter entrado no mosteiro
dominicano com a sua senhora e ter ali permanecido durante muitos anos. Assim é
referido:
1
 Cf. Gutiérrez, 1977: 263-278.
MARÍA DE SAAVEDRA BESO LAS RREALES MONOS DE VUESTRA ALTEZA, A LA QUAL PLEGA SABER QUE YO ENTRÉ CON DOÑA BEATRIZ DE SYLVA MUNCHO TIEMPO
HA EN EL MONASTERIO DE SANCTO DOMINGO EL REAL DESTA CIBDAD, Y QUANDO ELLA SALIÓ AL MONASTERIO DE LA CONCEPCIÓN YO QUEDÉ […].2
Verifica-se que os Cistercienses criaram e repetiram desde o século XVII a afirmação
de que Santa Beatriz da Silva teria vivido no mosteiro Cisterciense de São Domingos,
o Antigo, relacionando com esta estada a fundação das Irmãs Concepcionistas, ou
seja, Santa Beatriz da Silva teria recebido inspiração cisterciense para a sua fundação.
Conforme atenta José Félix Duque na obra que aludimos, trata-se de «[…] um erro
comprovado por documentação fidedigna»3.
Verifica-se ainda uma convergência histórica muito abrangente em relação a este
assunto: o mosteiro de São Domingos, o Real, tinha relação próxima com a sua
17
família. Foi D. Inês Garcia de meneses que o fundou em 1364. Trata-se de uma
senhora viúva, de origem toledana, da linhagem familiar materna de Santa Beatriz da
Silva, que doara as suas casas à Ordem dos Pregadores, ali professou e foi prioresa.
Em Portugal, o pai de Santa Beatriz da Silva esteve também próximo dos padres
dominicanos, pois escolheu a igreja do Convento de São Domingos, em Elvas, para
construir a capela funerária de sua família.
2
 Cf. Félix Duque, op. cit., p. 60. 3 Idem, ibidem.
É a madre Joana de São miguel quem nos diz como vivia Santa Beatriz da Silva em
Toledo. A sua vida caracterizava-se pelo silêncio, usando sempre um véu branco
sobre o rosto. Segundo a Vida II, capítulo IV, nem homem, nem mulher lhe veria mais
a face, excepto quem lhe levava as refeições. Isto acontecia porque Santa Beatriz da
Silva desejava consagrar a sua beleza somente a Deus e porque a sua formosura já lhe
tinha causado graves problemas devidos à cobiça e à disputa de vários pretendentes à
sua mão e ao ciúme da rainha D. Isabel. O véu branco seria também sinal de ruptura
com a sua anterior vida. Santa Beatriz da Silva aparecia assim, como noiva de Cristo,
adornada com véu nupcial.
É importante perceber que no tempo de Santa Beatriz da Silva existiam as virgens
consagradas, com um estilo de vida distinto das monjas. As virgens consagradas
surgiam como figuras importantes da espiritualidade da época. Eram normalmente
consagradas em jovens. Como as monjas, tinham um espaço próprio para si no
contexto da habitação. Usavam roupas que, sem ser um hábito, porém as distinguiam
das outras mulheres comuns. Diferiam das monjas por não fazerem votos, nem se
vincularem a uma regra de vida pertencente a uma ordem religiosa.
As virgens consagradas podiam viver na casa familiar, em grupo com outras
mulheres, ou hospedadas num mosteiro. Em todos os casos eram vistas pela
comunidade cristã e pela sociedade em geral com fascínio, amor, respeito e
dedicação. Os seus conterrâneos visitavam
-nos com frequência eacreditava-se que a virgem consagrada poderia atrair as
bênçãos de Deus sobre a vizinhança. O seu corpo virginal e consagrado surgia no
imaginário popular como espelho da luz de Deus.
madre Joana de São miguel deixou-nos um retrato breve e incisivo da vida de
Santa Beatriz no mosteiro de São Domingos, o Real, em Toledo: «Dábase mucho a
oración y ayunos y disciplina y, sobre todo, la caridad de los prójimos.» O perfil
descrito corresponde ao de uma virgem consagrada, figura importante da
espiritualidade daquela época. À semelhança dessas virgens consagradas, também
Santa Beatriz da Silva se dedicava à oração e à penitência constante e assídua. Pelo
facto de não ter obrigações de clausura, pôde actuar como protectora, conselheira
espiritual e esmoler. Podia sair do mosteiro a fim de visitar os necessitados e doentes,
levando-lhe a sua caridade, da qual madre Joana de São miguel faz eco na sua
biografia.
Tudo indica que quem pagava a hospedagem permanente de Santa Beatriz da Silva
no mosteiro de São Domingos, o Real, em Toledo, eram os condes de Cifuentes. A
relação com estes, que ainda eram seus parentes, deve ter sido estabelecida com base
nos laços de linhagem e na solidariedade própria das pessoas com comum origem
portuguesa a viverem em terra estrangeira. O pagamento concretizava-se através da
entrega periódica de cereais ou de farinha por esta família ao mosteiro de São
18
Domingos, dito o Real.
A esse pagamento juntar-se-ia uma tença anual da casa da rainha D. Isabel, à qual
Santa Beatriz da Silva pertencia, e uma carta de privilégio do rei D. Henrique IV,
recebida em 1469, pela qual o monarca lhe concedeu 15 000 maravedis, em
recompensa dos «muitos bons serviços prestados à rainha». Foi com estas rendas que,
segundo a Vida II, capítulo IV, Santa Beatriz da Silva custeou a rica ornamentação dos
claustros e da Sala do Capítulo do mosteiro. Segundo a mesma fonte, na
ornamentação que patrocinou, ficou esculpido o seu brasão familiar.
A Vida II, no mesmo capítulo IV, informa-nos que Santa Beatriz da Silva, enquanto
virgem consagrada, foi conhecida pela rainha D. Isabel I, chamada a Católica. A
monarca era filha do falecido D. João II e da rainha D. Isabel, a quem Santa Beatriz
da Silva serviu.
D. Isabel I, a Católica, visitou o mosteiro de São Domingos, o Real, nas seis vezes
que, sempre muito preenchida por actividades, esteve em Toledo. Durante a vida de
Santa Beatriz da Silva, a rainha D. Isabel I esteve em Toledo de 10 a 28 de Agosto de
1475; de 28 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 1477; de 14 de Outubro a 23 de
Dezembro de 1479; de 1 de Janeiro a 3 de Agosto de 1480; de 5 a 8 de Abril de 1482
e de 13 a 16 de Fevereiro de 1487.4
Em todas estas estadas em Toledo, a rainha terá visitado o mosteiro, procurando
conhecer Santa Beatriz da Silva. Nos encontros com a rainha, a santa, que mantinha o
rosto coberto com o já referido véu branco, desvelava o rosto, por reverência à sua
autoridade régia. Havia entre a rainha D. Isabel I e Santa Beatriz da Silva algo em
comum: ambas nutriam uma grande devoção pela Imaculada Conceição da Virgem
maria. Assim, dos vários privilégios e doações oferecidos pela rainha ao mosteiro de
São Domingos, o Real, um foi concedido quando Santa Beatriz da Silva ali habitava.
Foi a 18 de Fevereiro de 1477 que as monjas receberam, de juro e de herdade, 20000
maravedis anuais, para que rezassem pelas almas do rei e da rainha e celebrassem
anualmente e para sempre a festa da Imaculada Conceição de Nossa Senhora.
Como é sobejamente conhecido pela História da Teologia, se os Franciscanos se
assumiram desde as origens da ordem defensores da Imaculada Conceição da Virgem
maria, os Padres Pregadores ou Dominicanos surgiam como aqueles que colocavam
sérias questões teológicas, ou até negavam a possibilidade desta tese mariológica da
possível Conceição Imaculada da Virgem maria. Assim sendo, este privilégio
concedido pela rainha católica às Irmãs da Segunda Ordem de São Domingo,
nomeadamente para que celebrassem anualmente e para sempre a festa da Imaculada
Conceição da Virgem maria, é surpreendente.
4 Cf. idem, p. 74.
Espiritualidade e perfil devocional 
de Santa Beatriz da Silva
Santa Beatriz da Silva era uma mulher perfeitamente integrada na espiritualidade
do seu tempo, marcada pela tradição cisterciense e pela renovação mendicante, e
19
tinha algumas devoções pessoais que vamos procurar conhecer.
A madre Joana de São miguel e a Vida II apontam
-nos alguns dos traços mais vincados da espiritualidade de Santa Beatriz da Silva.
A madre Joana de São miguel refere-se a um traço muito vincado em Santa Beatriz
da Silva, afirmando que ela «era mui debota de la santísima Pasión […]». Fruto
desta devoção, Santa Beatriz da Silva praticava a mortificação corporal, como todas
as pessoas devotas do seu tempo. Assim, testemunha madre Joana de São miguel que
ela se submetia ao jejum, ao uso das disciplinas e utilizava túnicas ásperas sobre a
pele. Associava-se por estas práticas aos sofrimentos de Cristo, oferecidos ao Pai em
favor da Humanidade pecadora. Toda a mortificação era oblativa. Unida a Cristo,
Santa Beatriz da Silva participava no Seu perdão à Humanidade e na Sua salvação.
Sem esquecermos que uma das maiores mortificações de Santa Beatriz da Silva
seria o uso quotidiano do véu branco sobre o rosto, temos de perceber que este sinal a
vinculava pelo esponsal místico àquele que é o Cordeiro de Deus oferecido pela
redenção do mundo, oferta esta continuamente renovada até ao fim dos tempos, na
celebração da missa e presente no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. A Vida II,
capítulo IX, refere-se a um costume de Santa Beatriz da Silva: diariamente, ia rezar
junto ao Sacrário, ainda de madrugada.
A madre Joana de São miguel refere também que Santa Beatriz da Silva «era mui
debota […] del glorioso San Juan Bautista». São João Baptista, para além de ser um
santo da sua infância, pois como já referimos era muito venerado na sua terra natal, a
vila de Campo maior, era sobretudo a prefiguração do próprio Cristo, aquele que
como precursor anunciou a vinda do messias. O Baptista apresentava uma relação
privilegiada e directa com Cristo: ambos eram descendentes do rei David e ambos
tinham sido anunciados pelos anjos a seus pais, sendo que muitos acreditavam
naquela época que também o Baptista fora preservado do pecado original pela efusão
do Espírito Santo no seio de sua mãe, Santa Isabel.
A Vida II, capítulo III, refere mais dois santos muito presentes entre os modelos de
espiritualidade e nas devoções de Santa Beatriz da Silva. Eram eles São Francisco de
Assis e Santo António de Lisboa.
São Francisco era a imagem viva do corpo do Crucificado, pois ele levava em si
impressas as cinco chagas de Cristo, nas mãos, nos pés e no lado. O padre de Assis
foi proclamado muitas vezes «alter Christus» e ele mesmo viveu uma ardente
devoção à Paixão de Jesus.
A relação de Santa Beatriz da Silva com São Francisco iniciou-se muito cedo, pois
este santo esteve muito presente desde a sua infância, através dos Frades menores
frequentados pela sua família nas visitas que faziam ao seu convento de Estremoz.
Santo António de Lisboa, para além de ser compatriota de Santa Beatriz da Silva,
era «alter Christus» duas vezes: por si próprio, que desejou ser mártir, mas devido à
tempestade foi pregador da Palavra de Deus com grandes frutos na Itália e porque era
também um «alter Francisco».
Sabemos que a Vida II, no capítulo III, alude à fuga do Povo de Deus do cativeiro do
Egipto para a Terra Prometida, introduzindo nesse ambiente metafórico a viagem de
Santa Beatriz da Silva de Tordesilhas para Toledo. Foi durante esta viagem que se
teria dado a aparição de São Francisco e de Santo António, que ao passar por um
20
monte a saudaram e conversaram com ela na sua própria língua.
A mensagem simbólica que esta visão de São Francisco e de Santo António
encerra é a proposta a Santa Beatriz da Silva, vinda do Céu, de um movimento de
conversão, para que abandone o luxo e a mundanidade da Corte, uma espéciede
Egipto, a fim de se tornar a grande mãe espiritual das monjas da Conceição, numa
alusão comparativa com a maternidade da Virgem maria.
A mesma fonte biográfica, a Vida II, capítulo III, alude a outro traço importante do
perfil devocional de Santa Beatriz da Silva, ao afirmar que «era esta sierua de
Jesuchristo muy deuota de Ntra. Señora […]». Como sabemos, Nossa Senhora é o
modelo perfeito dos discípulos de Cristo em todos os momentos da História. Ela é
Aquela que mais próxima esteve e está de Cristo e por isso é mãe e educadora da
Igreja e de cada cristão. Porém, a devoção mariana de Santa Beatriz da Silva incide
sobretudo na Conceição Imaculada da Virgem maria.
Percebemos esta especificidade na espiritualidade da santa pelo testemunho da
madre Joana de São miguel: «Esta dicha Sra. fue mui debota de la Santísima
Concepción […]». Deste modo, Santa Beatriz da Silva acreditava que a Virgem maria
fora preservada na sua própria concepção no seio de sua mãe, Santa Ana. Logo
acreditou que Nossa Senhora fora preservada do pecado original, de modo diferente
com que João Baptista teria sido preservado no ventre materno, conforme muitos
acreditavam naquele tempo.
A Vida II, capítulos VIII e XII, refere que Santa Beatriz da Silva desejava mesmo que a
imagem da Virgem Imaculada fosse colocada na sua sepultura, conjuntamente com as
imagens de São Francisco e de Santo António de Lisboa.
A Vida II, capítulo VI, refere também que Santa Beatriz da Silva guardava grande
devoção aos anjos, muito especialmente a «[…] S. Rafael, porque donde que supo
decir el ave María le auía sido muy devota y le rezaba cada día alguna cosa en
especial».
21
Capítulo IV
Santa beatriz da silva, a fundadora
Conforme indica com clareza a Vida II, capítulo IV, Santa Beatriz da Silva tinha o
seu próprio projecto fundacional, de facto, «[…] convivió ella en su voluntad firme
propósito de instituir esta orden y hábito».
Ela desejava instituir um mosteiro dedicado ao mistério da Imaculada Conceição
da Virgem maria e para isso pediu apoio à rainha D. Isabel, a Católica. Nela, a santa
fundadora encontrou total abertura e disponibilidade que muito a alegrou e
entusiasmou a seguir em frente com o seu projecto. Assim, planearam juntas a saída
de Santa Beatriz da Silva do mosteiro de São Domingos, o Real, a fim de passar para
os Palácios de Galiana, na cidade de Toledo. Como nos esclarece a Vida II, capítulo V,
os Palácios de Galiana tinham sido residência régia desde os tempos visigóticos e já
anteriormente pretório romano e depois palácio árabe. Foi aí concedido um amplo
espaço para que Santa Beatriz da Silva lá vivesse com outras mulheres. A rainha
concedeu-lhes também a anexa Igreja de Santa Fé.
O caminho a percorrer pela nova obra deveria ser orientado pela prudência. Assim,
depois de Santa Beatriz da Silva estabelecer e iniciar a nova forma de vida, deviam
enviar ambas, a fundadora e a rainha, uma súplica à Sé Apostólica, pedindo a erecção
canónica para um novo mosteiro naquele lugar, em honra de Nossa Senhora da
Conceição.
A Vida II, capítulo V, revela que Santa Beatriz da Silva saiu do mosteiro de São
Domingos, o Real, no ano de 1484 e que logo deu início às adaptações e à decoração
dos espaços cedidos nos Palácios de Galiana com o firme propósito de que eles se
tornassem num autêntico mosteiro, adquirindo todas as funcionalidades para isso
requeridas.
Diz-nos ainda a mesma fonte biográfica que Santa Beatriz da Silva levou consigo a
sua sobrinha D. Filipa, e mais onze mulheres, «[…] todas en hábito religioso y
honesto, aunque no estaban debajo de orden alguna».
Quanto às suas primeiras discípulas, o primeiro documento a referir-se aos seus
nomes é uma escritura de 5 de Novembro de 1494. Aí são apresentados os nomes da
sua sobrinha, D. Filipa da Silva, Salvagina de mar, Cecilia Páez, Eufrasia de meneses,
Elvira Páez, madalena de Villegas, Constanza de Padilla, Francisca de Santurce,
Catarina de Ervás, maría de Contreras, Teresa de Toledo, Isabel de Sosa, maría de
Tolosa, Juana Díaz de Toledo, Ana de Toledo e Teresa Páez. Verifica-se que com
estes nomes, as suas companheiras tanto poderiam ser portuguesas como castelhanas.
Toda a comunidade ocupava a parte dos Palácios de Galiana que tinha estado
ocupada pela Ordem militar de Calatrava e tinha servido também como Casa da
moeda. Por isso, a fundadora Santa Beatriz da Silva teve de orientar todas as obras de
adaptação para que houvesse dormitório, refeitório, cozinha, claustros, coro, horta,
currais, etc. Afinal, tudo o que constituía uma comunidade monástica feminina. Ali,
Santa Beatriz da Silva e as suas doze discípulas começaram por viver sem qualquer
regra de vida escrita e com aprovação canónica. Foram cinco anos em que Santa
22
Beatriz da Silva foi mestra de uma nova maneira de viver, orientando e formando
pessoalmente a nova comunidade.
A Vida II, no capítulo V, informa que, concluído este primeiro período, foi então
enviada pela rainha católica e por Santa Beatriz da Silva uma súplica à Santa Sé, a
qual deu entrada na Chancelaria Pontifícia a 5 de Fevereiro de 1489. Nela, a rainha
católica pedia que Santa Beatriz da Silva e as suas discípulas, as quais desejavam
abraçar a vida religiosa, pudessem fundar este mosteiro sob uma ordem já aprovada,
vivendo sob a observância regular e perpétua clausura. A súplica não indica que
ordem já aprovada devia ser essa, sob a qual o novo mosteiro desejava viver.
No dia 21 de Fevereiro, foi apresentada pela rainha católica uma correcção que
especificava que Santa Beatriz da Silva elegera a regra da Ordem de Cister para o
novo mosteiro que desejava fundar. Este ficaria sob a observância do Ordinário do
Lugar, o arcebispo de Toledo, tal como o mosteiro Cisterciense de São Domingos, o
Antigo, de Toledo.
A súplica dirigida à Santa Sé pela rainha D. Isabel e por Santa Beatriz da Silva foi
atendida positivamente. Ficaram assim aprovadas as petições apresentadas pelas duas
imaculistas.
Perante o pedido para que o novo cenóbio ficasse integrado na Ordem de Cister, as
monjas da Conceição ficaram vinculadas ao arcebispo de Toledo, como as
Cistercienses, do mosteiro de São Domingos, o Antigo. Ficou também autorizado,
conforme foi solicitado, que a abadessa da Conceição pudesse elaborar estatutos e
ordenações próprias para as novas monjas e que a eleição da primeira abadessa e das
seguintes fosse feita pelas monjas.5 Foi igualmente concedida a faculdade pedida,
para as abadessas da Conceição poderem escolher os confessores do mosteiro de
entre sacerdotes seculares ou de qualquer ordem religiosa, que lhes celebrassem
missas e outros ofícios divinos.
5
 Esta orientação tinha em atenção alguns casos daquele tempo, nos quais muitas vezes as abadessas eram impostas à comunidade por certas famílias poderosas que tinham direitos de
padroado ou de encomenda.
No referente à clausura monástica, ficou assegurada a independência da abadessa,
que canonicamente seria a guardiã das portas da clausura. Também era competência
da abadessa poder dispensar do jejum e da obrigação das irmãs usarem vestuário de
lã, podendo substitui-lo por vestes de linho.
A Comunidade de Santa Beatriz da Silva recebeu também um conjunto de
privilégios espirituais. Os sacerdotes escolhidos pelas monjas poderiam absolvê-las
de todos os seus pecados, incluindo os reservados à Santa Sé. Destes uma vez na
vida, todos os outros pecados sempre que lhes parecesse possível perante a moral e a
disciplina da Igreja. Também poderiam dar a absolvição com indulgência plenária in
articulo mortis.
Foi ainda concedido que na Quaresma e nos outros dias próprios as monjas em
peregrinação aos lugares indicados no mosteiro pela abadessa pudessem alcançar as
mesmas indulgências que os peregrinos alcançavam nas estações das igrejas da
cidade de Roma. Para além destas indulgências, participavam as Irmãs da Conceição
também nas mesmas graças que a Ordem de Cister participava.
Quanto ao hábito a utilizar, as monjas de Santa Beatriz da Silva reproduziam em si
mesmas a imagem da Virgem Imaculadacom o menino Jesus ao colo. Uma cena
maternal plena de ternura. As irmãs vestiam uma túnica branca com escapulário
23
branco, semelhante às Dominicanas, mas com elementos novos e únicos, uma espécie
de capa azul celestial bem como a Virgem representada com o menino Jesus ao colo,
esculpida num medalhão colocado ao peito.
Decisivamente não era um hábito penitencial, pois fazia uma ruptura com a
pobreza estética que caracterizava as vestes monacais tradicionais, assentes nas cores
preta, cinzenta, castanha ou branca, mas nunca no azul celeste. O hábito das monjas
da Conceição não ocultava, mas proclamava a Virgem Imaculada.
O hábito incluía também um cordão com que as monjas se deviam cingir. De facto,
a transcrição da súplica da rainha e de Santa Beatriz da Silva, feita pelos funcionários
da Chancelaria Pontifícia, logo após a chegada do original, refere um cíngulo de lã
branca, porém passou a figurar um «[…] cordão de cânhamo à semelhança dos
Frades menores […]». A rasura elaborada por pessoa e meios distintos foi feita por
determinação expressa do cardeal Aleriense, conforme se pode conferir através de
duas notas marginais, as quais garantem que foram redigidas com a finalidade de
assegurarem que o texto fosse fiel à súplica enviada pela rainha e por Santa Beatriz da
Silva.6 Nada leva a suspeitar que esta rasura tenha tido origem tendenciosa ou
desonesta, pois os originais e as transacções feitas eram escrupulosamente verificadas
por vários oficiais da Chancelaria Pontifícia.
Como sabemos, Santa Beatriz da Silva foi educada em casa de seus pais com a
presença dos Frades menores, devotos fervorosos da Imaculada Conceição da Virgem
maria. Com a utilização do cíngulo franciscano, Santa Beatriz da Silva reafirmou o
seu fervor imaculista, unindo-se aos seguidores de São Francisco. Como salienta bem
a Vida II, no capítulo V, ela e as suas companheiras não dependiam canonicamente de
ordem alguma, mas eram seculares e desvinculadas, portanto o uso do cordão de
cânhamo não era símbolo de uma vinculação jurídica à Ordem Franciscana. Verifica-
se que ela não optou pela regra de vida franciscana de Santa Clara, mas pela regra
cisterciense. Pelo uso deste forte símbolo franciscano ela quis associar-se à sua
espiritualidade, mas não submeter-se à sua jurisdição.
A súplica dirigida à Santa Sé pedia uma liturgia própria, para as monjas. Assim,
exceptuando os domingos e festas com suas oitavas, deveriam rezar as horas
canónicas segundo o costume da Cúria Romana, bem como o ofício divino de Nossa
Senhora da Conceição, excepto nas datas em que não pudessem omitir o ofício do
dia, em cujo caso deveriam rezar pelo menos as horas menores e o pequeno ofício da
Virgem maria com as antífonas, versículos, capítulos e orações do ofício próprio de
Nossa Senhora da Conceição. Com estas propostas, Santa Beatriz da Silva assumia
constituir um corpo litúrgico próprio para o seu mosteiro, caracterizado pelo louvor
da Imaculada Conceição da Virgem maria, da qual as monjas assumiam pública
defesa.
6
 Cf. Félix Duque, op. cit., pp. 113-114.
No dia 30 de Abril de 1489, a Chancelaria Pontifícia registou uma segunda
correcção à súplica da Santa Beatriz da Silva e da rainha católica. Desta vez a súplica
é só da responsabilidade da fundadora Santa Beatriz da Silva.7 A correcção reiterava
a súplica anterior, especificando melhor o que se solicitara para a abadessa e para as
monjas do seu mosteiro. A santa fundadora apresentava como referência e modelo
para a sua súplica os privilégios já concedidos pela Sé Apostólica às monjas «do
24
mosteiro ou casa chamada de madre de Deus, da dita unida ordem de Santo
Agostinho, que vivem sob o cuidado dos frades Pregadores».
A segunda correcção continuava empenhada em obter amplos poderes para a futura
abadessa do seu mosteiro. Nomeadamente, solicitava que fosse revogada a
necessidade do parecer médico para a dispensa dos jejuns exigido e passasse a ser
atribuído à abadessa a decisão dessa dispensa.
7
 Cf. Idem, ibidem, op. cit., p. 122, nota 360.
A resposta da Santa Sé à sugerida correcção, tendo em conta as duas petições
anteriores, foi dada na própria transcrição feita na Chancelaria Pontifícia. Foi o Papa
Inocêncio VIII (25-07-1432 – 25-07-1492; Papado: 12-09-1484 – 25-07-1492) quem
rubricou pessoalmente a petição de Santa Beatriz da Silva, redigindo-se logo depois a
Bula Inter Universa (30-04-1489).
O conteúdo da Bula Inter Universa integra quase literalmente os conteúdos da
súplica da rainha e de Santa Beatriz da Silva, bem como os conteúdos da primeira
correcção da súplica, apresentada apenas pela soberana, conforme vontade expressa
de Santa Beatriz da Silva, no que se refere à observância regular. Apresenta os
conteúdos das petições com maior claridade, colocando Santa Beatriz da Silva como
a única remetente da súplica e das suas correcções, surgindo a intervenção da rainha
num único e breve apontamento. No que diz respeito à segunda correcção da súplica,
ainda que a bula não mencione o mosteiro da madre de Deus, os seus conteúdos estão
presentes.
A fundação do Mosteiro de Nossa Senhora 
da Conceição e a morte de Santa Beatriz da Silva
A fundação do mosteiro aconteceu, de facto, como Santa Beatriz da Silva desejava.
Foi um acontecimento com grande impacto em Toledo.
A Vida II, no capítulo VI, revela-nos que se fez feriado em Toledo nesse dia e que se
realizou uma magnifica procissão, da Catedral de Toledo até à Igreja de Santa Fé,
com a participação de todo os prelados e de muito povo.
Foi o franciscano D. Frei Francisco Garcia de Quijada, bispo de Guadix, quem
transportou, com toda a solenidade, a bula colocada numa rica bandeja e celebrou o
pontifical. No sermão, D. Frei Francisco Garcia de Quijada anunciou que dentro de
quinze dias aconteceria a profissão religiosa de Santa Beatriz da Silva e das suas
discípulas. Tornar-se-iam monjas do novo mosteiro da Conceição. Para essa
celebração, o bispo franciscano convidou todos os prelados a participarem.
A Vida II, no capítulo VII, narra-nos que Santa Beatriz da Silva começou de
imediato os preparativos para a solene celebração dos seus votos e das suas
discípulas, mas, após cinco dias, Santa Beatriz da Silva adoeceu gravemente,
falecendo dez dias depois, no exacto dia em que se devia realizar a celebração da
profissão religiosa das primeiras monjas da Imaculada Conceição. A madre Joana de
São miguel diz-nos na sua biografia que Santa Beatriz da Silva faleceu no dia 9 de
Agosto de 1492, véspera da festa do diácono São Lourenço. A Vida II, no capítulo VII,
informa que a sua morte se deu na oitava da festa de São Lourenço, isto é, a 17 de
Agosto de 1490.8 A mesma fonte histórica, a Vida II, no capítulo VII, sugere ainda que
Santa Beatriz da Silva faleceu lúcida e psicologicamente estável, após a recepção dos
últimos sacramentos.
25
Sobre a causa da morte de Santa Beatriz da Silva, não chegaram até nós notícias.
Sabemos apenas que, já a 10 de Fevereiro de 1618, foi encontrada na urna funerária a
sua touca e o respectivo véu branco e que estas duas peças apresentavam pintas de
sangue. Foram estas duas peças das suas vestes colocadas numa caixa de vidro,
guardadas no mosteiro fundacional e apresentadas aos enfermos da cidade, que lhe
procuravam tocar na esperança de obter a sua cura pela intercessão da santa. Segundo
indicações obtidas, estas relíquias eram emprestadas pelas monjas, indo solicitamente
à casa dos enfermos. Talvez devido a essa circulação externa não chegaram até nós.
8 A informação de Vida II, capítulo vii, é contrariada pelo facto comprovado de que Santa Beatriz da Silva estava
viva no dia da execução da bula, a 16 de Fevereiro de 1491, conforme consta na escritura realizada nesse dia. Cf. Félix
Duque, op. cit., p. 131.
Comparando a sequência cronológica dos acontecimentos imediatos à procissão, indicado pela Vida II, a
informação da madre Joana de São miguel, que terá assistido à morte da santa, parece inexacta. À falta de mais
informações mantemos como data da morte de Santa Beatriz da Silva o dia 9 deAgosto de 1492, provavelmente da
parte da tarde, ou ao fim do dia, fazendo por isso a madre Joana referência à véspera da festa de São Lourenço.
A madre Joana de São miguel refere a presença de seis franciscanos,
provavelmente sacerdotes pré-aceites pela futura comunidade monástica, conforme o
privilégio concedido pela Bula Inter Universa.9 Foram os seis frades franciscanos que
celebraram as solenes exéquias de Santa Beatriz da Silva, levando a enterrar o seu
corpo na Igreja da Santa Fé, conforme ela mesma, por várias vezes, tinha indicado.
Apesar da sua morte, a sua fundação continuou. Segundo a Vida II, capítulo VIII, as
suas discípulas professaram, passados oito dias sobre a morte daquela que foi
instrumento de Deus para que surgisse na Igreja o carisma fundacional das monjas
Concepcionistas Franciscanas (Ordem da Imaculada Conceição).
Poucos meses após a morte de Santa Beatriz da Silva, em 149310, dois breves do
Papa Alexandre VI (01-01-1431
– 18-08-1503; Papado: 10-08-1492 – 18-08-1503), foram dirigidos às «monjas da
Conceição da Bem-aventurada Virgem maria da Ordem de Cister», informando que
tinham sido despachados oralmente por um cardeal da Cúria Romana.
9 A Vida II, capítulo viii, faz também referência à presença de muitos dominicanos e dominicanas, durante a
agonia de Santa Beatriz da Silva.
10 madre Joana de São miguel coloca a morte da santa a 9 de Agosto de
1492.
O primeiro breve, de 26 de Janeiro, concedeu que as monjas analfabetas, doentes
ou devido a qualquer outro impedimento legítimo, pudessem substituir o tempo de
oração dominical por qualquer outra obra pré
-estabelecida pelas constituições da nova fundação.
O segundo breve, de 27 de Abril, concedeu que as monjas da Conceição
participassem em todos os privilégios, graças e indulgências das monjas dominicanas
do mosteiro da madre de Deus.
26
Vista traseira da futura Casa-Museu de Santa Beatriz da Silva, em Campo Maior, onde nasceu por volta de 1473.
Toledo – Vista geral, com o rio Tejo.
27
Segundo a tradição, Santa Beatriz rezava nesta janela dos seus aposentos, aberta sobre a igreja do Mosteiro de São Domingos, o Real, de Toledo.
28
Presumível retrato autêntico de Santa Beatriz da Silva, final do século XV,
29
Mosteiro da Puríssima Conceição de Toledo, onde está sepultada Santa Beatriz da Silva desde 1511.
Mosteiro da Imaculada Conceição de Campo Maior. 
30
Santa Beatriz da Silva – Juan Bautista de Espinosa, século XVII,
31
Apêndice I
V centenário da bula ad statum prosperum 
(1511-2011)
Contexto histórico
Nos começos do século XIII, as cinco Ordens mendicantes, Franciscanos,
Dominicanos, Carmelitas, Servitas e Agostinhos Recolectos, viveram momentos
muito fulgurantes, enquanto a Ordem Beneditina se achava em decadência. De facto,
foram os mendicantes que deram a resposta às novas situações colocadas pelas
transformações históricas que trouxeram novas formas económicas e novos contextos
sociais, bem como a formação dos Estudos Gerais e das universidades.
A peste negra de 1348 provocou grande miséria material em grande parte das
comunidades religiosas e reduziu significativamente o número dos seus membros.
Também o grande Cisma do Ocidente (1378-1417) abanou fortemente a vida
religiosa, provocando divisões na vida das ordens e por vezes até no interior dos
mosteiros e conventos.
O Papa Bento XII (1280 – 25-04-1342; Papado: 22-12-1334– 25-04-1342) ocupou-
se seriamente com a reforma das ordens, sobretudo com a Ordem de Cister, de que
provinha. Pela Bula Summi magistri dignatio (1336), o Papa tentou propor uma
regulamentação administrativa e económica dos mosteiros e uma formação adequada
dos monges.
Em 1417, o Concílio de Constança (1414-1418), impulsionou os movimentos
reformadores da vida religiosa, procurando eliminar, ou pelo menos reduzir, o
sistema das prebendas e a aberração das comendas e dos benefícios.
Fruto destes esforços, a Ordem Cisterciense, no século xv, registou 24 novas
fundações, provocando a sua vitalidade. Também a Ordem de Santa Brígida ou do
Redentor, fundada por Santa Brígida da Suécia (1303-1373), recebeu a confirmação
das Santa Brígida da Suécia (1303-1373), recebeu a confirmação das 
-12-1370; Papado: 28-12-1362 – 19-09-1370) e definitivamente em 1378, por
Urbano VI, como complemento à regra de Santo Agostinho.
Surgiram nesta época novas fundações de ordens religiosas e de comunidades e
irmandades quase religiosas. A par dos Irmãos e das Irmãs da Vida Comum,
formaram-se outras irmandades de carácter laical, consagradas à caridade para com o
próximo. Recordemos os Alexianos de Aquisgrana que em 1469 emitiram votos e a
quem Sisto IV, em 1472, conferiu a regra de Santo Agostinho.
Referimos também os Jerónimos, que em Castela se uniram sob a orientação de
Pedro Fernández Pecha, no ano de 1373 foram confirmados como ordem religiosa e
em 1415 elegeram em Espanha o seu superior geral. Os Cartuxos viveram nos séculos
XIV e XV uma autêntica época de ouro. Em 1510 registavam-se 195 cartuxas,
organizadas em 17 províncias.
32
É ainda neste contexto histórico que em Espanha o mosteiro beneditino de
Valladolid, fundado em 1390, se tornou a casa-mãe de uma congregação de
observância reformada, na qual se filiaram quase todos os seus mosteiros. Em
Portugal, e focando somente a vida religiosa feminina, a Ordem de São Bento, nos
séculos XIV e XV, suprimiu e reduziu a comunidades paroquiais algumas das antigas
comunidades femininas que agregavam a si pequenos grupos de clérigos como
capelães, para assegurarem os serviços religiosos. No reinado de D. manuel I (1495 –
19-12-1521) teve início um movimento que tendia a acabar com as comunidades
femininas rurais para reunir as monjas nas cidades, fundindo os mosteiros rurais,
cujas rendas lhes asseguravam o sustento (mosteiros de São Bento de Ave-maria, no
Porto, de Santa Ana de Viana, do Salvador, em Braga).
Em 1567, a Ordem de Cister possuía em Portugal onze comunidades femininas,
das quais dois terços foram introduzidos no século xiii. Nesta data, fundou-se a
Congregação Portuguesa de Alcobaça. A decadência que nos séculos XV e XVI
afectou a ordem, em Portugal, foi menos sentida entre os mosteiros femininos que
entre os masculinos.
A Ordem de São Jerónimo apenas teve em Portugal o mosteiro feminino de Jesus
de Viana do Alentejo. Fundado entre 1548 e 1553, teve a sua origem num oratório
iniciado pela beata Brites Dias Rodovalhos, junto à Rua do Poço Novo, em 1548,
sendo autorizado por licença do arcebispo de Évora, cardeal infante D. Henrique, a 1
de Fevereiro de 1550.
Da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, conhecemos o mosteiro
feminino de São João das Donas, que fazia parte do mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, e a sua existência está comprovada pelo menos desde 1137. Na sequência
da reforma ordenada por D. João III (06-06-1502 – 11-06-1557; reinado: 13-12-1521
–11-01-1557) em 1527 e levada a efeito pelo jerónimo frei Brás de Braga, o mosteiro
de São João das Donas foi suprimido. As Cruzias ficaram circunscritas ao mosteiro
de Santa Ana ou de Celas da Ponte, em Coimbra.
Apesar da existência de comunidades masculinas, não se conhecem, em Portugal,
comunidades femininas das formas de vida canónica das Ordens dos Cónegos
Seculares do Santo Sepulcro, de Santo Antão, Premonstratenses, Roncesvalles e de
São João Evangelista, ou Lóios.
Quanto aos mendicantes, em Portugal os primeiros conventos de Clarissas
implantaram-se cerca de 1258, em Lamego e Entre Ambos os Rios. O primeiro,
pouco tempo depois foi transferido para Santarém, o segundo passou para o Porto em
1416. Num e noutro seguia-se a regra urbaniana. No século XIII, fundaram-se ainda os
conventos de Coimbra e de Lisboa. Associadas a esta espiritualidade estavam muitas
mulheres leigas, que se ligavam aos mosteiros, vivendo na sua órbita sem
professarem, ou constituindo grupos de terceiras seculares (mantelatas). Escolhendo a
cidade ou as suas imediações para se fixarem, as comunidades de clarissas estavam
proibidas de angariarem o seu próprio sustento; porisso necessitavam de apoio dos
frades franciscanos, bem como de um conjunto numeroso de procuradores e
familiares que chegavam mesmo a residir no convento, a gerir bens do património
conventual.
A adopção da primeira regra de Santa Clara, com a consequente proibição de
33
rendas e dotes, concretizou-se com a chamada «reforma de Santa Coleta» (1381-
1447), cujo primeiro convento em Portugal, ainda no século XV, foi o de Jesus em
Setúbal. Esta reforma valorizou a união fraterna e o capítulo semanal, ordenando
ainda que em todas as comunidades houvesse bibliotecas e se cultivasse a leitura de
bons livros. De algumas alterações a esta reforma nasceram, em 1538, as Clarissas
ditas “capuchinhas”. A partir de 1548 fundaram-se também conventos femininos que
estavam dependentes do ordinário do lugar e não das províncias masculinas
observantes.
No referente à Ordem dos Pregadores ou Dominicanos, a primeira fundação
feminina que vingou em Portugal foi a do Convento das Donas de Santarém,
admitido à Ordem dos Pregadores no Capítulo Geral de Bordéus de 1287. Desde
então e até meados do século XV, a expansão das freiras dominicanas processou-se
muito lentamente, apenas com a fundação de uma nova casa em Lisboa (1392,
Convento de Salvador), logo seguida pelas fundações da segunda metade do século
XV, inauguradas em 1461, como o Convento de Jesus de Aveiro e ao qual se seguiram,
até final do século, um convento em Leiria e outros dois em Évora. Durante o século
XVI e até 1560, fim do ciclo dos reformadores espanhóis, foram fundados em Portugal
mais seis conventos de Dominicanas: um em montemor-o-Novo, dois em Lisboa, um
em Setúbal, um em Elvas e outro em Abrantes.
A introdução das irmãs carmelitas em Portugal data, provavelmente, de 1541 e
deve-se à fundação do Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Beja, por parte
de D. Leonor Colaça. Aqui, como noutros locais, as casas femininas tenderam a
implantar-se na órbita de conventos masculinos e professando a regra por estes
adoptada. A partir do convento de Beja realizaram-se outras fundações femininas em
Lagos (1558) e Tentúgal (1565).
A Segunda Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, em Portugal tomou o nome
de Eremitas da Observância Ordinária. O primeiro convento de Agostinhas em
território português, Santa mónica de Évora, só foi fundado em 1421, seguindo-se o
de Vila Viçosa, que data de 1527.
Prescindindo das ordens militares, cuja Ordem do Hospital, ou de malta, contava
com o Convento feminino de São João Baptista de Penitência de Estremoz, também
chamados os malteses de Estremoz, e a Ordem militar de Santiago com o Convento
de Santos, em Lisboa, ficamos com um panorama sucinto da vida religiosa feminina
em Portugal, pois a Ordem da Santíssima Trindade para a Redenção dos Cativos e a
Ordem das macedónias só possuíam conventos masculinos.
Foi neste desejo ardente de reforma pela observância religiosa pré-tridentina que a
30 de Abril de 1488 o Papa Inocêncio VII (1336 – 06-11-1406; Papado: 17-10-1404 –
06-11-1406) assinou a Bula Fundacional Inter Universa, autorizando o bispo de Coria
y Catânia e um oficial da Igreja de Toledo para que pudessem proceder, juntos ou um
deles, à erecção de um mosteiro dentro da família cistesciense e com certas
características especiais. Era a primeira comunidade desejada por Santa Beatriz da
Silva, ainda que a bula não fundasse uma nova ordem, surgia o primeiro mosteiro
concepcionista. Foi pela Bula Ex supernae providentia (19-08-1494) no pontificado
de Alexandre VI (10-08-1492– 18-08-1503), que o mosteiro da Conceição de Toledo
adquiriu a categoria de nova ordem; foi pela Bula Apostolicae Sedis (01-09-1494),
34
também do Papa Alexandre VI, que se extinguiu a Ordem de São Bento no mosteiro
de São Pedro das Donas, transferindo-se para o de Santa Fé, da Conceição, todos os
seus bens, possessões e direitos, unindo-se as suas comunidade sob a Regra de Santa
Clara, na sua modalidade Concepcionista; foi pela Bula Pastoralis Officii (19-02-
1506), do Papa Júlio II (31.10, 9-11-1503 – 21-02-1513), que as Irmãs
Concepcionistas foram transferidas para o Convento de São Francisco; e foi pela Bula
Ad statum prosperum (17-09-1511), também de Júlio II, que as monjas da Conceição,
as Concepcionistas, viram aprovada a sua Regra, distribuída em doze capítulos, cujo
V centenário celebramos.
Ao surgir esta pequena síntese biográfica no ano do V centenário da Bula Ad
statum prosperum, apresentamos em apêndice a sua tradução bem como os doze
capítulos da Regra.
35
Apêndice II
Bula Ad statum prosperum, 
DE JÚLIO II 
(17 de Setembro de 1511)
1. Júlio Bispo, servo dos servos de Deus, para perpétua memória.
2. Entendendo Nós com solicitude, segundo nos incumbe em virtude do cargo
apostólico, dirigir salutarmente a próspero e feliz estado as igrejas e todos os
mosteiros e as pessoas, principalmente do sexo feminino, que neles, debaixo o suave
jugo da religião e perpétua clausura, servem ao Altíssimo, confirmamos de boa
vontade com autoridade apostólica, sempre que se Nos pede, aquelas coisas
concedidas por Nossos Antecessores, os Romanos Pontífices, e tudo o que neste
sentido diz estar louvavelmente feito e ordenado, para que permaneça firme e
inviolável perpetuamente, e também concedemos de novo outras coisas, segundo
vemos no Senhor que convém salutarmente.
3. Apresentaram-nos, recentemente, na sua petição, as amadas filhas em Cristo, a
abadessa actual e convento do mosteiro de Religiosas, debaixo da invocação da bem-
aventurada Virgem maria, de Toledo, da Ordem de Santa Clara, que antigamente,
desde a sua primeira fundação, se tinha ordenado e instituído no dito mosteiro certa
forma de vida debaixo da Regra e Instituto da Ordem de Cister, com nome da
Conceição da mesma Virgem maria e que isto foi observado, pela dita abadessa e
convento, com aprovação do Papa Inocêncio VIII, de feliz memória, Nosso
Predecessor; que, porém, o Papa Alexandre VI, de piedosa memória, também Nosso
Predecessor, por certos motivos que se lhe expuseram, tirou e anulou a forma de vida
e a Ordem Cisterciense e mandou erigir e instituir por certas Letras suas no dito
mosteiro a referida Ordem de Santa Clara. Tudo isto foi aprovado e confirmado por
outras Letras Nossas, como nelas e em cada uma: mais largamente está contido.
Sendo isto assim (como acrescenta a apresentação que Nos fez), a dita abadessa e
convento, para a pureza das suas consciências e paz das suas almas, desejam no
presente ficar livres e isentas das Regras de Cister e Santa Clara e da forma de vida
referida; e que se guarde e observe pontualmente a forma e modo de vida que contém
e expressa um texto em doze capítulos ou artigos, não contrários aos sagrados
Cânones (os quais mandamos ver e examinar diligentemente pela Junta da Expedição
de Letras, que se despacham na Câmara Apostólica, autorizá-los e inserir seu teor,
“verbo ad verbum”, nas presentes Letras); que possam habitar no dito mosteiro
debaixo da forma de vida neles descrito, servindo perpetuamente ao Altíssimo, e que
sejam confirmados e aprovados os ditos doze capítulos. Por parte da dita abadessa e
convento, pois, Nos foi humildemente suplicado se dignasse Nossa Benignidade
Apostólica libertá-las das ditas Regras de Cister e Santa Clara e das suas
constituições e observâncias, e mandar que se guarde perpetuamente o modo de viver
contido nos ditos capítulos, tanto no seu mosteiro como em cada um dos demais
mosteiros, priorados e lugares da dita ordem, debaixo da invocação da Conceição, e
36
aprovar e confirmar os ditos doze capítulos assim como os privilégios, concedidos ao
dito mosteiro e ordem, e que sobre isto as provêssemos de remédio oportuno,
segundo fosse Nossa vontade.
4. Nós portanto, que sinceramente desejamos o próspero estado e piedoso desejo
dos mosteiros e pessoas religiosas, como a salvação das almas, absolvendo
primeiramente e dando por absolvidas, somente para conseguir o efeito destas Letras,
a dita abadessa e convento e a cada uma das ditas religiosas, de qualquer
excomunhão, suspensão e interdito e de

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