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Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar 22451-041 — Gávea Rio de Janeiro — RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br http://www.intrinseca.com.br/ intrinseca.com.br @intrinseca editoraintrinseca @intrinseca intrinsecaeditora http://www.intrinseca.com.br/ http://twitter.com/intrinseca http://www.facebook.com/EditoraIntrinseca http://www.instagram.com/intrinseca/ http://www.youtube.com/user/intrinsecaeditora Sumário [Avançar para o início do texto] Folha de rosto Créditos Mídias sociais Sumário Dedicatória Introdução 1. Sentinela avançada 2. A fazenda 3. Anomalias 4. StarChips 5. A hipótese da vela de luz 6. Conchas e boias 7. Aprendendo com as crianças 8. Vastidão 9. Filtros 10. Astroarqueologia 11. A aposta do ‘Oumuamua 12. Sementes 13. Singularidades Conclusão Pósfacio Agradecimentos Notas Mais leituras Sobre o autor Leia também Para minhas três musas, Ofrit, Klil e Lotem, e para todos que estão por aí... Introdução QUANDO TIVER UMA OPORTUNIDADE, SAIA E ADMIRE O É melhor fazer isso à noite, é claro. Mas, mesmo quando o único objeto celestial discernível é o sol do meio-dia, o universo está sempre ali, à espera de nossa atenção. Acredito que erguer os olhos basta para nos ajudar a mudar de perspectiva. A visão sobre nossas cabeças é mais majestosa à noite, mas não se trata de uma qualidade do universo; melhor dizendo, é uma qualidade da humanidade. Na confusão das preocupações diurnas, a maioria de nós passa boa parte das horas atenta ao que está a poucos metros de distância. Quando pensamos no que está acima de nós, quase sempre é porque estamos preocupados com o clima. De noite, porém, nossas preocupações terrestres tendem a diminuir e a grandeza da Lua, das estrelas e da Via Láctea e — para os mais afortunados — o rastro de um cometa ou de um satélite passando se torna visível através dos telescópios de quintal ou mesmo a olho nu. O que vemos quando nos damos ao trabalho de olhar para o alto inspirou a humanidade desde os primeiros registros históricos. De fato, recentemente passou a ser presumido que pinturas rupestres feitas há quarenta mil anos por toda a Europa mostram que nossos ancestrais distantes acompanhavam as estrelas. De poetas a �lósofos, de teólogos a cientistas, no universo encontramos provocações para o assombro, para a ação e para o avanço da civilização. A�nal de contas, foi o surgimento do campo da astronomia que impulsionou a revolução cientí�ca de Nicolau Copérnico, Galileu e Isaac Newton, que removeu a Terra do centro do universo físico. Esses cientistas não foram os primeiros a defender uma visão um pouco mais autodepreciativa de nosso mundo, mas, ao contrário de �lósofos e teólogos predecessores, eles se valiam de um método hipotético baseado em evidências que desde então tem sido o parâmetro do avanço civilizatório. • • • Passei a maior parte da minha carreira sendo rigorosamente curioso a respeito do universo. Direta ou indiretamente, tudo além da atmosfera terrestre se enquadra no escopo do meu trabalho diário. No momento em que escrevo este livro, ocupo o cargo de chefe do departamento de Astronomia da Universidade de Harvard, sou diretor-fundador da Black Hole Initiative de Harvard, diretor do Instituto de Teoria e Computação do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, presidente da Iniciativa Breakthrough Starshot, presidente do conselho de Física e de Astronomia das National Academies, membro do conselho consultivo para plataforma digital Einstein: Visualize the Impossible, da Universidade Hebraica de Jerusalém e membro do conselho consultivo da presidência dos Estados Unidos para ciência e tecnologia, em Washington, D.C. Tenho a sorte de trabalhar ao lado de tantos acadêmicos e alunos excepcionalmente talentosos enquanto tecemos considerações sobre algumas das interrogações mais profundas do universo. Este livro confronta uma dessas interrogações profundas, sem dúvida a mais importante de todas: estamos sozinhos? No decorrer do tempo, esta pergunta tem sido formulada de diferentes formas. Será que a vida na Terra é a única existente no universo? Será que os seres humanos são os únicos com uma inteligência senciente em toda a vastidão do espaço e do tempo? Uma forma melhor, mais precisa, de formular essa pergunta seria: em toda a vastidão do espaço e durante toda a existência do universo, existe ou existiram outras civilizações sencientes que, como a nossa, exploraram as estrelas e deixaram evidências de seus feitos? Creio que, em 2017, nosso sistema solar foi atravessado por evidências endossando a hipótese de que a resposta para esta última pergunta é positiva. Sim. Neste livro, examino essas evidências, testo a hipótese e questiono quais seriam as consequências se os cientistas dessem a elas o mesmo crédito que dão a conjeturas sobre supersimetria, dimensões extra, a natureza da matéria escura e a possibilidade de um multiverso. Mas este livro também faz outra pergunta, uma que, sob certos aspectos, é ainda mais difícil. Tanto nós, cientistas, quanto leigos, estamos prontos? A civilização está pronta para enfrentar o que vem depois de aceitarmos a conclusão plausível, tirada a partir de uma hipótese baseada em evidências, de que a vida terrestre não é única e que talvez nem seja particularmente impressionante? Temo que a resposta seja não e que a prevalência do preconceito seja motivo de preocupação. • • • Como ocorre em muitas pro�ssões, também na comunidade cientí�ca se evidenciam modismos e conservadorismo ao confrontar aquilo que é pouco familiar. Uma parte desse conservadorismo deriva de um instinto louvável. O método cientí�co encoraja a cautela razoável. Fazemos hipóteses, reunimos evidências, testamos essas hipóteses diante das evidências disponíveis para, em seguida, re�nar a hipótese ou reunir mais evidências. Os modismos, no entanto, podem desencorajar a consideração de determinadas hipóteses e o carreirismo pode orientar atenção e recursos para certos assuntos em detrimento de outros. A cultura popular não ajuda. Os livros e os �lmes de �cção cientí�ca com frequência retratam a inteligência extraterrestre de um modo que a maioria dos cientistas considera risível. Os alienígenas destroem cidades na Terra, roubam corpos humanos ou tentam se comunicar conosco por meios tortuosamente oblíquos. Sejamentidades bené�cas ou malé�cas, os alienígenas em geral possuem uma sabedoria sobre-humana e dominam a física de um modo que lhes permite manipular tempo e espaço para atravessar o universo — às vezes até mesmo um multiverso — num piscar de olhos. Com essa tecnologia, eles frequentam sistemas solares, planetas e até bares da vizinhança repletos de vida senciente. Com o passar dos anos, passei a crer que as leis da física não se aplicam em dois lugares: nas singularidades e em Hollywood. Do ponto de vista pessoal, não aprecio a �cção cientí�ca quando ela viola as leis da física. Gosto de ciência e gosto de �cção, mas apenas quando ambas são honestas, despretensiosas. Do ponto de vista pro�ssional, me preocupa que as representações sensacionalistas dos alienígenas tenham dado origem a uma cultura popular e cientí�ca na qual é aceitável rir de muitas discussões sérias sobre a vida extraterrestre, mesmo quando as evidências indicam com clareza que este é um assunto que merece ser tratado. De fato, é um que deveríamos tratar agora mais do que nunca. Somos a única vida inteligente no universo? As narrativas da �cção cientí�ca nos preparam para esperar por uma resposta negativa e que chegará com grande impacto. As narrativas da ciência tendem a evitar inteiramente a pergunta. O resultado é que os seres humanos estão muitíssimo mal preparados para um encontro com uma contrapartida extraterrestre. Depois que os créditos são exibidos, quando saímos do cinema e olhamos para o céu noturno, o contraste é chocante. Sobre nossas cabeças vemos um espaço praticamente vazio, aparentemente sem vida. Mas as aparências enganam e, para nosso próprio bem, não podemos permitir que esse engano persista. • • • Em “Os homens ocos”, um poema no qual medita sobre a Europa pós- Primeira Guerra Mundial, o poeta T.S. Eliot re�ete que o mundo expiraria com um gemido e não com uma explosão, como no con�ito anterior — até então o mais mortal da história da humanidade. Mas talvez por minha mais antiga paixão acadêmica ter sido a �loso�a, eu possa encontrar mais do que desespero na imagem evocativa de Eliot. Encontro também uma opção ética. O mundo expirará, naturalmente, e com toda certeza com uma explosão. Dentro de cerca de sete bilhões de anos, nosso Sol de 4,6 bilhões de anos, se transformará em um Gigante Vermelho cuja expansão liquidará toda a vida da Terra. Isso não se discute nem se con�gura como uma questão ética. A questão ética que encontro em “Os homens ocos” de Eliot não revolve em torno da extinção do planeta, que é uma certeza cientí�ca. Ela diz respeito à extinção da civilização humana — e talvez, de fato, de toda a vida terrestre — que é menos garantida. No momento, nosso planeta se encaminha para uma catástrofe. A degradação ambiental, a mudança climática, as pandemias e o risco sempre presente de uma guerra nuclear são apenas algumas das ameaças mais familiares que enfrentamos. De inúmeras maneiras, preparamos o cenário para o nosso próprio �m. Ele pode vir com uma explosão, com um suspiro ou com ambos — ou com nenhum dos dois. No momento, todas as opções estão em jogo. Que caminho escolheremos? Essa é a questão ética no poema de Eliot. E se a metáfora de Eliot sobre o �m também for válida para determinados princípios? E se a resposta para a pergunta “Estamos sozinhos?” se apresentasse, mas fosse sutil, fugaz, ambígua? E se precisássemos empregar ao máximo nossos poderes de observação e de dedução para sermos capazes de discerni-la? E se a resposta a essa pergunta guardasse a chave para a outra pergunta que �z — aquela que conjetura se, e como, a vida terrestre e nossa civilização coletiva será extinta? • • • Nas páginas que se seguem, considero a hipótese de que tal resposta foi dada para a humanidade no dia 19 de outubro de 2017. Levo a sério não apenas a hipótese, mas também as mensagens que ela contém para a humanidade, as lições que podemos vislumbrar a partir dela, e algumas das consequências que podem resultar de nossos atos — ou omissões — diante desses aprendizados. Embora possa parecer que ir atrás de respostas para as perguntas feitas pela ciência — desde as origens da vida até as origens de tudo o que existe — é um dos esforços humanos mais arrogantes, a busca em si é um ato de humildade. Medida por todas as dimensões, cada vida humana é ín�ma. Nossas realizações individuais são visíveis apenas como a soma do esforço de muitas gerações. Repousamos todos sobre os ombros de nossos antecessores e nossos próprios ombros devem escorar os esforços daqueles que virão. Quando perdemos isso de vista, agimos por nossa conta e risco e esse risco se estende aos que virão. Existe humildade também em perceber que, quando temos di�culdade em compreender o universo, a culpa está no nosso entendimento e não nos fatos ou nas leis da natureza. Tomei conhecimento disso ainda muito jovem, quando tendia a seguir o estudo da �loso�a. Quando comecei a estudar física, essa noção voltou à tona e passei a apreciá-la mais inteiramente quando me tornei astrofísico, de um modo um tanto acidental. Na adolescência, �quei impressionado com os existencialistas e a atenção que devotam ao indivíduo que enfrenta um mundo aparentemente absurdo; como astrofísico, estou ciente de que minha vida — na verdade, a vida como um todo — é medida pela vasta escala do universo. Descobri que, se encarados com humildade, tanto a �loso�a quanto o universo inspiram a esperança de que podemos progredir. Isso exige a devida colaboração cientí�ca entre todos os países e a adoção de uma perspectiva verdadeiramente global — mas podemos progredir. Também creio que às vezes a humanidade precisa de um empurrãozinho. Notaríamos se evidências de vida extraterrestre aparecessem no nosso sistema solar? Se esperamos o estrondo de espaçonaves desa�ando a gravidade e cruzando nosso horizonte, corremos o risco de perder o som sutil de outras chegadas? E se, por exemplo, essa evidência for uma tecnologia inerte ou extinta — o equivalente, talvez, ao lixo de uma civilização de um bilhão de anos? • • • A seguir apresento um experimento mental que proponho aos alunos que frequentam meu seminário para calouros em Harvard. Uma nave alienígena pousa em Harvard Yard e os extraterrestres deixam claro que são amistosos. Fazem uma visita, são fotografados nos degraus de entrada da Biblioteca Widener e tocam o pé da escultura de John Harvard, como fazem tantos turistas terráqueos. Depois, se viram para os an�triões e os convidam a embarcar em sua nave para uma viagem só de ida até seu planeta de origem. É um tanto arriscado, reconhecem os convidados, mas qual é a aventura que não tem risco? Você aceitaria a oferta? Faria essa viagem? Quase todos os meus alunos respondem a�rmativamente. A essa altura, mudo o experimento. Os alienígenas permanecem amistosos, mas dessa vez informam aos amigos humanos que em vez de voltar para o planeta de origem, seguirão viagem passando pelo horizonte de eventos de um buraco negro. Mais uma vez, é uma proposta arriscada com toda certeza, mas os alienígenas têm bastante con�ança no modelo teórico do que os aguarda e estão dispostos a seguir. O que os alienígenas querem saber é o seguinte: vocês estão prontos? Fariam essa viagem? Quase todos os meus alunos respondem que não. As duas viagens são só de ida. As duas envolvem destinos desconhecidos e riscos. Então por que as diferentes respostas? O motivo mais citado é: no primeiro modelo de viagem, os estudantes ainda conseguiriam usar os celulares para compartilhar as experiências com amigos e família, pois, embora os sinais levassem anos-luz para alcançar a Terra, eles acabariam chegando. Uma viagem que passa pelo horizonte de eventos de um buraco negro, porém, garante que nenhuma sel�e, nenhuma mensagem de texto, nenhuma informação por mais espetacular que fosse, seria transmitida. Uma das viagens produziria curtidas no Facebook e no Twitter. A outra, com toda certeza,não. Nesse momento, lembro aos alunos que, depois de olhar pelo telescópio, Galileu declarou que evidências não se importam com aprovação. Isso se aplica a qualquer evidência, seja ela aprendida em um planeta distante ou do outro lado do horizonte de eventos de um buraco negro. O valor da informação não está no número de “joinhas” que ela obtém, mas no que fazemos com ela. Aí, faço a eles uma pergunta que muitos estudantes de Harvard acreditam saber a resposta. Será que nós — seres humanos — somos os garotos mais espertos do bairro? Antes que possam responder, eu acrescento: olhem para o céu e percebam que a resposta depende um bocado da resposta que dão a uma das minhas perguntas favoritas — estamos sozinhos? Contemplar o céu e o universo que se oculta por trás dele nos ensina a humildade. O espaço cósmico e o tempo têm escalas imensas. Existem mais de um bilhão de trilhões de estrelas parecidas com o Sol no volume observável do universo e mesmo o mais sortudo de nós vive apenas 1% de um milionésimo do tempo de vida do Sol. Mas preservarmos a humildade não deve nos impedir de tentar conhecer melhor nosso universo. Pelo contrário, ela deve nos instigar a sermos mais ambiciosos, a fazer perguntas difíceis que desa�am nossos pressupostos e a ir atrás das evidências com mais rigor e menos preocupação com as curtidas. • • • A maior parte das evidências sobre as quais este livro se debruça foi coletada em onze dias a partir de 19 de outubro de 2017. Foi esse o tempo que tivemos para observar o primeiro visitante interestelar de que temos conhecimento. A análise desses dados combinados com observações adicionais estabelece nossas inferências sobre esse objeto peculiar. Onze dias parece pouco e não há um cientista que não gostaria que tivéssemos conseguido coletar mais evidências, mas os dados que obtivemos são substanciais, nos permitem inferir muitas coisas e vou detalhar cada uma delas nas páginas deste livro. Mas todos os que estudaram esses dados concordam em um aspecto: comparado a todos os outros objetos estudados por astrônomos, este visitante em questão era exótico. E as hipóteses oferecidas para explicar todas as peculiaridades observadas no objeto são igualmente exóticas. Proponho que a explicação mais simples para tais peculiaridades é: o objeto foi criado por uma civilização inteligente que não é da Terra. É uma hipótese, claro — mas totalmente cientí�ca. As conclusões que podemos tirar, porém, não são unicamente cientí�cas, nem as ações que podemos executar à luz de tais conclusões. Isso se dá porque minha simples hipótese desemboca em algumas das perguntas mais profundas que a humanidade já tentou responder, perguntas que foram encaradas pelas lentes da religião, da �loso�a e do método cientí�co. Elas resvalam em tudo que tem qualquer importância para a civilização humana e para a vida, qualquer que seja ela, no universo. Em nome da transparência, deixo claro que alguns cientistas consideram minha hipótese ultrapassada, fora da ciência dominante, até mesmo perigosamente mal concebida. Mas o erro mais escandaloso que podemos cometer, creio eu, é não examinar essa possibilidade com a devida seriedade. Deixe-me explicar. 1 Sentinela avançada MUITOS ANOS ANTES DE SABERMOS DE SUA EXISTÊNCIA viajava vindo da direção de Vega, estrela que se encontra a apenas 25 anos-luz de distância. No dia 6 de setembro de 2017, ele interceptou o plano orbital no qual todos os planetas do nosso sistema revolvem em torno do Sol. Mas a trajetória hiperbólica extrema do mesmo garantia que ele faria apenas uma visita e não permaneceria por aqui. Em 9 de setembro de 2017, o visitante alcançou o periélio, ponto em que sua trajetória se tornou mais próxima do Sol. A partir dali ele começou a deixar o sistema solar. Sua velocidade — em relação à nossa estrela, ele se movia a cerca de 94.970 quilômetros por segundo — mais do que garantia que escapasse da gravidade solar. Ele passou pela distância orbital de Vênus ao Sul em 29 de setembro e pela da Terra por volta do dia 7 de outubro, movendo-se rapidamente na direção da constelação de Pégaso e para a escuridão além dela. Enquanto o objeto retornava velozmente ao espaço interestelar, a humanidade permanecia sem conhecimento da sua visita. Ignorando sua chegada, não o batizamos. Se alguém ou alguma coisa o �zera, nós ignorávamos — e ainda ignoramos — qual seria esse nome. Somente depois de ter passado por nós e já estar de partida é que os astrônomos da Terra vislumbraram nosso visitante. Demos ao objeto diversas designações o�ciais, �nalmente chegando a 1l/2017 U1. Mas a comunidade cientí�ca de nosso planeta e o público passariam a conhecê- lo simplesmente como ‘Oumuamua — palavra do idioma havaiano que re�ete a localização geográ�ca do telescópio empregado para descobri-lo. • • • As ilhas do Havaí são joias do oceano Pací�co e atraem turistas de todo o mundo. Para os astrônomos, elas guardam um encanto adicional: é onde se encontram alguns dos telescópios mais so�sticados do planeta, um atestado de nossas tecnologias mais avançadas. Entre os equipamentos de última geração localizados no Havaí estão aqueles que compõem o Panoramic Survey Telescope and Rapid Response System (Pan-STARRS, Telescópio de Levantamento Panorâmico e Sistema de Resposta Rápida), uma rede de telescópios e câmeras de alta de�nição localizada em um observatório no topo do Haleakala, um vulcão dormente que compõe a maior parte da ilha de Maui. Um de seus telescópios, o Pan-STARRS1, possui a câmera com maior de�nição do planeta e, desde que começou a funcionar, o complexo descobriu a maioria dos cometas e dos asteroides próximos à Terra encontrados no Sistema Solar. Mas o Pan-STARRS tem outra distinção: ele reuniu os dados que nos deram as primeiras dicas sobre a existência do ‘Oumuamua. Em 19 de outubro, o astrônomo Robert Weryk, no observatório de Haleakala, descobriu o ‘Oumuamua nos dados coletados pelo telescópio Pan-STARRS, em imagens que mostravam o objeto como um ponto de luz a toda velocidade pelo céu, movimentando-se depressa demais para �car sujeito à gravidade do Sol. Essa pista logo levou os astrônomos a concordarem que Weryk descobrira o primeiro objeto interestelar jamais detectado em nosso sistema solar. No entanto, quando en�m lhe demos um nome, ele já se encontrava a mais de 35 milhões de quilômetros da Terra, o equivalente a aproximadamente 85 vezes a distância entre o planeta e a Lua, e se afastava de nós muito rapidamente. Imagem telescópica combinada do ‘Oumuamua, primeiro objeto interestelar, no interior do círculo como um ponto não resolvido no centro. Está cercado dos rastros de estrelas de luz fraca, cada uma marcada por uma série de pontos à medida que o telescópio tentava acompanhar o movimento e fotografar o ‘Oumuamua. Imagem de ESO/K. Meech et al. O ‘Oumuamua chegou em nossa vizinhança como um desconhecido, mas partiu como algo diferente. O objeto que nomeáramos tinha nos deixado com uma série de perguntas sem resposta que mereceria todo o escrutínio dos cientistas, bem como despertaria a imaginação do mundo. Na língua havaiana, a palavra ‘Oumuamua pode ser traduzida como “sentinela avançada”. Ao anunciar a designação o�cial do objeto, a União Astronômica Internacional deu uma de�nição ligeiramente diferente, dizendo se tratar de “um mensageiro vindo de longe que chega na frente”.1 De uma forma ou de outra, está implícito no nome que o objeto era o primeiro de uma série que estava por vir. • • • A mídia �ndou classi�cando o ‘Oumuamua como “esquisito”, “misterioso” e “estranho”. Mas tudo isso comparado ao quê? Em resumo, a resposta é que essa sentinela avançada era esquisita, misteriosa e estranha ao ser comparada com todos os outros asteroides e cometas descobertos anteriormente, em toda a história. Na verdade, os cientistas sequer tinham tanta segurança assim para declarar que aquilo era de fato um cometa ou um asteroide. E não é como sefaltasse uma base comparativa. Milhares de asteroides, pedras secas circulando pelo espaço, são descobertas a cada ano, e o número de cometas de gelo no nosso sistema solar é maior do que nossos instrumentos podem contabilizar. Visitantes interestelares são bem mais raros do que asteroides ou cometas. De fato, na época da descoberta do ‘Oumuamua, nunca tínhamos visto um objeto originado fora de nosso sistema solar atravessá-lo. Essa distinção logo se perdeu. Um segundo objeto interestelar foi descoberto pouco depois da identi�cação do ‘Oumuamua e no futuro é provável que encontremos muitos outros, em particular com o Legacy Survey of Space and Time (Levantamento Legado de Espaço e Tempo, LSST), feito pelo Observatório Vera C. Rubin a ser divulgado em breve. De algum modo, tínhamos passado a esperar esses visitantes mesmo antes de conseguir vê-los. As estatísticas sugerem que, embora a população de objetos interestelares atravessando o plano orbital terrestre seja em muitas grandezas menor do que a população de objetos originados no sistema solar, eles não são incomuns. Em resumo, a ideia de que nosso sistema solar às vezes recebe esses raros objetos é assombrosa, mas nada misteriosa. E, a princípio, os fatos sumários do ‘Oumuamua prometiam apenas assombro. Logo depois da descoberta ter sido anunciada pelo Instituto de Astronomia da Universidade do Havaí, em 26 de outubro de 2017, cientistas de todo o mundo revisaram os dados muito rudimentares coletados e concordaram com a maioria dos fatos básicos a respeito dele: trajetória, velocidade e tamanho aproximado (tinha menos de 400 metros de diâmetro). Nenhum desses detalhes iniciais sugeria que fosse um objeto incomum por qualquer motivo além de ter origem fora do nosso sistema solar. Mas, pouco depois, revirando os dados acumulados, os cientistas começaram a apontar peculiaridades do ‘Oumuamua — detalhes que logo nos �zeram questionar o pressuposto de que se tratava de um cometa ou asteroide normal, embora interestelar. De fato, poucas semanas depois de sua descoberta, em meados de novembro de 2017, a União Astronômica Internacional (IAU) — organização que classi�ca os objetos recentemente identi�cados no espaço — alterou pela terceira e última vez a designação dada ao ‘Oumuamua. A princípio, ela o chamara de C/2017 U1 — o “C” signi�cava cometa. Depois, alterou para A/2017 U1 — o “A” era de asteroide. Por �m, a IAU declarou que era 1I/2017 — o “I” era de interestelar. A essa altura, a única coisa que todo mundo concordava era que o ‘Oumuamua viera do espaço interestelar. • • • O cientista deve seguir o caminho das evidências, diz a antiga máxima. Fazê-lo é um gesto de humildade; livra-o de ideias preconcebidas que podem turvar as observações e as descobertas. O mesmo pode ser dito sobre a vida adulta; uma boa de�nição para ela seria: “o ponto em que você já reuniu experiência su�ciente para que seus modelos tenham uma alta taxa de sucesso em prever a realidade”. Talvez essa não seja a melhor forma de apresentar os fatos para crianças pequenas, mas continuo achando que essa de�nição tem suas virtudes. Na prática, ela simplesmente quer dizer que devemos nos permitir os tropeços. Abandonar os preconceitos. Empunhar a Navalha de Occam e buscar a explicação mais simples. Estar disposto a abandonar modelos que acabam fracassando, algo que inevitavelmente ocorre quando eles colidem com nossa percepção imperfeita dos fatos e das leis da natureza. É óbvio que existe vida no universo. Somos a prova disso. E isso signi�ca que a humanidade fornece um conjunto de dados vasto, fascinante — ora inspirador, ora perturbador —, que deve ser levado em consideração quando fazemos conjeturas sobre como agem e o que pretendem outras formas de vida inteligente que podem existir — ou podem ter existido — no universo. Como único exemplo de vida senciente que estudamos em profundidade, é provável que os seres humanos guardem muitas pistas do comportamento de qualquer outro tipo de vida senciente no universo, seja passada, presente ou futura. Como físico, me impressiona a ubiquidade das leis da física que governam nossa existência em nosso planetinha. Quando contemplo o cosmo, me assombra a ordem, uma vez que as leis da natureza que encontramos aqui na Terra parecem se aplicar até os con�ns do universo. E por muito tempo, muito antes da chegada do ‘Oumuamua, guardei comigo uma ideia decorrente disso tudo: a ubiquidade dessas leis naturais sugere que, se houver vida inteligente em outras partes, ela quase certamente incluirá seres que reconhecem essas leis ubíquas e que estão ávidos para ir no rumo apontado pelas evidências, empolgados em criar teorias, coletar dados, testar a teoria, re�ná-la e voltar a testar. E, eventualmente, explorar, assim como fez a humanidade. Nossa civilização enviou cinco objetos criados pelo homem até o espaço interestelar: Voyager 1 e Voyager 2, Pioneer 10 e Pioneer 11, e New Horizons. Apenas este fato já sugere nosso potencial ilimitado para nos aventurarmos bem longe. E assim também é o comportamento de nossos ancestrais mais distantes. Durante milênios os seres humanos viajaram para os recantos mais extremos do planeta em busca de formas de vida diferentes ou melhores, ou apenas em busca e ponto, quase sempre com um nível alarmante de incerteza sobre o que encontrariam ou se retornariam. A segurança de nossa espécie aumentou de forma substancial com o passar do tempo — os astronautas conseguiram viajar para a Lua e voltar em 1969 —, mas a fragilidade desses empreendimentos permanece. Não foram as paredes do módulo lunar, �nas como uma folha de papel, que garantiram a segurança dos astronautas. Foram a ciência e a engenharia empregadas em sua construção. E essas outras civilizações desenvolvidas lá nas estrelas, elas não teriam sentido o mesmo desejo de explorar, de se aventurar além dos horizontes familiares em busca do novo? A julgar pelo comportamento humano, não seria minimamente surpreendente. Na verdade, talvez esses seres tenham se tornado tão confortáveis com a amplidão ilimitada que passaram a viajar por ela quase do mesmo modo com que nós, aqui na Terra, atravessamos o planeta. Nossos antepassados usavam termos como jornada e exploração. Hoje, saímos de férias. Em julho de 2017, eu, minha esposa Ofrit e nossas duas �lhas, Klil e Lotem, visitamos o impressionante conjunto de telescópios no Havaí. Como chefe do departamento de Astronomia da Universidade de Harvard, eu fora convidado para dar uma palestra em Big Island, com o objetivo de transmitir as alegrias da astronomia ao público que, em certa parte, protestava contra a construção de mais um telescópio de grande porte no alto do vulcão adormecido Mauna Kea. Aceitei feliz o convite e aproveitei a oportunidade para visitar algumas das outras ilhas do arquipélago, inclusive Maui, que abriga telescópios de última geração. O tema da minha palestra era a habitabilidade do universo e a possibilidade de que, nas décadas subsequentes, descobríssemos evidências da vida extraterrestre. E, assim que as obtivéssemos, essa descoberta obrigaria a humanidade a admitir que não somos tão especiais. O jornal local que cobriu o evento capturou muito bem a ideia com a manchete: “Sejam humildes, terráqueos”. A palestra aconteceu menos de um mês antes do ‘Oumuamua — despercebido para os terráqueos — passar pelo plano orbital de Marte. Foi realizada a poucos quilômetros do Pan-STARRS1, um dos telescópios que visitei durante a viagem, um assombro tecnológico da instrumentação. Três meses depois, os dados reunidos pelo complexo Pan-STARRS levariam à descoberta do ‘Oumuamua. • • • O primeiro telescópio Pan-STARRS, o PS1, entrou em operação em 2008. Cinquenta anos antes, em 1958, outro telescópio tinha sido construído no topo do Haleakala, mas não para estudar as estrelas. Na época, os satélites soviéticos eram temidos e os Estados Unidos queriam ser capazes de rastreá-los. O Pan-STARRS,sigla para Panoramic Survey Telescope and Rapid Response System [Telescópio de pesquisa panorâmica e sistema de resposta rápida], tinha um objetivo diferente: detectar cometas e asteroides que ameaçassem colidir com a Terra. Como consequência, desde 2008, seu nível de so�sticação vem aumentando. Foram acrescentados mais telescópios, sendo o mais importante o Pan- STARRS2, que se tornou totalmente operativo em 2014. O conjunto de telescópios conhecido como Pan-STARRS continua a mapear os céus, a detectar cometas, asteroides, estrelas em explosão e muito mais. Em resumo, uma Guerra Fria do passado ajudou a colocar em ação um observatório de tamanha complexidade e riqueza tecnológica que, décadas depois, na atmosfera límpida e gelada no cume de um vulcão morto, um desses so�sticados instrumentos foi capaz de detectar a passagem do ‘Oumuamua. E isso aconteceu poucos anos depois do Pan- STARRS2 ter entrado em funcionamento. É fácil se deixar impressionar pelo aspecto autorrealizável das coincidências. A questão é que elas podem ser enganosas. Durante boa parte da história da humanidade, as pessoas se voltaram para explicações místicas ou religiosas para dar sentido a ocorrências cujas causas não são claras. Gosto de pensar que mesmo durante os primeiros anos e o início da adolescência da civilização, reuníamos experiência su�ciente para que nossos modelos de previsão da realidade tivessem uma taxa de sucesso cada vez maior. A humanidade, poderíamos dizer, foi entrando lentamente na idade adulta ao longo dos nossos registros. Na verdade, a maioria dos eventos da vida deriva de uma con�uência de múltiplas causas. Isso se prova em exemplos casuais (comer sopa na tigela que está na sua frente) e extraordinários (a origem de... bem, de tudo). Isso pode variar entre episódios em nível pessoal (digamos, apresentamos duas pessoas e acontece um casamento e duas �lhas ansiosas para passar as férias no Havaí) ou global (digamos, a possibilidade — a possibilidade bem real — de que, durante onze dias em outubro de 2017, nossos telescópios tenham acompanhado a trajetória de um objeto originado fora do sistema solar). • • • Acabadas as férias, eu e minha família voltamos para nossa casa centenária nos arredores de Boston. A cidade é, sob muitos aspectos, imensamente diferente da fazenda onde fui criado em Israel. São dois lugares bem parecidos, porém, em seu modo de suprir meu amor pela natureza e a minha necessidade de estar em meio a coisas que crescem e que vivem entre nós. Durante uma caminhada noturna pelo bosque que se estende por trás de nosso quintal, testemunhei a queda de uma grande árvore. Primeiro ouvi os rangidos, depois vi o momento em que cedeu e desabou. O tronco estava oco, boa parte da árvore já estava morta por muitos anos e, naquela data, naquele momento, ela não conseguiu mais se segurar diante do vento. O evento se deu de tal modo que eu pudesse estar ali para assistir a seu �m — parte de uma cadeia causal da qual fui testemunha, mas sobre a qual não tive controle. No entanto, sob circunstâncias mais favoráveis, nossos atos podem fazer a diferença. Há cerca de uma década, logo que minha família se mudou para Lexington, descobri um galho quebrado em uma árvore jovem no quintal. Um jardineiro me aconselhou a cortar o membro quase amputado, mas, depois de uma inspeção mais próxima, vi que �bras vivas ainda estavam conectadas ao tronco. Escolhi amarrar o galho com �ta isolante. Hoje ele se ergue em direção ao céu, bem mais acima da minha cabeça, mas a �ta isolante se mantém na altura dos meus olhos. A árvore �ca perto da casa, visível de nossas janelas. Mostro-a para minhas �lhas para lembrá-las de que pequenos atos podem ter consequências extraordinárias. Algumas das decisões mais signi�cativas são as que tomamos pela esperança do resultado. Quando consertei o galho daquela árvore, não se tratava apenas de uma questão de fé para mim, mas de uma experiência repetida com frequência. 2 A fazenda UMA DAS PRIMEIRAS LEMBRANÇAS QUE TENHO É A chegado um pouco atrasado para o primeiro dia no primeiro ano da escola. Quando entrei na sala de aula, as crianças corriam e pulavam em cima das cadeiras, até mesmo nas carteiras. Um pandemônio. Minha reação foi de curiosidade. Olhei para os colegas e pensei: Devo me juntar a eles? Faz sentido se comportar assim? Por que estão fazendo isso? Por que eu faria isso? Fiquei parado na porta por um momento, tentando encontrar uma resposta. A professora chegou segundos depois. Dizer que estava infeliz seria dizer muito pouco. Não era assim que ela queria que o novo ano letivo começasse. Em uma tentativa de estabelecer sua autoridade e de acalmar os alunos, ela viu em mim uma chance de esclarecer as coisas. “Vejam como o Avi é bem-comportado”, disse ela para a turma. “Vocês todos não podem seguir o exemplo dele?” Mas minha placidez não era sinal de virtude. Eu não havia decidido que a coisa certa a fazer era �car parado, tranquilamente, aguardando a chegada da professora. Eu apenas não havia entendido se faria sentido, para mim, me juntar ao caos reinante. Quis dizer isso para a professora, mas não o �z, o que hoje considero uma infelicidade. A lição que meus colegas poderiam ter aprendido com meu comportamento — uma que acabei aprendendo e que desde então tento ensinar aos meus alunos — não tinha relação com postular se valia ou não a pena seguir a maioria, mas sim que era preciso parar e pensar nas coisas antes de agir. Na deliberação, existe a humildade da incerteza. Essa também é uma abordagem em relação à vida que me esforcei para adotar, para cultivar em meus alunos de Harvard e para despertar em minhas �lhas. A�nal de contas, fora o que meus pais procuraram despertar em mim. • • • Fui criado em Israel, na fazenda de nossa família em Beit Hanan, um vilarejo a cerca de 23 quilômetros ao sul de Tel Aviv. É uma comunidade agrícola que remonta ao ano de 1929 e que pouco depois de sua fundação se gabava de ter 178 habitantes. Até 2018, porém, esse número aumentou para apenas 548 pessoas. Na minha infância, o vilarejo se caracterizava pelos pomares e estufas que cultivavam todos os tipos de frutas, hortaliças e �ores. Beit Hanan também era um moshav, um tipo especial de aldeia. Diferentemente do kibutz, onde a terra é cultivada de forma comunitária, um moshav é composto por famílias diferentes, proprietárias de suas próprias fazendas. Nossa fazenda era notável pela imensa plantação de árvores da noz- pecã — meu pai era o líder do setor em Israel —, mas também cultivávamos laranjas e toranjas. Naquele tempo, os pés de noz-pecã, que podem chegar a trinta metros de altura, elevavam-se à minha volta, mas as árvores dos cítricos, com seu perfume intenso e característico quando a fruta estava madura, raramente se erguiam a mais de três metros e eram mais fáceis de escalar. Cuidar do arvoredo e supervisionar o equipamento necessário eram uma ocupação em tempo integral para meu pai, David, um habilidoso solucionador de problemas. De fato, lembro-me dele principalmente por meio de objetos: os tratores que mantinha, as árvores de nossos pomares das quais cuidava, os utensílios que consertava pela casa e na fazenda. Uma lembrança particularmente nítida é vê-lo subir no telhado de nossa casa no verão de 1969 para garantir que o sinal nos permitiria assistir ao pouso lunar da Apollo 11 pela TV. Mas, por mais competente que meu pai fosse, o volume de trabalho era tamanho que sobrava um bocado de tarefas diárias para mim e para minhas duas irmãs. Criávamos galinhas e, ainda bem pequeno, eu recolhia os ovos todas as tardes e passava muitas noites de lanterna em punho, caçando frangotes que haviam fugido das gaiolas. Israel era um lugar bem precário nos anos 1960 e 1970, as décadas da minha juventude. Depois da Segunda Guerra Mundial, refugiados judeus aumentaram a população em um terço e o número de habitante passou de dois milhões para pouco mais de três.Muitos chegavam da Europa e os ecos do Holocausto nunca se ausentavam. Além disso, os países árabes do Oriente Médio eram resolutamente hostis a nosso país, que tinha decidido manter seu território. Os con�itos vinham um atrás do outro: a Guerra do Sinai, em 1956, precedeu a Guerra dos Seis Dias, em 1967, que precedeu a Guerra do Yom Kippur, em 1973. Embora tivesse poucas décadas de existência quando eu era criança, Israel estava mergulhado em história antiga e recente e os israelenses de então — como os de agora — tinham ciência de que a sobrevivência do país dependia em deliberar as consequências de suas escolhas. Apesar disso, Israel é um lindo país. Beit Hanan e a fazenda de minha família foram lugares esplêndidos para se crescer. A atmosfera de liberdade inspirou meus primeiros escritos, anotações que eu acumulava na primeira gaveta de minha escrivaninha. De fato, durante boa parte de minha vida adulta, me consolou a ideia de que, se eventualmente minha forma livre de pensar me criasse problemas, eu poderia sempre, e muito felizmente, retornar para a fazenda da minha infância. É comum pensar que a vida é uma coleção dos lugares que visitamos, mas isso não passa de uma ilusão. A vida é uma coleção de acontecimentos e esses acontecimentos são resultados de escolhas, e apenas algumas dessas escolhas estão ao nosso alcance. Naturalmente, existem continuidades. A ciência que faço hoje tem ligação direta com a minha infância. Ela remonta a esse período de inocência em que eu pensava nas grandes perguntas da vida, em que apreciava a beleza da natureza e sem me preocupar com posição social ou reputação, em meio às árvores frutíferas e os vizinhos próximos de Beit Hanan. • • • A cadeia causal que me trouxe a Beit Hanan começou, aproximadamente, com a decisão de meu avô Albert (meu xará em hebraico) de fugir da Alemanha nazista. Com mais visão do que muitas pessoas, ele previra a probabilidade do cataclismo, do �uxo veloz de eventos que, mesmo antes do começo da Segunda Guerra Mundial, prometia um leque de opções cada vez mais restrito para os judeus, e o risco crescente de consequências sinistras que se desenrolariam caso eles não escolhessem o caminho correto. Para a sorte dele (e minha), Albert tomou a decisão certa: deixou a Alemanha em 1936 e se mudou para Beit Hanan pouco depois de sua fundação. Apesar de ainda estar começando a se estabelecer e fosse, como o restante do mundo, fustigada pelos ventos cada vez mais fortes da guerra, a comunidade agrícola era um abrigo comparativamente seguro. Pouco depois de sua chegada, vieram minha avó Rosa e os dois �lhos, um deles meu pai, com onze anos na época. Ao fazer a transição de uma sociedade alemã para uma sociedade judaica, o nome do meu pai mudou. De Georg, ele passou a se chamar David. Minha mãe, Sara, também viera de longe. Nasceu e cresceu em Haskovo, perto de So�a, capital da Bulgária. A coincidência geográ�ca que a tornava búlgara em vez de alemã foi o que a salvou, e à sua família, durante a guerra. Embora fosse aliada ao regime nazista, a Bulgária reteve sua soberania e com isso certa capacidade de resistir às demandas crescentes de Adolph Hitler, que exigia a deportação dos judeus para a Alemanha. À medida que começaram a circular boatos sobre os campos de extermínio, a Igreja Ortodoxa Búlgara protestou contra a deportação e o rei búlgaro resolveu recusar os pedidos da Alemanha. Para ser claro, fez isso declarando que a Bulgária necessitava de seus judeus para trabalhos forçados no próprio país, mas, como consequência, conseguiu proteger muitos. Desse modo, minha mãe foi capaz de desfrutar de uma infância relativamente normal. Estudou na escola de um mosteiro francês e acabou entrando na faculdade em So�a. Mas em 1948, com a Europa nas ruínas do pós-guerra e a expansão da União Soviética para o Ocidente, interrompeu os estudos e emigrou com os pais para a nova nação de Israel. Os primeiros fundadores de Beit Hanan eram da Bulgária, portanto não chega a ser surpreendente o fato de minha família materna ter parado por lá. O vilarejo agrícola era muito diferente da cidade cosmopolita e dos estudos universitários que minha mãe havia deixado para trás, mas o novo lar tinha seus encantos. Pouco depois de chegar, Sara conheceu meu pai. Apaixonaram-se, casaram-se e tiveram três �lhos — minhas duas irmãs mais velhas, Shashana (Shoshi) e Ariela (Reli) e, �nalmente, eu, em 1962. Naqueles primeiros anos, minha mãe se devotou à família e à comunidade. Era famosa na região pelos bolos e meu guarda-roupa atestava seu talento para tricotar suéteres. Mas, mesmo no relativo isolamento de Beit Hanan, ela permaneceu dedicada à vida intelectual. Isso não signi�ca que mantinha interesse apenas no conteúdo dos livros e nos estudos; minha mãe também queria aplicar seu intelecto no mundo. E foi por isso, e por sua integridade, que suas avaliações de bom senso conquistaram a con�ança de todos, desde os líderes do vilarejo até os visitantes que apareciam em nossa fazenda em busca de conselhos. Eu era um bene�ciário direto e cotidiano dessa qualidade. Minha mãe deixava claro o quanto se importava com o rumo que eu tomaria na vida, com minhas escolhas e interesses. Como um jardineiro regando e cuidando de uma planta, ela era dedicada e meticulosa no cultivo da curiosidade dos �lhos. Minha mãe também seguia a própria curiosidade. Quando eu era adolescente, ela reingressou na universidade e se formou. Depois, fez pós-graduação em literatura comparada. Não eram empreendimentos que a mantinham longe de nós. Na verdade, fui encorajado por ela a assistir as aulas de �loso�a do curso de graduação e, por insistência dela, me esforcei para ler diversos livros que estavam em suas listas de leituras. Foi ela que me levou a me apaixonar por �loso�a, especialmente pelo existencialismo. Meu sonho era ganhar a vida pensando. Nos �nais de semana, eu pegava algum livro de �loso�a, de algum existencialista — até mesmo os romances que escreveram e que inspiraram — e, com o exemplar em punho, ia com nosso trator para algum ponto tranquilo nas colinas e lia durante horas. • • • Desde aqueles dias idílicos na fazenda da minha família, tem me ocorrido que, se a humanidade encontrasse um planeta habitável onde pudesse estabelecer um posto avançado de nossa civilização, os escolhidos para povoá-lo seriam bem parecidos com as pessoas de Beit Hanan e agiriam de forma semelhante. Como demonstra a história, as demandas imediatas da colonização de postos avançados costumam ser recorrentes. Por necessidade, esses pioneiros se concentrariam na produção de alimentos e no esforço coletivo de apoio mútuo, do mais idoso ao mais jovem. Também precisariam ser engenhosos e multitarefas, capazes de consertar e criar equipamentos, de cultivar a terra e educar as crianças. Também creio que encontrariam tempo para cuidar da vida intelectual, mesmo em lugar tão remoto. Suspeito que, quando as crianças entrassem na vida adulta, se veriam diante da mesma expectativa que eu encontrei: prestar serviço à sociedade obrigatoriamente. Meu plano de me tornar �lósofo e lidar com algumas das perguntas fundamentais que a humanidade enfrenta há anos foi adiado pela convocação feita a todos os cidadãos com mais de dezoito anos. Esperava-se que todos prestassem serviço. Como eu havia demonstrado potencial para a física durante o ensino médio, fui selecionado para o Talpiot, um novo programa que recrutava anualmente duas dúzias de pessoas para trabalhar em pesquisas relacionadas com a defesa e seguir um rigoroso treinamento militar. Minhas ambições acadêmicas precisaram ser deixadas de lado. Sartre e Camus, os existencialistas que eu lera na juventude, não se encaixavam no novo papel que me havia sido designado. Durante os anos de serviço militar, me concentrar no estudo da física foi o mais próximo que pude chegar de uma atividade intelectualmente criativa. Embora vestíssemos o uniforme da ForçaAérea Israelense, fomos apresentados a todos os setores das Forças de Defesa Israelense. Recebemos treinamento básico de infantaria, tivemos aulas de combate em artilharia e engenharia, aprendemos a dirigir tanques, a portar metralhadoras em caminhadas que duravam a noite inteira, e a saltar de paraquedas de um avião. Do ponto de visto atlético eu felizmente estava em boa forma, de modo que os desa�os físicos eram difíceis, mas suportáveis. E junto com essas responsabilidades, eu me dedicava com a�nco ao curso na Universidade Hebraica, em Jerusalém. O Talpiot determinava que estudássemos física e matemática — matérias que pareciam su�cientemente próximas da �loso�a —, e estudar qualquer coisa na universidade parecia bem mais empolgante que me arrastar pela lama com um fuzil nas costas. Quando a oportunidade me foi dada, �z o melhor possível para justi�car a con�ança que o governo depositava em mim. Foi também nessa época que comecei a perceber que, embora a �loso�a �zesse as perguntas fundamentais, com muita frequência ela não era capaz de resolvê-las. A ciência, como eu estava aprendendo, talvez me deixasse em uma posição melhor para correr atrás das respostas. • • • Depois de três anos de estudos e treinamento militar, eu estava em vias de começar a trabalhar em algum projeto industrial ou militar com aplicações práticas imediatas. No entanto, fui em busca de um caminho mais criativo, um que oferecia maiores desa�os intelectuais e de pesquisa. Visitei uma instalação que não se encontrava na lista o�cial de destinos para pesquisadores e preparei uma proposta pouco convencional. A essa altura, eu já dispunha de uma folha corrida de realizações tanto em sala de aula quanto no treinamento militar e a cúpula do Talpiot aprovou minha ideia — a princípio para três meses de teste e depois para os cinco anos restantes do meu período de serviço, de 1983 a 1988. Meu trabalho evoluiu rapidamente em novas direções, algumas consideradas muito intrigantes pelos militares. A emoção das inovações cientí�cas me fez desenvolver a teoria para um novo projeto (que levou a uma patente): usar uma descarga elétrica para a propulsão de projéteis em velocidades mais altas do que o que era possível com os propelentes químicos convencionais. O projeto cresceu e veio a empregar um departamento inteiro com duas dúzias de cientistas. Foi o primeiro esforço internacional a receber �nanciamento da Strategic Defensive Initiative (SDI) — também conhecido como “Guerra nas estrelas” —, o ambicioso programa norte-americano de defesa antimísseis anunciado em 1983 pelo presidente Ronald Reagan. Naquela época, a Guerra Fria parecia um acessório permanente das relações internacionais. A disputa entre Estados Unidos e União Soviética, entre democracia e comunismo, entre Ocidente e Oriente, já se desenrolava por décadas. Os dois lados haviam acumulado um vasto arsenal de armas nucleares, o su�ciente para destruírem-se mutuamente várias vezes. O Relógio do Juízo Final, criação dos integrantes do Boletim dos Cientistas Atômicos, idealizado para alertar a humanidade sobre a possibilidade de uma catástrofe criada pelo homem, estava quase sempre a sete minutos da meia-noite. A SDI, que antevia o emprego de lasers e de outras armas avançadas para destruir mísseis balísticos do inimigo, era uma parte desse contexto bem mais amplo. Embora tenha sido dissolvida em 1993, teve um impacto político signi�cativo, apressando o �m da Guerra Fria e o colapso da União Soviética. Este trabalho também formou a espinha dorsal da minha dissertação para o PhD, que completei aos 24 anos. O tema era a física de plasma, que trata do mais comum dos quatro estados fundamentais da matéria. O plasma é componente das estrelas, dos relâmpagos e de certas telas de televisão. (Caso esteja curioso, o título da minha dissertação era “Aceleração de partículas em altas energias e ampli�cação de radiação coerente por interações eletromagnéticas nos plasmas”. Bem menos atraente do que o título deste livro, com toda certeza.) • • • Mesmo com o PhD na mão, eu não tinha muita certeza do que minha escolha seguinte seria ou deveria ser. Não estava decidido a seguir carreira em física de plasma. Havia sempre a possibilidade atraente de retornar a Beit Hanan. E uma grande parte de mim queria fazer uma mudança dramática e voltar para a �loso�a. No entanto, uma cadeia de escolhas, das quais apenas algumas foram minhas, me colocou em outra trajetória. Tudo começou durante uma viagem de ônibus durante o serviço militar. Arie Zigler, um físico que se sentou a meu lado, mencionou por acaso que o lugar mais prestigioso para cursar um doutorado seria o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, Nova Jersey. Posteriormente, durante uma das reuniões com representantes da SDI em Washington, DC, e depois em uma conferência sobre física de plasma na Universidade do Texas, estive com o “papa da física de plasma”, Marshall Rosenbluth. Eu sabia que ele havia passado pelo instituto e pedi detalhes. Rosenbluth logo me estimulou a ir até lá para uma visitinha rápida. Animado, imediatamente telefonei para Michelle Sage, do administrativo do SDI, e perguntei se poderia agendar essa ida na semana seguinte. Ela respondeu: “Não permitimos visitas de pessoas sem credenciais. Por favor, nos envie seu currículo e informarei se a sua visita é possível.” Sem me abalar, enviei uma lista com minhas onze publicações e voltei a telefonar, dias depois. Sage permitiu que eu marcasse uma visita ao �nal da minha estadia nos Estados Unidos. Quando cheguei a seu escritório bem cedo na manhã marcada, Michelle disse: “No momento há apenas um docente com tempo disponível, Freeman Dyson. Vou apresentá-lo.” Fiquei animadíssimo. Lembrei-me do nome de Dyson dos livros de eletrodinâmica quântica. Pouco depois de ter me sentado em seu escritório, ele me disse: “Ah, você vem de Israel? Conhece John Bahcall? Ele gosta de israelenses.” Dyson deve ter percebido minha expressão de curiosidade, porque prosseguiu: “A esposa dele, Neta, é israelense.” Confessei nunca ter ouvido falar dele, muito menos da esposa. Descobri que John Bahcall era astrofísico e, pouco tempo depois, almoçamos juntos. O encontro acabou com ele estendendo o convite para que eu retornasse a Princeton e passasse um mês. Depois eu �caria sabendo que, neste ínterim, Bahcall se encarregou de fazer uma veri�cação internacional, perguntando aos mais notáveis cientistas israelenses, como Yuval Neeman, o que pensavam a meu respeito. Seja lá o que tenha ouvido, no �nal dessa segunda visita John me convidou para ir a seu escritório e me ofereceu um prestigioso fellowship que duraria cinco anos, mediante a seguinte condição: que eu estudasse astrofísica. É claro que aceitei. • • • No momento em que comecei a ser encorajado a dedicar minha carreira à astrofísica, eu sequer sabia o que fazia o Sol brilhar. O fato de a especialidade de Bahcall ser a geração de neutrinos (partículas de baixa interação) no interior do Sol só tornava mais constrangedora minha ignorância a respeito do tema. Até aquele momento eu havia me concentrado em plasmas terrestres e aplicações mais terráqueas. A título de clareza, Bahcall sabia em qual área de pesquisa eu atuava. Sua proposta foi feita apesar disso. Na época já me parecera notável que tivesse assumido o risco e hoje em dia me parece ainda mais. (O mundo acadêmico mudou e duvido que hoje fosse possível fazer uma proposta como essa a um jovem estudante.) Fiquei grato na época e sou até hoje. Determinado a demonstrar que os instintos de Bahcall — bem como os de outros cientistas notáveis que me ajudaram pelo caminho — eram justi�cados, aceitei a oferta. Embora tivesse que me esforçar para aprender o vocabulário básico para começar a publicar meus próprios artigos, a área era familiar. Plasma é o estado que a matéria atinge em altas temperaturas, quando seus átomos se transformam em um mar de íonspositivamente carregados (átomos que perderam alguns elétrons) e de elétrons livres. Embora a maior parte da matéria ordinária presente hoje no universo (inclusive a do interior das estrelas) se encontra em estado de plasma, os estudos dessa área se concentram em experimentos de laboratório, realizados em condições consideravelmente diferentes daquelas encontradas no espaço. Para aproveitar meus pontos fortes, a primeira grande fronteira de pesquisa que explorei como astrofísico revolvia em torno de quando e como a matéria atômica do universo se transformou em plasma. Assim começou meu fascínio pelos primórdios do universo, o chamado alvorecer cósmico ou as condições em que as próprias estrelas se formaram. Depois de três anos no IAS, fui incentivado a me candidatar a cargos juniores de docência, incluindo um no departamento de Astronomia de Harvard. Eu era a segunda opção. Era raro que o departamento oferecesse a cátedra a professores mais novos, por isso alguns candidatos — inclusive o que recebeu a oferta de emprego antes de mim — pensaram duas vezes antes de aceitar. De minha parte, aceitei feliz. Eu me lembro de pensar com muita clareza a respeito da decisão, tendo em mente que, se não me oferecessem a cátedra, eu poderia perfeitamente voltar para a fazenda do meu pai ou me dedicar a meu primeiro amor acadêmico, a �loso�a. Cheguei em Harvard em 1993. Três anos depois, a cátedra era minha. • • • Desde então passei a acreditar que John Bahcall não apenas tinha fé que eu conseguiria lidar com a transição da física de plasma para a astrofísica: ele também me via como um igual — ou, quem sabe, como uma versão mais jovem de si mesmo. Bahcall havia entrado na faculdade com a intenção de estudar �loso�a, mas logo concluiu que a física e a astronomia eram uma rota mais direta para as verdades fundamentais do universo. Cheguei a uma conclusão parecida pouco depois de me despedir de John e do Instituto. Quando assumi o posto de docente em Harvard, em 1993, decidi que era tarde demais para fazer uma grande virada de carreira e voltar para a �loso�a. E, sobretudo, eu estava convencido de que o “casamento arranjado” com a astrofísica havia me proporcionado um reencontro com meu velho amor, ressurgido apenas em roupagem diferente. Eu começava a compreender que a astronomia lida com perguntas anteriormente restritas ao âmbito da �loso�a e da religião. Entre essas perguntas estão as maiores de todas: “Qual é a origem do universo?” e “Qual é a origem da vida?”. Descobri também que �tar a vastidão do espaço, contemplando o início e o �m de tudo, fornece a estrutura para responder mais esta: “O que é uma vida digna de ser vivida?” Com frequência a resposta está bem na nossa cara. Basta a coragem de admiti-la. Durante uma visita a Tel Aviv, em dezembro de 1997, tive um encontro às cegas com Ofrit Liviatan. Gostei dela de imediato e essa noção mudou tudo. Apesar de nossa distância geográ�ca, permitimos que a amizade se aprofundasse. Eu jamais conhecera alguém como ela e estava convencido de que jamais conheceria. Muito antes de confrontar a evidência apresentada pelo ‘Oumuamua eu já havia descoberto que, em todos os aspectos da vida, examinar as evidências diante de nós, investigá-las com assombro, humildade e determinação podem mudar tudo — isto é, se estivermos abertos às possibilidades contidas nos dados. Felizmente, naquele momento da vida, eu estava. Ofrit e eu nos casamos dois anos depois e, como eu, ela acabou encontrando seu lugar na órbita de Harvard, no cargo de diretora do programa de seminários para calouros. Nossa antiga casa em Boston, construída pouco antes de Albert Einstein desenvolver sua teoria da relatividade, foi o lugar onde criamos nossas duas �lhas. Uma cadeia causal que começa com a decisão do meu avô de deixar a Alemanha em 1936, seguida pelo encontro dos meus pais em Beit Hanan, chegue a Ofrit e eu criando Klil e Lotem em Lexington, me faz crer que é tênue a linha separando �loso�a, teologia e ciência. Observar as crianças avançando lentamente rumo à vida adulta me faz crer que os atos mais mundanos da nossa existência sugerem algo milagroso que remonta ao Big Bang. Com o passar do tempo, passei a gostar um pouco mais de ciência do que de �loso�a. Enquanto �lósofos passam bastante tempo dentro da própria mente, cientistas estão sempre dispostos a dialogar com o mundo. Você faz uma série de perguntas para a natureza e escuta com atenção as respostas oferecidas pelos experimentos. Quando feita com sinceridade, é uma experiência utilíssima de humildade. O sucesso da teoria da relatividade de Albert Einstein não se deve à sua elegância formal, desenvolvida no decorrer de uma série de publicações entre 1905 e 1915. A teoria não foi aceita até 1919 quando sir Arthur Eddington, astrônomo e secretário da Royal Astronomical Society na Inglaterra, con�rmou a previsão teórica de que a luz faria uma curva em virtude da gravidade solar. Para os cientistas, belo é o que sobra da teoria depois de seu contato com os dados. Embora eu esteja enfrentando as questões existenciais de minha juventude de um modo bem diferente de Sartre e Camus, creio que o garoto guiando o trator pelas colinas de Beit Hanan teria gostado do resultado. Creio que teria admirado a sequência de oportunidades e escolhas que começaram com um encontro às cegas e terminaram com uma família em Lexington. Mas, de um modo impossível ao meu eu mais jovem, compreendo outra lição dada pela história da minha família, uma que tenho mantido sempre em mente nos últimos anos, enquanto estudo visitantes interestelares no nosso sistema solar. Às vezes, quase que por acidente, algo excepcionalmente raro e especial atravessa nosso caminho. A vida depende de enxergarmos com clareza o que está bem diante de nós. • • • Penso que o caminho incomum que trilhei tenha me preparado para o encontro com o ‘Oumuamua. Do ponto de vista cientí�co, minha experiência me ensinou o valor da liberdade e da diversidade, especi�camente na escolha de temas de pesquisa e na seleção de colaboradores. Os benefícios do diálogo entre astrônomos e sociólogos, antropólogos, cientistas sociais e, é claro, �lósofos, podem ser tremendos. No entanto, descobri que no mundo acadêmico as carreiras interdisciplinares costumam compartilhar do destino das conchas raras trazidas até a areia: se alguém não coletá-las e preservá-las, serão erodidas pelas implacáveis ondas do mar até virarem grãos de areia inidenti�cáveis. Durante toda minha carreira houve diversos momentos em que eu poderia ter me desviado para um caminho diferente e menos fortuito. Minha vida pro�ssional me apresentou a muitos acadêmicos com credenciais semelhantes às minhas, mas que não desfrutaram de oportunidades semelhantes. Um levantamento honesto dos docentes universitários me traz à mente homens e mulheres cujas contribuições são de�nidas pelas oportunidades que lhes foram oferecidas e pelas que lhes foram negadas. O mesmo pode ser dito de quase todas as situações na vida. Tendo em mente que fui bene�ciado por pessoas que me deram oportunidades, hoje sou profundamente comprometido em ajudar outros jovens a alcançar seus potenciais, mesmo quando isso signi�ca não só desa�ar ideias ortodoxas, como também práticas ortodoxas mais perniciosas. Como parte desta missão, me esforcei muito para manter — no ensino e na pesquisa — uma visão de mundo que alguns podem considerar infantil. Não me ofendo com essa opinião. A meu ver, as crianças seguem suas bússolas interiores com mais sinceridade e com menos pretensões do que muitos adultos. E os mais jovens são menos propensos a conter o que pensam a �m de repetir o modo de agir de quem os cerca. Essa abordagem em relação à ciência me abriu algumas das mais ambiciosas — alguns diriam até audaciosas — possibilidades inerentes aos temas que estudo. A ideia, por exemplo, de que o ‘Oumuamua, o objeto interestelar observado em sua trajetória pelocéu em outubro de 2017, não seria um fenômeno de origem natural. 3 Anomalias A CIÊNCIA É COMO UMA HISTÓRIA DE DETETIVES. astrofísicos, essa máxima vem com um toque a mais. Não existe outro campo de investigação cientí�ca que confronte tamanha diversidade de escalas e conceitos. Nosso escopo cronológico começa antes do Big Bang e se estende até o �m dos tempos, mesmo reconhecendo que as próprias noções de tempo e espaço são relativas. Nossa pesquisa desce até os quarks e elétrons, as menores partículas conhecidas. Chega aos con�ns do universo. E se preocupa — direta ou indiretamente — com tudo o que existe entre uma coisa e outra. E boa parte de nosso trabalho de detetive permanece incompleto. Ainda não compreendemos a natureza dos principais constituintes do universo e por isso, por ignorância, nós os rotulamos de matéria escura (que contribui cinco vezes mais para a massa cósmica do que a matéria ordinária da qual somos feitos) e energia escura (que domina tanto a matéria escura quanto a ordinária e que causa, pelo menos no presente, a peculiar aceleração cósmica). Também não entendemos o que de�agrou a expansão cósmica ou o que acontece dentro de um buraco negro — duas áreas de estudo com as quais me envolvi profundamente desde que passei para o campo da astrofísica, tantos anos atrás. Existe tanto que não sabemos que costumo me perguntar se outra civilização, bene�ciada pela ciência por um bilhão de anos, sequer nos consideraria inteligentes. A possibilidade de que nos estendam tamanha cortesia, suspeito, não será determinada pelo que sabemos, mas sim pelo modo como sabemos — ou melhor, por nossa �delidade ao método cientí�co. Nossa mente aberta para coletar dados que con�rmem ou derrubem hipóteses é o que fará com que nossas reivindicações a qualquer inteligência universal sejam ou não justi�cadas. Com muita frequência, o que dá início a uma história de detetive na astrofísica é a descoberta de alguma anomalia em dados experimentais ou observacionais, de alguma evidência que não se conforme às nossas expectativas e que não possa ser explicada pelo que sabemos. Nessas situações, é uma prática comum propor diversas explicações alternativas e depois eliminá-las uma a uma com base em novas evidências, até que se chegue à interpretação correta. Foi o caso, por exemplo, da descoberta da matéria escura por Fritz Zwicky, no início da década de 1930. Zwicky se baseou na observação de que o movimento das galáxias em aglomerados exigia mais matéria do que nossos telescópios eram capazes de avistar. Essa teoria foi ignorada até a década de 1970, quando dados adicionais sobre o movimento das estrelas nas galáxias e sobre a taxa de expansão do universo forneceram evidências conclusivas. O processo de peneirar pode dividir, até mesmo fraturar, áreas inteiras de estudo, criando oposição entre as explicações e seus defensores até que — algumas vezes — um dos lados apresenta uma prova demonstrativa. É o caso do debate sobre o ‘Oumuamua, que, por falta de provas demonstrativas, se desenrola de forma contínua. De fato, vale admitir logo de início que a possibilidade de se obter uma prova demonstrativa é bem remota. É impossível alcançar o ‘Oumuamua e fotografá-lo. Os dados que temos são os dados que teremos para sempre, nos restando a tarefa de desenvolver hipóteses que expliquem por completo essas evidências. Trata-se, é claro, de um empreendimento totalmente cientí�co. Ninguém vai inventar novas evidências, ninguém vai ignorar evidências que contrariem uma hipótese e ninguém vai inserir alguma evidência — como no antigo cartum de Sidney Harris que mostra dois cientistas trabalhando em uma equação complexa — do tipo “então um milagre acontece”. Talvez a opção mais perigosa, mais preocupante, seria declarar o seguinte em relação ao ‘Oumuamua: Não há nada para ver por aqui, é hora de seguir em frente, aprendemos o que podíamos e é melhor voltarmos para nossas antigas preocupações. Enquanto escrevo essas palavras, infelizmente parece ser o que muitos cientistas decidiram fazer. O debate cientí�co sobre o ‘Oumuamua começou relativamente calmo. Atribuo isso ao fato de que, no início, não sabíamos das anomalias mais arrebatadoras desse objeto. A princípio, essa história de detetive parecia ser um caso do tipo vapt-vupt: a explicação mais provável — de que se tratava de um cometa ou de um asteroide interestelar — também era a mais simples e a mais familiar. Mas, à medida que avançava o outono de 2017, eu e uma parcela signi�cativa da comunidade cientí�ca internacional nos vimos intrigados com os dados. Eu — mais uma vez ao lado de uma parcela signi�cativa da comunidade cientí�ca internacional — não conseguia fazer com que as evidências se encaixassem perfeitamente na hipótese de que o ‘Oumuamua era um cometa ou um asteroide interestelar. Enquanto lutávamos para tornar isso possível, comecei a formular hipóteses alternativas para as múltiplas peculiaridades do ‘Oumuamua. • • • Não importa o que concluirmos a respeito do ‘Oumuamua. A maioria dos astrofísicos concordará que ele era, e continua sendo, a encarnação de uma anomalia. Para começar, antes da sua descoberta, nunca se havia con�rmado a observação de um objeto interestelar em nosso sistema solar. Só isso já fazia do ‘Oumuamua um acontecimento histórico e era o su�ciente para atrair a atenção de muitos astrônomos. Isso levou à coleta de mais dados que, por sua vez, foram interpretados e revelaram ainda mais anomalias, o que, por sua vez, atraiu a atenção de mais astrônomos e assim por diante. A revelação desses aspectos anômalos deu início ao verdadeiro trabalho de detetive. Quanto mais aprendíamos sobre o ‘Oumuamua, mais nítido �cava que o objeto era mesmo tão misterioso quanto relatavam os meios de comunicação. Assim que o observatório no Havaí anunciou a descoberta e mesmo enquanto o ‘Oumuamua viajava para fora do sistema solar, astrônomos do mundo todo apontaram todo tipo de telescópios naquela direção. A comunidade cientí�ca estava curiosa, para dizer o mínimo. Imagine que uma pessoa tenha aparecido para jantar na sua casa e só depois do convidado ter ido embora por uma rua escura você se desse conta de todas as suas peculiaridades. Nós, os cientistas, tínhamos perguntas sobre esse visitante interestelar. Para coletar informações, enfrentamos uma janela de tempo que se fechava rapidamente, revisitando dados já registrados sobre o dito cujo e observando sua �gura cada vez mais distante até o momento em que desapareceu na noite. Uma pergunta crucial era: qual a aparência do ‘Oumuamua? Jamais tivemos uma fotogra�a nítida do objeto na qual nos basear. Temos, no entanto, os dados coletados por todos aqueles telescópios que durante onze dias se dedicaram a reunir tudo o que fosse possível. E assim que �xamos os telescópios no ‘Oumuamua, procuramos uma informação em particular: como o ‘Oumuamua re�etia a luz solar. Nosso Sol funciona como um poste que ilumina não apenas os planetas à sua órbita, mas também todos os objetos que se aproximam e que são su�cientemente grandes para serem vistos da Terra. Para entender o conceito, primeiro é preciso ter em mente que, em quase todas as situações, dois objetos quaisquer farão uma rotação em relação ao outro quando passarem. Imagine uma esfera perfeita passando em disparada pelo Sol enquanto atravessa nosso sistema solar. A luz solar re�etida em sua superfície não varia porque a área da esfera voltada para o Sol não varia. Qualquer forma diferente de uma esfera, porém, re�etirá quantidades variáveis de luz à medida que o objeto �zer rotações. Uma bola de futebol americano, por exemplo, re�etirá mais luz quando suas superfícies maiores estiverem voltadas para o Sol e menos luz quando a superfície menor, ao girar, for a da vez. Variações de luminosidade do ‘Oumuamua no curso de um dia (em horas) conforme observado por diferentes telescópios, dentro do período de três dias, em outubro de 2017.Os pontos representam medições feitas com vários filtros nas faixas visíveis e quase infravermelha do espectro de cores. A quantidade de luz solar refletida mudava periodicamente por um fator de dez (2,5 grandezas) enquanto o ‘Oumuamua girava a cada oito horas. Isso significava que ele tinha um formato extremo que era pelo menos de cinco a dez vezes mais comprido do que largo ao ser projetado no céu. A linha tracejada e branca mostra a curva esperada caso o ‘Oumuamua fosse um elipsoide com uma proporção 1:10. Imagem de Mapping Specialists, Ltd., adaptada do Observatório Europeu do Sul/K. Meech et al. (CC BY4.0). Para os astrofísicos, mudanças de luminosidade em determinado objeto fornecem pistas valiosas sobre sua forma. No caso do ‘Oumuamua, ela variava em dez vezes a cada oito horas, o que deduzimos ser o tempo necessário para uma rotação completa. A variabilidade dramática nos dizia que o formato do ‘Oumuamua era extremo, com comprimento de pelo menos cinco a dez vezes maior do que a largura. A essas dimensões, acrescentamos mais evidências sobre o tamanho. Podemos dizer com segurança que o ‘Oumuamua é relativamente pequeno. Sua trajetória próxima ao Sol implicava que ele devia ter tido uma temperatura muito alta na superfície, algo que teria sido visível para a câmera infravermelha do Telescópio Espacial Spitzer, lançado pela NASA em 2003. Porém, a câmera do Spitzer não foi capaz de detectar nenhum calor emanando do ‘Oumuamua. Isso encorajou a suposição de que devia ser pequeno, o que di�cultava a detecção pelo telescópio. Estimamos que tenha cerca de cem metros de comprimento — mais ou menos do tamanho de um campo de futebol — por menos de dez metros de largura. Tenha em mente que mesmo um objeto �níssimo em orientação aleatória pelo céu em geral parece ter alguma largura, o que signi�ca que a largura real do ‘Oumuamua pode ser ainda menor. Vamos presumir que as maiores dessas dimensões estejam corretas e que o objeto media algumas centenas de metros de comprimento por algumas dezenas de metros de largura. Isso tornaria a geometria do ‘Oumuamua várias vezes mais extrema em suas proporções — ou na relação entre comprimento e largura — do que o mais extremo dos asteroides e cometas que já vimos. Imagine deixar este livro de lado e sair para dar uma volta em algum lugar. Você encontra pessoas. Talvez desconhecidas e sem dúvida diferentes entre si, mas, por suas proporções, todas são reconhecidas imediatamente como seres humanos. Entre tais transeuntes, o ‘Oumuamua seria alguém cuja cintura pareceria ser mais �na do que a dimensão do punho. Ver um indivíduo assim faria com que você questionasse seus olhos ou sua compreensão das pessoas. Era essencialmente esse o dilema enfrentado pelos astrônomos que começavam a interpretar os dados iniciais sobre o ‘Oumuamua. • • • Como acontece em qualquer boa história de detetive, a evidência que emergiu sobre o ‘Oumuamua no ano seguinte após sua descoberta permitiu que abandonássemos determinadas teorias e eliminássemos hipóteses que não corroborassem os fatos. A luminosidade ao fazer rotações nos dava pistas vitais sobre como sua aparência poderia e não poderia ser. Suas dimensões relativamente pequenas, porém extremas — com um comprimento de cinco a dez vezes maior do que a largura —, permitiam apenas dois formatos. Ou nosso visitante interestelar era alongado como um charuto ou achatado como uma panqueca. De uma forma ou de outra, o ‘Oumuamua era uma raridade. Se fosse mesmo oblongo, nunca tínhamos visto antes qualquer objeto espacial natural daquele tamanho e tão alongado. Se fosse achatado, nunca tínhamos visto um objeto espacial natural daquele tamanho e tão achatado. Para contextualizar um pouco, leve em consideração que todos os asteroides vistos anteriormente no sistema solar tinham proporção entre comprimento e largura de, no máximo, três vezes. No ‘Oumuamua, essas proporções eram de cinco a dez vezes. Ilustração artística do ‘Oumuamua como uma rocha oblonga, em formato de charuto. Essa se tornou a representação predominante do objeto interestelar. Imagem de ESO/M. Kornmesser. E havia mais. Além de ser pequeno e ter um formato incomum, o ‘Oumuamua era estranhamente luminoso. Apesar do tamanho diminuto, quando passou pelo Sol e re�etiu sua luz, o ‘Oumuamua se mostrou relativamente brilhante, pelo menos dez vezes mais re�exivo do que os típicos asteroides e cometas do sistema solar. Se, como parece possível, ele fosse algumas vezes menor do que o limite superior de algumas centenas de metros presumido pelos cientistas, sua re�exividade alcançaria valores sem precedentes — níveis de luminosidade semelhantes ao de um metal reluzente. • • • Quando aconteceram os primeiros relatos da descoberta, todas essas peculiaridades foram arrebatadoras. Juntas, elas apresentavam um quebra-cabeça para os astrônomos. Juntas, elas exigiam uma hipótese capaz de explicar por que um objeto de origem natural — e a essa altura ninguém aventava que o ‘Oumuamua fosse nada diferente disso — teria essas características estatisticamente raras. Talvez, argumentaram os cientistas, elas fossem causadas pela exposição à radiação cósmica por centenas de milhares de anos, tempo que era provável de sua viagem pelo espaço interestelar antes de alcançar nosso sistema solar. A radiação ionizante, teoricamente, poderia ter causado uma erosão signi�cativa na rocha interestelar, embora não estivesse claro por que tal processo teria produzido o formato do ‘Oumuamua. Ou talvez os motivos para aquela estranheza estivessem em suas origens. Talvez o objeto tivesse sido expelido com violência de um planeta por um estilingue gravitacional, e isso talvez explicasse algumas de suas características. Se um objeto de tamanho adequado se aproxima de um planeta a uma distância adequada, parte desse planeta poderia se desprender e ser catapultada no espaço interestelar como uma pedra lançada por um estilingue. Ou, pelo contrário, poderia ter se soltado delicadamente de uma camada de objetos congelados orbitando nas áreas mais externas de um sistema solar, algo parecido com nossa nuvem de Oort. A formulação de uma hipótese poderia vir a partir das suposições sobre o trânsito do ‘Oumuamua ou suas origens. Se o formato peculiar e as propriedades re�exivas tivessem sido toda a distinção do objeto, as duas teorias poderiam ter sido satisfatórias. Nesse caso, eu permaneceria curioso, mas teria seguido em frente. Mas não consegui me conter e deixar de acompanhar essa história de detetive por um motivo simples: havia uma anomalia mais arrebatadora no ‘Oumuamua. Como mencionei, quando o ‘Oumuamua passou correndo pelo Sol, sua trajetória desviou-se do que seria esperado considerando-se apenas a força gravitacional do Sol.1 Não havia qualquer explicação óbvia para tal. Para mim, esse era o dado mais intrigante de todos os que acumulamos nas quase duas semanas que passamos observando o ‘Oumuamua. Associada às demais informações reunidas pelos cientistas, essa anomalia logo me levaria a formular uma hipótese que me colocaria em desacordo com a maior parte da comunidade cientí�ca. • • • Durante o frenesi que seguiu a articulação da minha teoria, enfrentei uma sala lotada de repórteres e um mar de microfones estendidos. Era hora do almoço e eu havia acabado de dar três entrevistas de uma hora de duração. Estava faminto. Então, em vez de apresentar uma defesa detalhada da hipótese para os jornalistas, �z uma referência a um dos meus predecessores no campo da astronomia, na esperança de que isso encorajasse a todos a manter a mente aberta. Lembrei aos meus ouvintes a declaração de Galileu no século XVII, explicando que as evidências visíveis por seu telescópio sugeriam que a Terra orbitava em torno do Sol. É uma das histórias mais conhecidas e repetidas nos anais da ciência. Em 1610, com a publicação do tratado Sidereus Nuncius (que pode ser traduzido como Mensageiro Estrelado), Galileu descreveu