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Segunda parte
Cura
Uma história de sorte e infortúnio
Conheci José Garcia sm dezembro de 1975, quando ele participou de um 
grupo que esperava para beber yagé com Santiago Mutumbajoy, um reputado 
xamã índio que vivia nos contrafortes do Putumayo, onde os sopés orientais dos 
Andes se encontram com a floresta pluvial da bacia do alto Amazonas, na Co­
lômbia. Ele foi o último a juntar-se a nosso grupo de pobres forasteiros brancos e 
de índios da região que observavam o crepúsculo das montanhas, e me foi assi­
nalado como amigo íntimo e discípulo do xamã. O que chamou minha atenção 
foi o fato de que José Garcia era um branco que se dispusera a estudar com um 
curandeiro índio.
Lembrei-me de que havia alguns meses, quando eu me encontrava na com­
panhia de outro xamã, dois brancos se aproximaram da casa certa noite e um deles 
se pôs a berrar: “Graças a Deus eu sei\ Mate-me agora, com tudo aquilo que você 
sabe, seu monte de merda, filho de uma puta! Feiticeiro de merda, filho da puta! 
Eles não podem fazer nada! Maldito! Mas eu sei... Estou parado, aqui... Eles não 
sabem nada, filhos da puta! Não conseguem fazer nada contra mim!". Quando 
atravessei pela primeira vez a pequena cidade, próximcJ ao lugar onde Santiago 
morava, um técnico empregado pelo serviço especial de saúde do governo dis­
sera em altos brados: “Nós do INPES combatemos os curacas (xamãs). Somos a 
vanguarda do progresso. Nossa tarefa é nos livrarmos de toda essa charlatanice". 
Os proprietários brancos dos armazéns em volta da praça garantiram-me que os 
xamãs eram inúteis ou perigosos. Somente mais tarde fiquei sabendo que aqueles 
mesmos proprietários procuravam os xamãs para dar um jeito em seu pequeno 
comércio.
Devo assinalar que o yagé cresce unicamente na floresta pluvial das terras 
baixas e dos sopés das montanhas e que os índios que conheço, habitantes dos 
contrafortes do Putumayo, dizem de vez em quando que se trata de uma dádiva 
especial de Deus para os índios, e unicamente para eles. “Yagé é nossa escola”, 
“yagé é nosso estudo", poderão dizer, e o yagé é concebido como algo ligado à
origem do conhecimento e de sua sociedade. Foi o yagé quem ensinou aos índios 
o bem e o mal, as propriedades dos animais, os remédios e as plantas comestí­
veis. Alguns índios Cofán, ao sul do rio Putumayo, certa vez me contaram uma 
história sobre a origem do yagé que ilustra as tensões bem como as mediações 
que se dão entre as tradições indígenas e cristãs: Quando Deus criou o mundo ele 
arrancou com a mão esquerda um fio de cabelo e o plantou no chão, mas unica­
mente para os índios. Abençoou-o com sua mão esquerda. Os índios descobriram 
suas propriedades e desenvolveram os ritos do yagé e de todo o complexo xamâ- 
nico. Ao ver isto, Deus demonstrou incredulidade. Disse que eles estavam men­
tindo. Pediu e Lhe foi dado um pouco de infusão de yagé. Ele tremeu, vomitou, 
defecou e gritou bastante, fascinado com as muitas coisas maravilhosas que viu. 
Quando o dia amanheceu ele declarou: “É verdade o que esses índios dizem. A 
pessoa que toma isto sofre, mas se beneficia. É assim que a gente aprende: atra­
vés do sofrimento”.
Embora possam beber o yagé com um xamã índio a fim de se livrarem do 
mal, seria excepcionalmennte raro que os brancos considerassem com seriedade 
assumir todos os perigos que se acumulam sobre a pessoa encarregada da respon­
sabilidade de seu preparo e ritual. José Garcia é um desses poucos brancos.
A noite caiu e entramos na casa de dois quartos, empoleirada na colina. A 
luz de uma vela tremeluzia, iluminando as traves do teto e as redes que balouça­
vam. Encardidas estampas católicas contemplavam a penumbra oscilante, e São 
Miguel, o santo padroeiro da pequena cidade vizinha e que Santiago Mutumba- 
joy afirma ser o santo dos índios, que os preveniu da chegada dos espanhóis, 
começou a livrar-se de Satanás, que se afundava no fogo do inferno. Uma con­
versa em voz baixa sobre os momentos difíceis de cada um deu lugar à expecta­
tiva e ao temor, até certo ponto dissipados pelo curandeiro, que fazia piadas e 
brincava. O incenso de copal invadiu a sala e os sons noturnos do rio e do vento 
se uniram aos ruídos da floresta, preenchendo nosso silêncio. Um rapaz ajudou o 
curandeiro a encher uma panela de yagé. O curandeiro se agachou e começou a 
cantar ao ritmo do compasso de seu leque de cura, waira sacha — espírito da 
floresta, escova do vento.
Ele estava curando o yagé do mal que este traz da floresta. Entoava sons 
yagé, mas não palavras, pedindo-lhe que fosse forte e trouxesse boa pinta, isto é, 
pintura, visões. Decorridos uns dez minutos ele bebeu, cuspiu, pigarreou e então 
serviu a todos nós, cantando diante do copo cheio, antes que cada pessoa bebesse. 
Sentamo-nos e aguardamos. Daí a meia hora alguém foi vomitar no escuro, trope­
çando, e o xamã recomeçou a cantar, mal parando até o dia amanhecer. Solicitou 
boas visões; sua voz e o ritmo que ele imprimia ao leque ressoavam em nossos 
corpos trêmulos. Eis alguns trechos de minhas anotações, feitas naquela noite:
Então surge o feo (feio). Meu corpo se distorce e estou muito assustado. Minhas 
pernas se esticam e se desprendem, meu corpo não mais me pertence e então volta a me 
pertencer. Sou um polvo, condenso-me em uma forma bem pequena. A luz da vela cria
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formas de um mundo novo, formas animais e ameaçadoras. A metade inferior de meu corpo 
desaparece. Aprendo a usar a dissociação como uma vantagem, como um modo de escapar 
ao horror. Não sou a pessoa que está passando por aquilo tudo, mas o rosto-prcsença, sem 
corpo, calmo, que olha com atenção e observa aquele outro eu desprovido de importância. 
Espio meu outro eu e sinto-me seguro. Mas então este segundo eu, este observador objetivo 
e desligado, também sucumbe e tenho de dissociar-me em um terceiro e, em seguida, em 
um quarto, pois a relação entre meus eus se rompe, criando uma série quase infinita de 
espelhos confusos de eus que espiam e de outros que sentem. O ódio a mim mesmo e a 
paranóia são estimulados por animais horríveis — porcos que grunhem estranhamente, co­
bras coleantes que deslizam uma em cima da outra, roedores com asas que se assemelham a 
barbatanas. Estou tá fora, tento vomitar, as estrelas e o vento pairam sobre mim, apoio-me 
na cerca do curral. Está repleto de animais, que se mexem. A história de minha vida se 
desenrola diante de mim, em uma torrente de medo e de autocensura. Volto para dentro e 
assim que entro vejo o xamã, Santiago; ele transformou-se em um tigre! Está sentado na 
rede e José Garcia ajoelha-se diante dele. A sala se transformou e sinto o vômito que chega. 
Vou lá para fora, vomito e defeco. Sinto as odiosas situações do passado e o medo sendo 
expelidos. Junto-me ao grupo, calmo, e agora flutuo em cores e visões maravilhosas. Dou- 
me conta que Santiago pôs seu colar de dentes de tigre. Sua cabeça aninha-se naquele 
suporte de dentes de tigre, criando uma nova imagem: a parte superior de seu corpo é como 
a de um tigre. Ele acaricia suavemente José Garcia e pergunta-lhe se quer mais yagé. Esten­
dem um pano e se agacham no chão. Alvoroçados, excitados, pedem uma faca para abrir 
uma concha de madrepérola. Mais tarde José Garcia faz perguntas relativas a seu gado; 
quer vê-lo curado naquela mesma noite e quer que Santiago vá até sua fazenda e veja o que 
está acontecendo. Mais tarde percebo que ele está se referindo à feitiçaria. Pela manhã 
Santiago contou-me que mal conseguiu funcionar durante a noite, pois esbarrava no gado o 
tempo todo; era um bonito gado. Oh! Um belo gado de todas as cores, que mugia, o lambia 
e era muito gotdo. O Banco Mundial finandou um projeto de criação de gado, naquelas 
regiões da floresta pluvial desde o inicio da década de 70.
O genro de Santiago me conta que José Garcia deseja ser um xamã, que ele sabe 
muita coisa e que está passando por um período de má sorte.
Muitomais tarde ficou claro para mim que José Garcia estava aprendendo a ser 
um curandeiro como parte do fato de ele estar sendo curado de uma aflição 
profundamente perturbadora. Ao fazer isso, ele atravessava todo um ciclo de 
aflição, salvação e transformação, que parece tão eterno quanto a humanidade. 
No entanto o poder deste ciclo não se origina da eternidade, mas do ativo engaja­
mento com a história, do qual a aflição depende para sua cura. José Garcia não 
deve ser historicizado, pois o passado do qual sua aflição e sua cura dependem é 
uma ativa construção do passado, original para cada novo {»esente, e isto tam­
bém se aplica ao xamanismo
Os contrafortes dos Andes, na região do Putumayo, foram percorridos pela 
primeira vez por europeus, em 1541, á procura da cidade de El Dorado — O Rei 
Dourado. Os índios que habitavam a selva, na região do rio Mocoa (descritos 
pelos contemporâneos como canibais que lutaram ferozmente contra os espa­
nhóis, colocando-os em fuga), asseguraram a Hemán Pérez de Quesada e seus 
260 companheiros de conquista que a Terra Dourada situava-se ali perto, nas 
montanhas que se erguiam na direção oeste, em uma terra fabulosa chamada 
Achibichi, onde os espanhóis encontraram o vale do Sibundoy, mas não o ouro e,
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mais adiante, a-nova vila espanhola de Pasto. Após essa predadora expedição 
surgiram por lá alguns traficantes de escravos espanhóis e missionários francis- 
canos. Era um punhado de homens amargurados, que muito padeceram com o 
clima e com a hostilidade dos índios dos contrafortes dos Andes, que, segundo se 
dizia, rebelaram-se instigados por seus xamãs.
No entanto o cristianismo assumiu importância na cultura da conquista. A 
distinção entre índios cristãos e pagãos se tomou ideologicamente decisiva de­
vido á importância que ela assumiu, ao facilitar a legalidade da escravização e o 
emprego da força militar. Em seu manual de instrução para os missionários, pu­
blicado em 1668, o superior da missão franciscana estabelecida em Quito, bispo 
Pena Montenegro, forneceu um exemplo de racionalização cristã, tendo em vista 
o emprego da força contra os índios do Putumayo. A conquista por meio da força 
armada, escreveu ele, era justificada “para reduzir aqueles que, embora não 
sendo vassalos de alguém, injuriaram gravemente aqueles que o eram, a exemplo 
dos índios pagãos que, sendo vizinhos naquelas regiões de índios católicos, inva­
diam suas terras, suas vidas e fazendas, aprisionando as mulheres e as crianças, 
como ocorre comumente e como ocorreu este ano de 1663, nos contrafortes da 
montanha, em Mocoa".1 Outros relatos de franciscanos declaravam que índios 
cristianizados do vale do Sibundoy (provavelmente os “índios católicos" a que se 
refere o bispo) estavam sendo usados para escravizar pagãos (tais como os de 
Mocoa) nas terras baixas, a fim de trabalharem na mineração do ouro.
Com o cristianismo, ao que me parece, os missionários também introduzi­
ram a magia, como ela é denominada atualmente no Putumayo, em referência ao 
poder que deriva de um pacto com o demônio. Os missionários acreditavam 
firmemente na eficácia da feitiçaria e supunham que os índios eram especial­
mente dados a praticá-la, devido ao fato de terem sido seduzidos pelo demônio. 
O bispo Pena Montenegro afirmava que sendo tão brutos e ignorantes, os índios 
haviam sido conquistados pelo diabo, a ponto que ele se tomou unha e carne com 
os nativos. As características do demônio se tomaram um traço hereditário. Atra­
vés de seus ritos e superstições, os índios mantinham a memória da idolatria e da 
feitiçaria. Quando ficavam doentes e procuravam os xamãs, reforçavam a ambas. 
Além do mais o bispo se preocupava com a influência herética qué os índios exer­
ciam sobre os brancos, pois estes também procuravam os curandeiros índios.2
O bispo instruiu seus frades a tomar cuidado, ao tirarem os “instrumentos” 
dos feiticeiros índios e ao proibirem suas danças e seus cânticos, “pois neles os 
índios guardam a recordação da idolatria e da feitiçaria”. Tendo em vista essa finali­
dade, era necessário destruir “seus membros, cabeças de veado e penas, pois 
estes são os instrumentos do mal e trazem à baila a recordação do paganismo”.3
No entanto a memória de que se trata aqui não seria a dos espanhóis e não a 
dos índios? A ironia estava no fato de que ao se empenhar em apagar essas 
“recordações", a Igreja, na verdade, as criava e as fortalecia como uma nova força
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social e, em conseqüência, garantia a transmissão do mito para a realidade e a 
transmissão da memória para o futuro.
Expulsos das missões em 1767, os franciscanos deixaram o Putumayo, que 
se tomou um lugar ainda mais isolado, virtualmente livre de contatos com bran­
cos durante um século, com exceção de alguns comerciantes á procura de laca de 
bamiz (verniz) e de plantas medicinais para as pequenas cidades das serras. Se­
guindo-se ao boom da casca de quinino, nas décadas de 1860 e 1870, o da bor­
racha irrompeu nas terras baixas do Putumayo, bem no fim do século XIX, 
acarretando durante cerca de vinte anos aquilo que Walter Hardenburg descreveu 
como “O Paraíso do Demônio”, isto é, o espaço onde ocorreu a escravização e a 
morte, a uns 3S0 quilômetros ao sudoeste do lugar onde José Garcia se estabele­
ceu, meio século mais tarde. Foi concedido a capuchinhos da Espanha o controle 
quase total da Amazônia colombiana em 1900, e eles estabeleceram sua primeira e 
mais importante base nas toras altas do vale do Sibundoy. Suas escolas e clínicas 
foram bem-sucedidas, em contraposição ao fracasso dos franciscanos, e sua tenta­
tiva, um tanto falha, de colonizar a região através de camponeses brancos pobres foi 
grandemente impulsionada pela Texaco Oil Company, que construiu estradas no 
início da década de 50, pelas quais camponeses pobres, negros e brancos afluíram 
em grande número. Um desses brancos pobres era José Garcia.
Nascido em 1925 em Narino, localidade situada no altiplano andino, José 
Garcia desceu para os contrafortes da bacia do Putumayo em 1950, em compa­
nhia de sua mãe e de seu irmão, após a morte do pai. Haviam ouvido falar da 
beleza de Santa Marta, esperavam encontrar lá a riqueza e passaram anos árduos 
preparando a terra para a criação do gado. Contou-me que tomou yagé pela pri­
meira vez com um curador índio da região, chamado Andrés Hinchoa. Sua irmã 
ficara gravemente doente, após romper com o homem de quem estava noiva. Ela 
e José Garcia temiam que tivesse sido enfeitiçada, em um ato de vingança e, 
finalmente, procuraram Andrés Hinchoa para ver o qué ele poderia fazer. José 
Garcia relembra:
Andrés Hinchoa era meu compadre. Foi quem me ensinou a tomar yagé. Me deu a 
primeira pinta e passei por coisas que jamais tinha visto. Ele me disse: “Bom. Vou te dar 
um copo de yagé para que você tenha boa sorte e assim sempre se lembrará de mim. Mas 
você terá de ser corajoso, compadre\". Então ele me deu o primeiro copo e dai chegou a 
chuma (embriaguez e visões). Mas Ave Maria!... Eu estava morrendo. Vi um outro mnndo. 
Estava em uma outra vida. Vi-me num atalho estreito, comprido, que não terminava mais. E 
me sentia angustiado, sofrendo. Tinha ido embora por toda a eternidade. Estava naquele 
atalho, caminhava sem parar; e dal cheguei a uma planície imensa, bela como a savana. Os 
campos eram verdes. Lá estava um quadro de Nossa Senhora do Carmo, e eu disse para 
mim mesmo: “Agora vou até Nossa Senhora do Carmo“. Então vi uma ponte bem pequena, 
com um buraco no meio; não havia nada além daquela pontezinha, fina como um dedo, e 
pensei com meus botões: “Tenho medo de atravessar. Minha Virgem Santa, não me deixe 
cair! Não deixe que nada de mal me aconteça!“. Fiz o sinal-da-cruz e comecei a atravessar 
a ponte, mas comecei a cair. De repente fiquei assustado. Naquele momento invoquei a
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Santíssima Virgem do Carmo, pedindo que me ajudasse a passar. Daí chegueiaté perto dela 
e disse: “Vim para que todos os meus pecados sejam perdoados!". Forque eu estava morto, 
não é mesmo? E então ela disse: “Não vou perdoar nada!'. Então me pus a chorar com 
amargura, soluçava, procurava aquela salvação que a Virgem Santa me negava. Chorava 
sem parar e implorava que ela me salvasse. Daí ela me disse que eu estava perdoado, que 
eu estava salvo! Fiquei feliz e voltei pata este mundo. Estava sentado no mesmo lugar; com 
o rosto banhado de lígrimas.
Em seguida, pelo que deduzi — pois José Garcia se mostrou um tanto reti­
cente em seu relato —, ele se envolveu em um caso amoroso e conflitante. O fim 
do relacionamento se deu em um clima desagradável, até mesmo agressivo. Com 
efeito, as cicatrizes ou aquilo que ele considera como tal, estão presentes até o 
dia de hoje. A jovem e sua mãe, proprietárias da fazenda vizinha, nunca estão 
longe de seu pensamento, quando as coisas não vão bem.
Foi por tomar yagé, segundo me contou Santiago Mutumbajoy, que José 
Garcia pôde escolher entre três mulheres, e a eleita foi Rosário, com quem casou 
em 1962. Nascida em 1935, ela viera da região de Narino mais ou menos na 
mesma época que José Garcia e morava em uma fazenda das redondezas. Tinha 
16 anos quando o homem a quem amava e com quem desejava se casar moiTeu 
em um acidente com um caminhão. Ficou desolada, chorou e sonhou com ele 
durante meses.
Após oito anos de casamento saíram da floresta e foram morar na cidade- 
zinha de Mocoa, no sopé da montanha. Alugaram quartos da tia da jovem que 
fora a primeira noiva de José Garcia. Essa tia se tomou a madrinha da primeira 
filha do casal, mas tomou a vida impossível para eles, segundo me contou José 
Garcia, pois dizia que eles sentiam excessivo orgulho da beleza da criança e que 
ela morreria em breve. Assim o orgulho deles seria castigado.
Mudaram-se para o outro lado da estrada e passaram por uma fase difícil de 
doença e pobreza. À noite estranhos sons os assustavam, e Rosário foi assom­
brada por um espírito que, muitas vezes, sentava-se acima de seu ombro es­
querdo. Ele a seguia por toda a casa, sobretudo quando José Garcia não se 
encontrava presente, de acordo com o que ela me contou. Não ficou claro de 
quem era aquele espírito (em 1977 ela contou-me que era um rapaz com aparên­
cia de gringo, alto, bonito e que a desejava profundamente). Seu lado direito 
tomou-se pesado e sem reflexos. Em seguida ficou parcialmente paralisado. Em 
um ato de desespero José Garcia procurou um curandeiro poderoso.
Fui tomar yagé em um lugar, em seguida em outro e depois em mais outro e nada! 
Não vi nada! Fui até o xamã Flavio Pena. Ele sabia! Ele sabia como curar! Mas nem 
mesmo ele conseguiu fazer alguma coisa! “Não!**, disse ele, "isto é realmente difícil”. Ele 
cuidou bem de mim. Preparou um bom yagé, curou-me como deve ser feito, mas nada! Não 
tive visões. O yagé era como uma garapa. Nada! Nada!
Fomos procurar outro xamã em Umbría. "Isto é um maleficio com magia"', disse ele. 
“Não é qualquer um que pode curar isso. O maleficio a gente pode curar; mas a magia, não."
Quando Andrés Hinchoa morreu, todas as minhas visões acabaram. Algo terrível tinha 
acontecido comigo. Procurei seis xamãs, mas com nenhum deles obtive sucesso.
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Então um amigo perguntou se eu já tinha ouvido falar de Santiago Mutumbajoy. “Vá 
lá", disse-me ele. “É uma boa pessoa e alguém que sabe, de verdade, como tomar yagé." 
Assim, cato dia, visitei-o e levei-lhe alguns presentes. Ele se mostrou muito atencioso e, após 
conversar um pouco, disse-me: "Don José, de acordo com o que me disse, quer tomai yagé a 
fim de ver; mas não posso prometer nada! Se Deus e a Virgem me ajudarem, então, sim, 
poderei ajudá-lo. Venha, mas somente sob essa condição".
O dia marcado chegou c tomamos yagé. Sim! Era aquilo que eu queria! Sim! Surgiu 
uma clara visão de minha casa e eu estava vendo tudo, exatamente como na época em que 
Andrés Hinchoa me dava yagé. Bebemos yagé a noite inteira. Sets copos! Finalmente ele 
disse: "Gosto, gosto de fato deste José García. Ele foi feito para tomar yagé. É uma boa 
pessoa. Você vai ficar rico". Eu estava em um estado de estupor, deitado no chão, mas 
ouvia o que ele dizia. Não perguntei a ele como, nem por quê, mas fiquei cheio de con­
fiança em suas palavras. No dia seguinte, porém, as dúvidas assaltaram minha mente. Fal­
tava-me fé!
À luz do dia Santiago lhe disse que uma outra pessoa teria de curá-lo. Tratava-se 
de um maleficio terrivelmente difícil, feito com magia, e ele não queria ficar com 
o dinheiro de José García em troco de nada.
Mais tarde a esposa de José García, Rosario, explicou-me: “Existem índios 
que fazem feitiçaria. Don Santiago não faz. Essa feitiçaria que se faz entre os 
índios... bem, os índios não conseguem curar, por causa da magia, somente a 
pessoa que trabalha com a magia... Os índios não conhecem a magia. Não conse­
guem curá-la. As pessoas que conhecem são os compactados, aqueles que estu­
daram o livro da magia e que fizeram um pacto com Satanás. São eles que conhecem 
a magiaV.
“Tudo aquilo que os índios conhecem", prosseguiu, “é o yagé e as plantas 
com as quais eles curam e praticam sua própria feitiçaria. As feiticeiras coloca­
ram capachos — que é como elas chamam isso. É muito especial. Uma pessoa 
branca faz cruzes com terra do cemitério, tirada de um túmulo. O que mais pode 
existir?”.
José García continuou a procurar um curandeiro suficientemente poderoso 
para combater a magia. Consultou um velho conhecido, Luis Alegria, um mé­
dium espírita mulato que curava com os espíritos dos santos e dos mortos e que, 
anteriormente, lhe havia dado conselhos relativos a seu irmão doente, Antonio, 
hoje um médium espírita de sucesso, segundo me contaram, que mora no vale do 
Sibundoy. Antonio começou sua carreira como aprendiz de um xamã índio, e 
José García me contou a história de seu irmão:
Antonio era um yagecero, sabia como servir o yagé. Tinha muitos conhecimentos 
sobre o yagé, mas foi enganado pelo amigo que o estava ensinando a curar. Foi danado 
(enfeitiçado) por seu mestre, um velho xamã índio que vivia em Sibundoy. Bem, lá estava 
ele, e tudo o que conseguia dizer era que o yagé era terrível. Ele estava em um estado 
medonho, lutava o tempo todo, dizia que o yagé era tremendamente perigoso. Era só o que 
ele dizia. Mais tarde iniciou-se como médium espirita, com um homem de Sibundoy cha­
mado Don Pedro. Este, porém, viu que ele estava fazendo progressos tremendos com o 
espiritismo e também enfeitiçou Antonio. Ele ficava virando de um lado para outro na
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cama, à noite, sem conseguir dormit, lutando contra Satanis, contra os espíritos. Eles o 
emboscavam na floresta com suas armadilhas.
Mal falei sobre isto com Luis Alegria e ele me disse: ’‘Ouça! A magia é muito boa. 
Por exemplo, a magia encerra um segredo que diz respeito à flor do alhecho. Ouça! Com 
essa flor você consegue curar o que quer que seja! Qualquer coisa! Pode curar qualquer 
pessoa, atrair a boa sorte e tudo o mais. Sim! É uma maravilha'*. Foi o que ele disse.
’Compre a magia", dissem-me ele, "e na página tal procure o segredo. Com isto 
podemos fazer o segredo, de modo a enfeitiçar o feiticeiro com a mesma magia que ele usou!”.
Luis Alegria começou seu trabalho, visando a cura de José Garcia, mas 
pediu um alto preço. Desconfiado, José Garcia voltou a procurar Santiago Mu- 
tumbajoy para tomar yagé e adivinhar se Luis Alegria o estaria ou não trapaceando. 
Teve uma visão que lhe mostrou que era exatamente o que estava acontecendo e, ao 
voltar para casa, enfrentou Luis Alegria. “Você está nos enganando; ninguém 
nunca mais vai acreditar em você.”
“Isto é uma história mal contada, compadre", ele disse. “Vá lá em casa que 
eu te curarei de verdade." José Garcia disse-lhe que estava esperando uma mu­
lher branca que adivinhava por meio de um baralho. Seu nome era Lydia. “Muitobem", disse ele, “traga ela também Ela examina para ver o que está acontecendo 
e eu me encarrego da cura!”.
Foi assim que as coisas se passaram. Lydia examinou primeiramente Luis 
Alegria e, em seguida, José Garcia. “Ai!”, exclamou, “Ave Maria, você foi mesmo 
atingido. É de fato um bobo! Já que quer se afogar, por que não pula no rio? 
Amanhã irei até sua casa e providenciarei uma cura".
“Mas Luis Alegria ouvia e implorou que ficássemos e comêssemos com ele. 
Recusei, mas Lydia comeu e ficou doente. Estava querendo prejudicar a ela 
também.”
Lydia organizou a cura deles. Levou a família para os Andes, até a cidade 
de Pasto. Primeiro foram ao hospital, para um exame detalhado e, em seguida, à 
casa de um médium espírita. A casa, porém, estava fechada e procuraram outra, o 
próspero centro de “irmã" Carmela, uma mulher branca que adivinhava e curava 
invocando o espírito de José Gregorio Hemández, atualmente um santo popular 
muito prestigiado na Venezuela e na Colômbia. José Gregorio morreu em Cara­
cas em 1919, onde, segundo me disseram, foi o introdutor do microscópio. 
Grande cirurgião, era extremamente piedoso e benevolente. Foi morto por um 
carro, quando atravessava a rua ás pressas, a fim de ir buscar remédios para um 
paciente pobre. Retratos seus, pequenos ícones como aquele que aqui se mostra, 
são facilmente encontrados em diferentes formatos na Colômbia e na Venezuela. 
Não há a menor dúvida que José Gregorio inseriu o mito e a lenda na era mo­
derna, ainda que essa lenda se transformasse em algo profundamente burguês. 
Nas estampas o vemos todo pomposo, vestido de temo, colete, engravatado, com 
uma ponta de um lenço branco saindo do bolso. Ele se apresenta sereno, con­
fiante e, lá no fundo, as montanhas se alteiam até o céu coberto de nuvens, acima
150
f
dos torreões e de uma planície relvosa na qual, extraída do mais puro surrea­
lismo, uma figura de avental cirúrgico, com máscara e touca, debruça-se sobre 
uma figura seminua, que definha inconsciente, deitada em um feixe de palha, a 
qual também serve como mesa de operação. “O servo de Deus”, reza a legenda.
Colocando as mãos sobre o paciente, em seu quarto na cidade de Pasto, situada 
em uma planície relvosa, entre altas montanhas, Irmã Carmela invoca o espírito de 
José Gregorio e começa a tremer. Seu espírito a está possuindo. A voz dela toma- 
se áspera e masculina, enquanto ela se refere aos órgãos doentes e ao tratamento 
necessário, que, com freqüência, inclui cirurgias profundas, praticadas espiritual­
mente. “Ela é grande amiga do bispo de Pasto”, contou-me José Garcia. “Ele vai 
ao centro espírita dela para rezar a missa.” A irmã Carmela chega a atender 150 
pacientes por dia.
“Quando eu estava lá, ás cinco da manhã", informou-me José Garcia, “todos 
nos encontrávamos na cama, acordados, mas com os olhos fechados. Então vi 
claro como o dia, perto da margem do rio, um padre com um grosso livro, que 
fazia um exorcismo. Eu tinha a impressão de estar vendo minha fazenda em Santa 
Marta. Sim, eu via tudo. Via meu gado sendo exorcizado com aquele livro grosso, 
que tinha vinte centímetros de espessura”.
O padre era o espírito de Francisco Montebello, um santo popular mulato, 
segundo me disse José Garcia. Ele começou a rezar. “Nós nos encontrávamos 
numa situação terrível. Alguém fizera um malefício contra nós. As crianças esta­
vam muito, muito doentes, e minha mulher também Tudo o que tínhamos eram 
nossos méritos e nada mais."
Isso se passou em 1973. Naquela ocasião o Banco Mundial iniciou seu projeto 
de criação de gado. José Garcia adquiriu sua primeira fazenda por uma quantia 
equivalente a mais ou menos 2 mil dólares; em 1975 comprou a segunda, por idêntica 
quantia e, em 1978, mais outra. Por voltà de 1979 possuía uns noventa hectares e 
pouco mais de cem cabeças de gado. Além das crianças nascidas em 1965 e 1971, 
havia mais duas, nascidas em 1973 e 1977.
Rosário foi informada por um xamã índio que estava padecendo de mal 
aires, isto é, ataque de um espírito, e tomou yagé três vezes. O espírito parou de 
assombrá-la, a paralisia parecia curada e, em suas visões, ela enxergou uma tre­
menda confusão de pessoas desconhecidas, uma igreja e a Virgem. Contou-nos 
que a única pessoa a quem reconheceu foi uma sobrinha, que estava se casando. 
Durante todos aqueles anos José Garcia continuou a tomar yagé com Santiago 
toda semana, ou a cada duas semanas, e de vez em quando também visitava a 
irmã Carmela na cidade de Pasto. Em 1977 ele convenceu a irmã Carmela a 
descer das montanhas e curar sua família. Em seguida levou-a para tomar yagé 
com Santiago, que não se sentia bem. Ela dirigiu ritos de cura na casa de San­
tiago e este ficou impressionado com o fervor com que ela orava. Disse-me,
151
porém, que não entendia nada de espíritos e de médiuns espíritas e ficou, senão 
em estado de dúvida, pelo menos de perplexidade.
Foi assim que José Garcia prosperou. Seus filhos desabrocharam, Rosário es­
tava bem e ele desenvolvia com assiduidade seus poderes curativos.
Atraía pacientes e para alguns deles atuava como intermediário, enviando- 
os a Santiago ou a irmã Catmela. Suas técnicas de cura e os mistérios em que 
elas se baseavam representavam, segundo me parece, não tanto o sincretismo ou 
a unificação presentes nas curas de Santiago e de Carmela, quanto o fato de que 
nenhum desses dois curadores existiam isolados um do outro. Cada um deles 
pressupunha o outro, e figuras como José Garcia tomavam manifesto esse pres­
suposto.
Suas concepções relativas àquilo que acarretava o infortúnio ou quaisquer 
que sejam os nomes que se queira dar a semelhantes coisas pareciam, ao que me 
consta, com as concepções dos xamãs índios a quem conheci. Uma grave aflição 
era provavelmente o resultado de uma substância de feitiçaria que penetrava no 
corpo ou então a obra de espíritos caprichosos — dos mortos ou da natureza — 
que, na aparência, agiam independentemente da malícia humana. Talvez José 
Garcia se diferenciasse de modo muito significativo dos xamãs índios na medida 
em que ele atribuía um peso maior aos espíritos dos mortos. Em todo caso, à 
semelhança dos xamãs, o objetivo de seu ritual era o exorcismo após a adivinha­
ção, atingido através de um estado alucinatório ou parecido com ele. José Garcia 
usava um leque de cura igual ao dos xamãs, e seus cânticos também se asseme­
lhavam até certo ponto. A fase de abertura, de grande importância aliás, ocorria 
quando ele consagrava seus remcdios, invocando o poder de transformar o mal 
em um poder dispensador de vida. É aqui que percebemos mais claramente o 
caráter das oposições que ele encarnava e que lhe davam poder, sobretudo 
quando tomava yagé com Santiago.
Depois de Santiago cantar para o yagé e servi-lo, José Garcia começava a 
cantar baixinho. Chamando Deus e a Virgem, ele invocava os espíritos dos san­
tos populares católicos, bem como os dos xamãs índios mortos que o haviam 
ajudado em sua busca anterior da cura. No que se referia a Andrés Hinchoa, o 
xamã índio que lhe deu yagé pela primeira vez e morrera, ele dizia o seguinte: 
“O espírito dele está entrando no centro espírita dirigido pela irmã Carmela. 
Agora ele está fazendo curas perfeitas. Está entrando no centro espírita dela. 
Tomás Becerra (outro xamã índio morto) também vem entrando no centro. A 
mesma coisa acontece com Salvador, de Umbría. Todos estão com a irmã Car­
mela e lá se concentram Falam línguas indígenas”. Ao entrarem no centro espí­
rita da irmã Carmela eles se purificam... a exemplo do que acontece com ele, 
iluminado pela luz das velas, na casa de Santiago, junto á floresta. José Garcia 
começa a ver coisas — como a irmã Carmela, na cidade de Pasto, está concen­
trando o poder dos espíritos dos xamãs índios, articulando-os com os espíritos de 
santos populares católicos, tais como o de José Gregorio, o cirurgião venezuelano
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morto,unindo todos eles com a Virgem de Lajas. Evocando esse panteão, articu­
lando o índio com o branco, a floresta com a cidade, o xamã índio com a médium 
espírita branca, José Garcia punha-se então a cantar o Magnificat, purificando e 
fortalecendo o yagé que o purificará e o fortalecerá.
Graças a isso ele podia enxergar o interior dos corpos e as intenções secre­
tas dos outros. Exatamente como um xamã índio, quando tomava yagé José Gar­
cia tomava-se delicado e aberto aos ataques. Ao beber o yagé e penetrar em seu 
mundo ele precisava ser capaz de se defender. Ele fez essa descrição, ao explicar 
como combinava o yagé com aquilo que Caimela lhe ensinara.
O yagé me dá o poder de trabalhar, não é? Vou lhe contar uma história. Certa vez que 
tomei yagé vi uma vizinha de nossa fazenda nova tentando subir em uma árvore muito fina, 
mas sem conseguir (essa mulher era mãe da jovem com quem ele rompeu o noivado no 
inicio de 1960). "Pobre mulher... pobre mulhei; ela não consegue subir", disse eu a mim 
mesmo, mas sem conseguir entender o que aquilo significava. "Essa árvore í muito fina, 
ela nãò vai poder subir", eu disse. "Pobre velha." Aquilo fazia parte da visão do yagé, não é 
mesmo?
Depois disso tomei yagé uma outra noite. Era muito forte. Eu estava com o amigo 
Santiago. A chuma (embriaguez) do yagé pegou para valer. Foi muito bonito, eu estava 
atuando de fato quando voltei a ver aquela velha. Eu estava de costas para ela. A velha se 
aproximou e derramou um pouco de água nas minhas costas. Era uma água muito limpa. 
Uma chuma terrivelmente forte se apoderou de mim. Virgen Sanlísima! Senti que estava 
morrendo... que exaustão, que tenor! Era uma coisa tão forte que eu não tinha a menor 
idéia do que fazer
Então, como eu tinha meus próprias remédios, disse a mim mesmo: "Conheço essa 
mulher, ela está atrás de mim e eu sei quem ela é". Eu estava na minha fazenda. Sabia quem 
estava praticando o mal contra mim. Nesse momento peguei uma garrafa de álcool, meus 
remédios e me massageei com eles. Acendi incenso e seu cheiro me fez tossir. Esconjurei, 
em nome do Senhor. E assim que a gente cura.
Dai pedi ao amigo Santiago um galho de urtiga e comecei a bater ele em todo meu 
corpo com muita força. A chuma foi embora, sabe? Em outras palavras, o mal se dissipou.
E foi uma linda pinta (visão) que me curou, ouviu? Naquela noite vi que eles esta­
vam fazendo mal para mim. Tentaram matar todo meu gado. Vi a velha que fez mal para 
mim, com a intenção de que um dia todos nós morreríamos. Pedi a Deus e à Virgen Santi- 
sima que me ajudassem, me concentrei e comecei a me curar. Ganhei força, mas não conse­
gui entrar na casa dela para poder curar minha fazenda.
Rezei e rezei até ter a capacidade de me concentrar na casa dela. Então tive condição 
de limpar todas aquelas coisas más que ela jogou no meu gado. Ela tinha poder e conhecia 
aquilo tudo. Bem, Deus me assistiu e eu fiz a cura bem lá na casa de Santiago. Foi uma cura 
espiritual. Peguei todas as coisas más, entrei na casa dela, voltei e tornei a fazer. Assim, ao 
curar, vi que não estava enfeitiçando ela; não prejudiquei ninguém, apenas me certifiquei de 
que não tinha ficado nenhum feitiço para trás, que tudo estava de volta para ela e que ficaria 
por lá, deixando ela ás voltas com aquilo.
Ao voltar para casa ele contou a Rosário o que havia acontecido. “Conhece 
aquela mulher?”, perguntou. “Sim”, respondeu Rosário, “conheço, sim Ela sabe 
como fazer o mal!”. Rosário, porém, mostrou-se cética, e José Garcia disse-lhe 
que iria procurar Lydia, aquela mulher que adivinhava por meio do baralho. Esta 
confirmou tudo o que ele havia visto na companhia do índio.
153
Daí a algunS dias, segundo ele me contou, Rosário ficou assustada com a 
braveza do gado, o que dificultava a ordenha. José Garcia disse que o iria curar. 
Ao chegar ao pasto deparou com sinais de feitiçaria. Aturdido, começou a traba­
lhar imediatamente com seus remédios e o incenso. À tarde apressou-se em ir até a 
casa de Santiago, mas a preocupação era tanta que se esqueceu dc levar os pró­
prios remédios. Naquela noite tomaram yagé.
Quando a chuma chegou — que chumal Virgen Santísimal Pensei que estava mor­
rendo! Que exaustão. Eu vomitava sem parar e não podia fazer nada. Senti-me dominado 
pelas substâncias da feitiçaria. Não conseguia fazer nada, estava a ponto de morrer. Então 
pedi ao amigo Santiago: ‘Tem incenso? Pelo amor de Deus, me dê um pouco'*. Ele, porém, 
disse que não tinha nem sequer um grão. Dal tive a sensação de que eu ia engasgar até 
morrer. Estava sem meus remédios; era o fim. Trabalhei sem parar na chuma do yagé, mas 
sem resultado. Eu tinha perdido todo meu poder para a feitiçaria.
Pedi um pouco de ortiga a Santiago. “Pegue o quanto você quiser“, disse ele. Agarrei 
um belo galho, assoprei nele e o curei. Curei a ortiga para valer... Então purifiquei, me 
curei. Cantava sem parar, me limpava, rezava e batia a ortiga em meu corpo, mas com 
força, com muita força!
Daí tudo começou a clarear. As coisas estavam indo embora. Mais uma vez as visões 
mais feias se afastavam, a força da feitiçaria me deixava. E vi minha fazenda mais bonita 
do que nunca.
Fui envolvido por uma linda visão. Olhei para mim mesmo e vi a feidçaria em três 
lugares. Aquilo era uma força, uma força para me esmagar, para me obrigar a abandonar a 
esperança de que não valia a pena cuidar de minha fazenda e que seria melhor desistir dela. 
Era disso que se tratava, mas consegui me curar. Deus me ajudou. A velha não conseguiu 
me atingir. Ela é uma feiticeira. Em breve vai querer me matat; mas não conseguirá.
Daí a mais ou menos um ano, em 1978, Santiago ficou doente. Perdeu a 
visão de um olho, enquanto pescava á noite, e começou a sentir tonturas. Não 
conseguia ficar de pé sem vomitar. Suas pernas incharam A morte parecia imi­
nente. Ficava sozinho, entoando canções de cura, baixinho, mas, quando tomava 
yagé, ou não via nada ou tinha visões de milhares de espinhos de ouriços, muito 
eriçados, como acontece quando o animal está se defendendo. Eles entravam em 
sua boca, engasgando-o, e em seus olhos, cegando-o.
E isso sob a influência do yagé! Que exaustão isso provoca! E as cobras, rãs, lagar­
tos, jacarés... dentro de meu corpo... E ninguém conseguia tirá-los de lá! Quando eu tomava 
yagé era só o que eu via. Só isso.
Mas quando a gente não está doente vê coisas lindas; pássaros de todas as cores, tão 
belas como quando a gente vê um bonito tecido e diz: “Oh! gosto deste tecido. Tem cores 
maravilhosas!“. Então uma pessoa está vendo de verdade e dificilmente sente que está bêbado.
A casa dele estava repleta de gente, sobretudo de índios, que bebiam cerveja 
de milho e de mandioca e, de vez em quando, se entregavam a especulações: quem 
o enfeitiçara e por quê? Seria um outro xamã que usava yagé e apenas yagé? Ou 
seria uma feitiçaria que incluía a magia e, portanto, passível de estar acima dos 
poderes do yagé?
154
José Garcia subiu a montanha até Pasto, a fim de consultar-se com a irmã 
Carmela, e levou uma vela que havia sacudido por cima do corpo de Santiago. 
Ela confirmou as suspeitas que circulavam na região onde ele morava: Esteban, 
um índio Ingano da serra, xamã originário do vale do Sibundoy, enfeitiçara San­
tiago, usando ao mesmo tempo a magia e o yagé.
A inimizade existente entre Santiago e Esteban pareceu-me enfocar e am­
pliar muitas das tensões provocadas pela expansão da economia nacional na re­
gião das fronteiras, operando em uma esfera pouco habitual, isto é, a transformação 
do poder mágico e da aura mágica da “indianidade” em mercadoria. Durante 
muitos anos xamãs índios da serra, originários do vale do Sibundoy, índioã In- 
gano tais como Esteban, ganharam a vida percorrendo as pequenas cidades e 
aldeias da Colômbia, onde vendiam aos brancos e negros ervas medicinais, amu­
letos, estampas de santos católicos, livros deencantamentos mágicos e seus ser­
viços de curadores populares. Hoje os índios xamãs do vale do Sibundoy chegam 
até mesmo a Venezuela, onde o dinheiro é mais abundante do que na Colômbia, e 
alguns deles, segundo os padrões dos camponeses locais, se tomaram ricos. Ro­
sário os comparou com os índios das regiões dos contrafortes e das planícies, os 
quais, disse ela, ignoram a magia e conhecem unicamente suas plantas medici­
nais, seu yagé e seus próprios tipos de feitiçaria.
“Mas os índios da serra”, disse ela, referindo-se a curandeiros como Este­
ban, do vale do Sibundoy, “conhecem outro sistema, que dá mais dinheiro para 
outra pessoa, sabe? Eles atravessam a fronteira que separa as nações e vão de um 
lugar a outro, com seus frutos, suas castanhas e outras coisas, dizendo que sabem 
curar, quando na verdade são uns charlatães. São astuciosos como ninguém! Gra­
ças a isto conseguem juntar um bom dinheiro. Vão até a Venezuela, ao Peru... O 
sistema deles é diferente porque conseguem o dinheiro com mais facilidade e 
porque a cura deles é uma mentira e não passa de um jeito de enriquecerem fazendo 
sujeiras!".
“E os índios da planície não fazem isso?", perguntei.
“Ah! Não! Não! O povo daqui? Não! Não! Essa gente de que eu falo é 
chegada a viajar. Gostam de uma viagem São tão espertos! Vão por aí, dizendo 
que sabem curar. E não curam nada! A única coisa que fazem é mistificar e 
enfeitiçar!”
É provável que os índios Ingano do vale do Sibundoy tenham sido curan­
deiros itinerantes há vários séculos. Frank Salomon descreveu um julgamento, 
levado a efeito por funcionários espanhóis em 1727, que envolvia um índio da 
serra, originário de uma aldeia situada nas vizinhanças de Pasto, acusado de enfeiti­
çar seis parentes e um funcionário espanhol. As testemunhas atribuíram a sobre­
vivência deles a um curandeiro de Sibundoy, que recorreu a uma planta que 
provocava visões, provavelmente o yagé* Ao desempenhar semelhante papel, é 
provável que os curandeiros do Sibundoy agissem como mediadores de um sis-
155
tema pan-andino de cura e de crença mágicas, que atribuía aos índios da selva, 
habitantes dos contrafortes e das planícies, poderes xamânicos especiais. Era possí­
vel recorrer a eles por intermédio dos moradores da serra ou através da mediação 
dos índios que moravam entre a serra e a planície, tais como os Sibundoy.
Hoje, em todos os lugares por onde passam e obtêm clientes, é sua imagem 
mítica de índios na posse de poderes ocultos que lhes garante o sucesso. No entanto, 
nem todos os índios da Colômbia fazem o mesmo que os curandeiros do Sibun­
doy. Eles possuem confiança e um orgulho enorme, pois estão fora do alcance de 
contra-ataques mágicos, graças a sua habilidade e ao conhecimento do yagé e das 
visões que este provoca ou — o que é mais provável — porque simplesmente 
insinuam que as coisas se passam assim. Para isso apóiam-se na existência dos 
xamãs da região dos contrafortes ou da planície, não apenas no que se refere ao 
yagé, que cresce apenas abaixo do vale, mas no poder supostamente superior dos 
xamãs, os quais em outras circunstâncias estão abaixo deles, no sentido literal e 
figurado. As sementes da discórdia entre xamãs como Esteban, no vale do Sibun­
doy, e Santiago, que habita mais abaixo, nos contrafortes, são plantadas neste 
solo de contradições peculiares, mas muito firmes, as quais provavelmente ad­
quirem intensidade na medida em que oportunidades de um mercado cada vez 
mais amplo favorecem a capacidade dos xamãs do Sibundoy de ganharem mais 
dinheiro e fama do que os da planície. Por ocasião de suas jornadas de cura, os 
raizeiros e xamãs do Sibundoy se deparam com um amplo espectro de técnicas de 
cura e de fantasias demonológicas ocultas nas ansiedades de um povo mais dire­
tamente integrado á sociedade nacional do que eles. Tomam-se mais cosmopoli­
tas do que os xamãs da planície, isolados em um bolsão muito remoto da nação; 
aperfeiçoam tanto o discurso da magia, baseada em um pacto com Satanás, 
quanto o uso de sua imagem como indios misticamente revestidos de poder.
Prisioneiros de sua imagem de pagãos que têm laços inerentes ao oculto, 
eles ganham a vida a partir dessa imagem, assegurando sua vitalidade na imagi­
nação popular da nação e para além dela. No entanto, para se apropriarem e se 
aproveitarem amplamente dessa imagem, os xamãs itinerantes do Sibundoy, tais 
como Esteban, não apenas necessitam do yagé — e, talvez, dos serviços rituais
— dos xamãs da planície, tais como Santiago; necessitam também dos xamãs da 
planície como objetos míticos, a fim de realizar aquela mitologia, colonialmente 
inspirada, que confere o poder pagão.
Nem é preciso dizer que os xamãs da planície não se sentem satisfeitos com 
isso. De modo geral desconfiam dos xamãs da serra e até mesmo os desprezam. 
Consideram-nos trapaceiros e inferiores, excetuando sua capacidade de praticar o 
mal por meio da magia e de capachos, isto é, pacotes de feitiçaria. Tudo isto 
culmina com a questão do fornecimento do yagé aos xamãs da serra, ao que se 
sabe cada vez mais escasso. Os habitantes da planície, tal como Santiago, relu­
tam em vender-lhes yagé, e ele se mostrou inflexível diante das solicitações de 
Esteban. Os moradores da planície com quem conversei receiam que, com o
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yagé, a gente da serra poderá misturá-lo com a magia e os dominará. Graças a 
isso, entre outras coisas, terá um suprimento garantido de yagé. Por outro lado, 
recusar seu pedido poderá resultar em morte pela magia daquela mesma gente. 
É, segundo se imagina, a triste sorte que se abateu sobre Santiago.
À medida que a saúde de Santiago se deteriorava até alcançar a iminência 
da morte, José Garcia envolveu-se como nunca. Até então fora um paciente e 
uma espécie de discípulo, que lutava o tempo todo para livTar-se da feitiçaria. 
Agora ele era convocado para curar seu mentor.
Certa tarde fui até a casa dele. Estava terrivelmente bêbado e sua mulher implorou- 
me que o curasse. Contou que ele estava muito mau humorado em relação a ela e a todo 
mundo. Ficamos lá sentados, conversando, bebendo e, quando caiu a noite, Santiago disse 
que todos nós tomaríamos yagé — ele, seu sobrinho, seu genro e eu. “Ótimo, estamos todos 
aqui”, observou.
Ele serviu o yagé, cantou para ele e deu a cada pessoa um copo cheio, mas esqueceu- 
se de mim. Então lembrou-se e me serviu o copo mais cheio que eu já tomara até então. 
“Ah!“, eu disse, “em nome da Santa Virgem isso há de fazer alguma coisa“. Consagrei o 
yagé, invoquei Deus e os espíritos dos xamãs índios, Tomás Becerra e Andrés Hinchoa, para 
que viessem me ajudar, para que curassem aquele yagé, em nome de Tomás Becerra, e assim 
por diante, pois eram dos melhores bebedores de yagé. Enlão Santiago disse; “Mas quem vai 
cantar? Ninguém? Bom, cante o senhor, Don José! Não vive cantando só pata o senhor, 
debaixo desse poncho? Durante o tempo todo em que tomou yagé aqui ficou cantando e 
curando, escondido debaixo de seu poncho, não é mesmo? Pois então agora se mostre, para 
vermos se sabe de fato ou não!“.
"Muito bem, senor”, respondi, “é o que faremos". Naquele mesmo instante ele caiu 
no chão, como se estivesse morto. Nós nos levantamos is pressas e deitamos ele em sua 
rede, mas ele ficou como se estivesse morto. Apenas suas mãos se mexiam. Estava mudo, 
só falava com as mãos. Os outros acharam que ele ia morrer. Seu genro me implorou para 
que eu tentasse curá-lo. Então o yagé estava me pegando. Peguei um leque de cura c come­
cei a curar. A chuma estava chegando em mim. Era lindo e eu comecei a ver em que estado 
a casa se encontrava. Era um cemitério e estava tendo um enterro. O que estava aconte­
cendo era uma total aniquilação. Muito bem! Ocupei-me com meus remédios, a chuma 
pegou todo mundo e foi terrível! O genro dele chorava. "Don José, por favor, por favor, 
venha me curar porque eu estou morrendo!" Dcbrucci-me sobreele e exorcizei, limpando, 
varrendo, chupando. Foi a mesma coisa com o sobrinho dele. Foi terrível. Eu ia de um para 
outro e voltava. Eles logo melhoraram e eu fui atender o amigo Santiago. Trabalhei com ele 
até as três da madrugada e enlão ele começou a reviver, a falar de novo. "Sim, ha, ha, ha!" 
Ele assoviava e gritava. “Nós não somos qualquer um, Don José”, ele dizia. “Nós sabemos, 
não é mesmo, Don José?” Daí então voltava a ficar inconsciente. “Nós sabemos. Eles não 
podem nos pegar! Não é mesmo, Don José?“ Ele também viu o cemitério inteiro. "Ave 
Maria", disse, “os mortos estão apodrecendo em todos os lugares". Outros agonizavam, a 
ponto de morrer. A casa inteira era uma sepultura. Ave Maria!
Continuamos a tomar yagé. Finalmente ele disse: "Muito bem. Voltem na terça-feira. 
Se eles vão nos matar; então eles também morrerão!”.
Na terça-feira voltamos a tomar yagé e ele começava a cantar quando, de repente, 
declarou que tinha uma doença bem no fundo dele e que ia pata a outra sala, para ver se podia 
curá-la! Levou o leque de cura e podíamos ouvir ele cantando. De repente a vela se apagou 
e ficou tudo na mais completa escuridão. Figuei lá, nervoso, assustado, certo de que estava 
para morrer. O amigo Santiago calou-se. Parou de cantar. Curei-me com meus remédios, 
que passei por todo o meu corpo, assoprando incenso. Acabei melhorando daí a mais ou 
menos uma hora. Quando minha força voltou comecci a cantar e curar os outros. Cantava e
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curava, cantava e curava. "Ah, Don José", disse Santiago, “parece que eles estão querendo 
nos matai; não? Mas eles não vão conseguir! Portanto, vamos tomar mais um pouco e daí 
veremos se eles têm poder para isso! Tome mais yag/1".
Tomamos mais um copo e quando a chuma chegou ele voltou a cair no chão. Dessa 
vez durou uma hora e meia. Ele levantou, começou a cantar e disse: “Na sexta-feira tomare­
mos mais um pouco”. Na sexta-feira voltei à casa dele e a chuma foi boa. Pui até Pasto e 
trouxe de lá água-benta e incenso. Curei o gado, fui uma segunda vez a Pasto, e a irmã 
Carme la me deu remédios para eu levar a Santiago. As coisas ficaram assim.
A doença de Santiago cedeu muito pouco até que, decorrido um mês, o 
mais apreciado xamã da região dos contrafortes do Putumayo veio e o curou. Era 
Salvador, filho de uma índia Cofán e de um branco, um cauchero (pequeno co­
merciante de borracha) da região serrana de Narino, que deixara o meninozinho 
com os índios. Há muito esperávamos que Salvador aparecesse. Sua jornada foi 
muito demorada e ele precisava colher rapidamente o arroz, devido à época das 
chuvas que se aproximava. Foi a notícia que chegou até nós, enquanto esperáva­
mos um dia após outro. Santiago, enquanto isso, cantarolava para si mesmo sua 
canção de cura, e o restante das pessoas bebia a maior parte do tempo. O motivo 
verdadeiro pelo qual Salvador não aparecia, de acordo com Santiago, era o fato 
de que sua mulher estava receosa. Preocupava-se com sua voz e sua saúde deli­
cadas, com todos aqueles índios Ingano que viviam nas proximidades de Mocoa 
e se embebedavam sem parar, como sempre fazem, ao passo que os Cofán mal 
bebem chicha. “Ela sabe que se ele vier aqui vai beber e então ficará doente. É 
esse o problema", suspirou Santiago. Ele finalmente apareceu, acompanhado de 
sua mulher e da mãe dela, a mama sefiora, viúva de um xamã Siona. A mama 
senora é muito velha, toma yagé sem que nada lhe aconteça e canta lindamente, 
disse-me Santiago. É ela e unicamente ela quem prepara uma chicha muito espe­
cial, feita de abacaxi, milho e mandioca, que Salvador oferece aos animais, os 
quais, por intermédio de suas cantigas de yagé, atrai para os caçadores. Mais 
tarde me contaram que vieram muitas outras pessoas para a cura com yagé, que 
durou três noites, e a maior parte delas tomava a bebida. A mama senora também 
cantou; mi novia (minha noiva), eis como Santiago se referia a ela, com uma 
risada zombeteira. Dom Apolinar também cantou. Era um velho xamã Core- 
guaje, sogro de uma das filhas de Santiago, e viera da província de Caquetá. Era 
uma viagem árdua e até mesmo perigosa, devido às ações que o Exército colom­
biano desencadeava lá contra as guerrilhas.
Santiago melhorou consideravelmente, a não ser por seu olho. Porém não 
ficou claro o que acontecera de fato com ele ou o que Salvador dissera sobre a 
causa de sua doença. Seria yagé misturado com magia, segundo dissera a irmã 
Carmela e José Garcia repetira? Seria culpa de Esteban? Todo mundo dissera 
algo diferente. À medida que o tempo se passasse, todos modificariam o que 
haviam dito.
158
Quando voltei daí a um ano, no início de 1979, verifiquei que muita coisa 
mudara. Santiago estava bastante bem e ativo, mas Salvador morrera, e Rosário, 
a mulher de José Garcia, encontrava-se muito doente. O sobrinho de Salvador 
declarou que ele morrera em razão de ter perdido o poder, através das muitas 
curas que fez para muite gente de fora, sobretudo brancos e negros. Assim, tor­
nou-se poluído e incapaz de lidar com os ataques de feitiçaria dos xamãs índios 
da região do rio Napo, no Equador. Rosário tinha virtualmente paralisados o 
braço e a pema direitos. O braço direito se agitava, e sua fala era ininteligível. 
Ela parecia desolada e triste. Sem a menor expressão em sua voz, afirmava que o 
espírito do homem de quem fora noiva aos 16 anos, e que morrera em um aci­
dente de caminhão, viera assombrá-la e sentava-se em seu ombro direito.
Essa fase de doença começou em 1978, segundo ela me contou, quando surgi­
ram problemas em um dos sítios do casal. Foram roubadas cabeças de gado, e ela 
teve que trabalhar arduamente na ordenha, enquanto José Garcia e seu filho iam 
à procura dos animais. Contraiu pneumonia por ocasião de um temporal e foi 
tratada com antibióticos por um dos médicos locais. Experimentou um certo alí­
vio, mas começou a sentir-se pesada, com dores de cabeça, a que se seguiu uma 
paralisia gradual. Voltou a ser tratada pelo mesmo médico, que lhe deu tranqüili­
zantes, até que Lydia, aquela velha amiga do casal que adivinhava por meio do 
baralho, convenceu-os a procurar tratamento na capital, Bogotá, onde o diagnós­
tico foi um derrame cerebral. Recebeu os cuidados necessários, voltou para casa 
e não conseguia parar de chorar, segundo me disse sua filha. Voltou a Bogotá e 
ali procurou vários médicos. Um médium espírita disse-lhe que sua doença era 
parcialmente devida a Deus (uma causa natural) e, em parte, á feitiçaria, agindo 
juntamente com a causa “natural".
Então Lydia, a adivinha responsável por apresentá-los à irmã Carmela em 
Pasto, em 1973, graças a que eles ingressaram no caminho da riqueza, trabalhou 
mais uma vez com seu baralho e adivinhou que a doença de Rosário era obra da 
irmã Carmela! Esta evocara o espírito do noivo de Rosário, morto havia tanto 
tempo, para atuar como um poder malévolo.
Rosário e José Garcia lembraram-se então que Carmela sempre insistira que 
os poderes dele, tais como foram desenvolvidos em associação com a irmã, eram 
destinados ao bem da humanidade; ela também afirmava que ele estava adqui­
rindo um número muito grande de cabeças de gado, muitos sítios e deveria dar os 
animais e as terras para os pobres, guardando apenas uma pequena parte para si. 
Carmela se voltara contra ele porque ele se negava a fazer isso, contou-me o 
casal com muita calma. Ao mesmo tempo, acrescentou José Garcia, Carmela 
sentia inveja de seu sucesso e agia movida pelo despeito.
O próprio José Garcia entendia seus poderes de cura em termos que corres­
pondiam à denúncia que Carmela fizera de seu sucesso material. Por exemplo, há 
pouco mais de um ano ele fizera o seguinte pronunciamento:
159
Sim! Eu vi a grandeza deste mundo. É algo de que a gente se lembra, leva em conta e 
conduz sua vida de acordo com isso. É por este motivo que Deus me ajuda. Deus me 
escolheu especialmente, para eu ser bem-sucedidoem tudo aquilo que eu desejar, mas não 
em excesso: fazer grandes coisas, realizar grandes curas... de acordo com minha fé e com o 
modo como me comporto. Mas sabe que tudo isto não me pertence? Sou apenas o adminis­
trador dos bens deste mundo. Não tenho nenhum orgulho, não sou como aquelas pessoas 
ricas a quem a gente cumprimenta e que nem sequer respondem. Sou apenas um adminis­
trador. O dia que o Pai quisei; ele me chamará à sua presença para que eu preste conta de 
tudo: “Venha, mayordomol Vamos prestar contas!“.
Este sentimento cristão anticapitalista, que corre paralelo à acumulação e posse 
da riqueza, é igualmente reforçado por outros aspectos de sua filosofia enquanto 
curador:
• O quadro do mundo, evocado por este texto, nos remete a uma ha- 
cienda feudal, na qual Deus é o senhor e José Garcia o mayordomo — 
um mordomo que cuida dos domínios de Deus e não um proprietário 
dos bens deste mundo. Um impulso importante, por detrás da credibili­
dade desse quadro ou cosmologia, reside no fato de que José Garcia 
“viu a grandeza deste mundo”, lembrou-se dela e a levou em considera­
ção. Isto tomou-se patente de modo extremamente vigoroso pelo fato de 
ele tomar yagé, um remédio e um ritual indígenas. A inter-ligação orgâ­
nica deste quadro do mundo pressupõe uma hierarquia de reciprocida- 
des que ascendem ao Ente Supremo.
Nessa hierarquia um curador como José Garcia se vê como participante 
de uma relação de troca com Deus, a Virgem, os santos católicos popu­
lares e os espíritos dos xamãs índios mortos. Seu poder deriva dessa 
cadeia de trocas recíprocas, uma cadeia que evoca um passado tomado 
mítico, por meio das gerações de santos e de xamãs índios. É o poder 
que pode curar a doença e combater a feitiçaria, conforme depreende­
mos quando José Garcia descreve este tipo de canto:
Não canto como os xamãs, mas canto uma outra cantiga que vem com o yagé; por 
exemplo, com uma música que ouço. O próprio yagé nos ensina o que cantar... baixo ou 
alto e dai por diante. Você vê as orações, mas são orações cantadas... com o cântico do 
yagé. Assim, você faz sua cura através disso; cantando... por exemplo o Magnificat. Você 
canta o Magnificat sob a influência do yagé, curando os doentes, ou sob a influência da­
quele que está curando. O Magnificat tem a seguinte letra: “Minha alma está repleta da 
graça que emana do Senhor e meu espírito se eleva a Deus, meu Salvador. À luz de Seus 
olhos, agora todas as gerações dizem-me: 'Sejas bem-vindo!’, pois, em mim, grandes coisas 
se fizeram e, em mim, está o poder onipotente, cuja misericórdia se estende de geração em 
geração para aqueles que o temem; de meu coração seus braços se estendem para todos os 
necessitados. Livrai-vos dos poderosos; elevai os humildes. Enchei os famintos de bens e 
dispensai os ricos, sem nada lhes dar. Em memória de Vossa compaixão, por terdes tomado 
Israel como Vosso servo, de acordo com Vossas promessas, feitas a nossos pais, Abraão e 
seus descendentes, por todos os séculos dos séculos... Amém“.
É isso o que eu canto, bêbado com yagé. Canto o Magnificat, curo e limpo. Com isso 
a gente pode curar a feitiçaria, por mais séria que ela seja. Com isso a gente está cantando, 
entoa o Magnificat, com isso a gente acalma a doença.
160
(Entre as classes populares, no Peru inteiro, escreveu Hermillio Valdizán, 
juntamente com Angel Maldonado, em sua obra La medicina popular peruana, 
impressa em 1922, ocorre um grande número de crenças, mais comuns entre os 
brancos e mestiços do que entre os índios, relacionadas com os perturbados espí­
ritos do purgatório. Quando tudo o mais fracassa, no sentido de afastar esses 
espíritos, quando eles, em conseqüência, são os verdadeiros condenados e, possi­
velmente, pertencem ao próprio demônio, então é preciso cantar o Magnificat. 
Os autores transcrevem os versos finais: “Despossuí os poderosos; elevai os hu­
mildes. Enchei os necessitados de bens, deixai os ricos sem nada... Gloria al 
Padre y al Hijo".*)
• A ênfase que o cristianismo coloca na virtude da caridade e na negação 
dos bens deste mundo emparelha-se com a necessidade que o curador 
tem de atender os pobres. Um homem como Santiago jamais seria sufi­
cientemente hipócrita para se incomodar com um discurso de negação 
dos bens mundanos. Ele os ama. Seu apetite é rabelaisiano. Quanto 
mais, melhor, e ele não aceita aquele servilismo que José Garcia, o 
espírito branco piedoso, demonstra. No entanto Santiago não se consi­
deraria menos cristão ou menos sujeito às manobras do invejoso.
O subtexto desse atendimento ao pobre é o campo cósmico subconsciente 
de vícios e virtudes, nos quais o curador adquire poder através da luta contra o 
mal. O poder do curador diz respeito a um relacionamento dialético com a doença e 
o infortúnio. O mal confere poder e é por isso que um curador por necessidade 
atende os “pobres", ou seja, aquelas pessoas economicamente pobres e atingidas 
pelo infortúnio. Desse modo é possível compreender a relação entre Deus e o 
diabo, pois eles não se colocam apenas em oposição, mas em uma sinergia mu­
tuamente fortalecedora. A percepção que Dante tem do paraíso só é alcançada 
graças e após a jornada que ele fez ao inferno, onde encontrou Satanás (e, tendo 
em vista nossos propósitos, convém notar que Dante realizou essa jornada acom­
panhado de um guia pagão — leia-se um “curador" ou “xamã" —, proveniente 
de um passado pré-cristão).
No entanto essa necessidade de descer e imergir na luta contra o mal pode 
ser autodestrutiva. A vida de um curador se equilibra no limite dessa estratégia, e 
é por isso que ele sempre precisa fazer uma aliança com um curador mais pode­
roso. José Garcia os encontrou na pessoa da irmã Carmela, na cidade da mon­
tanha e no xamã índio, Santiago, na borda das florestas da planície. O mais 
poderoso curador poderá, no entanto, matá-lo.
• De todas as reciprocidades existentes nesse quadro orgânico do mundo, 
com sua hierarquia de formas e emaranhado dialético do bem e do mal, 
a que mais ressalta é aquela que ocorre entre o cristianismo e o paga­
nismo, equivalente àquela que se dá entre Deus e o demônio. Os pode­
res de José Garcia derivam dessa reciprocidade de contrários. É uma 
antifonia, estabelecida em sua particularidade concreta, bem como em
161
suas abstrações harmoniosamente cadenciadas, pela conquista européia 
do Novo Mundo, ocorrida alguns séculos antes, como se pode testemu­
nhar, por exemplo, nos escritos dos franciscanos, que abriam as trilhas 
para Cristo nas selvas ao leste de Quito e Pasto. Além do mais, essa 
antifonia provavelmente existia na sociedade transandina antes da che­
gada dos espanhóis, bem como na relação entre os habitantes do alti­
plano, no império Inca, e os índios das florestas.
É naquilo que, com muita hesitação, podemos denominar a “lógica” da cura 
e da história de vida de José Garcia (conforme ele a narra) que podemos ver essa 
moldagem de oposições, esse crescimento de um esplendor apocalíptico atiçado 
pelas oposições. No entanto, com outros povoadores da floresta, bem como com 
Manuel Gómez, um velho conhecido meu do rio Guaymuez, essa padronização 
pode assumir uma expressão mais vividamente explícita, tal como ocorreu na 
visão que Manuel teve, ao tomar o yagé. Nela um xamã índio, que distribuía o 
yagé, foi visto transformando-se numa onça e, em seguida, no demônio. Então 
Manuel morreu, e em sua ascensão ao céu, tal como se deu no Paradiso de 
Dante, ele alcançou a glória, após transcender o mal, ganhou as bênçãos do Se­
nhor, foi curado e obteve algo mais do que uma simples cura.
Ao enfrentar a feitiçaria da magiapraticada contra ele há muitos anos, José 
Garcia tomou-se não somente um curador, que podia transformar o mal; tomou- 
se também um homem rico aos olhos de seus vizinhos. Em uma sociedade na 
qual as pressões a favor da acumulação individual do capital encontram a oposi­
ção daforça da inveja, contra-hegemônica, sua carreira de homem empreendedor 
exigiu o desenvolvimento de sua capacidade espiritual de cura, em um ritmo cada 
vez mais arrebatado, de tal modo que ele pudesse resistir ás farpas dessa inveja.
Finalmente, conforme ele já dissera em uma ocasião, chegara o dia em que 
seu pai o chamou: “Venha, mayordomo! Vamos prestar contas”.
Desde o início da doença de Rosário, José Garcia parou de tomar yagé e de 
visitar Santiago. Rosário sempre se mostrara cética e talvez um tanto temerosa 
pelo fato de ele confraternizar com os índios e, sobretudo, tomar yagé. Carmela, 
bem como outros médiuns, freqüentemente o preveniam em relação ao fato de 
ele exceder-se no consumo do yagé. Agora ele também parecia assustado.
Lydia disse-lhe que parasse ou que o tomasse raramente, pois quando al­
guém está bien chumado os outros tomadores de yagé “jogam" uma feitiçaria 
nele. “Certa vez caí no chão”, ele me confidenciou. “Don Santiago bateu em mim 
com galhos de urtiga. Tomei um copo cheio e vi alguns índios de um lugar distante 
do Putumayo, com os rostos pintados de achiote. Eram eles que tinham feito 
aquilo comigo!” “De uma outra vez", ele prosseguiu, “um vento forte soprou, 
vindo não se sabe de onde. Chegou a apagar a vela. Estranho... Cantei o Magnifi- 
cat. Defendi-me. Continuamos a curar".
Rosário ouviu falar de famoso médico de Popayán, uma cidade serrana ao
162
noite de Pasto. Ela e José Garcia foram consultar-se com ele várias vezes. O 
tratamento era doloroso. Segundo ela, o médico aplicou injeções em sua língua 
em várias ocasiões. Era também um tratamento caríssimo. Formado por uma 
universidade renomada, o médico aprendera sua especialidade na Rússia e em 
muitos outros países estrangeiros, frisava Rosário. Então ela ficou conhecendo 
uma médium espírita nova no Putumayo, uma mulher branca do Brasil, que não 
permitia contatos pessoais. Rosário comunicava-se com ela através de uma inter­
mediária, amiga de ambas. A brazilera conseguiu livrar Rosário do espírito que 
flutuava em seu ombro direito. Afirmou que Carmela havia provocado a doença 
de Rosário por meio da magia e acrescentou que ela também era a culpada pelo 
fato de Santiago ter estado à morte. Era por isso que ele ainda padecia de can­
saço, vertigens e tinha um problema em um dos olhos. Devo acrescentar, a esta 
altura, que Carmela (grande amiga do bispo, conforme José Garcia dissera), 
havia alguns meses, fora mandada embora de Pasto graças aos esforços combina­
dos de médicos, da polícia e da Igreja e lutava para manter-se em uma pequena 
aldeia situada a alguns quilômetros da cidade. Sua estrela se apagara, pelo menos 
no momento.
Tentei convencer José Garcia a acompanhar-me a visitar Santiago, mas ele 
se recusou. Assim, seu filho, Pedro, foi em minha companhia. Seguimos pela 
trilha e entramos na floresta, quando a noite caía. Ele tinha 14 anos e tomava 
yagé desde os oito. Passamos pela fazenda de seu pai. O garoto contou-me que o 
gado, bem como as bananas e outros produtos agrícolas, sempre corria o risco de 
ser roubado. Recentemente seu pai fora atacado por um trabalhador que pedira 
um salário maior e revidou com seu facão. O trabalhador foi embora, roubou o 
cachorro preferido da família, castrou-o e cortou suas orelhas. Ao que parecia, 
Pedro temia constantemente a feitiçaria. Por que ele tomava yagé? Ele declarou 
que uma pessoa o tomava para ver quem a estava enfeitiçando, para clarear a 
própria situação e, ao mesmo tempo, para limpar os males provocados por al­
guém Sentia medo de andar por aquele caminho â noite. Ao chegarmos a uma 
bifurcação, seguimos pela trilha que entrava na floresta. O sol se punha. Chega­
mos ao rio e atravessamos a pinguela feita de bambu e arame, suspensa a nove 
metros acima de uma catarata que despencava pelas pedras. Tinha uns três me­
tros de largura e precipitava-se por entre as águas reluzentes. Perguntei a Pedro o 
que via quando tomava yagé.
“Vi um homem fazendo o que chamamos de brujerias (feitiçaria) em nossa 
fazenda", respondeu.
Ele queria ver todo nosso gado morto e nós pedindo esmola. Ele queria que ficásse­
mos como eu estava vendo. Daí a pouco vi meu pai, e seus maus amigos queriam ver ele 
como se fosse um feiticeiro como eles. Então vi meu pai de cueca, com um rabo (igual ao 
do demônio), como se fosse uma corrente, e o resto do corpo nu. Foi o que vi. Os outros 
disseram que era assim que o queriam. E riram quando viram o que eu vi. Queriam levar
163
meu pai embora. Disseram que queriam que eu visse exatamente daquele jeito, como eles, 
fazendo o mal.
Mais tarde a irmã Carmela disse que o homem que eu vira fazendo bnixaria era o 
feiticeiro. Ela ouve os espíritos e consegue curar através deles. Ela chama os espíritos... 
como o de Tomás Becerra (o xamã índio, já morto, que deu yagé ao pai de Pedro pela 
primeira vez).
Mais tarde, tomando yagé, vi meu pai curando a fazenda. A chuma me pegou e me 
levou até IÂ. Achei que eu também ia sofrer. Então vi meu pai se transformando em pombo 
e, na força do yagé, vi a irmã Carmela e meu tio Antonio, todos vestidos de branco, lim­
pando a fazenda.
Certa vez vi a Virgem Maria. Passei para o outro lado e a encontrei parada, como 
uma estátua. Rezei e chorei. Daí a pouco a chuma mudou e vi a Virgem como se fosse uma 
pessoa igual a qualquer outra. Então chamei meu pai e disse: “Veja! Veja! A Virgem do 
Carmo!”. E ele perguntou: “Onde está ela?” Ele também sentiu vontade de chorar, mas 
disse para mim: “Não chore. Por que está chorando7 Não está vendo a Virgem do Carmo?”. 
E lá estava ela, me abençoando, com um rosário nas mãos. A partir daí a chuma mudou e 
não vi mais nada.
Eu estava chorando porque pedia o perdão dela... para todos nós. Então ela me aben­
çoou... Meu pai contou que o mesmo aconteceu com ele, só que ele passou por cima de um 
abismo, apoiado em um cajado pequenininho. Não conseguia enxergar o fundo do abismo, 
mas a Virgem levou ele até o outro lado sem que nada de mal acontecesse.
Pedro fez dois desenhos dessas visões e mais tarde os comentou:
A Virgem
Este é o rio para onde eu ia e que tinha de atravessar. Está é a pinguela de bambu que 
eu tinha de atravessar. Quando cheguei na metade quis voltar. Este é o sol que ilumina tudo, 
que traz sua luz para o lugar onde estamos. A face do sol está na frente da Virgem. Na 
frente do sol está o chão amarelo. Aí está a pena (peanha) e a Virgem está de pé nela. Tudo 
isto é a pena. Foi onde eu encontrei a Virgem... parecia uma estátua de santo feita de gesso. 
E ela ficou viva, como se fosse uma mulher, e me deu sua bênção.
(O arame farpado na frente do desenho é a cerca de uma fazenda. Ao interrogar Pedro, 
pareceu-lhe que a Virgem estava em uma fazenda, no campo onde o gado vai pastar.)
O Feiticeiro
Este desenho consiste de três partes; 1. canto superior esquerdo; 2. canto superior 
direito e 3. parte inferior.
1. Este é o rosto de um daqueles índios maus. Vi três, todos com o mesmo rosto, 
igual ao dos índios do vale do Sibundoy.
2. Então eu me voltei para a fazenda e vi um vizinho colocando coisas de feitiçaria 
(um capacho ou pacote de feitiçaria) dentro do tronco podre de uma árvore.
3. Este homem está vestido apenas com as cuecas, segura o rabo do demônio e uma 
vassoura com a mão esquerda e o capacho com a direita. O capacho contém pó de ossos 
humanos, retirados do cemitério, tetra do cemitério, cabelo humano etc... É este homem, Sán- 
chez (um vizinho), que queria ver meu pai fazendo feitiçaria; queria ver do jeito que viu.
Daí a um ano, no mesmo lugar da estrada e quando o sol se punha, recordei
nossa conversa. Ele voltou-se para mim e tirou uma garrucha debaixo da camisa.
“Sim”, disse “e agora tenho isto”.
164
Perguntei à mãe dele, Rosário, se ela havia pensado em procurar tratamento 
com um xamã índio como Santiago. Ela deu um muxoxo. “O índio é um bruto, oíndio não entende nada. Quando se embriagam, peidem a razão; onde quer que 
sintam vontade de vomitar, vomitam e então deitam e dormem. Não são como as 
pessoas educadas. Os índios... Ha! É por isso que não quero nada com eles. Fico 
longe deles...”
“E José, seu marido?", perguntei.
“Bem... ele está contente com Santiago. Aprendeu as idéias deles. Isto me 
deixa aflita. Isto me aflige de verdade porque não aceito. Ele está com essa idéia. 
São amigos velhos. É o yagé."
“Mas que idéia?”
“É que ele aprendeu os costumes deles, não? O sentimento, o genio (genio 
pode significar temperamento, brilho, gênio).
“Lá em Sibundoy”, ela prosseguiu, “tem um índio que sabe falar catorze 
línguas. Esqueço o nome dele. É muito capaz. Porém, quando chega o carnaval, 
é o índio mais porco que existe. Ele se emporcalha, cai na lama, se suja todo, 
dança na lama, cantando. Põe uma daquelas máscaras índias, pois normalmente 
usa as roupas de um branco. Aí chega o tempo do carnaval, os índios põem 
máscaras de índios, dançam, bebem chicha, brigam, se espojam na lama como 
porcos. É por isso que eu digo que educar os índios é um desperdício. Puxa! Ele 
fala catorze línguas! Não é pouco!”.
O irmão de Rosário chegou e começou a falar da recente visita dela ao 
santuário do Senhor dos Milagres, na cidade de Buga, a centenas de quilômetros 
ao noroeste, no vale do rio Cauca, e que é uma região agrícola. Trata-se de um 
santuário popular e, de acordo com Rosário e seu irmão, ele se originou ao ser 
descoberto por uma lavadeira índia, há muitos e muitos anos, quando ela estava 
economizando dinheiro para comprar uma imagem de Cristo. Ela trabalhava na 
margem do rio, em Buga, quando chegou a polícia, que levava um homem para a 
prisão, devido ao fato de ele não ter pago uma dívida. Compassiva, a índia deu 
ao homem o dinheiro necessário para sua liberdade e, ao voltar a lavar roupa, 
deparou com um pedaço de madeira que descia o rio. Nele se encontrava escul­
pida grosseiramente a figura de Cristo na cruz. Ela o tirou da água e a cada dia 
que passava a figura assumia traços cada vez mais perfeitos. O bispo de Popayán 
condenou aquilo como uma heresia e enviou gente para queimá-lo. No entanto 
ele resistia às chamas, transpirava, assumia uma semelhança cada vez maior, até 
que a Igreja reconheceu que se tratava de uma imagem verdadeiramente mila­
grosa, descoberta por uma índia para a redenção da sociedade colonial, há milha­
res de anos, em um tempo mítico.
165
8
Realismo mágico
O poder do imaginário suscitado pelo infortúnio e sua cura, no caso da doença 
de Rosário e José Garcia, é um poder que adquire existência quando uma história 
de vida se ajusta como uma alegoria aos mitos da conquista, da selvageria e da 
redenção. A esta altura deve ter ficado claro que a fé religiosa e a magia envolvi­
das nesse processo não são místicas ou programáticas e, certamente, não consti­
tuem uma adesão cega a uma doutrina ofuscante. Constituem, ao contrário, uma 
epistemologia imagética que entrelaça a certeza com a dúvida e o desespero com 
a esperança, e na qual o sonho — nesse caso o de pobres camponeses — reela- 
bora o significado do imaginário de que instituições de classes dirigentes, tais 
como a Igreja, se apropriaram, tendo em vista a tarefa de colonizar fantasias 
utópicas.
Ao objetivar essa realidade através do real maravilloso ou realismo mágico, 
a literatura latino-americana moderna constrói uma ponte de mão única direcio­
nada para a literatura oral, mas ainda assim, segundo me parece, encontra dificul­
dades em subtrair-se àquela mão pesada contra a qual Alejo Carpentier reagiu, no 
surrealismo parisiense — a saber, o esforço de criar a magia onde podia existir 
unicamente uma forma metaforizada. O surrealismo congelou o tempo e suprimiu 
toda a narrativa das composições previsíveis da realidade burguesa por meio de 
formas tiradas dos sonhos e dos artefatos descontextualizados (e, portanto, ainda 
mais suneais) do mundo primitivo, tal como ele foi percebido de relance e com 
imaginação graças às máscaras africanas e objetos semelhantes exibidos no Tro­
ca de to. Pois bem, Carpentier descobriu que não precisava desses artefatos, pois 
nas ruas, campos e na história do Haiti o maravilhosamente real o encarava de 
frente. Lá tudo isso era vivido, era cultura, maravilhosa e, no entanto, comum.
Sua descoberta do real maravilloso em 1943 traz todas as marcas do pró­
prio maravilhoso. Ao descrever como, após voltar de Paris, ele tropeçou nos 
fatos ordinários do extraordinário, Alejo Carpentier escreve o seguinte:
166
Isto se tomou particularmente evidente para mim por ocasião de minha estada no 
Haiti, ao eftoontrar-me diariamente em contato com aquilo que poderiamos denominar o mara­
vilhosamente teaL. Dei-me conta, além do mais, que essa presença e essa foeça do maravilho­
samente real não pertencia unicamente ao Haiti, mas constituía um patrimônio de toda a 
América, cujo inventário da cosmogonia ainda precisa ser terminado. O maravilhosamente 
real é encontrado a cada passo nas vidas daqueles que inscreveram datas na história do 
continente e deixaram nomes ainda gerados por ela: os exploradores da Fonte da Eterna 
Juventude... Devido à virgindade de sua paisagem, de sua formação, de sua ontologia, da 
fantástica presença do índio e do negro, devido i revelação que sua descoberta constituía e
i fecunda síntese que ela favorecia, a América está longe de ter exanrido sua riqueza de 
mitologias.1
Mas por que lo real maravilloso toma-se uma categoria tão importante no 
consciente das escolas literárias a partir de 1940, após quatrocentos anos de ela­
boração de mitos e de magia na cultura latino-americana? O despertar dessa sensi­
bilidade para a qualidade mágica da realidade e para o papel do mito na história é, 
talvez, uma indicação daquilo que Emst Block denominou “contradições não- 
sincrônicas", e é um solo feito para que dele brotem “imagens dialecticiais”, con­
forme a terminologia empregada por Walter Benjamin, para quem (e aqui cito o 
ensaio de Susan Buck-Morss sobre as notas que ele escreveu em Passagenwerk)
o sonhar coletivo do passado recente surgiu como um gigante adormecido, pronto para ser 
despertado pela geração presente, e o poder mítico de ambos os estados de sonho (o da geração 
recente e o da geração presente) foram afirmados; o mundo reencantou-se, mas apenas para 
romper com o encantamento mítico da história e, na verdade, para reaptopriar-se do poder 
conferido aos objetos da cultura de massa, que se tomaram símbolos utópicos do sonho.2
A contradição não-sincrônica ocorre quando mudanças qualitativas no modo 
de produção de uma sociedade animam imagens do passado, na esperança de um 
futuro melhor. Na Alemanha, o fascismo canalizou essas imagens e essas espe­
ranças e, de acordo com Bloch, o empobrecimento da esquerda em relação á 
fantasia revolucionária a tomou cúmplice de sua própria derrota. Do mesmo modo 
Benjamin censurou seus companheiros da esquerda; o materialismo histórico po­
deria tomar-se vitorioso na luta ideológica “se ele acolhesse os serviços da teolo­
gia, a qual hoje, conforme sabemos, anda mirrada e precisa ser mantida fora do 
alcance do olhar”.3 Ele argumentou que à persistência de formas mais antigas de 
produção, no desenvolvimento do capitalismo, correspondiam imagens que en- 
tremesclavam o velho e o novo como ideais que transfiguravam a promessa ofe­
recida pelo presente, mas que este bloqueava. Essas imagens utópicas, embora 
estimuladas pelo presente, reportam-se ao passado de modo radical — aquilo que 
Benjamin denominou “pré-história”, isto é, uma sociedade sem classes.4 Os fas­
cistas se mostravam dispostos e tinham a capacidade de explorar esses sonhos, 
mas isto não significava que o mito e a fantasia fossem necessariamente reacio­
nários. Ao contrário, as imagens continham sementes revolucionárias, que o solo 
aradopela dialética materialista poderia nutrir e fazer germinar.5
De modo geral na América Latina, a função política da Igreja foi a de atre-
167
lar essas imagens e sonhos coletivos a propósitos sociais reacionários. É aqui 
onde a sensibilidade de Carpentier ao mito como experiência da história na con­
figuração de um presente em mudança é tão apropriada e necessária ao desenvol­
vimento da cultura e da literatura revolucionárias. Este desenvolvimento se relaciona 
com o realismo mágico da cultura popular como a única força contra-hegemônica 
capaz de confrontar o uso reacionário que a Igreja faz desse mesmo realismo 
mágico a fim de o mistificar.
No entanto aqueles que tentam usar tais forças correm o risco de serem 
usados por elas. Quando Carpentier enumera os motivos pelos quais “a América 
está longe de ter exaurido sua riqueza de mitologias”, precisamos indagar como é 
possível nos subtrairmos a seu encanto, principalmente aquele provocado pela 
“fantástica presença do índio e do negro”, a própria fantasia por meio da qual o 
domínio de uma classe permeia o inconsciente político. No encontro dolorosa­
mente romantizado de um xamã índio com o herói europeu de Carpentier, no 
romance Los passos perdidos, publicado em 1953, encontramos a promessa e os 
fatos da tentativa do sonho revolucionário, no sentido de orquestrar a magia do 
realismo com a realidade da magia. É um dos motivos pelos quais achei útil relatar 
a história da sorte e do infortúnio, na qual José Garcia, um povoador branco 
pobre, talvez um contador de histórias, mas não um romancista, tentou inteceptar 
os poderes de um xamã de verdade, cujo dilema — libertar-se de uma mitologia 
colonial opressiva, ao mesmo tempo que mantém sua essência — não é menos 
grave do que o nosso próprio.
É no entanto a mulher de José Garcia, Rosário, que padece da doença e ela 
não freqüenta xamãs. Os índios são brutos! Dançam com suas máscaras, espo­
jam-se na lama. Catorze línguas!
Mas ela foi bem longe, atravessou a montanha para visitar o santuário do 
Senhor dos Milagres, nosso Senhor que foi entregue a essa nação por uma pobre 
índia, há milhares de anos.
Ficando mais do lado do Senhor, descoberto por uma índia, do que do lado 
do índio descoberto por seu marido, Rosário não apenas endossava a mitologia 
colonial do primitivismo, que enxerga nele não somente o signo do pagão, mas 
também o signo do poder — nesse caso, de um poder redentor? No Senhor dos 
Milagres, dependurado na cruz, na penumbra da igreja de Buga, não vemos essa 
configuração colonial ritualizada e adorada como um poder curativo? Não so­
mente os índios e os negros foram identificados com o mal, nas profundezas de 
uma estrutura de classes, mediada por brancos que ascendiam à presença do 
Divino; só que dessas profundezas emana o poder.
No que se refere ao trabalho manual, às capacidades e á teira, esse poder do 
primitivo pode ser apropriado, nesse caso transplantando-o para a mitologia da 
conquista, de tal modo que a doença possa ser curada, o futuro adivinhado, as 
fazendas e sítios exorcizados, a riqueza obtida e mantida e, acima de tudo, os
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vizinhos invejosos passam a ser controlados. No entanto, ao contrário do que su­
cedia com a terra e a mão-de-obra, esse poder não se encontrava nas mãos dos 
índios ou dos negros, mas era projetado neles e em seus seres, muito especial­
mente na imagem do xamã. Na tentativa de se apropriar desse poder, vemos 
como os conquistadores reificaram sua mitologia relativa ao selvagem pagão, 
tomaram-se sujeitos a esse poder e, ao agirem assim, procuraram salvar-se da 
civilização que os atormentava, bem como do primitivo nos quais eles projeta­
vam seu anti-eu.
Aqui não lidamos tanto com as idéias quanto com o corpo, mediado pelo 
reino da imagem Na saga, tal como ela é representada pela infindável procura da 
paz e, quem sabe, da redenção, empreendida por Rosário e por José Garcia, 
vemos algo mais do que a construção de uma história pessoal que cruza com essa 
fetichização e reificação coloniais da selvageria. Vemos mais do que povoadores 
camponeses desejosos de obter riqueza, em uma economia política que recorre 
ao medo da inveja para enfrentar a acumulação do capital. Vemos também que 
em uma doença do corpo se encontra presente uma tentativa corporal de inscre­
ver a história da alteridade do corpo que é o eu, uma historiografia experimental, 
mas ainda assim salvadora da vida, que se depara com o peso morto do passado 
terrivelmente vivo, a exemplo do que ocorre com os ataques desferidos pelos 
espíritos intranqüilos (o noivo de Rosário) ou com a feitiçaria praticada por inve­
josos. Através do infortúnio e de sua definição mutante, quando se trata de tentar 
a cura, essa descrição do eu corpóreo como locus da alteridade inclui-se ineluta- 
velmente na troca de poderes mágicos, estabelecida entre os xamãs índios e a 
Igreja, uma troca que se dá por intermédio do vigoroso meio das imagens vi­
suais. Alucinógenos e pontos de ruptura na vida cotidiana — doença, acidente, 
coincidência e penumbra — podem tomar esse reino da imagem manifesto e 
manifestamente fortalecedor. Foi tarefa de Rosário atar o poder pagão ao da Igreja, 
garantindo por meio dessa circulação de imagens sua solidariedade dialética. Foi 
ela quem mediou a circulação social de significados essenciais para a vitalidade 
de tais imagens, a partir do xamã, passando por José Garcia e por ela e o Senhor 
dos Milagres, no templo oficial de Deus.
Ao santificar uma imagem tal como a do Senhor dos Milagres, a Igreja santi­
fica a si própria. A aura de mistério hipnótico, agora assumida pela imagem na 
escuridão artificial do templo, revela e ao mesmo tempo oculta essa troca, tão 
comum em sociedades como a da Colômbia, onde a descoberta epifanica de santos 
e virgens é uma ocorrência freqüente e fonte primária de regeneração do poder 
sacerdotal que sustenta a reprodução ideológica e a opressão de classe. Precisa­
mente devido a essa apropriação pela Igreja de uma imagem popular como um 
tesouro que enfeita o altar, essa imagem se expande através do espaço e do tempo, 
como membro da nação universal de santos à espera do dia do julgamento, quando 
a luta de classes em tomo dos meios de produção e de troca incluirá os meios de
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produção e interpretação de imagens. A santificação oficial distorce e reprime a 
mensagem política latente na imagem, mas garante a essa imagem uma longa 
vida em sua forma material, como uma escultura na qual os primeiros clarões da 
alvorada de sua criação popular luzem, repletos de esperança.
Cópias encontram espaço nos lares dos trabalhadores assalariados e dos 
camponeses, tecendo uma teia muito fina de ligações com o original. Em mo­
mentos de crise essas teias absorvem o choque, liberando-o mais tarde através de 
recordações domésticas que reconstroem a história do original para cada novo 
presente. A cura popular se apossa respeitosamente da doutrina da Igreja através 
dos padres e se apropria dos ícones dependurados nas paredes dos templos, reto­
mando para seu próprio uso aquilo de que a Igreja se apropriou, relativo à mito­
logia popular extraída dos sonhos dos oprimidos. Então as imagens petrificadas 
na pintura e na escultura nascem para a vida, a paitir daquele mistério opaco no 
qual a Igreja as velou e as preservou na memória coletiva. Tomam-se seres vivos. 
Entram na textura vibrante e contraditória da vida social. A estátua de gesso da 
Virgem do Carmo é transformada em uma mulher de verdade, que dá ao filho de 
Rosário aquela bênção de que ele necessita tão desesperadamente a fim de resol­
ver as contradições que forçam os camponeses a se explorar mutuamente. Ao 
conseguir a bênção da Virgem por meio da magia dos índios, seu pai pode conti­
nuar a investir um capital fornecido pelo Banco Mundial e obter lucros para os 
banqueiros, bem como para ele, do trabalho dos vizinhos pobres,cuja inveja é 
controlada magicamente. Existem, porém, limites quanto à capacidade dos íco­
nes da Igreja em mediar as contradições capitalistas. O aviso profético da irmã 
Carmela indica tais limites. José Garcia acumulou um excesso de sítios e de gado; 
eles devem ser compartilhados com os pobres.
Confrontada com tudo isto encontra-se sua mulher, Rosário, que tem de me­
diar o conflito, na paralisia e na virtual mudez de seu ser, e cuja história procura 
animar e dar voz a uma estátua silenciosa e santificada, proveniente de um pas­
sado colonizado e mítico. Quando estive com ela em dezembro de 1980, decorri­
dos vários meses de sua visita ao Senhor dos Milagres, ela me contou que estava 
sendo curada por uma médium espírita branca, de meia-idade, em Pasto.
“Ela trabalha com o espírito de José Gregorio?”, indaguei.
“Não. Invoca o espírito de Tomás Huamanga, um venezuelano que morreu 
há 350 anos.” Ela mostrou muita precisão. Exibiu-me um retrato desse espírito. 
Era uma fotografia retocada de um índio da região (jamais ficaremos sabendo se 
ele era das terras altas do Vale do Sibundoy ou da região dos contrafortes)! Ela 
prosseguiu e contou que ele não falava espanhol, apenas Inga e que, em vida, 
fora um feiticeiro famoso.
Santiago Mutumbajoy, o xamã índio que durante tanto tempo atendera seu 
marido José Garcia, suspirou ao ouvir falar disso. “Eu não lhe disse que o índio é 
mais cristão do que o branco?"
170
9
Las Très Potências: a magia das raças
O espaço místico e mágico fixado pela imagem do índio no Novo Mundo 
é juncado de ironia política. Em um país como a Colômbia, onde todas as pes­
soas classificadas pelos censos do governo como índias caberiam em alguns quar­
teirões de uma cidade, a enormidade da magia atribuída àqueles índios é notável. 
Trata-se de uma atribuição tão vigorosa entre as classes baixas de brancos, negros 
e mestiços quanto entre a classe média, alta e os intelectuais, incluindo os ar­
queólogos e antropólogos.
A ironia não se restringe ao feto de que os assim denominados índios for­
mam uma pequenina parte da população. Os índios também se incluem entre as 
classes mais pobres, oprimidas e marginalizadas e, além do mais, têm a reputa­
ção de ser maliciosos e até mesmo de praticar o mal, sendo também considerados 
ignorantes e brutais. Todo mundo sabe que o indio es malicioso. Por que também 
se atribui a eles poder mágico é tuna questão intrigante e, além do mais, uma 
questão política importante, já que a magia do índio é intrínseca não somente à 
opressão que eles padecem, mas também à teia de religião popular e de cura 
mágica do infortúnio que atravessa a sociedade como um todo, para não mencio­
nar os antropólogos (como eu) que a estudam. Essa atração mágica exercida pelo 
índio não é apenas um objet d ’art ’colonial sutUmente elaborado; é igualmente 
algo renovado e revitalizado. Não se trata apoias de primitivismo, mas de um 
modernismo terceiro-mundista, uma reelaboração neocolonial do primitivismo.
Quando nasce uma criança no vale do Cauca, pelo maios no caso de pais 
pobres (e eles formam a imensa maioria), a mãe, cm geral, se apressa em adquirir 
um coralito, um bracelete de contas coloridas, outrora de coral e atualmente de 
plástico, a fim de espantar o mau-olhado, ojo ou mal de ojo. Tais contas devem 
ser “curadas”, isto é, consagradas por meio de poder mágico por um índio do 
Putumayo. São os índios do Putumayo que vendem essas pulseiras, e é mais
* Objdo de aite. (N.T.)
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indicado adquiri-las deles. Assim, a partir do nascimento, um número grande ou 
até mesmo preponderante de pessoas, naquele vale imenso — senão em outras 
regiões da república — são, por assim dizer, “batizadas" e introduzidas no reino 
da magia do índio (disseram-me que o mesmo ocorre na costa atlântica da Co­
lômbia, só que lá a pulseira, pepita, é comprada dos índios Guajira, da península 
do mesmo nome).
A criança não tem consciência desse pacto celebrado entre sua mãe e o índio e 
do qual ela é objeto. No entanto, tal como aconteceu com sua mãe, a criança fará 
o mesmo, se e quando ela despontar para a maternidade. A ausência de percepção 
assegura com maior firmeza a potência dessa prática e a mitologia que a sus­
tenta. Tal é o caráter do conhecimento social implícito que aqui examinamos.
A causa e, até certo ponto, a cura da doença provocada pelo mau-olhado 
também são inconscientes. A pessoa cujos olhos são maus e cujo olhar provoca a 
gastroenterite, freqüentemente fatal, não tem a percepção do poder desse olhar. 
Trata-se de um poder inconsciente e de um ato que não é premeditado, talvez a 
quintessência da inveja — a envidia, que assume vida própria, acima e além da 
intencionalidade. Assim como a causa, dentro dessas características, é inocente, 
o que poderemos dizer da cura, quando nos damos conta de que o mau-olhado 
não se enquadra na categoria de doença entre os índios do Putumayo, habitantes 
da serra ou da planície? Com efeito, o resto da sociedade lhes solicita a cura de 
algo que para eles não existe. É claro que os curandeiros ambulantes em breve 
tomam conhecimento desse fato e praticam todos os atos necessários à diagnose 
e ao tratamento, mas tais atos são os prescritos pelo restante da sociedade, não 
pertencem a eles. Eles se posicionam fora do círculo encantado dos crentes, ne­
cessário para a existência da doença. Lá na floresta pluvial, onde tantos desses 
curandeiros ambulantes ganham boa parte de seu poder mágico (é o que dizem), 
fiz indagações a um xamã Cofán e a sua mulher, relativas ao mal de ojo. Eles 
acharam que estava me referindo a algo bem literal como, por exemplo, uma 
doença nos olhos, uma conjuntivite. Quanto ao sal e ao capacho, os tipos predo­
minantes de feitiçaria de que se ouve falar no vale do Sibundoy ou no interior, 
eles afirmam que se trata de tolices, tonterías dos brancos, que os índios do vale 
do Sibundoy, que perambulam pelo país, exploram a fim de ganhar dinheiro. 
Certo dia o xamã revelou-me que curava as jóias que os brancos lhes traziam.
“Não entendo”, eu disse.
“Nem eu”, foi a resposta.
“Mas por que age assim?"
“Para deixá-los contentes”, respondeu, sorrindo sem malícia ou supe­
rioridade, segundo me pareceu, mas com timidez e algum constrangimento, con­
tando-me a história de Dona Teofila, cujo talismã ele curou, para que ela 
conseguisse ganhar no jogo de cartas. Havia também um curioso branco de nome 
Gabriel Camacho, o qual, durante dois anos, doente e solitário, perambulou de 
xamã em xamã através do Putumayo, há quinze anos, aprendendo o que podia
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sobre o yagé e tentando tomar-se um grande curador. A mulher do xamã encon­
trou-o chorando, sentado num rochedo perto do rio e deu-lhe roupa, abrigo e 
alimento durante meses. Ele queria aprender os segredos do yagé muito rápido
— rápido demais, conforme se viu — pois caíra nas mãos de outro xamã Cofán, 
Pacho Quintero, o qual, confoime todos o preveniram, era um bruxo, um brujo 
fino, de acordo com os outros xamãs. Gabriel Camacho teria moirido na casa de 
Pacho, situada na região do rio Hgre, desolado e faminto, se não fossem seus 
paisanos, seus conterrâneos, que voavam pela região no helicóptero de uma 
companhia petrolífera e o levaram para Bogotá. Com os xamãs Don Gabriel apren­
deu a prever quais os cavalos que ganhariam as corridas dominicais no hipó­
dromo da capital do país. Enquanto tomava yagé, via o número dos animais e 
dizia: “Vamos até Pasto apostar no Cinco y Seis". Mas deitado de costas, bêbado 
de yagé no seio da floresta, como poderia chegar até Pasto?
Santiago Mutumbajoy nunca se cansava de rir e contar uma história de que 
Gabriel Camacho era protagonista. A primeira vez que a ouvi cortávamos lenha e 
cozinhávamos o yagé durante todo o dia, a n um pequeno bosque escondido, perto 
do rio. Batíamos o cipó com pedras até nossos pulsos doerem “Gabriel Camacho 
tomava yagé certa noitecom um xamã, no baixo Putumayo", narrou Santiago. 
“O cozinheiro não tinha dinheiro, mas Don Gabriel pagou sessenta pesos ao 
xamã. Pediu que enchesse sua cabaça. ‘Lleno! Lleno! Cheio! Cheio!’, ordenou ao 
xamã. Então o cozinheiro, invejoso, explodiu: To, pobre indio dei Putumayo, 
aguantando frio e hambre y ese Bogotano pidiendo lleno, lleno. Eu, pobre índio 
do Putumayo, agüentando frio e fome e esse bogotano pedindo cheio, cheio!’.’’
No Putumayo os povoadores brancos que desprezam abertamente a magia 
indígena levam seus filhos, doentes de susto, a um curandeiro índio para que 
cuide deles. O irmão de Rosario, por exemplo, que raramente deixava passar a 
oportunidade de ridicularizar as curas operadas por índios, teve seu filho curado 
de susto por um índio. Há muito a se ponderar no recurso aos índios como seres 
mágicos que afugentam as coisas que assustam as crianças e o “mau-olhado” que 
assusta seus pais. Talvez o índio seja considerado ainda mais temível e malvado, 
mas, assim como ele foi dominado pelos conquistadores cristãos, essas doenças 
também podem ser dominadas.
Ao acalmar o medo, o papel do índio não se restringe ás crianças ou aos 
camponeses pobres. A uma grande distância do Putumayo, na antiga cidade colo­
nial de Popayán, na Colômbia ocidental, uma mulher de nome Emilia revelou- 
me o quanto se sentiu melhor, desde a última vez que nos vimos. Ela certamente 
parecia mais calma e animada. Declarou que queria separar-se do seu marido, 
um advogado que a deixara havia dois anos. Mostrou-me uma garrafa com ervas 
misturadas com aguardiente. Era um remédio que conseguira com um indio do 
Putumayo. Agora ela não acordava mais de repente á noite, cheia de susto. Não 
padecia mais daquela terrível insônia que a acometera desde a partida de Elias. 
Não sentia mais dores em todo seu corpo. Procurou o indio muito espontanea­
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mente. A idéia lhe ocorreu certo dia em que percorria o mercado. Ninguém o 
recomendou. Ellos saben. Eles sabem.
Maria Sol, uma jovem negra de 18 anos, conhecida minha, que trabalha como 
empregada doméstica na região sul do vale do Cauca, garante-me que os índios 
sabem como fazer a magia mais poderosa. Quando morava em Cartago, ao norte 
do vale, sua irmã apaixonou-se por um rapaz, mas ele demonstrou-se arredio e 
indiferente. Uma amiga a aconselhou a procurar um dos curandeiros índios que 
vinham das florestas pluviais do litoral do Pacífico, na província de Chocó. Ele 
lhe vendeu uma garrafa verde com remédio, recomendando-lhe que pingasse al­
gumas gotas na palma da mão e, em seguida, apertasse a mão do homem por 
quem estava apaixonada. Foi o que ela fez, e ele, com efeito, apaixonou-se lou­
camente por ela, mas a mãe da jovem não aprovou.
Wilma Murillo, outra amiga negra que eu tinha, da distante província de Chocó, 
que compra e vende as jóias de ouro feitas na região e atualmente está casada 
com um rapaz que tem uma boa posição (trabalha com computação, na capital), 
certa vez falou-me de um índio de Chocó que foi enganado por um feiticeiro negro, 
por meio da pepita. Acusado pelo índio indignado, ele negou que houvesse trapa­
ceado, o que deixou o índio ainda mais furioso. Daí a alguns dias o corpo do 
negro estava coberto de vermes e pústulas, e cm breve ele morreu.
A cunhada de Wilma, Juana, falou-me de Don Miro, que morava perto de 
sua loja de confecções, em Puerto Tejada, ao sul do vale do Cauca. “Ele é fa­
moso”, afirmou. “As pessoas tomam um táxi em Cali e vão consultá-lo.” Juana 
era uma habilidosa costureira e passou vários anos contrabandeando roupas fe­
mininas, que adquiria nos portos livres do Caribe. Conhecia, portanto, alguma 
coisa sobre o emprego da magia, já que era preciso driblar a lei. Era amiga de 
uma cabeleireira de Cali, que nunca cheguei a conhecer e que se tomara proprie­
tária de um salão de beleza e devia toda sua boa fortuna a Don Miro. Ele era por 
demais ríspido, porém fiquei sabendo que aprendera a maior parte do que conhe­
cia com um índio, um Cholo residente em Quibdó, capital de Chocó. Esse índio 
era um Colorado do Equador. Sete anos mais tarde, na aldeia índia de Humán, 
situada na serra, famosa em todo o Equador por seus feiticeiros e curandeiros, 
disseram-me que muito poder mágico circula entre ela e aqueles mesmos Colo­
rado das terras baixas do Pacífico, de quem Don Miro me falou na Colômbia. 
Em seu livro publicado em 1972, relativo aos índios Jívaro da Amazônia equato­
riana, Michael Hamer menciona que os xamãs Jívaro atravessavam as monta­
nhas para visitar os Colorado e praticar a magia. O curandeiro Ilumán com quem 
conversei naquela tarde chuvosa, enquanto ele, bêbado, curava um casal, pas­
sando pedrinhas de um formato esquisito em seus corpos quase nus, contou-me 
que seu tio visitara Don Salvador, o xamã Cofán que salvara a vida de Santiago e 
cuja casa (e, agora, seu túmulo) situava-se a uma grande distância, em outra 
região, descendo os Andes e ao norte do lago Agrio. Era preciso atravessar o 
rio San Miguel até chegar às margens do Guamuez, antes que ele desembo-
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casse no Putumayo. Esse curandeiro do Ilumán ostentava signos de poder prove­
nientes das florestas da planície: peles de onça dependuradas na parede, bastões 
feitos de palmeira chonta, que ele usava na cura, e aquelas penas verdes e azuis 
dos pássaros da floresta que formavam o mesmo tipo de colar luxuriante que os 
xamãs Cofán usam. “Mas elas são tiradas unicamente das asas”, assinalou Don 
Santiago, que se encontrava em minha companhia e fazia o possível para não 
demonstrar desprezo. “As penas boas são as da cauda. Cada cauda fornece ape­
nas um pouco. Para fazer um colar são necessários muitos pássaros.”
Alejandro Casarán, um agrimensor com muitos anos de experiência nas flores­
tas do litoral colombiano do Pacífico, pertence a uma proeminente família negra 
da cidade açucareira onde morei durante alguns anos, no vale do Cauca. Ele 
também afirmou que o brujo índio é o mais forte que existe. Certa noite ele me 
contou como, em meados de 1960, por ocasião de suas viagens, quando traba­
lhava para o Instituto de Reforma Agrária, deparou-se com um curioso incidente 
no rio Saija, um lugar perdido, em meio a mangues, pântanos, lama e mosquitos. 
Era aquele litoral que tanto deprimiu Pizarro e sua gente quando se viram força­
dos a deter sua expedição de conquista, ao sul das terras desconhecidas dos Incas, 
há 450 anos. Os negros descendentes de escravos africanos trazidos para traba­
lhar nos aluviões de ouro existentes naquela região queixavam-se amargamente 
de uma terrível praga. Pediram aos índios Embera — “Cholo" —, habitantes do 
local, que a exorcizassem. Os xamãs índios concordaram e, segundo Alejandro 
me contou, pois se encontrava presente, isso acabou dando origem a um gigan­
tesco festival índio. Veio gente até mesmo do Panamá e do Equador, remando ao 
longo da costa e avançando através das esteras em suas canoas. Segundo ele, 
compareceram mais de trezentos índios, e qualquer empregada doméstica ou tra­
balhador dos canaviais, migrantes negros, moradores do vale do Cauca, originá­
rios dos rios do litoral, lhe contarão o quão poderosos são esses brujos Cholo.
Talvez, enquanto se tomam mais civilizados, eles também se tomem mais 
palpavelmente reais e, portanto, menos mágicos. Lembro-me de que certa manhã, 
bem cedo, vi duas pequenas canoas atracadas no pequeno porto da cidadezinha 
de Santa Bárbara, inteiramente habitada por negros. Nas canoas, imóveis cano está­
tuas, com as mãos segurando os remos, se encontravam duas mulheres Cholo, nuas 
da cintura para cima. No armazém, junto ao porto, estavam dois homens Cholo, 
aguardando para vender bananas. “Vá em frente!”, disse-me o proprietário negro 
do armazém. “Eles são Cholo. Agora são meio civilizados e você pode tocá-los.”
Muito longe da costa do Pacífico e da cena onde se desenrolou a história de 
Alejandro, na qual os negrospediam aos índios que exorcizassem a praga, ao leste 
daquela enorme massa dos Andes que separa o litoral da bacia amazônica, os 
xamãs Cofán que conheço no Putumayo afirmam que nada podem fazer contra tais 
pragas. Para lidar com elas apelam aos feiticeiros negros da costa do Pacífico! 
“São eles que sabem como lidar com pragas”, insistiu Gratulina Moreno. Ouvira
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falar de curas de pragas verdadeiramente extraordinárias, efetuadas por negros da 
região do Chocó, na costa do Pacífico, e que recorriam a preces de livros espe­
ciais. “Eles chegam com suas orações e secreto, fazem o sinal-da-cruz, cospem por 
cima do ombro... sim, eles conhecem!” Havia um homem que não parava de pôr 
sangue pelo nariz. Chamaram um curandeiro negro, pobre migrante da costa do 
Pacífico. Ele pegou uma moeda de cobre de cinco centavos, quebrou um ovo em 
cima dela, colocou a moeda lambuzada na testa do paciente e fez o sinal-da-cruz 
sobre ela. Em seguida cavocou o chão, no local em que o sangue escoara, remo­
veu a terra, fez uma cruz com a sujeira no local onde o sangue estivera e a hemorra­
gia parou! “Todos os negros conhecem essas orações”, comentou Gratulina.
“É útil para nós termos esses remédios”, disse-me o esposo xamã de Gratu­
lina, Salvador, quando nos encontrávamos na margem do rio Guamuez, um afluente 
do Putumayo. Ele evocava certa ocasião em que um touro adoeceu, apresentando 
infecções e inflamações, após ter sido castrado. Convocaram um curandeiro negro 
que migrara havia alguns anos do litoral do Pacífico. Isto aconteceu apenas dois 
anos antes de Salvador ser morto pelos dardos de feitiço enviados pelos xamãs 
invejosos do rio Napo, no Equador. Ele era muito estimado na região da mon­
taria, e esse sentimento se fazia sentir até mesmo em um lugar tão distante quanto o 
Napo, conforme ficamos sabendo. Gratulina disse-me que aquele acontecimento 
já era esperado, pois a voz de Salvador, quando ele entoava suas canções de cura, 
soava como uma flauta muito débil.
Santiago Mutumbajoy disse-me que aqueles migrantes negros que habitam 
as regiões situadas no outro lado da cordillera conhecem muitas magias podero­
sas, por intermédio das quais se pode ferir e matar, e que esse conhecimento vem 
dos livros. Manuel Gómez, que migrara para o Putumayo havia 25 anos, disse- 
me a mesma coisa. “Na costa do Pacífico tem gente que é muito forte nisso, seja 
por inveja ou para fazer mal a alguém. Isto é muito, muito ruim Eles estudam 
livros de magia, aprendem orações e não gostam de tomar yagé.” “Existem 
maestros em Tumaco (o principal porto da região meridional do litoral)”, disse- 
me Santiago, “que atravessam as montanhas e vão até o Putumayo ensinar seus 
discípulos, que são feiticeiros em Orito e San Roque”.
Supõe-se que exista muito dinheiro em Orito, pois é o centro das operações 
da Texaco Oil Company nas florestas do Leste. É o protótipo da cidade colonial 
tropical repleta de energia, rodeada pela floresta, e uma chama constante, prove­
niente da queima do gás natural, projeta-se em direção ao céu. Cabos grossos 
pendem dos postes de iluminação. Existem luminárias enormes, semelhantes a 
faróis, ao longo da margem dos esgotos que correm a céu aberto paralelamente 
ás ruas. Estas são revestidas com uma camada fina de piche, que derrete como 
sorvete sob aquele sol escaldante, e só Deus sabe o que acontece com os cascos 
dos cavalos. A cadeia dos Andes é claramente visível a uma longa distância, por 
cima das árvores, e as altas montanhas são coroadas pelas nuvens que se asseme­
lham a penugem. O calor é opressivo e mistura-se com o cheiro da gasolina e do
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asfalto que derrete. As mulheres passam com sapatos de salto alto, chapinham e 
escorregam no piche pegajoso. Em todo lugar se vêem pilhas de garrafas de 
refrigerantes. Quanta habilidade, quanto dinheiro envolvido na distribuição da 
Coca-Cola, para ela acabar chegando àquele lugar tão remoto! Nas ruas, onde não 
se vê uma árvore sequer, alinham-se barracos com teto de zinco, e as antenas de 
televisão, amarradas em bambus, projetam-se para o alto, formando ângulos es­
quisitos. É a Cidade do Petróleo na Selva.
“Orito é um lugar bem feio”, comento.
“Mas o dinheiro não é feio”, retruca Santiago, que com freqüência tem sido 
convocado para ir até lá realizar emas de pessoas atingidas pela feitiçaria. O 
lugar é repleto de inveja. Estávamos conversando a respeito de Dona Leila, uma 
senhora branca que viera de Orito para que seu caminhão e sua casa fossem 
curados da feitiçaria. Quem a trouxe foi um pobre migrante negro que trabalhava 
para ela. “Sim", disse Santiago, “o nome dele é Luis... Luis... Quinones. Ele veio 
até aqui me fazer um pedido. Veio de Tumaco para encontrar trabalho em Orito. 
Empregava-se e, quando ia começar a trabalhar, uma outra pessoa ocupava o 
lugar dele. Muito bem! Ele resolveu procurar um emprego no qual pudesse traba­
lhar com contrato. A mesma coisa se repetiu. Não conseguia encontrar trabalho. 
Então... uma pessoa de Tumaco veio até aqui, pediu que eu tratasse dele e tudo 
correu bem. Ele era ourives, não?”.
“Era."
“Então ele me pediu que tratasse dele para que tivesse sorte quando fosse 
vender suas coisas, pois precisava ganhar dinheiro para poder sustentar a família. 
Fiz o que ele me pediu, a vida dele começou a melhorar, as pessoas o procura­
vam e pediam que fizesse para elas anéis, brincos., e daí por diante. Daí ele disse 
a seu paisano, a seu conterrâneo, o seguinte: ‘Vá em frente! Vá até a casa do 
amigo Santiago. Ele curará você’. Ele chegou, curei-o, mas não dei yagé para ele 
tomar! Curei-o com uma planta. Disse o seguinte: ‘Ouça! Você voltará a Orito 
com isso e, quando tiver de procurar um emprego, quebre um pedaço desta 
planta, ponha na sua mão e na sua boca e daí negocie. Ninguém tirara o emprego 
de você! Faça esta experiência!’... E foi assim que aconteceu. Ele imediatamente 
arranjou um emprego com Dona Leila.”
Estávamos sentados na varanda de sua casa com seu sobrinho Esaís, tomando 
chicha. Era o começo da tarde e a chuva começava a passar. As nuvens deslizavam 
rapidamente ao longo da silhueta recortada da cordillera. As flores do pátio 
como que imitavam o movimento das nuvens, que formavam tufos bem alvos e 
pairavam sobre os montes de um verde muito vivo. O sol fazia com que pontas 
aguçadas de verdes-cintilantes e de amarelos dardejassem das colinas e atingissem 
nossos olhos. Bebendo goles de chicha, ao som do vento que zunia e do rio que 
deslizava em seu leito rochoso, Esaís falou. “Os feiticeiros aprendem com os 
livros", falou em voz baixa no ouvido do vento. “Usam orações que tiram dos
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livros que compram nos mercados. Tudo isso funciona através de Satã. Você 
trabalha com ele ou com o yagé. Ou um ou outro; ião se pode trabalhar com os dois."
“Aquele sujeito negro a quem chamávamos de ‘filho mais velho’ e que veio 
do litoral para tomar yagé acabou se revelando um feiticeiro", disse Santiago.
“Aquele morocho trabalhava com Satã”, explicou-me Esaís. “Foi ferido num 
duelo de feitiçaria. Sentia dores horríveis e estava envolvido com todo tipo de 
feitiçaria. Contou que certa noite, lá no litoral, foi baleado e as balas atingiram 
seu peito. Mergulhou ou caiu no rio e escapou. Quando veio até aqui estava 
afundado na feitiçaria. Meu tio Santiago tomou yagé com ele, viu o que aconte­
cia e o repreendeu dizendo que tinha de mudar de comportamento."
Conheci esse morocho em novembro de 1976. Ele viera da floresta, do outro 
lado do monte, à procura de Don Santiago, pois queria tomar yagé e ser curado 
de um certo mal. Eu estava sozinho em casa e, enquanto aguardava, ele contou- 
me que sua boa sorte acabara. Sua casa se incendiara, sua canoa tinha sido rou­
bada (no litoral, em Puerto Merizalde) e ele precisava muito ser curado. Mudou 
de roupa, tirou a calça e (mal pude acreditar no que via), vestiu uma cusma índia, 
aquela túnica quesomente os índios usam. Já havia estado lá e amava o yagé e 
tudo aquilo que o acompanhava. Queria muito tomar-se um curaca índio.
Quando comuniquei a Santiago que um paciente o esperava em sua casa 
com uma triste história para contar, ele resmungou qualquer coisa e continuou 
trabalhando com seu facão. “Isto significa que ele não quer pagar. Quer que eu 
faça tudo grátis!”
O nome do “filho mais velho" era Félix. Sentado, vestido com sua cusma 
índia, contou-me que vivia basicamente daquilo que pescava no estuário lama­
cento do rio Naya. Há muitos anos os negros que viviam naquela região do rio 
costumavam tomar pildé, o nome que se dava no litoral ao yagé ou a um cipó 
que cresce lá, semelhante ao yagé. Disse-me que tomavam grandes quantidades, 
mas os jovens, atualmente, afirmam que se trata de coisa do demônio e não 
querem saber daquilo. Um pouco acima, no rio Naya, ele tivera uma experiência 
de cura, praticada por índios Cholo do rio Saija.
“Eles fazem um altar, um mesa com seis copinhos de aguardiente, seis de 
vinho branco e seis de refrigerante, com charutos e ciganos. É para os espíritos”, 
revelou-me, enquanto aguardávamos a volta de Don Santiago. “Em seguida a 
pessoa doente é deitada junto á mesa. O médico segura um bisturi que, na ver­
dade, é o remo de uma canoa, em miniatura. De vez em quando dão pildé a uma 
tonguera, geralmente uma mulher. Ela se deita, fecha os olhos e dentro de alguns 
minutos tem a resposta. O curador e os outros índios cantam durante a noite 
inteira e, pela manhã, a pessoa já apresenta melhoras. Mas não se vê nada", 
enfatizou Don Félix, “não é como acontece com o yagé-, não se vê uma sombra ou 
um movimento sequer... e de manhã, quando tiram o pano que cobre a mesa, a 
bebida ainda está lá!". Ele me pareceu indeciso.
Don Félix foi lá a primeira vez há dez anos e padecia de uma feitiçaria que
178
ningucm conseguia curar. Tudo começou com uma diarréia sanguinolenta e in­
tensas cólicas abdominais, seguidas de dores nas juntas, que avançavam em dire­
ção ao centro de seu corpo e se transformavam em uma dor crônica no estômago, 
como se ali houvesse algo sólido, procurando passar e ser vomitado. Contou-me 
que foi tratado por médicos de Buenaventura, Cali, Bogotá e outras cidades, que 
julgavam que ele tivesse amebas, mas sem nenhum resultado. Então um amigo 
de Buenaventura, um porto no Pacífico, disse-lhe que lá longe, no Putumayo, 
havia bons brujos.
Santiago chegou de seu trabalho no campo e aquela noite o índio do Putu­
mayo e o negro do outro lado das montanhas, vestidos com as suas cusmas, as 
túnicas índias, tomaram yagé. Félix começou a cantar tarde da noite, como um 
xamã. Gostei de suas cantigas, mas não era a mesma coisa. Após meia-noite 
Santiago levantou-se da rede e, cambaleante, ligou o rádio. Ele raramente ouve o 
rádio e fica zangado se está ligado enquanto tomam o yagé.
“Por que ligou o rádio ontem à noite?", perguntei pela manhã.
“Aquele morocho canta de um jeito muito feio”, disse ele, suspirando.
Tais são as dialéticas da magia, da cura e da raça.
Conforme comenta meu bom amigo Orfir, morrendo de rir, onde quer que a 
gente vá os grandes brujos se encontram em outro lugar. Em nossa cidade de 
Pueito Tejada comenta-se que os brujos do Chocó são surpreendentes. Se você 
for a Chocó lá dirão que os grandes bruxos se encontram em Pueito Tejada. E 
assim por diante, o distante se fricciona com o familiar, o primitivo com o mo­
derno, a floresta com a cidade e a raça com a raça, por meio de um movimento 
criador de magia. Essas imputações de magia à alteridade induzem ao encanta­
mento da mistura da diferença, em uma poética do lugar e da raça não moios 
política e econômica do que estética. Tomemos, por exemplo, a servidão, con­
forme o relato que me fizeram algumas amigas, em uma aldeia situada nas proxi­
midades de Puerto Tejada. São filhas de camponeses e agora se tomaram mães. 
Algumas trabalham nos canaviais, outras são mascates e muitas se empregam 
como criadas nas cidades próximas ou distantes. Walter Benjamin viu na reunião 
do viajante que retoma com aqueles que ficaram em casa, não menos do que as 
reuniões que se realizam na loja de um artesão, uma oportunidade toda especial 
para a narração de histórias mágicas.1 No Terceiro Mundo dos dias de hoje exis­
tem muito mais empregadas domésticas do que artesãos, mas, ainda assim, as 
histórias fluem. “Algumas patroas recorrem á magia para amarrar (ligar) suas 
empregadas na casa e tomá-las leais e trabalhadoras”, contava-me minha amiga 
Elbia. “Algumas empregadas combinam com suas patroas de fazer feitiçaria com 
os maridos delas e ‘amarrá-los’!” Algumas vezes ouve-se falar de uma empre­
gada que faz uma “amarração” para a própria patroa! As empregadas do litoral 
do Pacífico são inclinadas a isso! Sim! Elas se empregam e vão embora quando 
bem entendem. Algumas chegam a bater nas patroas!
179
“As patroas fazem tão pouca coisa", comentou com um suspiro uma moça 
que ouvia nosssa conversa. “Jogam bingo, passeiam pelas ruas ou batem papo no 
telefone. O assunto principal é como somos boas ou más."
Aqui, nesta aldeia, somente as bruxas conseguem voar. “Um homem e uma 
mulher estavam aprendendo bruxaria, estavam aprendendo a voar. Eles tinham 
de repetir ’’sin Dios, sin ley y sin Santa María' (sem Deus, sem lei e sem a 
Virgem Maria). A mulher disse direitinho e conseguiu voar. Mas o homem disse 
con Dios, con ley y con Santa María (com Deus, com a lei e com a Virgem 
Maria) e daí não teve condições de voar. Os homens não voam nunca!"
Eles, porém, se preocupam quando são considerados como pessoas que se 
colocam acima das outras, quando atiçam a inveja e ela se transforma em ação, 
em situações em que eles fracassam e deixam de fazer o que deles se espera. Foi 
por isso que o marido de minha amiga Elbia, dono de um barzinho onde havia 
duas mesas de bilhar alugadas, teve seu estabelecimento curado em três noites 
sucessivas, por meio de líquidos mágicos, garrafas com ervas enterradas na so­
leira, e remédios que ele tomou e o fizeram mergulhar em um sono profundo. 
“Fizemos isso para impedir que a inveja entrasse no bar e nos matasse”, contou- 
me ele. O curandeiro era um mulato e cobrou caro (2.000 pesos, numa época em 
que o salário girava em tomo de 150 pesos por dia). Ninguém sabia de onde ele 
tinha vindo. Lembravam-se apenas que ele dizia que tinha aprendido sua arte 
com os índios do Putumayo. Depois disso ninguém soube dizer para onde ele foi.
As três potências
Um novo espírito curador haveria de se manifestar na capital da nação. Seu 
nome era El Negro Felipe, e disseram-me que ele vinha da Venezuela. As pes­
soas que até recentemente depositavam sua fé em outro espírito venezuelano, o 
piedoso médico José Gregorio, agora o deixavam de lado e procuravam a cura 
com El Negro Felipe. Fui a um centro espírita localizado em um bairro da cidade 
onde moravam trabalhadores, e ali médiuns espíritas brancas faziam seu culto. 
Ele era retratado e esculpido como um negro que usava um turbante indiano e 
um elegante casaco de soldado, com um colarinho rendado e dragonas. Ele ine­
gavelmente se assemelhava a um negro, mas ainda assim a médium espírita branca 
disse a um grupo de cerca de 35 pessoas, entre as quais eu me incluía, e que 
foram ao centro se consultar, que era um índio, nascido em uma tribo da Vene­
zuela há muito tempo, e que Deus lhe concedera um grande carisma.
Decorridos alguns dias naquela terra quente, comprei um quadro emoldu­
rado, no formato de cartão-postal, de Las Tres Potências; adquiri-o no mercado 
de Puerto Tejada de um homem que vendia retratos de diversos santos. Meu olhar 
foi cativado por uma imagem familiar. Era nada mais nada menos do que El 
Negro Felipe, agora apresentado como uma das três potências. Perguntei ao ven­
180
dedor, um branco da cidade de Cali, quem eram essas três figuras. O rosto àesquerda, disse ele, na de Huefia, um negro nômade. A mulher do centro era Teresa 
Yataque e a figura da direita era Francisco Chasoy. Os três eram do Putumayo!
Fiz a mesma pergunta a minha amiga Maria Sol. Ela recuou assustada, 
dizendo que era um retrato usado na feitiçaria. A pessoa à esquerda era um feiti­
ceiro negro, o brujo Mayombé; a do centro era a rainha dos feiticeiros e a da 
direita, um feiticeiro índio.
Com grande autoridade uma índia que vendia ervas medicinais e amuletos 
mágicos nas fervilhantes ruas de Cali declarou-me que aquelas três figuras eram 
de índios panamenhos. Um velho branco que vendia limonada passou por nós e 
ficou muito excitado. “É o retrato de três índios do Putumayo”, exclamou. Um 
rapaz de Bogotá que vendia quadros de santos na calçada da igreja de São Fran­
cisco, em Cali, disse-me que era o retrato de santos venezuelanos: o Negro Fe­
lipe à nossa esquerda, Maria Lionsa no centro e o indio Guaicaipuro à direita. 
Em uma barraca ao lado da sua uma negra lançou um rápido olhar às três potên­
cias e, sem hesitar, declarou que eram três índios de Quito, Equador. “Cada pes­
soa tem sua própria história", comentou com um sorriso minha amiga Dalila, de 
14 anos. Eis, portanto, outra história de como a sociedade opera com uma reserva 
de imagens e relações entre imagens correspondentes à magia das raças, as Três 
Potências.
O eflúvio mágico do índio primordial também pode ser encontrado nos so­
nhos de rendenção dos moradores dos cortiços da cidade de Cali, um lugar onde 
não existem índios desde o início da conquista espanhola, em 1536. Chris Birk- 
beck publicou o seguinte sonho, extraído de suas anotações de campo, em 1977.
Dou Colo é proprietário de um pequeno armazém situado em um dos bairros mais 
pobres de Cali. Certo dia, não faz muito tempo, andava pelos arredores da cidade e sentiu 
vontade de evacuar. Dirigiu-se então a um bananal, ao lado da estrada. Como não dispunha 
de papel, usou as folhas de uma planta e, ao voltar para casa, se deu conta de que havia 
perdido o anel. À noite sonhou que a perda do anel estava relacionada com a planta, cujas 
folhas usara aquele dia. No dia seguinte voltou ao bananal, juntou algumas daquelas folhas 
e as levou para casa. Esfregou as folhas no anel de ouro de sua filha e ele tomou-se eUstico 
e maleável. Compreendeu então que havia encontrado aquela planta legendária, há muito 
tempo perdida, que os índios usavam para trabalhar o ouro com grande delicadeza. Ele, por 
sua vez, poderia tomar-se uma lenda, mas isto não haveria de acontecer; pois Doo Colo temia 
divulgar seu segredo. Receava que alguém se aproveitasse desse fato e ganhasse a fortuna 
que lhe era devida.2
Esta história foi usada como prova do desespero do povo, sempre à espera 
de um falso milagre, e como ilustração do “mesquinho individualismo burguês" 
daqueles que ganham a vida no “setor informal" da economia. No entanto há 
mais coisas a serem ditas (e não apenas o fato de Don Colo esfregar o anel de 
ouro de sua filha). Focalizar-se exclusivamente os interesses econômicos cons­
cientes do indivíduo é perder de vista a mitopoética colonial que abre caminho
181
através do inconsciente político. O conteúdo do sonho, bem como dessa história, 
que, no todo, se assemelha a um sonho, nos remetem não só á expectativa de um 
falso milagre por parte do indivíduo, mas também às concepções populares do 
milagroso e dos segredos redentores do conhecimento alquímico, podido para a 
história manifesta e, no entànto, acessível através da coincidência e do infortú­
nio, sob a forma de um sonho, no qual a história (e não unicamente um anel de 
ouro) se toma maleável através da magia indígena.
O Museu do Ouro, universalmente conhecido, localizado na sede do Banco 
de La República, em Bogotá, pode com toda certeza ser qualificado como um 
totem nacional. Repleto de artefatos de ouro que datam da época da conquista 
européia e de muito antes, suas peças pequenas, porém reluzentes, brilham como 
estrelas na escuridão artificial, fazendo do museu uma igreja cujos rituais diários 
da magia, planejados e supervisionados por uma equipe científica de etnólogos e 
arqueólogos, que operam nas sala dos fundos para a multidão de peregrinos, 
recriam os sonhos de moradores de cortiços como Don Colo, em Ca li. A expe­
riência suprema, segundo a definição do museu, está em seu santuário mais re­
côndito, protegido por homens armados e pesadas portas de metal, através das 
quais a multidão é desviada a cada momento. Lá dentro é escuro como breu. Espe­
ramos. A multidão se mexe, inquieta. Esta é a fase da communitas que, na ver­
dade, não passa de um rito de iniciação. Ela termina abruptamente, quando um 
fulgor dourado invade a sala e todos os nossos sentidos. Encontramo-nos em um 
recinto abarrotado de objetos indígenas de ouro amontoados um em cima do 
outro: argolas de nariz, peitorais, braceletes, vasos, rãs, onças, morcegos, jacarés, 
índios, todos dourados... jogados um ao lado do outro, como lixo espalhado no 
quintal. O ouro prolifera como velhas latas de conserva. A multidão solta um 
suspiro de admiração.
Lembro-me de que Santiago Mutumbajoy ficou muito contente quando uma 
mulher branca de Cúcuta lhe petguntou não apenas se ele era batizado e um 
verdadeiro cristão, mas se podia revelar o secreto que permitia encontrar ouro.
A alguns quarteirões do Museu do Ouro, na ma que passa pelo Cemitério 
Central, reúne-se toda segunda-feira um numeroso grupo de pessoas dedicadas 
ao culto dos mortos ou, mais precisamente, ao culto das almas do purgatório, 
almas perdidas e solitárias. Algumas delas se dirigem aos túmulos de gente fa­
mosa e lá praticam ritos mágicos, solicitando sucesso, saúde e dinheiro. Outras 
vão até os buracos negros e vazios, que outrora abrigavam corpos, e lá acendem 
velas, no espaço da morte. Lá fora na ma, por detrás das mulheres que vendem 
flores e velas, perfumes e sabonetes mágicos, amuletos e quadros de santos, in­
cluindo agora as Tres Potências, e por detrás da multidão — algumas pessoas 
ficam paradas, eretas, outras oscilam para a frente e para trás, murmurando ora­
ções mágicas diante dos pingos ressequidos de velas há muito queimadas —, por 
detrás de tudo isto, enfim, estende-se ao longo da ma Vinte e Seis o carnaval do 
grotesco, dos marginalizados, dos miseráveis entre os mais miseráveis: uma
182
trouxa em forma de tenda que, na verdade, é um anão sem membros. Um par de 
órbitas oculares, alvas como o alabastro, com cicatrizes de um vermelho muito 
vivo, brilha no rosto de um homem. Um velho magro, vestido de preto, senta-se 
muito ereto em uma cadeira de rodas feita em casa e segura um guarda-chuva 
negro que lhe protege a cabeça. Em seu colo acaricia um cachorrinho peludo, obsce­
namente normal e entemecedor, nessa terra de deformados e inomináveis. Ele 
está absolutamente parado. Seu cotovelo repusa em uma plataforma sobre rodas, 
que é um verdadeiro trambolho. Nela está deitada uma garota totalmente parali­
sada, e seu rosto é um arrebatamento de vacuidade desprovida de fala. Atrás 
deles estão algumas índias que vieram de longe, do vale do Sibundoy, na extre­
midade setentrional do país. Estão vendendo coralitos e amuletos, além de algo 
mais: garrafas de remédios, escondidas debaixo de seus tabuleiros.
A multidão é compacta e se pisoteia na rua Vinte e Seis, no dia das almas 
perdidas do purgatório. A multidão zumbe, como um enxame de abelhas. O que 
está acontecendo? No alto de uma escada de mão encontra-se uma caixa qua­
drada de madeira, e cada lado mede cerca de um metro. Por 100 pesos um homem 
com um megafone abrirá as portas da caixa. Dentro, desprovido de expressão, 
está um menino sem corpo. É meigo, tal como um anjo. Em sua boca segura um 
envelope, o qual contém uma profecia. Ela é sua por 100 pesos. As portas se 
fecham sobre o rosto sem corpo. Queremos ver mais. Tão meigo. As portas quese abrem para o futuro revelado por uma criança amputada.
Sim, disse-me Carlos Pinzón. Há alguns meses havia uma coisa mais ou 
menos idêntica, só que em vez de um menino meigo usaram um cérebro metido 
dentro de um saco de plástico — o cérebro de um indio. E era assim que chama­
vam esse oráculo das ruas: o cérebro do indio.
Longe do barulho e da sujeira dos cortiços, nas livrarias freqüentadas pela 
classe média, pelos ricos e pelos turistas do que se convenciona chamar os países 
desenvolvidos, existem muitos livros sobre os índios. Muitas vezes esses livros 
mostram índios, animais selvagens exóticos e plantas, todos agrupados, como se 
pertencessem e constituíssem uma única categoria. Tais livros são verdadeiros 
fetiches, ícones resplandecentes em suas fotografias coloridas brilhantes e em 
seu preços salgados. Até mesmo os textos de história adotados nas escolas de 
todo o país dedicam de um quarto a um terço de seus capítulos aos índios, sobre­
tudo às sociedades e aos costumes da pré-conquista (no entanto neles mal se lê 
uma menção, para não falar de um capítulo, á escravidão africana ou à história 
do negro, em uma sociedade cuja economia apoiou-se grandemente nas costas 
dos negros e de seus descendentes, muito mais do que nas dos índios). Seja na 
linguagem categorizada da história, da antropologia ou da arqueologia, ou nos 
sonhos dos pobres, a imagem do índio enfeitiça. É um feitiço não menos cati­
vante do que a magia no interior da Igreja e do que a descoberta epifãnica de 
seus milagrosos santos e virgens, conforme veremos a seguir.
183
10
A mulher selvagem da floresta 
toma-se Nossa Senhora dos Remédios
O Senhor dos Milagres de Buga introduz uma profunda ironia na história 
do infortúnio de Transito. Declarando enfaticamente que despreza índios, ela rea­
lizou uma árdua peregrinação, percorrendo centenas de quilômetros e atravessando 
montanhas para visitar um Cristo que, segundo diz, foi descoberto há milhares de 
anos por um índio. Há muitos santos milagrosos na América Latina que foram 
descobertos por índios ou se manifestaram a eles pela primeira vez, e cada santo 
apresenta determinada característica ligada á sua descoberta. Esses santos que se 
manifestaram a índios e as circunstâncias especiais que cercam a história de sua 
descoberta constituem um mapa de redenção traçado na terra. Cada circunstância 
é como um significante, dependendo do mapa como um todo para realizar seu 
significado. Cada peregrino que participa de cada peregrinação é como o ato de 
falar, transportando aquele significado para uma atualidade concreta.
Deslocando-nos alguns quilômetros em direção ao sul, a partir do Senhor 
dos Milagres de Buga, e seguindo o vale chegamos a Cali, a maior cidade do 
Sudoeste da Colômbia, cuja padroeira é Nossa Senhora dos Remédios, venerada 
na capela da igreja de La Merced. De acordo com o livreto publicado pelos 
padres da igreja e que recebi de presente em 1982, o primeiro branco a vê-la foi 
um missionário que propagava a fé nos Andes, ao norte de Cali, em 1560, decor­
ridos 24 anos do início da conquista espanhola naquela região. Um índio contou- 
lhe que no mais recôndito da selva havia uma imagem idêntica àquela que ele 
venerava em seu quarto. Os índios chamavam-na a “Mulher Selvagem da Flo­
resta", La Montafíerita Cimarrona. Faziam-lhe oferendas de produtos de suas 
roças e de animais da floresta, para que suas colheitas e caçadas fossem abun­
dantes. Tocavam suas flautas e dançavam para ela “com a flexibilidade de corpos 
livres da opressão imposta pelas vestimentas européias". No século XVII, se­
gundo um testemunho autorizado, citado no livreto que mencionei, os índios são 
constantemente referidos como indios bárbaros.
184
O missionário, Miguel de Soto, era manco e fez os índios levarem-no em 
suas costas até a “Senhora Selvagem” para verificar se o que eles diziam « a 
verdade. Ele foi transportado através de florestas marcadas pelas pegadas de ani­
mais selvagens. O sol filtrava suavemente através do rendado verde da selva, 
deixando rastros de ouro nas folhas caídas que cobriam a beirada das trilhas. Ao 
longe ele ouvia o silvar das cobras. Os cipós se entrelaçavam, formando mono­
gramas caprichosos. As noites não eram apenas o que existia de mais escuro, mas 
infinitos rumores invadiam a selva. É o que lemos.
Naquelas selvas aromáticas, cheias de ruídos, situadas a apenas algumas 
léguas do mar de Balboa, o padre Miguel de Soto viu-se diante da mais perfeita 
imagem da feminilidade com que jamais se havia deparado, talhada em pedra, 
em um nicho enfeitado com cipós e samambaias. Seus olhos encerravam uma 
doçura mística, seu sorriso era divino e em seus braços o Menino Jesus segurava 
um ftuto tropical.
O padre ordenou que a imagem fosse transportada para o convento de La 
Merced, na nova cidade de Cali. Certa noite ela desapareceu e foi encontrada 
novamente na selva. Foi levada de volta para seu altar em Cali, mas por duas vezes 
conseguiu escapar e voltar para seu nicho na floresta, situada a apenas algumas 
léguas do mar de Balboa, até que lhe construíram uma capela especial. Em con­
seqüência dos muitos milagres comprovados que ela operou em favor da gente 
branca e civilizada de Cali, seu nome passou de Mulher Selvagem da Floresta a 
Nossa Senhora dos Remédios. Conquistada e domesticada, a selvageria conserva 
seu poder de cura. Nos dias de hoje imagens de índios seminus rodeiam a santa.
Como ocorreu com o Senhor dos Milagres de Buga, farol que guiava a 
peregrinação de Rosário, é o índio que a história escolhe para fornecer à raça 
civilizada e conquistadora um ícone milagroso. Assim como o escravo atende as 
necessidades de seu senhor, os conquistados redimem seus conquistadores. No 
caso da Senhora Selvagem da Floresta, transformada em Nossa Senhora dos Re­
médios, sua mitologia, que a Igreja autentica, é surpreendentemente clara no que 
diz respeito à contradição que constitui o que Jean Barstow denomina “o poder 
insuspeitado dos que são privados de poder”; o status moral ambivalente de rá­
dios, pagãos-cristãos, índios bárbaros das selvas, abençoados por um parentesco 
espiritual aborígine com a Mãe do Deus dos cristãos conquistadores.
Embora aqui os índios sejam claramente selvagens e, como tal, contrastan­
tes com o Velho Mundo da Europa, não há indício algum de que sejam maus ou 
combativos. No entanto, a selva que contém os índios e seu ícone milagroso é 
diferente. Ela é verdadeiramente maléfica, barroca em sua folhagem rendada, 
fala com o homem através de monogramas caprichosos, em meio aos cheiros da 
noite e aos barulhos que se filtram na escuridão, através da qual, a exemplo do 
que ocorre nos círculos do infemo, o padre manco é transportado por seus guias 
pagãos, a fim de encontrar sua Beatriz esculpida na parte superior de um ro­
chedo. Em vista disso, sua jornada assombrosa pode ser comparada com aquela
empreendida pelo capitão Cochrane, que abordaremos posteriormente, aquele ca­
pitão Cochrane da Marinha inglesa, que também foi carregado nas costas de 
índios, em meados do século XIX, naquela mesma selva “situada a apenas algu­
mas léguas do mar de Balboa".
A Nina Maria de Caloto: a história oficial
O singular paradoxo que reveste a figura do índio privado de poder e lhe 
confere o poder de criar santos e virgens milagrosamente poderosos manifesta-se 
também por uma famosa Virgem, nos contrafortes da cadeia central dos Andes, a 
uns oitenta quilômetros ao sul de Cali. Trata-se da Virgem de Caloto, conhecida 
como a Nina Maria. Em seu caso, porém, ocorre uma inversão do relaciona­
mento manifestado pela Mulher Selvagem da Floresta com Nossa Senhora dos 
Remédios. Na história oficial que a Igreja apresenta, ao abordar a Nina Maria, os 
índios, do modo mais enfático possível, não são retratados como criaturas angeli­
cais e inocentes, mas, ao contrário, como canibais pagãosselvagens e rebeldes, 
os opostos mais acabados ao que um cristão deve ser. Ao lado dos testemunhos 
absolutamente contraditórios, propiciados não somente pela história oficial mas 
também pela história oral, essa característica abre pistas para que se entenda a 
realidade mágica de que tratamos, isto é, a realidade dessa Virgem milagrosa, tanto 
quanto a natureza milagrosa da realidade depende, de modo muito curioso, das 
histórias contraditórias que circulam em tomo dela, através daquilo que se diz. É 
este ouvir e falar efervescente e contraditório, que se dá em tomo do ícone, que 
precisa ser levado em consideração antes de mais nada, se acaso quisermos en­
tender o modo pelo qual o milagroso é cotidiano e o ícone serve como um meio 
de apropriação experimental da história.
A Nina Maria é uma pequenina boneca de madeira e mede 67 centímetros 
de altura. Até o fim do século XVIII era conhecida como a Virgem do Rosário e 
carregava um Menino Jesus nos braços, mas nos dias de hoje está sem ele, e é a 
figura central atrás do altar da única igreja da pequena cidade. Trata-se de uma 
edificação colonial, simples, que chama a atenção e forma um dos lados da praça 
principal. Sua fiesta anual, realizada no mês de setembro, é esplêndida e atrai 
milhares de devotos, sobretudo gente que os moradores da cidade denominam 
indios, provenientes dos acidentados contrafortes dos Andes, que se erguem ma­
jestosos nos limites orientais da localidade. Caloto é habitada principalmente por 
brancos, e a cálida planície, que se estende em direção ao oeste e ao norte, abaixo da 
cidade, com seu gado e seus canaviais ondulantes, é habitada sobretudo por cam­
poneses negros pobres e por diaristas. Não sei o que os índios pensam daquela 
cidadezinha plantada no sopé das montanhas. Eles raramente descem de suas 
habitações e vão até lá. No entanto, os negros que conheci não hesitam em des-
186
crevê-la como uma localidade dc brancos, solitária, silenciosa, entediante, um 
bastião do Partido Conservador.
De acordo com um folheto publicado pela arquidiocese de Popayán, a efí­
gie da Nina Maria foi trazida pelos primeiros espanhóis que fundaram o povoado 
de Caloto em meados do século XVI. Era então uma localidade de “mineradores” 
de ouro (isto, em geral, referia-se a brancos que obrigavam os escravos índios ou 
africanos a garimpar ouro). O povoado teve de mudar de lugar várias vezes, no 
decurso de meio século, devido ás investidas dos índios Pijao. Em 1585, de acordo 
com essa história oficial, os índios atacaram Caloto a fim de se apoderarem da 
Nina Maria, enquanto se celebrava a missa, na Quinta-feira Santa. Mataram o 
padre e levaram a imagem. Segundo a versão do padre Lozano, inserida no corpo 
da narrativa principal, diz-se que os índios mataram a maioria dos brancos. Era 
costume dos índios, após uma expedição bem-sucedida, comemorar durante três 
dias com bebidas que provocavam a embriaguez, e dormir durante mais três. 
Então o imortal Calambas, chefe dos índios cristãos, investiu contra eles, acom­
panhado de seus guerreiros. Certos de que a Nina Maria seria horrivelmente profa­
nada, é de se imaginar sua surpresa, escreve o padre Lozano, ao descobrir que os 
selvagens a haviam colocado em um belo trono de flores. Após 24 horas de sangui­
nolento combate, os espanhóis conseguiram dominar os canibais e se apoderaram 
da imagem
Os Pijao voltaram a atacar mais duas vezes e, na terceira ocasião, em 1592, 
levaram de novo a imagem sagrada. Os espanhóis conseguiram trazê-la nova­
mente de volta e desde então ela realizou muitos milagres. Um deles — e não o 
menor — foi vir em defesa do pueblo de Caloto, freqüentemente perseguido, a 
exemplo do que ocorreu em 1810, por ocasião das guerras da independência e 
das persistentes guerras civis daquele século de conflagrações, quando Caloto 
apoiou orgulhosamente a causa do Partido Conservador contra o Partido Liberal, 
nos conflitos de 1851,1860,1879 e 1899.
A exemplo do que aconteceu com a Mulher Selvagem da Floresta, que se 
tomou Nossa Senhora dos Remédios, a natureza milagrosa da Nina Maria de­
pende grandemente da presença do índio, mas, cm profundo contraste com Nossa 
Senhora dos Remédios, os índios, na história que a Igreja publicou sobre a Nina 
Maria, são retratados como rebeldes militantes e canibais selvagens. Além do 
mais o ícone não é aborígine. Foram os espanhóis que a trouxeram para a fron­
teira daquela região selvagem rica em ouro. O fato que propicia á lenda aquilo 
que poderíamos denominar a “chave política”, que vive ativamente no presente, 
é que, a despeito de sua selvageria, os índios são seduzidos por ela. É este “mi­
lagre” que confere significado, desvenda e desenvolve a natureza milagrosa da 
imagem, cuja magia, daí por diante, serviu para defender os cristãos de outras 
investidas dos selvagens e protegeu a localidade durante a Guerra Civil.
Nas xilogravuras feitas recentemente por um romeiro com a intenção de 
retratar a história oficial, em exibição na residência do padre, é feita uma nítida
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distinção entre dois diferentes grupos ou tipos de índios, os católicos que ajuda­
ram os espanhóis e os selvagens que roubaram a Virgem, assassinaram o padre e 
levaram sua cabeça. A distinção é importante, na medida em que não apenas 
ressurge nos relatórios dos franciscanos sobre a região do Putumayo no tempo 
colonial (estabelecem igualmente uma distinção entre os índios das montanhas e 
os da planície), representa os aucas, chunchos etc., estabelecidos na montaria 
andina do Equador, Peru e Bolívia, como índios selvagens, e representa também 
o caráter dualizado do “índio" como uma categoria social e um personagem moral. 
Não somente havia índios pagãos e índios convertidos existindo como verdadei­
ros grupos sociais, mas a imagem colonialmente sugerida e ainda efervescente 
do índio depende precisamente dessa combinação de opostos, na qual a selvage- 
r iaeo cristianismo se apóiam e se subvertem mutuamente.
Esse debruçar sobre a relevância semântica da dependência de um ser se mani­
festa em um registro diferente, através do contraste entre as histórias oficiais da 
Nina Maria e de Nossa Senhora dos Remédios. Tal debruçar toma-se, no entanto, 
positivamente insistente quando nos voltamos para as disparidades existentes entre 
os relatos oficiais e oficiosos relativos a virgens milagrosas, introduzidos no reino 
deste mundo pelas descobertas pagãs. Tomemos a Nina Maria como exemplo.
A Nina Maria: história popular e histórias
Das 32 pessoas com quem me encontrei pela primeira vez em 1982 e com 
quem falei rapidamente na cidade de Caloto e ao longo da estrada principal que 
levava á planície, seis declararam que não tinham conhecimento da Niiía Maria. 
Ao todo falei com três índios, dezesseis brancos e treze negros, todos adultos. 
Somente cinco pessoas fizeram relatos que coincidiam com a história oficial.
“É uma imagem espanhola", disse a sobrinha do padre. “Os índios a rouba­
ram Graças a ela conseguiam atacar os espanhóis e a veneravam Os espanhóis a 
recuperaram e desde então conseguiram resistir aos índios."
“Os índios a cultuavam", enfatizou o padre. “Estimavam-na e foi por isso 
que a levaram. Odiavam os brancos, mas não a religião."
Contrariamente a essas declarações, catorze pessoas me surpreenderam ao 
dizer que ela era uma Virgem india, que apareceu em primeiro lugar para os índios e 
não para os brancos, e que tinham sido estes que a roubaram dos índios! Seis 
negros, seis brancos e dois índios prestaram esse depoimento. Um negro, pro­
prietário de um pequenino armazém a um quilômetro da cidade, disse: “Alguns 
indios a encontraram, porém mais do que isso eu não sei". Uma branca que 
vendia café em uma aldeia das redondezas disse: “A Virgem apareceu para os 
índios selvagens nos morros de Caloto para fazer com que eles tivessem fé”.
“É uma santa dos índios!”, exclamou uma mulher brancade meia-idade que 
vendia amendoins na praça principal da cidade. “Esta terra era inteira deles e ela
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os protegia. Quando os espanhóis chegaram ela fez com que parecesse que exis­
tiam milhares de guerreiros índios, e isto assustou os espanhóis, que fugiram’*
Uma negra que vendia bananas no mercado declarou: “Ela potência ao povo 
índio, a seus caciques. Encontraram-na lá nas montanhas. Ela apareceu como se 
fosse uma pessoa de verdade. Então outro grupo de índios a roubou. Os caciques 
pegaram-na de volta e a puseram na igreja de Caloto. O grupo que a roubou 
também queria sua coroa de ouro. Ela faz milagres, mas os índios não lhe dão o 
devido valor. No dia 8 de setembro (sua festa anual) ficam terrivelmente bêba­
dos. Porém têm muita fé nela, embora fiquem largados na sarjeta como cachor­
ros. No ano passado um ladrão tentou roubar a coroa, que era vigiada por um 
policial. O ladrão abriu a porta, mas por um milagre pareceu-lhe que tinha mais 
de mil policiais montando guarda lá. Muitos pueblos sentem inveja de Caloto e 
tentaram destruir a cidade e levar a Virgem embora. Invejam a Virgem tanto 
quanto o pueblo. E por que a inveja? Ninguém consegue explicar a inveja; é que 
o mundo tem gente de mau coração (gente de mala corazón)”.
Quatro pessoas não fizeram a menor menção a índios ou á história colonial 
e à conquista. Em vez disso declararam que ela apareceu posteriormente, no 
século XIX. Um negro, no ônibus que entrava na cidade, disse simplesmente que 
ela apareceu pela primeira vez na época da Guerra Civil, a fim de salvar o Par­
tido Conservador. Um barbeiro, homem branco muito velho, sentado diante da 
praça da qual se avistava a igreja, disse que ela apareceu durante “as guerras”, 
isto é, as guerras entre os liberais e os conservadores. Os liberais, muito confian­
tes, atacavam a cidade mas fugiram, atemorizados; a Nina Maria havia criado uma 
ilusão de barulho e confusão, dando a impressão de que a cidade era defendida por 
conservadores que superavam em grande número seus atacantes. O rapaz branco 
que tomava conta do salão de bilhar ao lado da barbearia disse que não conhecia 
de fato sua história, mas que ela apareceu durante a Violência, isto é, aqueles 
embates sangrentos entre liberais e conservadores que devastaram boa parte da 
Colômbia rural de 1948 a 1958.
Na cidadezinha predominantemente negra de Puerto Tejada, vizinha de Caloto, 
um amigo me disse que a primeira aparição da Virgem ocorreu durante a Guerra 
dos Mil Dias, que durou de 1899 a 1901. Um famoso general negro, Juan Zappe, 
habitualmente conservador (mas, até certo ponto, um camaleão), travava, junta­
mente com seus guerrilheiros, um árduo combate com as tropas liberais. Sua muni­
ção quase chegara ao fim. A derrota parecia certa. Então a Nina Maria apareceu 
milagrosamente, provocando alucinações no inimigo e criando a ilusão de que os 
conservadores eram muito mais fortes do que parecia. Então os homens do gene­
ral Zappe foram vitoriosos, e atualmente a família Zappe participa orgulhosa­
mente todo ano da festa da Nina Maria em Caloto.
Uma senhora de certa idade, Ana Guambia, faz parte da elite de Caloto. É 
pintora e é a principal, se não a única, estimuladora do movimento de folclore local. 
Ela encara a Virgem milagrosa como uma arma mágica quando se trata de confli­
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tos raciais e espirituais. Afirma que os espanhóis eram muito supersticiosos, bem 
como os índios, e que, em suas campanhas de conquista, eles transportavam uma 
imagem da Virgem, possivelmente feita em Quito, que os protegia. Os índios 
compreenderam esse fato. Entenderam que a Virgem era uma arma mágica e 
decidiram roubá-la, minando desse modo o poder de seus opressores. Eles se 
apoderaram da imagem c começaram a destruí-la. Hoje percebe-se que embora o 
rosto ainda esteja perfeito, debaixo das roupas seu corpo está desfigurado. Então 
os índios começaram a padecer de pragas, tais como a varíola e o sarampo, seu 
cacique morreu de um ataque cardíaco e eles começaram a se dar conta de que 
em vez de destruí-la deveriam venerá-la. Foi então que os espanhóis a encontraram, 
adorada pelos índios, que a cobriam inteiramente de flores.
Finalmente uma enfermeira negra que atendia um amigo meu que estava à 
beira da morte, nos arredores da cidade, em uma choupana encostada nos cana­
viais, fez uma ligação lírica entre a Nina Maria e o Senhor dos Milagres de Buga, 
a uns 200 quilômetros ao norte de Caloto.
“Alguns índios a encontraram num bambual, e daí ela foi embora. Estava 
descalça. Os índios voltaram a encontrá-la, trouxeram-na para Caloto e começa­
ram a fazer festas para ela. Você não viu?", perguntou-me. “É uma fies ta de 
índios!" Fez uma pausa. “As pessoas contam que quando ela foi embora, partiu 
para Buga, a fim de ficar com o Senhor dos Milagres, pois naquela época ele era 
uma criança.”
Um diálogo de dupla visão
Das 36 pessoas com quem conversei, seis declararam não ter conhecimento 
da gênese da Nina Maria. Apenas cinco coincidem com a história oficial. Alegam 
que a imagem pertenceu aos espanhóis, que foi brutalmente roubada por índios 
canibais e que seu poder milagroso foi truzido a este mundo por selvagens que 
sucumbiram a seu encanto cristão.
Em completa contradição com a história oficial, a versão oral mais comum, 
sustentada por negros, brancos e índios, afirma que os espanhóis roubaram a ima­
gem dos índios e que se trata de um ícone essencialmente indígena. Isto abrange 
vários relatos, com diferentes implicações políticas.
No relato da negra que vende bananas no mercado, dois temas de importân­
cia são abordados. Reconhecendo que a Virgem milagrosa pertencia inicialmente 
ao povo indígena e que este deposita grande fé nela, a vendedora de bananas nota 
que os índios não a apreciam devidamente. Ficam bêbados em sua festa, esten­
dem-se na sarjeta como cachorros. Ao passo que a bestialidade do índio é neces­
sária para trazer ao mundo a Virgem e seus poderes milagrosos, uma apreciação 
consciente, a percepção, os cuidados subseqüentes e o desenvolvimento desse poder 
requerem uma sensibilidade muito diferente, isto é, aquela associada a quem não
190
é índio. Existe aqui uma divisão racial do trabalho espiritual na criação do poder 
milagroso da santa, na qual o índio bestial, pagão e selvagem, é necessário, do 
mesmo modo que um cachorro ou um bêbado conseguem sentir e atrair influên­
cias às quais um homem civilizado e sóbrio é insensível
Um segundo tema no relato da vendedora de bananas diz respeito á impor­
tância primordial da inveja, da reciprocidade e da ilusão. A Virgem estimula a 
inveja da parte de outros pueblos, da mesma forma que protege Caloto da agres­
são dos invejosos. Ao estimular e desviar a inveja ela apresenta um dilema bá­
sico não apenas para a feitiçaria e a cura mágica, mas para os relacionamentos 
interpessoais em geral, tão vividamente ilustrados nas vidas de Rosário e José 
Garcia. A exemplo do que acontece com eles, a alucinação salta do seio da in­
veja, rompe-o e faz com que essa inveja seja provocada, resolvida ou ambos. 
Além do mais, o modo pelo qual a Virgem protege seu povo da inveja que ela 
estimula nos outros consiste em induzir á alucinação, transformando uma reali­
dade em outra, e com isso causando confusão. Pelo que foi dito, a alucinação se 
fez presente nas guerras de conquista, nas da independência, nas guerras civis do 
século XIX, na Violência de meados deste século e há alguns meses, quando um 
ladrão tentou roubar a coroa da Nina Maria (cabe notar aqui que a magia é usada 
a fim de impedir o roubo na Colômbia, e na maioria dos casos de que tenho 
conhecimento o objetivo dessa magia é o mesmo atribuído à Virgem, isto é, criar 
o medo, quando não a confusão, por meio da ilusão de uma força protetora, tal 
como uma cobra ou uma onça).
Voltemos agora â mulher que vende amendoins na praça. Ela disse que a 
Virgem é umasanta dos índios. Esta terra lhes pertencia. Ela os protegia. Quando 
os espanhóis chegaram ela fez com que parecesse existir um número imenso de 
guerreiros índios, e isso assustou e afugentou os espanhóis. O que me parece intri­
gante é que o poder mágico da Virgem no sentido de criar uma realidade assusta­
dora por meio da ilusão é empregado primeiramente contra 06 espanhóis, sustentando 
seus mitos e fantasias relativas aos poderes dos índios. Além do mais, a história, 
tal como é narrada, reconhece a base ilusória desse poder imputado ao índio 
selvagem Essa história fala ao mesmo tempo do que está dentro e do que está 
fora do encantamento da magia, registrando assim não apenas uma duplicidade 
da epistemologia, como também dois universos separados. Cada um deles requer 
o outro, cada um deles demole o outro. Se quisermos, este é o paradoxo da 
própria noção da ilusão — menos real, igualmente real, mais do que aquilo que é 
realmente real e do que aquilo que toma o real realmente real. Tal é a fé que 
compõe as histórias que compõem a Virgem e seus milagrosos poderes.
Por detrás dos poderes ilusórios da Virgem mascara-se, é claro, a ilusão da 
imagem do índio como um ser composto e decomposto pelo fluxo e refluxo da 
história colonial. Em ambas as instâncias, a da Virgem milagrosa dependente do 
índio e a do índio dependente da Virgem milagrosa, o princípio de adesão à reali­
dade da história não deixa de assemelhar-se ao princípio da colagem, na qual a
apresentação coexiste com a representação e na qual cada ordem da realidade 
aliena, quando não zomba da outra.
Em outro registro essa colagem se manifesta através da mulher branca vende­
dora de café, que dizia que a Virgem pertence aos índios e apareceu para tomá- 
los cristãos. Quase equivale a dizer que a função histórica da Virgem é política, 
de acomodar o pagão ao deus do conquistador e, assim, neste caso, estabelecer a 
legitimidade divina do domínio do branco. É a crítica familiar que se fez ás virgens 
mágicas: são criaturas inventadas por clérigos astutos a fim de ludibriarem índios 
crédulos. No entanto sentimo-nos tentados a perguntar por que eles se mostraram 
tão crédulos em relação a esta questão específica? E se eles se deixavam enganar 
com tamanha facilidade, por que os eclesiásticos precisavam recorrer a meios tão 
tortuosos para levá-los a acreditar no deus dos espanhóis e em sua mãe virginal? 
Além do mais, não é a crença dos índios que se questiona aqui, mas a crença do 
branco em relação à do índio. O fato é que a vendedora de café, que observou 
que a Virgem apareceu primeiro para índios, e assim agiu para tomá-los crentes, 
é ela mesma uma crente no poder milagroso da Virgem. A força e a lógica que 
sua declaração encerra, enquanto interpretação cética, depende da própria fé e a 
presume.
Não apenas a fé no poder da Virgem em fazer milagres é criada e reprodu­
zida através desse duplo entrelaçamento de uma concepção que se apóia em um 
relato fixo, e não apenas os relatos se contradizem mutuamente, como, em geral, 
contestam a voz oficial da própria Igreja. Creio que isto aponta para algo que vai 
além da simples negação, multiplicidade ou dialética. Em vez disso, parece que a 
vida do ícone e, portanto, a realidade do milagre, depende da reprodução social 
de uma realidade constantemente inconstante, na qual o significado depende de 
seu oposto e ao mesmo tempo o destrói, em um confronto incessante com a fonte 
da verdade formalmente institucionalizada. A fim de repelir o inimigo e extrair a 
vitória de uma derrota, a imagem da Virgem cria mais imagens, que, ao que se 
diz, não passam de ilusões.
Historiografia virginal
Quando nos debruçamos sobre os quatro relatos, nos quais jamais se faz 
menção ao papel do índio pagão em omitir o poder salvacionista da Virgem, somos 
inclinados a indagar mais incisivamente que espécie de historiografia a imagem 
alimenta e expressa através do discurso. Embora seja tentador dizer que um ícone 
tal como a Virgem de Caloto possa preservar mitos de origem da sociedade colo­
nial, esses relatos indicam, além do mais, que os mitos de origem permitem que 
o ponto originário deslize pelo tempo ou o salte a fim de representar diferentes 
acontecimentos. Nesses quatro relatos a origem da Virgem é deslocada para 
diante e situada em outros campos de batalha, nas guerras de independência tra­
192
vadas no século XIX, nas guerras civis que lhe sucederam e na Violência de 
meados do século XX. Enraizada em deteiminada paisagem, tão mítica quanto 
física, enraizada cm um determinado partido político, o Conservador, a Virgem 
está livre para perambular através de um tempo cronológico e para fixar aconte­
cimentos memoráveis mediante o frescor de sua gênese recorrente.
Ao agir assim ela serve como um lembrete de pontos focais da história 
social, pontos revestidos do tempo messiânico de perseguição e salvação da co­
munidade moral A função mnemónica reabastece o presente com temas e oposições 
mfticas, colocadas em uma atuação semiótica no teatro da justiça e da redenção divinas.
A magia do índio — obstáculo pagão, militante, anticristo, ao ouro das re­
giões incultas — coloca a Virgem em seu curso redentor. A ironia divinamente 
forjada, por meio da qual, em sua derrota, os índios descobrem e também criam a 
defensora milagrosa de seus conquistadores, estabelece o complexo das relações 
míticas e mágicas com o qual os relatos compõem e decompõem a história da 
Virgem Quando a voz do índio já não se faz mais ouvir, a figura mais genérica 
de um intruso ameaçador e de um “Outro Invejoso” emerge nos partidários da 
realeza, no século XIX, ou nos partidários liberais das guerras civis e da Violên­
cia, omitindo a recorrência contrastante do milagre.
Trata-se de um processo hermenêutico, politizado, sensível á raça e à classe, 
de interação semiótica com a estrutura de signos estabelecidos como imagens na 
experiência social, introduzido pela conquista espanhola. Incrustada em ícones 
coloniais tais como a Nina Maria de Caloto, tal estrutura é trazida para a vida 
diária não como um modelo inerte e fixo, mas, ao contrario, existe por meio de 
uma criatividade espasmódica, dialógica, e como gama de possibilidades inter- 
pretativas. A esse respeito, vale notar que o relato oral mais comum cm temo da 
gênese da virgem subverte a fala oficial do passado, tal como é proposta pela Igreja, 
ao mesmo tempo em que mantém fidelidade à forma santificada pela autoridade 
dessa mesma Igreja.
Referi-me à imagem e aos relatos que derivam dela, circulam em tomo dela 
e a ela retomam, como se se tratasse da mesma coisa. É uma ordem de realidade 
que existe em dois meios distintos — por um lado, a boneca de madeira e, por 
outro, os relatos que adornam e animam sua nudez virginal Eu disse “imagem”, 
quando poderia muito bem ter dito “a comunidade de pessoas entre as quais a 
imagem existe, a comunidade de pessoas que realizam o imaginário e, por meio 
disto, trazem a imagem para a vida, em um procedimento que se repete muitas 
vezes”. É claro que é um fetichismo revestir a imagem per se de um papel ativo, 
tendo em vista aquilo que, na realidade, é uma relação de reciprocidade entre 
aquele que vê e aquilo que é visto.
Chegara o momento de examinar com maiores detalhes o relacionamento 
daqueles que vêem com a imagem vista. Neste momento quero colocar o leitor 
de sobreaviso em relação a um tipo de cegueira, presente em pessoas preparadas, 
que podem apreender esse relacionamento como algo análogo àquele modelo
193
conhecido, agora tão na moda, de texto e leitor, no qual é creditado a este último 
um papel significativamente ativo na construção do texto que está sendo lido. 
Neste momento a analogia tem sua utilidade somente se a compreendermos 
como algo mais brutalmente político e mais finamente nuançado do que se cos­
tuma elaborar. Para tanto basta nos reportarmosao passado e pensarmos na cons­
trução dialógica do imaginário da tortura e nos horrores do boom da borracha no 
Putumayo para avaliarmos o que foi uma política brutal. Quanto ao segundo 
aspecto, que diz respeito à sutileza, ele pode ser indicado ao nos referirmos à 
formação de imagem que ocorre no relacionamento entre os xamãs do Putumayo 
e seus pacientes, um relacionamento que em geral muito nos tem a ensinar quanto á 
construção dialógica dos tumultos da alma e da formação de imagem corporal­
mente eficaz. Pois aqui, ao que se diz, o xamã é aquele que verdadeiramente vê 
e, em virtude dessa capacidade, proporciona ao paciente, aquele que não conse­
gue ver, as imagens curadoras — a pinta ou pintura.* Porém não é tanto o xamã 
quanto o paciente que confere fala e forma narrativa a essas imagens, as quais 
não apenas perturbam mas também podem modificar a percepção, o registro de 
uma vida, bem como os relacionamentos sociais. Assim, é na atividade combi­
nada daquele que vê mas não fala do que é visto, juntamente com o paciente que 
fala, mas que não vê verdadeiramente, que encontramos a fusão de uma forma­
ção de imagem socialmente eficaz. Ao que parece, não deixa de ser o caso de 
ícones mudos, tais como a Virgem de Caloto que, a exemplo do xamã, provocam 
imagens (pinta, pintura). Outras pessoas, desprovidas dessa visão, resgatam essas 
imagens por meio da fala e dos relatos. Ao agir assim, elas também resgatam a fé 
messiânica no milagre e em pontos focais que condensam retroativamente, sob 
forma de colagetn, a epopéia da conquista imperialista, das lutas da independência, 
das guerras civis e da Violência.
O imaginário dialético e a tarefa do crítico
Este tipo de historiografia que se apóia na formação e na dependência da 
imagem é também o tema de uma contribuição agudamente excêntrica à teoria 
da revolução social, elaborada na Europa ocidental no século XX. Refiro-me aos 
conceitos de crítica redentora e de imagens dialéticas, desenvolvidos por Walter 
Benjamin. Em sua juventude, em 1914, Benjamin invocava exatamente aquele 
tipo de historiografia tal como é exibida na formação de imagem provoada pela 
Virgem de Caloto. Contrário à visão da história como algo que se apresenta como 
um conünuum progressivo, o jovem Benjamin introduzia o conceito de que “a his­
tória permanece acumulada em um ponto focal, tal como acontecia outrora com
* Entre os adeptos da União do Vegetal e do Santo Daime, dois grupos devoeionais brasileiros que 
consomem a ayahuasca (ou yagi) com finalidades religiosas; a pinta é conhecida como miração. (N. T.)
194
as imagens utópicas dos pensadores. Os elementos da condição final não se en­
contram presentes como tendências de progresso, desprovidas de forma, mas, em 
vez disso, estão incrustadas em cada presente como criações e idéias expostas a 
um perigo, condenadas e ridicularizadas”. A tarefa histórica, prosseguia ele, 
“consiste em conferir forma absoluta, de modo autêntico, á condição imanente da 
realização, a fim de tomá-la visível e predominante no presente”.1
A tarefa do crítico da obra de arte consiste, portanto, em associar-se a essa 
tarefa de redenção, resgatando, conforme coloca Richatd Wolin, “as poucas vi­
sões únicas de transcendência que embelezam o continuum da história". Com 
toda certeza não será precisamente isto que os camponeses e habitantes urbanos 
de Caloto inserem em todo presente, ao nos oferecerem suas versões sobre as 
origens da Virgem no passado? Somente aqui os fragmentos seculares e teológi­
cos desse passado apresentam uma configuração mais nítida, mais concreta, 
menos grandiosa e mais brechtiana do que aquela sugerida pelo tom grandilo­
qüente da formulação de Benjamin. É a terra do índio, por exemplo, tanto quanto 
o fato de eles elidirem a força messiânica da história, que constitui o enfoque 
dessa história; é o alarido confuso da batalha, das guerras raciais e das guerras 
das civilizações que ressoa através desta visão da transcendência, a qual embe­
leza o continuum da história.
Mais tarde, em outra época de sua vida, quando reajustou a critica redentora 
a fim de fundi-la com sua ligação idiossincrática ao marxismo, Benjamin referiu- 
se a sua tarefa como algo que envolvia a “dialética em um momento de pausa”. A 
galeria de imagens com que se preocupa o crítico da alta cultura agora se ex­
pande e inclui aquele imaginário que incendeia a imaginação popular. Se, por meio 
dessa expansão, a história da arte chega mais perto de uma visão da história 
enquanto arte, não se deve esquecer que, para Benjamin, esta é uma visão da arte 
que se apóia no conflito de classes, bem como uma visão messiânica. Ela vincula 
o parecer de que, enquanto o poder das idéias e a ideologia se situam mais no 
reino das imagens e de que não pode existir um desejo revolucionário desprovido 
de uma representação pictórica exata, essa capacidade das imagens foi bloqueada, 
com exceção de raras ocasiões, pelas representações da classe dirigente em tomo 
do passado que esse imaginário evocava. “Esse salto para o passado”, escreveu 
Benjamin, sobre a evocação imagética da Roma antiga pela Revolução Francesa, 
“se exerce em uma arena onde a classe dirigente dá as ordens”. No entanto, o 
mesmo salto “em direção ao ar livre da história é o salto dialético, que é como 
Marx entendeu a revolução”.2
Incitando o critico a arquitetar modos de libertar o imaginário do peso debi- 
litador da tradição e da prisão das classes dirigentes, Benjamin parece sugerir que as 
imagens ou pelo menos algumas delas conduzem a essa tarefa. Por isso o crítico 
dedicado ao método da “dialética em um momento de pausa” é exortado a não 
forçar a dialética através de imagens, mas a trabalhar com esse potencial desesta- 
bilizador e a nutri-lo, quando e onde ele existir enquanto sinal de um término
messiânico do acontecer. Em suas próprias palavras, guando se aproximava do 
fim da existência, ele definiu mais ou menos essa tarefa (foi em 1940, após os 
acontecimentos turbulentos que se seguiram ao pacto Stalin-Hitler):
!
O pensar envolve não somente o fluxo de pensamentos, mas também sua suspensão. 
L i onde o pensar se detém subitamente em uma configuração prenhe de tensões, ele dá a 
essa configuração um choque, através do qual a cristaliza em uma mônada. Um materialista 
histórico aproxima-se de um tema histórico somente quando o encontra como uma mônada. 
Nessa estrutura ele reconhece o signo de um término messiânico do acontecer ou, dito de 
outro modo, como uma oportunidade revolucionária, na luta pelo passado oprimido. Toma 
conhecimento dele a fim de detonar uma era específica, subtraindo-a ao curso homogêneo 
da história. Detona uma vida especifica, subtraindo-a dessa era, ou uma obra específica, 
subtraindo-a à obra de toda uma vida.3
No entanto, apesar de sua ousadia, ele hesita. Há uma falha no atrevimento 
com que ele concebe a imagem dialética; há ênfase excessiva na tarefa do crítico 
enquanto ativista e não há confiança suficiente no modo como as imagens (pelo 
menos algumas) se comportam na cultura popular. Para elidir a dialética de ima­
gens como essas, pelo menos no Terceiro Mundo, a varinha mágica e dialética do 
formador de imagens precisa apenas de uma leve pancada.
Tome-se como exemplo a Virgem de Caloto. Aqui não há necessidade de se 
recorrer à mão pesada da arte surrealista, não é preciso invocar como metáfora o 
término messiânico do tempo, não há por que se dar ao trabalho de contestar a 
visão oficial do passado evocado pela imagem e, acima de tudo, não há necessi­
dade de ir além dos limites, argumentando que a imagem pode funcionar como 
“mônada” no sentido a que anteriormente me referi. Tudo isto existe como uma 
ocorrência cotidiana na maravilhosa realidade continuamente evocada através da 
criação dialógica da vida da Virgem e da força vital.
Talvez o escrito de Benjamin relativo a esse estratagema tão fundamentalpara sua concepção do artista e do crítico revolucionários tivesse se beneficiado 
de um estudo mais detido de algumas imagens populares, tal como a da Virgem 
de Caloto. No entanto é possível que seja realmente isso que Alejo Carpentier 
assinala no prólogo de The kingdom o fth is world [O reino deste mundo]: en­
quanto os surrealistas europeus eram condenados por sua sociedade e suas tradi­
ções (incluindo as de revolução e rebelião) a manipular e a justapor desajeitadamente 
um imaginário impróprio, construindo laboriosamente realidades descomunais, 
nas colônias e ex-colônias européias algo semelhante ao realismo era inerente 
enquanto prática social profundamente incrustada na vida cotidiana. Quanto ao 
surrealismo, o mesmo (gostaria de sugerir) se dá em relação às imagens dialéti­
cas. A diferença critica entre suas expressões européias e coloniais é que en­
quanto na Europa elas eram grandemente ignoradas pelo populacho, ainda que 
(para os surrealistas) “a serviço da revolução", nas colônias e ex-colônias tais 
expressões são intrínsecas à forma de vida e estão a serviço de seus mágicos, 
sacerdotes e feiticeiros.
196
Raramente Bcnjamin conseguiu afastar-se dessa sua paixão pela melanco­
lia. Não era tarefa fácil para uma alma tão firmemente ligada à promessa reden­
tora de um passado cujo traço, levado â quintessência, reside na premonição da 
catástrofe. No entanto o surrealismo evocava nele um apreço pelos modos graças 
aos quais a risada conseguia fazer o mundo rachar, expondo as terminações ner­
vosas da zona de luta do formador de imagens politizado, na qual “a esfera da 
imagem, há tanto tempo procurada, se abre... em uma palavra, a esfera na qual o 
materialismo político e a natureza física compartilham o homem interior”. Pois 
se o surrealismo tentava modificar aquela trouxa de feitiços que contém repre­
sentações míticas nas quais se baseia a cultura ocidental, e o fazia usando ima­
gens que acionavam amplas contradições, abrindo as portas para o maravilhoso, 
sua própria representação tinha de ser icônica e irônica, trazendo à mente não 
apenas a análise de Freud relativa ao imaginário inconsciente minado e subver­
tido pelas piadas, mas também o fascínio que Mikhail Bakhtin e Georges Bataille 
experimentavam pela poética anarquista, a qual mesclava o grotesco e o jocoso 
em sublevações de de-gradação e renovação, que se assemelhavam a um carnaval.
E aqui penso no “realismo mágico” dos romancistas latino-americanos. Suas 
criticas deixam a desejar. Existe uma verdade quando Carpentier alega que os 
europeus estavam forçando a porta que se abre para o maravilhoso em suas pró­
prias sociedades com um desespero de brutos, enquanto que nas colônias esta­
vam entreabertas, quando não escancaradas. No entanto nem em sua obra, nem 
na de Arguedas, Asturias ou Garcia Márquez ouve-se, segundo me parece, a força 
da risada e da anarquia acentuando o reino enevoado do maravilhoso. Com ex­
cessiva freqüência o espanto que sustenta suas histórias é representado de acordo 
com uma tradição do folclore, de exótico e de indigenismo há muito estabeleci­
dos e que, ao oscilar entre o engraçadinho e o romântico, é pouco mais do que a 
apropriação padronizada da classe dominante em relação àquilo que é conside­
rado a vitalidade sensual do povo e de seu imaginário. No entanto, para os sur­
realistas, precisamente devido á extremada autoconsciência que caminhava de 
par em par com o “desespero de brutos”, permaneciam gravados como um axioma 
o espanto e a irritação expressos por Wilhelm Fliess, otorrino de Berlim, que, 
após l a as provas de A interpretação dos sonhos, de autoria de seu bom amigo 
Dr. Freud, no outono de 1899, queixou-se de que os sonhos apresentavam um 
excesso de piadas.
Isto nos leva de volta ao universo das piadas e da atuação semiótica nos sonhos 
presentes na iconografia popular. Penso aqui não apenas no dedilhar da corda da 
derrota e da salvação que cria uma multiplicidade de versões relativas à Virgem e 
que faz malabarismos com a semiótica do milagre. Penso também no modo como 
o tom pesado e a autoridade mística da voz oficial do passado é atraída para a terra e 
familiarizada com uma sagacidade amável e, de vez em quando, picante. As 
evidências indicam que a profusão de variações que unem e desunem uma reali­
dade diversa é obra de uma atividade que esvazia a sistematicidade. Trata-se de
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um estratagema no qual se brinca com as palavras, com toda sua multiplicidade 
e duplas epistemologias, com as pretensões de uma língua mestra, não simples­
mente manifestada mas reivindicada pelas classes dirigentes. “Alguns índios en­
contraram-na em uma moita de bambus", este foi o relato que me foi feito, 
acompanhado de uma risada da enfermeira que atendeu nossa amiga, moribunda 
nas proximidades de um canavial. “E então ela se foi... 0 povo diz que quando 
ela foi embora dirigiu-se a Buga para ficar com o Senhor dos Milagres, pois ele 
também era uma criança.”
Nessa reflexão posterior da enfermeira a perspicácia cria outro mundo e 
outro modo de ver. A traquinagem dos santos, mais do que ser revelada, é um 
deleite e com o mesmo assomo generoso de emoção o Norte do vale, em Buga, é 
ligado à região Sul do vale, em Caloto. O Senhor dos Milagres de Buga, majesto­
samente arredio, é trazido suavemente para a tara, para a materialidade e para o 
povo graças ao encontro amoroso pré-púbere que ocorre entre ele a Ninã Maria, 
que tanto gosta de viajar.
Talvez a coisa funcicme assim: embora as aparições dela sejam milagrosas, 
seus desaparecimentos é que a tomam humana. Nisto também existe algo forte­
mente anticlerical, como se o fato de notar os desaparecimentos levasse a notar 
os direitos do povo em relação à Igreja, que a tranca durante a noite. Algumas 
vezes isto se toma muito claro, a exemplo do que ocorreu com a Virgem da ilha 
do lago Cocha, ao leste do Peru, a qual, de acordo com o depoimento de um velho 
soldado que participou da guerra contra o Peru, travada no Putumayo em 1933, 
foi descoberta pelos índios e desaparecia toda vez que o padre comparecia a sua 
capela a fim de celebrar a missa. As pessoas comentavam que ela ia visitar a 
Nina Maria na distante localidade de Caloto, relatou-me o velho soldado.
Talvez exista uma vida secreta e uma oculta Sociedade de Santos e Virgens 
da qual a Igreja não tem conhecimento. Talvez essa sociedade inclua não apenas 
santos e virgens famosos na Colômbia ocidental, mas também admita santos 
populares de outros lugares, tão distantes quanto a Venezuela, por exemplo, de 
onde vieram El Negro Felipe e José Gregorio Hemández. Nessa sociedade os 
santos se parecem mais conosco e talvez até mesmo se assemelhem a nossos 
filhos. Como estamos longe daqueles semblantes impassíveis que eles exibem apati­
camente para os fiéis, quando ficam escondidos atrás do altar ou quando posam 
para suas estampas vendidas no mercado e nas ruas! E se as pessoas gostam de 
preencher as vidas dos santos e das virgens com paixões por demais humanas, 
deslocando assim o monólogo inscrito pela Igreja, esses mesmos santos e virgens 
preenchem a paisagem por meio de significados inscritos pelas rotas de suas 
inter-relações. Dado que são humanos, bem como sagrados, não seria correto 
afirmar que eles, em conseqüência, “santificam” padrões espaciais, a menos que 
endossemos uma noção de santidade que apóie o vigor das fraquezas humanas. 
Sc assim agirmos poderemos então descrever um contorno “sagrado” da terra, 
composto de pedacinhos e fragmentos interligados, referentes aos significados
198
dos lugares. As tomarias, os ritos pata curar o infortúnio, os hctbanários ambu­
lantes e os curadores populares trazem intermitentemente à luz esses contornos e 
lugares, os quais, acima de tudo, não passam de redes implícitas, de trilhas esfuma- 
çadas, que só se manifestam indiretamente através das fendas, sonhos e anedotas 
davida cotidiana.
Algumas vezes os ícones da Igreja interagem com os do Estado. Cali, a 
maior cidade do Sudoeste da Colômbia, está no ângulo onde as planícies se inter­
penetram com as alcantiladas encostas dos Andes. Dominando e protegendo a 
cidade desde cima, no pico da montanha, encontra-se uma enorme estátua de 
Cristo crucificado, com os braços estendidos. Lá na cidade, segundo me afirmou 
um de seus jovens vagabundos, há uma estátua em homenagem ao fundador da 
cidade, o grande conquistador Sebastián Benalcázar. Ele é representado de pé, 
numa postura tensa e, em vez de empunhar uma espada, leva a mão à cintura. 
Furioso, mal pode acreditar que acabam de lhe roubar a carteira (é preciso assi­
nalar que Cali é notória por seus batedores de carteira). Com a outra mão aponta 
não para o sonho do sublime e para as futuras perspectivas da cidade que fundou, 
mas para outra estátua, a do primeiro prefeito de Cali (conforme diz meu jovem 
amigo), acusando-o de toubo. O prefeito, por sua vez, defende-se apontando para 
a estátua de outro dignitário da cidade, o qual aponta em direção á montanha, 
assinalando nada menos do que o próprio Cristo, que estica os braços, como se 
estivesse se submetendo a uma inspeção da polícia: “Não roubei nada. Podem 
verificar!”. O fado do vagabundo utbano e o de Cristo são assim unidos, mas 
ambos são injustamente acusados pelos fundadores da cidade, pelos conquista­
dores e pelos bons burgueses.
A Virgem e o Arcanjo
Bem ao sul, na escarpa rochosa de uma profunda ravina, lá no alto dos 
Andes, e próximo a uma estrada, verdadeira montanha-russa que se dirige para o 
Equador, há uma representação pictórica da Virgem de Lajas. A intensidade com 
a qual ela irradia a fantasia popular pode ser aferida por sua presença nas visões 
provocadas pelo yagé em Pedro, filho de Rosário, bem longe, nos contrafortes 
orientais, onde seu poder se difunde ainda mais, ao longo dos cursos de água e 
dos grandes rios como o Putumayo e o Caquetá, os quais acabam por criar o Ama­
zonas. Negros, brancos, índios, mesmo os da longínqua floresta tropical, vêm 
visitar a Virgem
Salvador, o grande xamã Cofán que trouxe Santiago de volta do abismo da 
morte, foi visitar a Virgem de Lajas quando sua filha mais velha ficou cega. Ela 
se recusara a dar a mão em casamento a um colonialista negro, conforme me narrou 
sua mãe muitos anos mais tarde. Ele enfiou uma agulha em um retrato dela, 
furando-lhe o olho e ela ficou cega daquele olho. Pediu novamente sua mão e ela
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tomou a recusar. Mais uma vez ele furou o retrato e cegou o outro olho. Salvador 
tentou curá-la por meio de seus cânticos, juntamente com yagé e com suas ervas, 
mas sem resultado. Seguiram então o curso do rio, através da floresta, e subiram 
a montanha até as cidades e o santuário da Virgem, mas a filha estava muito triste. 
“É preferível eu partir com a Virgem a ficar cega”, ela confidenciou a sua mãe e 
logo após morreu. Somente muito mais tarde eles ficaram sabendo da história do 
colonialista e do retrato, quando ele se embebedou e mostrou os olhos vazados 
da fotografia para o cunhado de Salvador, que estava bebendo com ele. Salvador 
não tomou nenhuma atitude, afirmando que Deus puniria o culpado.
A exemplo do que ocorreu com o Senhor dos Milagres em Buga, com Nossa 
Senhora dos Remédios em Cali e com a Nina Maria de Caloto, a Virgem de 
Lajas também foi descoberta por um índio. De acordo com o padre Augustín M 
Cora, em seu livro Nuestra Senora dei Rosário de las Lajas (publicado em Bo­
gotá em 1954), a Virgem de Lajas fez sua aparição em 1794, na ravina de Lajas, 
próximo a Ipiales. É uma ravina espetacular, vista pelos viajantes como a boca 
do inferno, onde o diabo apoderou-se de mais de uma vítima, precipitando gente 
no rio Guáitara, lá embaixo. O filho de uma das famílias proeminentes de Pasto 
ouviu dizer que sua velha ama-de-leite, uma índia, estava vivendo na miséria, no 
campo, e foi buscá-la para que ela morasse no conforto de sua casa. Quando 
atravessavam a ravina ela ouviu som de música. Contornou algumas pedras e eis 
que viu a Virgem. Nesse momento entrou em transe, chamando seu companheiro 
para que testemunhasse o que estava acontecendo. Assim que pôs os olhos na 
Virgem ele desmaiou, e as aparências indicavam que havia morrido. Ela andou a 
noite inteira, até Pasto, onde deu o alarme. No dia seguinte o padre e outras 
pessoas apressaram-se a ir até o local da aparição e o encontraram vivo, ajoe­
lhado diante da Virgem, com o rosto banhado de lágrimas.
No entanto, a exemplo do que sucedeu com a Nina Maria de Caloto, a história 
oficial é apenas um dado em uma miscelânea de vozes que, por meio de suas 
diferenças interligadas, conferem vida aos poderes milagrosos da Virgem
Rosário e seu marido virtualmente viraram às avessas o relato oficial, di­
zendo-me que a Virgem de Lajas não foi encontrada por uma índia que era con­
duzida por um branco rico, mas por uma índia que viajava sozinha, trazendo um 
bebê às costas. Não foi para a mulher que a virgem apareceu, mas para o bebê. 
“Olhe”, disse o bebê. E lá estava ela.
Dona Emilia, uma negra velha e pobre que estava sendo tratada de reuma­
tismo por Santiago, contou-me que a virgem é milagrosa, faz milagres e que 
visitou-a em seu santuário quatro vezes. Quanto à origem da Virgem, disse o 
seguinte: “Há muito tempo uma índia andava por lá com sua filhinha, à procura 
de lenha. A filha disse: ‘Mamãe! Olhe! Aquela mestiza está me chamando’”. 
Dona Emilia explica que mestiza não é simplesmente filha de índio com branco, 
mas uma gringa, uma forasteira de pele clara. A denominação racial, expressa 
pela criança, deixando de lado seu significado específico de gringa, tomou-se
200
ainda mais significativa quando o neto de Santiago, o menino César, de 10 anos 
de idade, que visitava o avô vindo de Caquetá, afirmou, ao ouvir nossa conversa, 
que a meninazinha, até aquele momento epiíânico, era muda! No momento cm 
que viu a Virgem mestiza gringa, a indiazinha adquiriu o poder de falar (e de 
mencionar categorias raciais).
A mãe de César, Natividad, também havia visitado a Virgem quatro vezes. 
Por ocasião da última visita fazia-se acompanhar de sua sogra, que não viu a 
Virgem como uma pintura, mas como uma estátua. “Seu olhar era vivo", disse 
ela a Natividad. Outras pessoas também viram a transformação da Virgem em 
uma escultura, bem como seu olhar. O filho de Rosário viu a Virgem do Carmo 
modificar-se dessa forma por ocasião de uma visão com yagé, que ocorreu como 
contraponto àquela que ele tivera de sua casa sendo objeto de feitiçaria. Ao ex­
plicar a visão que tivera com a Virgem, descreveu o atemorizante cruzar de um 
rio, necessário para chegar até ela, e contou como o sol iluminava a Virgem em 
seu nicho no rochedo da ravina. Então, afastando-se do rochedo, ela tomou-se 
“semelhante a uma mulher, viva, e me deu sua bênção", libertando-o e a sua 
família do nicho rochoso da feitiçaria e da inveja.
“Para algumas pessoas ela simplesmente desaparece!”, comentou a mãe de 
Natividad, Ambrosia, juntando-se a nós na cozinha, com um feixe de lenha nos 
braços. Mas seu marido Santiago, xamã e homem de visão, jamais viu seu olhar 
onde a vida brilha ou jamais a viu viva. Para ele a Viigem permanece na tela onde 
está pintada, e eu, que jamais a vi, sou informado que no lado oposto da ravina, 
diante dela, se encontra meu xará, meu tocayo, São Miguel, pisando com força 
na serpente. Ambrosia, Natividad, Emilia e eu abanávamos a fumaça que tei­
mava em entrar em nossos olhos. A conversa assumiu um tom animado. “A Vir­
gem de Lajas consegue curar os doentes, os cegos e os aleijados", declarou 
Ambrosia. “Ela também exorciza os pecadores.”
“Se você for com fé, será curado. Se não for com fé, nada acontece!”, 
exclamou Natividad. Cada declaração sua era corroborada por uma réstia de sol 
que atravessava a fumaça.
Introduzina conversa o tópico de índios que trouxeram santos e virgens 
milagrosos para a sociedade da Colômbia como um todo. Natividad mencionou 
mais um santo desses em Huila, fez uma pausa e disse: “É que nós, índios, 
somos inocentes. É por isso".
“Mais religiosos”, interveio Roberto, seu marido.
“Mas isto foi antes", declarou Natividad. “Agora os índios degeneraram.” 
Então, solenemente, deu uma risadinha. “Mas aquelas pessoas antigas”, prosseguiu, 
“não eram apenas inocentes. Eram também muito selvagens. Comiam gente. Mata­
vam gente. Viviam como animais... Pergunte a Don Santiago. Ainda existem 
alguns que fazem assim”.
No relato eclesiástico de Nossa Senhora dos Remédios, em Cali, os índios 
que participaram da descoberta da Virgem são excepcionalmente pacíficos. Na
201
história eclesiástica da Virgem de Caloto, a Nina Maria, os índios são formida­
velmente selvagens. O poder do índio pagão de revelar os signos milagrosos e os 
santos de Deus a seus conquistadores cristãos é um poder que depende da ino­
cência e da selvageria, de tal modo mesclados que, quando uma característica 
como a inocência é enfatizada, é para fazer com que seu oposto reprimido, a 
selvageria, se destaque através de sua ausência e com conotações emocional­
mente ampliadas. Ao contrário disso, Natividad, filha de um xamã índio, traz 
simultaneamente para nossa atenção a inocência e a selvageria do índio. Ela o 
faz de tal modo que une o presente ao passado do mesmo modo como o pathos 
se une ao humor, mediado pela Queda a partir de uma “inocência” que acolhe a 
selvageria. Ela se refere a essa queda como sendo uma degeneração.
Na sala onde, durante vinte anos, seu pai curou negros e brancos com 
aquele mesmo imaginário de inocência e selvageria, representado para eles em 
sua própria pessoa, está dependurada uma estampa empoeirada de São Miguel 
Arcanjo derrotando o demônio e precipitando-o na fumaça e nas chamas do in­
ferno. Em sua mão esquerda ele segura a balança da justiça bem junto à cabeça 
do demônio, enquanto que na direita empunha bem alto sua espada. Suas asas 
estão estendidas. Com exceção da auréola, seu traje é o de um soldado, como um 
antigo romano. Muitas vezes me surpreendi divagando em tomo desse quadro, 
dependurado no centro da sala onde, durante tantos anos, muita gente tomou um 
remédio alucinógeno e, graças ao cântico índio, debelou o demônio, assim como 
São Miguel. Ele também se encontra naquela ravina distante, em frente á Virgem 
de Lajas, e o modo como Ambrosia, Natividad e Emilia se referem a ele, na 
cozinha, me levam a imaginar como tudo aquilo teria sido para o romeiro que 
caminhava até lá atravessando um campo de poder composto pela Virgem em 
um dos lados da ravina e o arcanjo do outro lado. Essa mestiza descoberta por 
uma meninazinha índia é uma espécie de mãe para todos nós e, conforme Am­
brosia declara, ela cura os doentes e limpa o pecado. Diante dela está aquele 
guerreiro implacável que empurra o demônio para os infernos.
Não presenciei isto, mas muitas noites vi o velho Don Santiago, marido de 
Ambrosia, lá nos infernos de uma região tórrida, situada bem abaixo do santuário 
da Virgem, sentado em sua rede, do outro lado do retrato do arcanjo, coberto de 
teias de aranha, rindo, enquanto as lágrimas desciam por seu rosto, cantando e 
curando gente que se dobrava ao peso do infortúnio. Parece-me óbvio que curadores 
como ele contêm a imagem da mãe e do guerreiro, do mesmo modo como sua filha 
Natividad, por meio do pathos e da risada, junta a inocência e a selvageria índia, 
de outro modo dividida entre relatos icônicos de imagens milagrosas, tais como 
Nossa Senhora dos Remédios, a Mulher Selvagem da Floresta e a Nina Maria.
Com efeito, o peso das tradições do Velho Mundo ampara a visão de São 
Miguel Arcanjo como uma entidade que contém em si os poderes duais de cura­
dor e guerreiro. Donald Attwater diz que a referência existente no livro da Reve­
lação á guerra travada no céu contribuiu para que São Miguel fosse honrado no
202
Ocidente, desde o início do cristianismo, como capitão das hostes celestiais, pro­
tetor dos cristãos em geral e dos soldados em particular. No Oriente, entretanto, 
bem como em Constantinopla, não era seu status de guerreiro, mas seu poder de 
curar os doentes que importava.4
Acontece que esse arcanjo é também o padroeiro da cidadezinha de Mocoa. 
Há um enorme quadro que o representa ao lado do altar, mas ninguém na locali­
dade parece saber muita coisa a seu respeito. Creio que nenhum dos padres e 
freiras saiba algo relativo a suas origens locais. Devo muito a Don Santiago por 
ter tomado conhecimento delas. Ele recebeu esse conhecimento de seu papa 
serior, seu avô, que teve uma existência notavelmente longa. Os últimos anos ele 
os passou virtualmente dobrado em dois, devido ao peso dos padres e de outros 
brancos que ele carregou Andes acima. Por sua vez papa senor ouvira folar da 
chegada dos brancos por gente mais velha do que ele.
Foi de um tomador, um bebedor de yagé, que os índios em tomo de Mocoa 
ouviram folar da chegada iminente dos brancos e, naquela visão, havia indícios de 
dor e mal Antes de fugir, os índios esconderam seu santo mais precioso, São Mi­
guel, na fortaleza labiríntica das raízes de um higuerón, que se erguia junto ao rio.
Quando os espanhóis chegaram eles puseram os santos dos índios no templo 
deles, índios, e os usavam como cepos onde cortavam a carne. Chocados, alguns 
índios fugiram com tamanha pressa que deixaram para trás seus filhinhos. Outros 
ficaram, mas se recusaram a fazer o que quer que fosse e morreram lentamente. 
Outros venderam suas terras por uma ninharia, por alguns facões ou uma trouxa 
de roupa. Certa noite a cabana onde os espanhóis dormiam pegou fogo. Eles se 
queimaram dos pés aos joelhos e perderam as pernas. Foi o castigo de Deus.
índios das colinas e das montanhas, de Aponte, Descanse, Yunguillo e Sibun- 
doy desciam até o rio Mocoa para pescar. Naquele tempo o rio tinha peixes em 
abundância. Eles retiravam o veneno barbasco das árvores â beira do rio e, ao 
procurarem lenha, descobriram a imagem escondida de São Miguel, que coloca­
ram na igreja da velha cidadezinha. Os espanhóis, sem pagá-los, os obrigaram a 
construir uma nova igreja na cidade nova, rio abaixo, onde a estátua de São 
Miguel se encontra até hoje.
“Se conseguir permissão dos padres, você poderá ver a imagem em uma 
sala trancada, no fundo da igreja. É esculpida em madeira e é pequena”, disse 
Santiago, levantando a mão a uns setenta centímetros do chão.
Fui até a igreja. O padre que me acompanhou até a sala trancada se mos­
trava tão contrafeito quanto eu. É claro, assinalou ele, havia uma esplêndida ima­
gem de São Miguel Arcanjo, que media cerca de um metro e meio, vestida com 
armadura romana, composta de elmo, peitoral e botas compridas. O arcanjo piso­
teava o demônio. No entanto, por mais que procurássemos entre os restos de asas, 
braças e auréolas, naquela floresta de santos bem preservados e outros arruina­
dos, não conseguimos encontrar outro São Miguel que não aquele.
203
“Mas ele está lá com toda certeza!”, insistiu Don Santiago, quando puxei 
conversa com ele á noite. “Tem os braços erguidos, asas prateadas e é pequeno."
Voltei á igreja, ao depósito de santos, e lá, com efeito, se encontrava a 
imagem O padre não tinha a menor idéia de quem era ou de que se tratava, mas, 
no entanto, era a única que se ajustava à descrição de Santiago. Mas que tipo de 
São Miguel era aquele? Não havia nem espada nem demônio. Em vez disso ele 
flutuava, ajudado por asas de um comprimento desmesurado. Era um pequenino 
querubim, com os braços e os olhos voltados para cima. Era o anjo mais meigo 
que já foi esculpido.
204
11
Selvageria
Estou tentando reproduzir um modo de percepção, um jeito de enxergar 
através do modo de falar, delineando o mundo por meio de um diálogoque se 
toma vivo, provido de uma súbita força transformadora, que irrompe pelas fen­
das pausas e justaposições da vida cotidiana, tal como ocorre nas cozinhas do 
Putumayo ou nas ruas em tomo da igreja, no caso da Nina Maria. É também um 
modo de representar o mundo, na “fala” sinuosa da colagem das coisas, como 
nos coralitos (medicados pelos indios) em tomo dos punhos dos bebês. Trata-se 
de um modo de percepção que opera nos escombros da história, tais como os 
santos e virgens desprovidos de membros e auréolas, espalhados pela sala dos 
fundos da igreja de Mocoa, onde a poeira cobre pedaços de um mundo sagrado 
mutilado, reduzido a cepo de açougueiro. É um modo de percepção que coloca 
em primeiro plano esses fragmentos, os quais invadem a ordem que reina no 
altar, na obscuridade artificial da própria Igreja.
Essa inscrição nos limites da história oficial, esse “autêntico" e verdadeira­
mente obscuro São Miguel, pequenino e desprovido de palavras, flutuando com 
suas asas imensas nos confins do quarto de despejo da igreja, são imagens de espe­
rança, irregulares e oscilantes. Em um acesso de sentimento poderemos querer 
murmurar coisas encorajadoras e valentes sobre a “resistência" e daí por diante, 
enfatizando a fragilidade de tais vozes contra-hegemônicas e de significantes por­
tadores de asas encarnes, prontos para voar. No entanto esse tipo de resposta 
destina-se mais a nós do que àquelas vozes. Somos nós que obtemos coragem, 
graças àquela confluência de força e fragilidade, a força na fragilidade dada aos 
fracos e aos derrotados, inscrita de vez em quando nos ícones milagrosos e tam­
bém nos xamãs índios.
Com os derrotados está o poder redentor, com o selvagem está a santidade, 
afirma Natividad, a filha do xamã, dando uma risadinha.
Do mesmo modo existiu santidade na selvageria, porém sentimos que sem 
muitas risadas, a exemplo do que ocorre na tela portuguesa que retrata a Adora-
205
ção dos Magos, pintada na primeira década do século XVI, na qual o lugar habi­
tualmente ocupado pelo mago negro foi tomado por um índio brasileiro, de cocar 
de penas, brincos, pulseiras e tomozeleiras de ouro e um colar de pérolas. Em 
uma das mãos ele traz uma tigela que é metade de um coco, repleta de ouro, e na 
outra um tacape, que, ao que se dizia, os índios brasileiros usavam. Vestido com 
um calção e uma camisa de variegado padrão, “poucos selvagens poderiam pare­
cer”, escreve Hugh Honour, “mais gentis, corteses e eminentemente humanos”.1
No entanto, em outra tela portuguesa pintada uns cinqüenta anos mais tarde, 
um índio com o mesmo cocar e um manto de penas preside, como o demônio, os 
tormentos dos condenados, em um inferno semelhante àqueles pintados por Hie- 
ronymus Bosch. Eles eram deuses ou demônios, nota Richard Comstock, “criatu­
ras que não sofreram a queda, que possuíam uma inocência original, ou demônios 
providos de uma maldade brutal, além da compreensão humana. Nos primeiros 
encontros dos colonizadores europeus com os nativos americanos observamos 
ambas as imagens operando na mente do homem branco".2 Talvez menos mítico, 
mas nem por isso carente do reconhecimento da dualidade na imagem do índio, o 
norte-americano Henry Boller, que comerciava com os índios, assim se expres­
sou, em carta dirigida a seu irmão no ano de 1859:
Se não fosse pelas constantes interrupções, eu poderia “pintar** para você... dois qua­
dros.
O primeiro deles representaria o lado brilhante da vida do índio, com suas penas e lanças, 
vestido com exuberância, com seus estandartes, lutas, caça ao búfalo etc.
O outro lado, que é o escuro, mostraria a sujeira, os parasitos, a pobreza, a nudez, o 
sofrimento, a superstição etc. Ambos seriam igualmente verdadeiros, sem exageros ou dis­
torções; ambos totalmente dessemelhantes!3
Quando Manuel Gómez, um colonialista branco dos contrafortes do Putu- 
mayo, nos Andes, tomou yagé com um xamã índio, ele também viu as coisas 
dessa maneira dualizada, luzes e trevas, antes de morrer. Decorridoà muitos anos, 
ele me contou que, após o caos de formas que se modificavam e se moviam, após 
os sons que zumbiam e murmuravam em paradas e retomadas e depois que as 
cobras, em grande número, penetraram em sua boca através do vômito, uma onça 
se aproximou, logo desaparecendo. No lugar onde estivera o xamã, junto à fo­
gueira, agora se encontrava o diabo.
Ele era exatamente como o pintavam, disse Manuel, inflamado e vermelho, 
com rabo e chifres. Enquanto Manuel não tirava os olhos dele, sentado ao lado 
da fogueira, nas grandes florestas do Putumayo, o diabo, fumando um charuto, 
transformou-se em xamã e perguntou a Manuel se ele sentia medo. Mais uma 
vez o índio transformou-se no diabo, e Manuel sabia que estava morrendo. Na 
verdade já estava morto, contou-me mais tarde, e começou a subir por uma es­
cada esplêndida até encontrar um velho, no limiar do nada. Esse homem aben­
çoou Manuel e disse-lhe que voltasse para a terra. Passo a passo ele regressou,
206
deparando-se com a luminosidade verde da alvorada que irrompia através da 
floresta. Foi o índio como xamã e este como diabo que encenaram essa passagem 
para ele, através do espaço da morte e da redenção. A linguagem é dramática, 
não menos do que a experiência registrada, e a experiência deve ser percebida 
não simplesmente como uma glosa sobre o poder colonial, mas um modo de ver 
como o poder propicia uma visão de sua constituição interna, lá onde a fabula e a 
fantasia irrompem no cotidiano da opressão da raça e da classe. É um munda- 
nismo que se toma hiper-real, lá onde a sociedade confina com o ermo, na fron­
teira. Por esta forma abençoados, colonialistas como Manuel Gómez e José Garcia 
destroçam a feitiçaria do invejoso: o colonizador reifica seus mitos relativos ao 
selvagem, toma-se sujeito ao poder deste último e, ao agir assim, procura a salva­
ção naquela civilização que o atormenta, tanto quanto o selvagem em quem ele 
projetou seu anti-eu.
Ao observar a pintura portuguesa de meados do século XVI, que representa 
o índio como o demônio a presidir os tormentos dos condenados, Hugh Honour 
comenta que essa imagem enquadrava o índio como uma fera da selva. Contras­
tando com o primeiro quadro, a Adoração dos Magos, e sua ligação com a mito­
logia de uma Idade de Ouro, o segundo quadro liga o índio não somente ao 
diabo, mas também àqueles homens da lenda renascentista e medieval, cruéis, 
lascivos, bestialmente peludos e deformados.
Foram essas lendas que propiciaram o imaginário dos nativos do Novo Mundo 
como seres monstruosos, sugere John Friedman em seu estudo sobre as raças 
monstruosas na arte e no pensamento medievais.4 Ele sugere que houve um de­
senvolvimento iconográfico que caminhava paralelamente ao do imperialismo 
europeu, começando com aquela galeria de criaturas e monstros fabulosos, as 
maravilhas do Oriente, na índia e na Etiópia, nos confins do (Velho) Mundo, 
reduzindo-se a uma única figura, o homem selvagem, identificado com os povos 
encontrados no Novo Mundo. Essas maravilhas do Oriente incluíam gigantes, 
pigmeus, unicórnios, formigas que escavavam ouro, pessoas com cabeças de ca­
chorros, outras com caudas, algumas com a cabeça saindo do peito, canibais e 
amazonas — criaturas metade humanas, metade espíritos, que povoavam as mar­
gens da sociedade, a qual, além do mais, fora dar às margens de terras exóticas. 
Tais criaturas ocuparam seu espaço em livros que exerceram grande influência, 
tais como Imago Mundi, de Pierre d’Ailly, Historia Rerum, do papa Pio II e nos 
relatos de viagem de Sir John Mandeville. Como se sabe, todos eles, principal­
mente os dois primeiros, atraíram a atenção de Cristóvão Colombo. Em sua tão 
apreciada biografia do almirante, Samuel Morrison declara que Imago Mundi e a 
Historia Rerum foram as duas principais fontes de Colombo (na medida em que 
as fontes foram preservadas) quando ele recorreu a argumentosintelectuais a fim 
de apoiar seus planos. Foi graças a essa última obra que ele tomou conhecimento 
dos antropófagos (canibais) do Amazonas, em cujas trilhas julgava estar em 1492 
e 1493.5
207
Em seu estudo sobre as maravilhas do Oriente, Rudolf Wittkower concluiu 
que, através da disseminação pictórica, nas formas populares, bem cómo nas 
eruditas, tais maravilhas impressionaram grande número de pessoas e influencia­
ram muitas correntes do pensamento medieval Seus significados poderiam mudar. 
Por exemplo, no final da Idade Média elas poderiam surgir na iconografia cristã 
sob a forma de raças fabulosas, capazes de redenção, que aguardavam os apósto­
los de Cristo. No início do século XVI, período da conquista do Novo Mundo, tal 
visão parece ter sido substituída por outra, a qual enxergava o monstro como um 
mau agouro. Essa visão se associava a uma irrupção de crenças populares que 
não tinham lugar na concepção medieval oficial do mundo. No entanto, uma 
modificação tão brusca de julgamento, do monstro como um cristão em potencial 
e o monstro enquanto arauto do mal, não deveria causar surpresa. Conforme o pró­
prio Wittkower enfatizou na conclusão de seu erudito ensaio, “em todos os lugares 
atribuiu-se ao monstro os poderes de um deus ou as forças diabólicas do mal”.6
Essa monstruosa dualidade do diabólico e do bem é nitidamente delineada 
na descrição que Richard Bemheimer faz do homem selvagem do final da Idade 
Média. Com efeito, essa figura, conforme sugere Hugh Honour, é util para que se 
compreenda a qualidade mágica imanente ao imaginário europeu da selvageria, à 
época da conquista do Novo Mundo (quando não até hoje).7 Metade humana, 
metade animal, desprovida da fala e da razão, essa peluda criatura das florestas 
assemelha-se a uma criança gigantesca, temida por seu terrível gênio e por seu 
poder mágico. Irritando-se com facilidade, ela pode reduzir os intrusos a peda­
ços, atacar as mulheres e raptar crianças, sobretudo as que não foram batizadas. 
Desenraiza árvores, faz os lagos desaparecerem e as cidades afundarem no chão. 
Prefere viver sozinha em lugares escondidos, tais como as cavernas, e luta cons­
tantemente contra outros homens selvagens e as feras e dragões da floresta. Em 
sua ira, ela cria tempestades e chuvas de granizo (é o tempo que mais aprecia), 
pois não há nada que favoreça mais o retomo dos mortos. Ignorante de Deus, 
essa criatura exerce poder sobre os animais da floresta (assim como os xamãs) e 
possui conhecimento oculto dos poderes mágicos das plantas (a exemplo dos 
xamãs). Inferior aos humanos na grande cadeia do ser, ela também lhes é superior.
Os poderes a ela atribuídos não a fazem menos perigosa do que desejável. 
Bemheimer inclui em seu livro um quadro de Brueghel, o Velho, o qual mostra 
camponeses capturando, pela força das armas, um homem selvagem, com o pro­
pósito de matá-lo, assim como aconteceu há muitos anos no Putumayo com o 
irmão de Santiago Mutumbajoy, igualmente um xamã. Mas Bemheimer também 
chama a atenção para a escultura de um selvagem no portal de uma igreja do 
século Xm, em Provença, a qual mostra sua mão através do braço de um homem 
que conta dinheiro em um saco. A intenção dessa representação, diz Bemheimer, é 
demonstrar que o lucro pode ser obtido a partir da associação íntima com o selva­
gem. Eis aí uma interpretação com a qual mais de uma colonialista do Putumayo, 
tal como José Garcia, haveria de concordar (mas talvez não sua mulher, Rosário).
208
E é claro que, de vez em quando, o selvagem dá um passo adiante e, com a 
maior das boas vontades, atende os necessitados e talvez cuide com ervas mági­
cas dos ferimentos daquele cavalheiro, peisonagem do Faerie Queene de Spen- 
ser, que se perdeu nas florestas pertencentes àquela criatura. Atualmente os 
colonialistas do Putumayo podem sonhar em obter plantas como essas. José Gar­
cia usa algumas delas em sua garrafa de remédios, e meu caro amigo que já se 
foi, Chu Chu, um curandeiro mulato que morava longe do Putumayo, no vale do 
rio Cauca, aconselhou-me com grande cuidado que plantas eu deveria solicitar 
aos ervatários do Putumayo, tanto para meu próprio bem quanto para o dele. Nos 
cortiços de Ca li, Don Colo também sonhou com uma planta indígena, mágica e 
secreta, que poderia ser dele. Essa planta, perdida para a história, amaciava o 
ouro. E talvez algo daquele cavalheiro de Spenser, perdido na floresta, império 
do selvagem, se reproduz na vida, a exemplo do que se narra daquele branco de 
Bogotá, Gabriel Camacho, que durante muito tempo perambulou pelas florestas 
do Putumayo, perdido e enlouquecido, sendo cuidado pelos xamãs com o yagé, 
sua erva mágica.
As surpreendentes inversões que se nota quando o conquistador atribui po­
deres mágicos ao primitivo nos é mostrada nas descrições renascentistas dos feitos 
de Alexandre, o Grande, com as raças maravilhosas da índia. Em um manuscrito 
francês do início do século XV vemos iluminuras de Alexandre e seus soldados 
em combate mortal com um homem e uma mulher selvagens, jogando-os na 
fogueira.
Em total contraste com essa imagem, em um Alexanderbuch do mesmo sé­
culo, vemos esse monarca tão poderoso, acompanhado de seus cortesãos, togando 
ao selvagem, agora descrito como um sacerdote, que consulte as árvores-oráculo 
do sol e da lua. Alto, escuro e peludo, esse sacerdote/homem selvagem tem pre­
sas enormes e uma língua comprida como a de um cão. Apresenta-se nu e usa 
apenas um brinco de ouro e a mitra de um bispo. Nos textos latinos, nota Ti- 
mothy Husband, ao ouvir o selvagem profetizar sua morte iminente, Alexandre 
reconhece o poder do pagão, exclamando Júpiter omnipotens.*
Entre os vários aspectos, quero chamar especial atenção para aquilo que 
Bronislaw Malinowski denominou “uma verdade bem conhecida”, isto é, que 
“uma raça mais elevada em contato com uma menos elevada tende a atribuir a 
esta última poderes demoníacos misteriosos".9 Ele se reportava às experiências 
vividas com o discurso colonial no Sudoeste do Pacífico, por ocasião da Primeira 
Guerra Mundial, muito tempo depois das descrições renascentistas de Alexandre 
e de suas proezas com as raças selvagens e maravilhosas da índia. As distâncias 
também eram muito grandes.
A imputação de misterioso e de demoníaco que as classes mais poderosas 
fazem às outras — os homens às mulheres, os civilizados aos primitivos, os 
cristãos aos pagãos — é de tirar o fôlego. É uma concepção velha, persistente, 
paradoxal e ubíqua. Atualmente ela existe não apenas sob a forma de racismo,
209
inas também como um culto vigoroso do primitivo, c é enquanto primitivismo 
que ela propicia a vitalidade do modernismo. “É nossa esperança moderna", 
entoa a voz atual de W. B. Yeats em “Ego Dominus Tuus” (minha citação é de 
um rascunho de 1912):
Com o auxílio das imagens
Eu poderia invocar meu anti-eu, convocar todos aqueles 
com quem menos tratei, estimar a todos eles 
Pois estou farto demais de mim mesmo
De acordo com Maiy Cathleen Flanneiy, é este rascunho que revela mais 
claramente o fato de que Yeats estava escrevendo sob a influência de um espírito 
que o visitara durante uma sessão. Era o espírito de Leo Africanus, escritor e 
explorador mouro, que fora prisioneiro na corte do papa Leão X e a quem se 
dava certa importância, em se tratando das opiniões que ele expressava sobre os 
africanos. Yeats correspondeu-se com esse espírito através de uma caligrafia pro- 
positalmente disfarçada.10
Qualquer que tenha sido o papel desse espírito na formação do anti-eu mo­
derno e que expressa nossa esperança, moderna (“Encontramos a mente sensível 
e suave”, escreve o poeta, referindo-se a ele), ficamos um tanto chocados ao 
sermos informados por Margaret Hodgen, em seu livro Early Anthropology in 
the Sixteenth and Seventeenth Centuries [A antropologia remota nos séculos XVI 
e XVn] que Leo Africanus declarou que os negrosnão apenas levavam uma vida 
animalesca mas “eram completamente destituídos de razão”. É uma declaração 
que ela percebe como algo importante no fluxo de idéias e sentimentos europeus 
que separavam os pagãos da grande cadeia de seres humanos, de tal modo que, 
por meio da mais extremada ambigüidade, os pagãos eram situados em uma zona 
inferior, entre o animal e o humano.11
A dependência do moderno em relação ao primitivismo fica assustadora­
mente clara na viagem em direção ao Heart o f darkness.
A terra parecia não ser terrena. Estamos acostumados a olhar com consideração a 
forma agrilhoada de um monstro conquistado, mas ali podia se ver uma coisa monstruosa e 
livre. Não era terrena e os homens eram — não, não eram inumanos. Sabe, isso foi o pior 
de tudo — a suspeita de que não fossem inumanos. Essa suspeita era algo que podia chegar 
lentamente a alguém. Eles urravam, saltavam, rodopiavam, faziam caretas horrendas; 
porém o que mais impressionava era pensar na humanidade deles — igual & nossa. Era 
pensar no remoto parentesco com aquele tumulto selvagem e apaixonado. Feio. Sim, era 
bastante feio...12
A magia do primitivo, o colonialismo fundiu sua própria magia, a do primi­
tivismo. O destacado antepassado da antropologia, E. B. Tyler, notou em seu livro 
Primitive culture [Cultura primitiva] (publicado em 1871) que, na época em que 
escrevia, muitos brancos na África e nas índias Ocidentais temiam os poderes do 
feiticeiro. Era uma confirmação estarrecedora de sua tese relativa à estrutura de
210
classe da magia e á evolução das sociedades, pois esses mesmos brancos certa­
mente pertenciam a uma nação cuja instrução, segundo os termos de Tyler, havia 
avançado o suficiente para destruir a crença na magia.
Sua tese chamava atenção para a ubiqüidade com a qual um grupo de pes­
soas consideradas primitivas eram consideradas como detentoras de poderes ex­
traordinários, por parte daqueles que proclamavam a si mesmos seus superiores:
O mundo modemo instruído, que rejeita a ciência oculta como superstição desprezí­
vel, praticamente comprometeu-se com a opinião de que a magia pertence a um nível mais 
baixo da civilização. É muito instrutivo verificar que a solidez desse julgamento não é 
propositalmentc confirmada por nações cuja instrução não progrediu o suficiente para des­
truir a crença na própria magia. Em qualquer país, uma raça isolada ou estabelecida em 
lugares remotos, sobrevivente de uma antiga nacionalidade e que resiste, é passível da 
reputação de feitiçaria.13
Ele citou exemplos, tais como os dravidianos hinduizados do Sul da índia que, no 
passado, afirmou Tyler, temiam os poderes demoníacos de uma casta de escravos 
inferior à deles. A partir de relatos contemporâneos ele examinou um caso no qual 
essa casta inferior não era a beneficiária de semelhante imputação. Certas tribos 
dravidianas tinham um medo mortal dos Kurumba, “párias desprezíveis da flo­
resta, mas, segundo se acreditava, dotados de poderes de destruição dos homens, 
animais e propriedades por meio da feitiçaria’’.14 No entanto, não se trata apenas 
do poder de fazer o mal. Tyler faz menção específica à cura como algo que inte­
grava essas atribuições.
No que diz respeito àqueles feiticeiros denominados Obi, em relação a quem 
(segundo Tyler) muitos brancos na África e nas índias Ocidentais experimenta­
vam grande temor, deve-se notar que os próprios Obi receavam gente ainda mais 
feroz do que eles, isto é, aqueles curandeiros e curandeiras das comunidades de 
quilombolas da Jamaica, descendentes de escravos fugitivos que, possuídos na 
dança e no teatro pelos espíritos de seus ancestrais quilombolas e, portanto, por­
tadores de uma história especialmente colonial e jamaicana de “ferocidade” e 
magia selvagem, são capazes de apaziguar os males causados atualmente pelos 
Obeah.ls
Na vizinha ilha de Cuba, de acordo com o tão considerado antropólogo 
Fernando Ortiz, em seu livro Hampa afro-cubana: los negros brujos (cuja pri­
meira edição é de 1906), era comum que brancos de todas as classes se valessem 
de feiticeiros negros (brujos) que também eram escravos. Além do mais, devido 
a questões de amor, saúde e vingança, ainda era comum, à época em que ele 
escrevia, que brancos, incluindo os da classe superior, acreditassem em curandei­
ros e feiticeiros negros. Disso resultava em parte, segundo ele afirma, “uma cul­
tura não muito sólida entre as classes dirigentes da sociedade cubana”.
Não é um conceito interessante o de que a fé na magia por parte da classe 
dominada é devida a uma cultura “não muito sólida” no interior da classe diri­
gente? Existe aí um curioso sinergismo entre aqueles que dirigem e aqueles que
211
os podem sustentar magicamente, bem como através de um trabalho mais mate­
rial. E para além da divisão de trabalho entre aqueles que comandam e aqueles 
que lhes fornecem a magia, surge um quadro da sociedade como um todo, com 
diferentes espécies de lugares para os dominadores e os dominados, espaços cós­
micos unidos vertiginosamente, como um sonho da história do mundo que desfa­
lece. A despeito da “psicologia avançada" dos brancos em Cuba, escreve Ortiz, 
“as superstições dos negros os atraem, produzindo uma espécie de vertigem, de 
tal modo que eles se tomam presas daquelas crenças, mesmo pairando nas alturas 
de sua civilização; é como se os planos superiores de sua psiques inicialmente 
submeijam e em seguida se desliguem, retomando ao primitivismo e à nudez de 
suas almas".16
Em seu estudo sobre o vodu do Haiti, publicado em 1959, o antropólogo 
francês Alfred Métraux apresenta uma sugestão relativa à história da “vertigem" 
e da primitiva submersão da psique da classe dirigente, sobre a qual Ortiz es­
creve. Aos nos prevenir contra a imagem mórbida e alucinatória que rodeia o 
vodu no Haiti, Métraux pondera que essa imagem não passa de uma lenda, asso­
ciada á feitiçaria usada pelos escravos contra seus senhores. Se essa feitiçaria 
existiu de fato ou se apenas se imaginava que ela existisse, é algo de pouca 
importância para a lenda, a qual, segundo escreve Métraux,
pertence ao passado. Pertence ao período colonial, quando foi fruto do ódio c do medo. O 
homem jamais é cruel e injusto impunemente. A ansiedade que cresce nas mentes daqueles 
que abusam do poder freqüentemente assume a forma de terrores imaginários e de obses­
sões dementes. O senhor maltratava seu escravo, porém temia seu ódio. Tratava-o como 
uma besta de carga, mas receava os poderes ocultos que lhe imputava. Quanto maior a 
subjugação do negro, mais ele inspirava medo, aquele medo dotado de ubiqüidade presente 
nas narrativas e registros daquela época c que se solidificava através daquela obsessão com 
o veneno, a qual, ao longo do século XVm, foi causa de tantas atrocidades. Talvez alguns 
escravos se vingassem de seus tiranos por essa forma. Tal coisa é possível e até mesmo 
provável, mas o medo que reinava nos engenhos tinha sua origem em recessos mais profun­
dos da alma. Era a feitiçaria da África distante e misteriosa que perturbava o sono dos 
moradores da “casa grande”.17
Um traço semelhante de sono perturbado se percebe na descrição que Henry 
Charles Lea fez da Inquisição no porto de escravos de Cartagena, situado no 
Caribe, ao sul de Cuba e do Haiti, no litoral da colônia de Nova Granada, hoje 
denominada Colômbia. Era uma colônia dominada pela feitiçaria de três conti­
nentes, diz Lea, que escreveu poucos anos antes de Ortiz:
Os escravos trouxeram da costa da Guiné os mistérios do Obeah e as práticas som­
brias da feitiçaria. Os índios possuíam um amplo arsenal de superstições (curar ou ferir, 
provocar amor ou ódio); os colonizadores tinham suas próprias crendices, às quais acres­
centaram a fé implícita nas crendices das raças inferiores. A terra era dominada pela combi­
nação das artes ocultas de três continentes, e todas eram consideradas pela Inquisição nãocomo vãs fantasias, mas como o exercício de poderes sobrenaturais, que envolviam fé ex­
pressa ou implícita no demónio.18
212
Este é um modo de ver as coisas muito próprio do Putumayo. Coincide com uma 
visão que mescla o mundo subterrâneo da sociedade conquistadora com a cultura 
do conquistado, o colono e o escravo. Além do mais, ele enxerga essa mescla 
como um ataque ativo e mais ou menos contínuo ao poder, ao sistema de segu­
rança da doutrina da Igreja e a seus rituais de poder embutidos na Inquisição. Tal 
visão compreende implicitamente que mesclar o mundo subterrâneo da socie­
dade conquistadora com a cultura do conquistado não é uma síntese orgânica ou 
“sincretismo” das três grandes correntes da história do Novo Mundo — africana, 
cristã e indígena —, mas uma galeria de espelhos que reflete a percepção que 
cada componente tem do outro.
Juntamente com outros estudos sobre Cartagena antiga, baseados em docu­
mentos coloniais preparados por inquisidores, padres e funcionários do governo,19 a 
história da Inquisição, escrita por Lea, sugere que essa galeria de espelhos era, do 
ponto de vista do colonizador, algo que nivelava a feitiçaria à sedição, se não na 
realidade, pelo menos como uma metáfora, como se o conceito de um “mundo 
subterrâneo" assumisse uma ampla gama de conotações, desde o inferno cultuado 
pelos seguidores de Satã ao subterrâneo da conspiração e desconfiança da ordem 
social. É extraordinário o quão importante a raça e o gênero são enquanto significa- 
dores dessa ameaça subterrânea, que ameaça irromper através da crosta de ma­
chismo branco encarnado na autoridade colonial.
De acordo com os textos oficiais, os líderes dos palenques ou lugares de 
escravos fugidos provavelmente eram magos e feiticeiros. A rebelião de escravos 
nas minas de ouro de Zaragossa figurava no relatório do inquisidor encaminhado 
ao Supremo Tribunal, em 1622, como uma efusão maciça de feitiçaria, que objeti­
vava consumir pelo fogo e esterilizar as minas, bem como seus donos, através da 
magia. Negras escravas e libertas, que trabalhavam como criadas, ao que se dizia 
eram feiticeiras consumadas e serviam suas senhoras brancas com as artes da 
adivinhação e o preparo de filtros de amor. A Inquisição alegava haver desco­
berto confrarias de bruxas que cultuavam o diabo e até mesmo nas confrarias de 
espanholas as africanas, ao que se dizia, exerciam um papel muito importante. Dizia- 
se também que além dos muros de Cartagena, cidade de cristãos, livres e escravos, 
índios pagãos forneciam àquelas feiticeiras negras as ervas que elas solicitavam.
Esses textos oficiais reproduzem uma visão inquisitorial do poder, místico e 
malevolente, que rodeava e minava os termos coloniais da ordem. Por mais fan­
tástica que seja essa visão, se a experiência do Putumayo pode servir de guia, é 
uma visão que se toma incorporada à magia e feitiçaria das classes subalternas. 
Esse mal não é desprovido de fascínio. Conforme Bemheimer ilustra com deta­
lhes, a selvageria do homem e da mulher selvagem se constitui quando se junta os 
extremos da destruição e da cura.
Em 1632 a Inquisição alegou ter descoberto uma grande reunião de bruxas 
negras no porto de Tolú, situado a uns sessenta quilômetros ao sul de Cartagena, 
onde grassava uma epidemia, sem dúvida atiçada pelo processo inquisitorial (diga-
213
se de passagem que o padre Acosta, em sua apreciada Natural and moral history 
o f the Indies [História natural e moral das índias], cuja primeira edição é de 
1588, assinalava o bálsamo de Tolú devido a suas virtudes medicinais).20 Duas 
das presumíveis líderes, ambas negras, foram condenadas á fogueira, mas uma 
delas, Paula de Eguiliz, teve a permissão de sair da prisão e trabalhar como curan­
deira, incluindo entre seus pacientes os inquisidores, bem como o bispo de Carta- 
gena, em cuja casa passou vinte dias como convidada. Por ocasião dessas excursões 
ela abandonava o sanbemto, roupa que simbolizava seu status diabólico, e apare­
cia em público vestida com -um manto com barras de ouro, conduzida em uma 
liteira. Graças a essa prática médica enquanto prisioneira da Inquisição, ela, se­
gundo consta, ganhou muito dinheiro, parte do qual distribuiu entre as demais prisio­
neiras. Decorridos seis anos, os quais incluíram a tortura, sua sentença foi comutada 
para duzentas chicotadas e prisão perpétua.21
Em que se situa o poder de cura da selvageria? É verdade, confoime diz Witt- 
kower, que os monstros das maravilhas do Oriente deram forma não apenas aos 
devaneios de beleza e harmonia do homem ocidental, mas também criaram sím­
bolos por meio dos quais o horror dos sonhos reais poderia se exprimir. E, no 
entanto, não estamos aqui diante de uma questão que se estende além da função 
modeladora dos símbolos e dos sonhos?
A selvageria também suscita o espectro da morte da própria função simbó­
lica. É o espírito do desconhecido e a desordem, que corre solta na floresta que 
rodeia a cidade e a terra semeada, rompendo com as convenções sobre as quais 
repousam o significado e a função modeladora das imagens. A selvageria desafia a 
unidade do símbolo, a totalização transcendente que liga a imagem àquilo que ela 
representa. A selvageria rompe com a unidade e, em seu lugar, cria um desloca­
mento e uma articulação entre significante e significado. A selvageria faz dessas 
conexões espaços de escuridão e luz, nos quais os objetos espiam em sua variegada 
nudez, enquanto os significantes flutuam ao redor. A selvageria é o espaço da 
morte da significação.
Bemheimer lembra-nos que a selvageria, na Idade Média, “implicava qual­
quer coisa que escapasse às normas cristãs e á estrutura estabelecida da socie­
dade cristã, referindo-se àquilo que era incomum, ingovernável, rude, imprevisível, 
exótico, inculto".22 Que lista! Com toda certeza teremos de perguntar a cura e 
não apenas a magia perversa do homem selvagem não se acha desligada desta 
imprevisibilidade rude e supressora das estruturas?
No entanto a selvageria é incessantemente recrutada pelas necessidades da 
ordem (e, com efeito, esta é uma das tarefas e contribuições mais duradouras da 
antropologia à ordem social). Permanece porém o fato de que ao tentar domá-la 
através desse meio, de tal modo que ela possa servir à ordem como uma contra- 
imagem, essa selvageria talvez deva reter necessariamente sua diferença. Se não 
se reconhece o mérito da selvageria per se, com sua própria força, realidade e
214
autonomia, então ela não poderá funcionar como uma serva da ordem As impli­
cações desse paradoxo estão submersas em um ato violento de domesticação. É o 
que testemunha a colocação profética de Paul Ricoeur, usada na introdução de 
um estudo antropológico recente sobre o exorcismo: “Se o mal é co-extensivo 
com a origem das coisas, enquanto caos primitivo e disputa teogônica, então a 
eliminação do mal e do perverso deve pertencer à arte criativa enquanto tal”.23 
Deixando de lado as suposições, é essa equação insípida do mal como caos pri­
mitivo e sua eliminação por meio da criatividade que é contestada pela selvage- 
ria dos homens e mulheres selvagens.
A selvageria de que aqui se trata irrompe através das fatigadas dicotomias 
do bem e do mal, da ordem e do caos, da santidade da ordem etc. Ela não medeia 
tais oposições. Em vez disso, ela toma o partido do caos, e sua criatividade cura- 
dora é inseparável do fato de ela se alinhar com um determinado paitido. De 
tacape na mão, castigadas pelo granizo e pela tempestade, enquanto os relâmpa­
gos rasgam o céu, anunciando o retomo dos mortos, essas criaturas do mundo 
selvagem não apenas carregam o fardo do anti-e« da sociedade, mas também 
absorvem com sua pelagem molhada e felpuda aquilo que de melhor a oposição 
binária pode oferecer: a ordem e o caos, o civilizado e o bárbaro, o cristão e o 
pagão. Ela emerge do lado do grotesco e do destrutivo. “Seu aspectodestrutivo é 
mais forte do que seu aspecto salutar", escreve Bemheimer no que diz respeito 
ao homem selvagem da Idade Média, “e, ao que parece, quaisquer benefícios que 
sua aparência possa conter para a comunidade humana derivam basicamente de suas 
características macabras".24
215
12
Gordura índia
(^Xieio percotrer o mundo selvagem e suas mediações, juntamente com as topo­
grafias de zonas mágicas, seguindo os fios daquilo que verifiquei ser mais geral e 
inter-relacionado com a história de vida de Rosário e José Gaicía, isto é, a atri­
buição de selvageria e poder de curas mágicas, feita pelo colonizador em relação 
ao índio, e o modo como essa atribuição realizou a magia, a partir das encostas 
orientais e das florestas tropicais que se estendem dos primeiros contrafortes dos 
Andes até a imensidade da bacia amazônica. É com os aucas, chunchos e outras 
criaturas fabulosas da floresta que me preocupo basicamente, mas também me 
intriga essa atribuição de selvageria àquilo que alguém denominaria as espécies 
colonizáveis. A selvageria é imputada ao outro, objetificada e, em seguida, rece­
bida de volta como uma substância mágica, conforme, ao que se propala, fizeram 
com a gordura das corpos dos índios das regiões montanhosas do Peru.
Há muito me surpreendia o fato de que em seus lugares de residência, bem 
como em suas jornadas em busca de remédios e de pacientes, os curadores Sibun- 
doy apartavam as regiões montanhosas das florestas, vendo nelas signos icônicos 
de civilização e selvageria. Ao refletir nessa mediação como fonte do mágico, 
minha atenção se dirigiu para aqueles outros curadores índios reputados, dos 
altiplanos da Bolívia. Refiro-me aos Collahuaya. Pareciam-me, de modo até certo 
ponto importante e formal, idênticos a seus colegas menos conhecidos do vale do 
Sibundoy, estabelecidos muito ao norte, na Colômbia. À semelhança deles, os 
itinerantes Collahuaya são apartados do resto da sociedade, e muitas pessoas, 
às vezes dogmaticamente, às vezes com dúvidas, lhes abribuem consideráveis co­
nhecimentos sobre assuntos ocultos, na grande luta pela vida. O mais significa­
tivo de tudo é que eles são ligados à selvageria concentrada nas florestas úmidas, 
existentes abaixo de suas casas nas montanhas. Até que ponto os Collahuaya são 
realmente ligados a isso é uma questão controvertida, mas, a exemplo do que 
sucede com a maior parte das coisas na esfera do mito e da magia, para não falar 
da política da raça e da conquista nas quais o mito e a magia se fazem presentes,
216
é a aparência que freqüentemente se toma um fetor decisiva “Nos os encontramos 
em todos os lugares”, escreveu Adolph Bandelier, arqueólogo dos Estados Unidos, 
por volta de 1900, enquanto se entregava a escavações nas ilhas do Titicaca e 
Koati.1 “Entre Puno e Sillustani vimos essas singulares criaturas caminhando em 
fila indiana, seguindo silenciosamente seu caminho de uma aldeia indígena a 
outra, de uma habitação isolada a outra, tolerados em todos os lugares e em todos 
eles recebidos com reservada hospitalidade.” Eram os famosos curadores Colla- 
huaya, explicou ele, empreendendo viagens que duravam anos e os levavam a 
lugares distantes, como Buenos Aires, ou ainda mais longe, até o Brasil e além 
dele. “Na ilha", escreveu Bandelier em seu posto de observação, no grande lago 
Titicaca, lá no alto, no maciço dos Andes, entre a Bolívia e o Peru, “de vez em 
quando os chamam de Chuncho, mas eles nada têm em comum com esses índios 
da floresta, a não ser quando afirmam (e provavelmente é verdade) que algumas 
de suas ervas medicinais são colhidas na montaria ou nas florestas, onde as tribos 
selvagens (que, com freqüência, recebem a denominação coletiva de Chuncho) 
habitam e perambulam."
Ele adquiriu alguns dos produtos dos curadores: contra a melancolia, yerba 
de amante-, contra o resfriado reumático, uturuncu, para se esfregar, contra a dor 
de cabeça, yerba de Castilla (como em Castela, aquela glória do mosaico que era 
a poderosa Espanha); e outro remédio, só que estrangeiro, o pó estemutatório de 
heléboro. Porém o principal tesouro dos curadores itinerantes Collahuaya era, ao 
que parecia, estatuetas de minério que, segundo se dizia, abundava cm Chara- 
sani, região natal dos Collahuaya. Eram de alabastro branco e tinham a forma de 
um punho cerrado, a fim de propiciar riqueza. Havia também, embora Bandelier 
jamais tivesse recebido a permissão para vê-las, estatuetas com forma humana, 
negras, destinadas á feitiçaria.2
A fim de levar adiante suas escavações arqueológicas, os trabalhadores ín­
dios empregados por Bandelier tiveram de realizar ritos para aplacar os espíritos 
dos cumes das montanhas, para os “avós” daqueles grandes picos, os achachilas, 
bem como para a própria terra. Tais ritos compreendiam, entre muitos preparos e 
substâncias mágicas oferecidas aos espíritos, lascas raspadas com uma faca de 
estatuetas que, nesse caso, diz Bandelier, representavam um touro ou uma vaca. 
As estatuetas mágicas (ou suas lascas), fornecidas pelo curador Collahuaya, fa­
ziam parte dos sacrifícios oferecidos aos picos e à terra. Eram ofertas á masculi­
nidade e â feminilidade do espaço produtivo da vida, que deveriam ser comidas 
pelos deuses como parte dos ritos associados á colheita, aos rebanhos e às pes­
soas, como um todo e individualmente, em seus tormentos e em suas esperanças. 
É, portanto, com alguma insistência que se levanta a questão dos porquês que levam 
o poder a ser associado a esses curadores índios itinerantes, cujas estatuetas, 
afirmou Bandelier, “são vendidas não somente aos índios (e talvez menos a 
estes), mas a mestiços e, de vez em quando, até mesmo a brancos, pois a fé nas 
curas e nos dons sobrenaturais dos Collahuaya é muito comum e profundamente
217
enraizada em todas as classes da sociedade, embora raramente confessada 
(grifo meu)".3 Isto se deu por volta de 1900.
“De vez em quando os chamam de chunchos", escreveu Bandelier, “mas eles 
nada têm em comum com esses índios da floresta, a não ser quando presumem (e 
provavelmente é verdade) (grifo meu) que algumas de suas ervas medicinais são 
colhidas na montaria ou nas florestas, onde as tribos selvagens (que, com fre­
qüência, recebem a denominação coletiva de chuncho) habitam e perambulam" 
É este sofisma que enfatizei e ele é direcionado para uma zona de realidade na 
qual a presunção e a possibilidade se combinam a fim de criar, através da poética 
da incerteza, uma zona de poder “profundamente enraizada em todas as classes 
da sociedade, embora raramente confessada", na qual a identificação e a disso­
ciação com a selvageria da floresta e de sua gente vai ao encontro, por meio do 
ritual, dos desejos e infortúnios da vida cotidiana civilizada, fazendo em seguida 
o caminho de volta.
Sete anos após a publicação do livro de Bandelier, outro estrangeiro, G. M. 
Wrigley, publicou em The Geographical Review, em 1917, um artigo intitulado 
“Os doutores viajantes dos Andes, os Collahuaya da Bolívia”. Nele as ligações 
entre os doutores itinerantes e a selva que se estende ao leste dos Andes ficaram 
mais explicitadas ou, pelo menos, mais sensuais e, portanto, mais resistentes ao 
ceticismo do que ocorreu com Bandelier. Era possível sentir o cheiro da selva 
dos chunchos, nas regiões montanhosas, á medida que os curadores itinerantes se 
aproximavam. Faziam parte de suas maletas de drogas, escreveu Wrigley, gomas 
aromáticas, resinas, cascas e ervas da floresta tropical.4 Assinalando que o territó­
rio Collahuaya se estende até a montaria dos Andes orientais, Wrigley afiimou, sem 
recorrer a sofismas, que era a montana que fornecia as valiosas plantas medici­
nais, acrescentando esta nota: “É atribuído aos habitantes índios um amplo co­
nhecimento empírico de suas propriedades. Wiener refere-se aos Piro do vale do 
Urubamba, que sobem anualmente até Hillipani a fim de trocar cestaria,cerâmica, 
pássaros vivos e certas plantas medicinais, das quais esses chunchos têm mais 
conhecimento do que os índios Quechua do altiplano”.5
Antes de iniciarem suas prolongadas viagens, os curadores, assevera Wri­
gley, iam “até a montana a fim de ter com que encher suas carteiras. Como essa 
jornada os conduz a uma região quente, eles usam muito pouca roupa, circuns­
tância que levou alguns viajantes a supor que a floresta era seu verdadeiro lar".6 
Se isto não era verdade, então eles tinham um outro lar mais próximo de um 
espaço da morte magicamente produtivo, do qual, fortalecidos com remédios 
chuncho, eles ressuscitariam, revestidos de novo poder, a fim de viajar de volta 
para o planalto e atravessar a república. Ao explorar a “floresta dourada" de 
Caravaya, ao leste dos Andes e abaixo do território Collahuaya, em 1860, o ex­
plorador inglês Clements Markham, encarregado de fazer um levantamento das 
florestas de cinchona — antimalárico que contém muito quinino —, tarefa que 
lhe confiou o govemo de sua majestade, preparou seus carregadores para com
218
eles entrar “naquela floresta densa e emaranhada, na qual europeu algum estivera 
antes”. Meia dúzia de homens pálidos saíram da ma ta. “Tinham aparência doentia 
e cadavérica”, observou ele, “como homens que houvessem ressuscitado do mundo 
dos mortos, esgotados pela prolongada vigilância e pelo cansaço.”7
Na verdade não eram habitantes da floresta, mas gente das montanhas, Col- 
lahuaya “coletores de drogas e de incenso", disse ele, “que penetravam fundo na 
floresta a fim de obter o que procuravam e que dela safam como os vimos, 
pálidos e abatidos”. Era muito esquisita essa raça, pensou ele, pois atravessava as 
florestas ao leste dos Andes e em seguida ia praticar as artes de cura em toda a 
América. “Vão em linha reta de aldeia em aldeia", escreveu Markham, “exercendo 
sua profissão, e nisso vão longe, até Quito e Bogotá em uma direção e nos limites 
extremos da República da Argentina, no outro.”* São denominados Chirihuano 
no litoral do Peru, acrescentou, e Wrigley, citando um livro publicado em 1860, 
fez a mesma afirmação.
Vinte anos antes que Markham viesse fazer um levantamento da cinchona, 
o viajante alemão Johann Jakob von Tschudi notou que havia muito comércio 
entre o altiplano andino e as florestas que se estendiam para o leste, sobretudo no 
que se referia ao precioso vermífugo da casca de cinchona, droga lendária desde 
que curou a esposa do vice-rei, a condessa de Chinchon, sendo promovida com 
fervor pelos jesuítas na Europa, no século XVII. Antes das guerras sul-america­
nas da independência, afirmou Tschudi, os coletores indígenas daquele valioso 
remédio o haviam fornecido a todos os boticários da Europa. Resinas e plantas 
aromáticas das florestas orientais também se faziam presentes nas igrejas das 
montanhas e das cidades. Os padres as adquiriam, usando-as como incenso. 
Existem índios, observou Tschudi (cometendo exatamente aquele tipo de erro em 
relação ao qual Wrigley nos colocou de sobreaviso, mais tarde, quando ele con­
fundiu os Collahuaya com os índios da floresta), que vivem nas profundezas das 
selvas do Sul do Peru e da Bolívia e que se dedicam quase que exclusivamente a 
coletar bálsamos medicinais e resinas aromáticas. Coletavam também remédios 
mágicos, tais como a garra do tapir, a fim de curar “epilepsia”, e o dente de serpen­
tes muito temidas, usado para a cura da cegueira e da dor de cabeça. Levam isso até 
os mercados das montanhas, disse Von Tschudi, e alguns deles chegam até mesmo a 
percorrer duzentas ou trezentas léguas, a partir de suas florestas natais, atraves­
sando a maior parte do Peru e até mesmo visitando Lima. Carregam grandes caba­
ças repletas de bálsamos. Surpreendido, Von Tschudi notou como essas “tribos" 
errantes procuravam contatos freqüentes com outras nações. “Não são receosos e 
reservados, mas, ao contrario, aborrecidamente comunicativos."9
Ele se enganou, ao confundir os curadores itinerantes com os índios que 
viviam bem dentro da selva. Seu engano, porém, foi pré-ordenado. Tratava-se de 
uma convenção social que reproduzia um mito, o qual entrelaçava os índios sel­
vagens e a medicina mágica em um império de exotismo arborizado. Era uma 
mitologia que se comprazia em estabelecer uma distinção entre o cristão e o chuncho.
219
Disso é que cia retirava sua força. Os índios que coletam e distribuem os remé­
dios da selva, enfatizou Von Tschudi, professam ser cristãos. Como tal devem ser 
diferenciados dos pagãos das florestas dos contrafortes orientais dos Andes, a 
exemplo dos chunchos, muito perigosos e “uma das raças mais formidáveis de 
índios selvagens". Não há gente mais indisposta contra os cristãos. Os remanes­
centes abandonados de haciendas e missões ao longo dos contrafortes das mon­
tanhas são testemunhos de uma longa história de desconfiança. São canibais que 
assassinam cruelmente todos os índios cristãos com que sc deparam É impossí­
vel qualquer espécie de intercâmbio amistoso com eles. Em suas pilhagens se 
apresentam praticamente nus, e seus cabelos, rosto e peito são pintados de ver­
melho, com achiote. Suas armas são o arco da palmeira chonta e a macana, 
grande espada de madeira. Quando uma cruz foi levantada na floresta, os chun­
chos amarraram nela, decorridos alguns dias, uma macana e duas flechas como 
“símbolo de sua irreconciliável inimizade pelos cristãos". Segundo se afirma, a 
grande rebelião messiânica de 1741, liderada pelo profeta que adotou o nome de 
Juan Santos Atahuallpa (um índio dos Andes que foi para a Espanha e, ao regres­
sar ao Peru, criou sua base de apoio entre os índios das florestas orientais), en­
volveu chunchos, bem como índios Campa. As igrejas dos primeiros contrafortes 
dos Andes foram pilhadas, as imagens sagradas e os padres foram amarrados 
juntos e jogados nos redemoinhos dos rios, aldeias foram queimadas, campos 
cultivados foram destruídos, e essa história, lamentou-se Tschudi, é a de toda a 
montaria.10
Nas descrições da história dos Incas, esses chunchos compareciam como uma 
gente arquetipicamente selvagem Garcilaso de La Vega, o aristocrata Inca, sempre 
disposto a promover a causa cristã por meio da imagem do “bom índio" em um 
mundo colonizado, relata em sua famosa obra The royal comeníaires o f the Inca 
[Os comentários reais do Inca] (a primeira parte foi publicada em 1609) que, 
quando o bom soberano Inca Yupanqui tomou posse do império, ele resolveu 
visitar seus domínios. Nisso levou três anos, no fim dos quais decidiu conquistar 
os chunchos que viviam nas selvas ao leste da sagrada capital de Cuzco, com o 
objetivo de os expuigar de seus costumes bárbaros e desumanos. A expedição des­
ceu o grande e até então pouco conhecido rio da Cobra. Era impossível prosse­
guir por terra, devido às montanhas escarpadas e aos numerosos lagos, pântanos 
e atoleiros, abundantes naquelas paragens. Dez mil soldados Inca desceram em 
balsas, as quais se levou dois anos para preparar. Após sangrentas escaramuças, 
eles subjugaram os chunchos, que então serviram ao Inca, quando ele empreen­
deu a conquista de outros índios selvagens. Quero enfatizar este aspecto, pois é a 
dominação do selvagem, com o objetivo de usá-lo para propósitos civilizatórios, 
que está no âmago da imputação de magia e na apropriação do poder selvagem.
Essa cruzada pelo rio da Cobra, a fim de se apoderar da selvageria de um 
povo, é narrada com pormenores pelos índios das montanhas, declarou Garci-
220
laso. Eles se gabam das proezas de seus ancestrais durante aquelas batalhas tra­
vadas ao longo das margens dos rios da selva. “Mas", prosseguiu Garcilaso, “como 
alguns desses feitos a mim pareciam pouco críveis... como os espanhóis até hoje 
jamais possuíram a área conquistada pelos Incas nos An tis (terras dos chunchos) e 
como não se pode apontar com o dedo para ela conforme é possível fazer em 
relaçãoao restante da região que já mencionamos, julguei que não deveria mistu­
rar um assunto que pertencia ao domínio da fábula, ou que parecia ser, com 
histórias verdadeiras.”11
Quatro anos após sua expedição aos chunchos, o soberano Inca Yupanqui 
organizou uma expedição malograda contra os Chirihuano nas florestas da planí­
cie (ao leste de Charcas, onde atualmente é a Bolívia). Os espiões de Yupanqui 
informaram (e cito Garcilaso) “que lá a terra era extremamente ruim e consistia 
de florestas densas, pântanos, lagos e lamaçais, sendo que muito pouco era de 
utilidade para o cultivo. Os nativos daquela região eram completamente selva­
gens e piores do que feras, pois não tinham religião e não cultuavam o que quer 
que fosse. Viviam sem leis ou bons costumes, como animais, nos contrafortes 
dos morros, não tinham aldeias ou casas". Eram canibais, comiam seus inimigos, 
bem como sua própria gente, quando ela estava morrendo. Andavam nus e dor­
miam com suas irmãs, filhas e mães. Ao ouvir esse relato, o soberano Inca reuniu 
seu povo e anunciou: “Nossa obrigação de conquistar os Chirihuanos agora é 
maior e mais premente, pois precisamos livra-los do estado bestial e vil em que 
se encontram, levando-os a viver como homens, pois foi com este propósito que 
nosso pai, o Sol, nos enviou para cá”. Dez mil guerreiros foram aprestados, mas 
após dois anos tiveram de reconhecer o quanto sua missão era impossível. Hoje 
os Chirihuanos não são tão selvagens quanto antes, diz Garcilaso, no entanto 
persiste seu modo bestial de viver. Na verdade seria um grande prodígio conse­
guir livrá-los disso.12
Em um relato do final do século XVI, A história natural e moral das índias, 
o sacerdote jesuíta Acosta deixa Claro que os Chirihuanos são, com efeito, um 
paradigma de selvageria. O padre Acosta tomou parte na malograda campanha 
do vice-rei Toledo contra eles e os situa na mesma categoria de selvageria e 
resistência aos espanhóis a que pertencem os chunchos. Que diremos dos chun­
chos e dos Chirihuanos?, indaga ele. “Toda a flor do Peru não esteve lá, levando 
consigo uma provisão tão grande de homens e armas, conforme vimos? Certa­
mente voltaram muito contentes por terem salvo suas vidas, perdendo sua baga­
gem e quase todos seus cavalos.”13 E não apenas os chunchos e Chirihuanos são 
um epítome da selvageria, como são igualmente o epítome dos primeiros homens 
do Novo Mundo, sugere Acosta, não levando em conta os relatos dos índios 
sobre suas origens, pois tais relatos “mais se assemelham a sonhos do que a 
histórias verdadeiras".
221
Mas dificilmente era uma questão de história verdadeira versus sonhos. Os 
sonhos não eram desprovidos de história, nem a história deixava de ter sua fanta­
sia. A selvageria era uma fantasia, na qual pagãos e cristãos se encontravam na 
montaria. Cruzando-a nos dois sentidos, os curadores desmontavam a ordem e a 
desordem, levando o selvagem ao civilizado e, assim, praticando a magia a partir 
de uma topografia moralizada. A montaria a tomava real, a montaria a tomava 
natural.
A geógrafa Wrigley a esta altura nos é de grande valia. Referindo-se aos cura­
dores Collahuaya, notou que as preciosas plantas medicinais vêm da montaria e 
comentou que “um povo" (referindo-se aos Collahuaya), “com acesso relativa­
mente fácil às fontes de suprimento naturalmente seria selecionado para agir como 
fornecedor das plantas medicinais da montaria.'’ (grifo meu).14 Com efeito, ao 
recrutar a magia da imagem dos curadores Collahuaya para a causa do materia­
lismo em geral e do detemdnismo geográfico em particular, ao invocar uma agên­
cia mística, a exemplo do que ocorre no trecho “naturalmente seria selecionado ” 
(por quem? devido a quê?), e ao propiciar um protótipo simples, porém elegante, 
a um determinismo ecológico posterior, de “arquipélagos verticais”, Wrigley, no 
fim de seu escrito, deixa-nos intrigados devido a uma memória que, ao que se 
presume, está no fundo de todos nós. “Ele nos faz lembrar”, escreve ela, refe- 
rindo-se àqueles curadores e feiticeiros índios errantes, “do vigor dos antigos 
controles geográficos que imperam nos Andes centrais.”15
Claro que é esse vigor, esses controles e esse império que aquelas figuras 
selvagens e míticas da floresta úmida irão contestar. É seu fardo e tirarão disso o 
melhor partido que puderem.
É como se tivéssemos de nos defrontar com uma imagem alucinatória na 
arte legendária do xamã, a arte da magia, na qual a mímese e o poder de transfor­
mar caminham paralelos. Só que a imagem em questão, a topografia moralizada 
dos Andes, não é obra de um artista individual, mas da própria cultura popular, 
criando, a partir do espaço e de suas distinções, uma grande diferença que separa 
a selvageria da civilização, atravessada por curadores peripatéticos antes que eles 
percorressem os infortúnios de uma nação. É nesse momento que os primeiros 
estudos sociológicos sobre a oposição binária (tais como o de Robert Hertz sobre 
a preeminência da mão direita (publicado em 1909), a meio caminho entre o 
ensaio de Emile Durkheim e Mareei Mauss sobre a classificação primitiva e a 
obra clássica de Durkheim, The elementary forms o f religious life [As formas 
elementares da vida religiosa]) nos vêm à mente, a exemplo do que se lê nesse 
dramático trecho de Hertz:
Todas as o posições apresentadas pela natureza exibem este dualismo fundamental. A 
luz e as trevas, o dia e a noite, o Leste e o Sul em oposição ao O cs té e ao Norte, repre­
sentam no imaginário e localizam no espaço as duas classes contrárias de poderes sobrena­
turais. De um lado a vida reluz, avança e se ergue; de outro desce e se extingue. O mesmo 
se dá com o contraste entre o alto e o baixo, o céu e a terra. No alto, a sagrada residência
222
dos deuses e das estrelas, que desconhecem a morte; aqui embaixo, a região profana dos 
mortais a quem a terra traga; e, ainda mais embaixo, os lugares sombrios oode se escondem 
serpentes e multidões de demônios.16
d a to que este atordoante contraste entre o alto e o baixo, esta alegoria das 
alturas é que dizem respeito ao poder dos Andes, de realizar o mito e a magia. 
Eles concernem á floresta tropical e à floresta brumosa de onde provêm esse mito, 
essa magia. No entanto, esse kantismo sociológico não estará por demais consu­
mido por sua própria mitologia, relativa às categorias fundamentais? Não poderia 
aquela ordem tão apreciada do “dualismo fundamentar ser nutrida, quando não 
depender da alegoria das alturas, onde a ordem reina suprema? Onde a morte e a 
blasfêmia, a sórdida materialidade daquilo que está abaixo, o objeto em si, pode­
rão ganhar uma cunha epistemológica, nesse elevado organum de sublime co­
nhecimento? Talvez a própria magia dos xamãs ou, pelo menos, a magia a eles 
atribuída, seja gerada por essa questão e, nas fraturas e rupturas com a experiên­
cia, ela encontre sua cunha. De qualquer modo, na selvageria que se atribui ao 
“embaixo” encontra-se a oportunidade de situá-lo fora do alcance do fato de ele 
não ser nada além do que o outro das alturas. Na mímese da arte mágica impu­
tada pela sociedade à floresta das terras baixas e seus exóticos poderes, essa 
oportunidade reluz. É o que Georges Bataille, uns vinte anos após Hertz e na 
mesma cidade, denominaria “a velha marca de nascença” da revolução marxista 
contra a águia imperialista da idéia, pairando majestosa, em sagrada aliança com 
o sol, castrando tudo aquilo que entra em conflito com ele.17
A Estrela da Neve
Em seu estudo sobre o grande festival andino da Estrela da Neve, o Collur 
Riti, publicado em 1982, Robert Randall especifica as imagens transmitidas por 
aquilo que se situa no alto e por aquilo que se situa abaixo, a leste de Cuzco, a 
antiga capital do império Inca, onde as montanhas se encontram com a floresta. 
Ele descreve esse festival anual como sendo “provavelmente o espetáculo mais co­
movente e deslumbrantedos Andes”, durante o qual, nos anos que se situam em 
tomo de 1980, cerca de 10 mil peregrinos sobem as montanhas, por ocasião do 
Corpus Christi, a fim de chegar a um vale sagrado situado nos picos. Citarei suas 
frases iniciais que descrevem a paisagem.
Emergindo da selva, as montanhas Cotquepunku, do pico nevado, são maciços alvos 
e resplandecentes que pairam na floresta tropical enevoada. O interior dessa cadeia de mon­
tanhas abriga um vale isolado que, durante a maior parte do ano, acolhe apenas rebanhos de 
lhama e alpaca que pastam a 4 500 metros de altitude, abaixo dessas reluzentes geleiras. No 
entanto, durante a semana que precede o Corpus Christi, mais de 10 mil pessoas, em sua 
maior parte índios e campesinos, fazem uma peregrinação ao vale de Sinakara. A música ecoa
223
para além dos muros que encenam o vale, e dançarinos, em trajes emplumados, andam
empertigados em meio à fumaça de pequeninas fogueiras, onde a comida está sendo prepa­
rada.1*
Mais adiante, quando eu escrever sobre os índios que carregavam em suas 
costas brancos que vinham da selva e atravessavam as montanhas da Colômbia, 
teremos motivos para retomar a essas imagens e ás maravilhosas metáforas refe­
rentes aos maciços, alvos e reluzentes, que emergem da selva e pairam na flo­
resta tropical enevoada. Ágora quero entregar-me ao ímpeto do trecho citado, ao 
contraste que opõe a selva à geleira, aos chunchos, os dançarinos emplumados e 
a sua dança dramática, quando o sol desponta. Esse rito é interpretado por Ran- 
dall como algo que possui vários significados, tais como “uma grande comemo­
ração do processo civilizatório, de transição do ou do mundo para este, da regeneração 
e ressurreição de Pachamama (a terra), da cura dos doentes e do início de outro 
ano (marcado pelo retomo das Plêiades)".19 Apoiando-se em estudos recentes no 
campo da etnoastronomia, sobretudo os de T. Zuidema, Randall sugere que essa 
peregrinação anual não só marca o desaparecimento e reaparecimento das Plêia­
des no céu (um lapso de cerca de 37 noites), como também aquilo que ele deno­
mina “a transição da desordem para a ordem (do caos para o cosmos)".20 É uma 
interpretação que se harmoniza com a observação de Zuidema, segundo a qual, 
para os Incas, egse período de 37 noites correspondia, de acordo com o calendá­
rio, àquilo que ele denomina o caos. Randall é cuidadoso ao enfatizar que a 
desordem dos peregrinos dançarinos termina com a dança final, ao nascer do sol. 
Segundo o autor, ela é perfeitamente ordenada e sincronizada. Devido a sua in­
cessante preocupação com a ordem e com a análise formal daquilo que eles 
denominam a “mente andina", há pouco interesse, por parte dessa escola de es­
pecialistas em estudos andinos, em qualquer outro “caos" que não seja aquele 
que permita estabelecer o modo pelo qual esse mesmo caos é convocado para a 
celebração da ordem É com equanimidade que esse festival é retratado como 
“uma grande comemoração do processo civilizatório", alimentado, quando não 
criado, pela dança ensandecida dos chunchos, homens selvagens da floresta. Isto 
é encarado como um rito de transição estelar, quando não cósmica, de renovação 
social e de cura individual. Tudo isso é resultado da transição da desordem para a 
ordem
Quanto aos chunchos, Randall cita relatos dos campesinos das encostas das 
montanhas, segundo os quais aqueles eram seus ancestrais. Um desses relatos 
narra como os antigos, os naupa machu, ocupavam as montanhas em uma época 
anterior a essa, quando não havia outro sol e outra luz que não a da lua. Esses 
antepassados eram seres poderosos, capazes de achatar montanhas e mover gran­
des rochas. O principal espírito dos picos locais perguntou a eles se gostariam de 
ter parte do poder daquelas montanhas mágicas, mas, orgulhosos de sua força, os 
naupa machu desprezaram essa oferta, levando o chefe do pico a criar o sol que, 
erguendo-se acima da selva, transformou os ancestrais em pedra, com exceção
224
“Um incidente no Putumayo: índia condenada a morrer de fome, no Alto Putumayo 
(os peruanos declaram que isto foi obra de bandidos colombianos).” In Walter E. 
Hardenburg, The Putumayo: The Devil's Paradise, 1912.
O castigo do tronco, aplicado em Laguna. In Edouard André, 
América Equinocial, 1884.
Muchachos, 1908. Cortesia da Whiffen Collection, Museu de Arqueologia 
e Antropologia da Universidade de Cambridge.
i »k r i i f i m \ n \ y u a *o x k m ;i«>.\: k i v t k i :c \ y \ l i .
“índios da Amazônia peruana: rio Ucayali.” In Walter Hardenburg, 
The Putumayo: The Devil’s Paradise, 1912.
“Espírito da floresta” preparando remédio.
Don Pedro e o autor no jardim das delícias do curador.
“Ele sentou-se com a meninazinha.”
o v a m o s rodeados por férteis campos agrocomerciais.
_‘.r- Y to ú m M r.
r j J i w w irivrtp í?« o^
IX TltF. I*K0V1!«<*T. o r POHAYAX X- CAKCCr.KOS OR CARMIKK5.* W1I0 TKAVF.L ÍT
/W/mW U a ttM ISTJ U J .+ n M *rr*+ Lr+ Jc*
“Ilustração da passagem de Quindio na província de Popayon e cargueros (ou carre­
gadores) que atravessaram-na.” In John Potter Hamilton, Traves trough the Interior 
Provinces of Colombia, 1827.
Descida íngreme da cordilheira dos Andes na província e Choco. In Charles Stuart 
Cochrane, Journal of a residence cmd Travels in Colombia during the Years o f 1823 
and 1824, 1825.
O curtão postal enviado pelo soldado à mãe com o seu retrato anexado ao alto.
recebendo fio após fio de sua chaquira.
“Curar ... o que é isto ?”
daqueles poucos que fugiram pata o escuto caos das florestas abaixo. Por meio 
dessa criação dos chunchos na escuridão que reinava abaixo, a ordem Inca foi 
criada acima, nas montanhas iluminadas pelo sol.
Épocas inteiras de tempo também estão sepultadas lá embaixo. A exemplo 
da fuga dos antigos para as selvas, ao que se diz, grandes ciclos da história estão 
sepultados naquele mesmo lugar a partir do qual, através de um “florescimento” 
(o termo se deve aos informantes de Randall) no presente, eles podem exercer 
uma influência poderosa sobre a vida contemporânea. Tal florescimento, por meio 
do qual uma época anterior exerce sua influência, habitualmente perniciosa, sobre o 
presente, ocorre por ocasião da lua cheia ou da lua nova, na alvorada ou no 
crepúsculo. Teremos motivos para nos lembrar desse florescimento de um tempo 
subterrâneo quando, posteriormente, abordarmos os modos pelos quais a própria 
história age como uma feiticeira na criação de la mala hora, a hora má, no vale 
do Sibundoy, na Colômbia. Lá também são feitas ligações com aquilo que parece 
ser uma “outra” época subterrânea da conquista pré-hispânica. Enquanto essa 
época sepultada floresce sob forma quase satânica, a fim de enfeitiçar o presente 
e até mesmo matar, pode-se recorrer a esse mesmo testemunho da história, tendo 
em vista a cura.
No que diz respeito ao tempo mítico, o mesmo ocorre em relação aos chun­
chos do Leste de Cuzco: inferiores, selvagens, hostis, ainda assim são curadores 
e concessores de fertilidade. Em relação àquilo que parece ser uma contradição 
significativa à sua tese de que a ordenação é curativa, Randall cita testemunhos 
para afirmar que os habitantes das encostas daquelas montanhas enviavam seus 
xamãs, responsáveis pela cura dos doentes e pelos cuidados com a fertilidade dos 
campos, lá para a selva, onde aprendiam durante um ano, “a fim de trazerem essa 
fertilidade lá para cima, na sierra". A própria selvageria da floresta (e, presumi­
velmente, de seus habitantes) é curadora e fertilizadora.
Poderemos querer qualificar esse conceito e insistir em uma espécie de coli­
gação “dialética” entre o alto e o baixo, a montanha e a floresta das terras baixas, 
a ordem e a desordem etc., mas não acredito que isto deprecie substancialmente 
o caráter unidirecional da atribuição de poder mágico que aqueles que se encon­tram em posição elevada exercem em relação aos que se situam abaixo deles. 
Isto também não deprecia a caracterização da classe situada abaixo como uma 
força, cuja capacidade de prodigalizar a saúde e a fertilidade, não menos do que 
o perigo que essa força encerra, nasce de sua selvageria. Ouçamos a evocação de 
Randall em relação à floresta, uma evocação que presumivelmente ecoa as opi­
niões do próprio povo da montanha:
A selva é também um lugar de escuridão, caos e desordem, onde, escondidas do sol, 
as plantas crescem desenfreadamente, entrelaçando-se com desalinho e confusão. Nisto ela repre­
senta, como a mitologia Inca, as tribos incultas, díspares e incivilizadas da época que precedeu 
a conquista ensolarada dos Incas civilizados, que trouxeram a ordem ao mundo.
237
RandaU assinala que as grandes taças Incas, de boca larga e de madeira pintada, 
geralmente representam todos os inimigos dos Incas como selvagens da floresta 
(chunchos) (o que nos traz à mente o emprego da palavra auca, no Norte do que 
é hoje o Equador e também ao longo da fronteira do Putumayo com a Colômbia). 
Ele observa que nos dias de hoje, durante o Festival da Estrela da Neve, a figura 
selvagem e emplumada do chuncho assume a função de representar o indianismo 
per se; não se trata apenas de seres míticos ao leste dos Andes, mas de todos os 
“índios”. Por outro lado, os integrantes do grupo Colla, considerados comercian­
tes ricos e procedentes dos altiplanos, hoje são representados não por índios, mas por 
mestiços (gente de ancestralidade índia e branca, mas, nesse contexto, considerada 
“branca”). No Festival da Estrela da Neve os chunchos derrotam os Colla, em 
combate simulado.
Aselvageria, a fertilidade, a cura mágica, suprimidas, reprimidas, são conti­
das embaixo, na sombria selva emaranhada, esse subterrâneo agreste da história 
que pode irromper através de rebeliões, de tom messiânico, que curam e fertili­
zam não simplesmente esta ou aquela pessoa, não só este ou aquele campo, mas 
toda uma sociedade erroneamente revestida de uma outra época. É a interpreta­
ção a que se pode chegar dos repetidos ataques aos espanhóis durante a época 
colonial, por parte dos moradores da floresta, que culminaram no romance, 110 
vigor e no esplendor de um mito objetificado no movimento liderado por Juan 
Santos Atahuallpa em 1741. Randall detecta manifestações modernas dessa cons­
telação de mito e ruptura social na geografia político-moral da rebelião associada 
a Hugo Blanco, nos anos 60. Em ambas as instâncias, os líderes das montanhas 
ou “profetas” desciam de suas terras para as terras baixas, cobertas por florestas, 
situadas ao leste, com as serpentes e os demônios, não para encontrar meramente 
uma base social de apoio, mas para reafirmar uma base mítico-histórica. As for­
ças rudes da selvageria e da história foram recrutadas, numa tentativa de destruir 
a antiga ordem, porém fracassaram. Entretanto, a mitologia continua vivendo. O 
próprio Randall convoca a nostalgia do fracasso político para inspirar uma pun­
gente identificação com os demônios da história e da renovação social, enquanto 
consolidam com segurança o triunfo da vontade de proceder a uma ordenação. 
No entanto, sem os chunchos e a selva — “lugar de escuridão, caos e desordem, 
onde, escondidas do sol, as plantas crescem desenfreadamente, entrelaçando-se com 
desalinho e confusão" — não haveria uma base para a própria ordem. Com 
efeito, é a partir dessa dependência que a magia e a fertilidade “florescem”.
Nesta obra de arte coletiva, que tanto se dirige à natureza quanto dela de­
riva, já foi dito que a floresta da planície figura em relação às zonas elevadas não 
apenas como o lugar da desordem, mas como uma fêmea. É o que ocorre em Los 
ríos profundos, romance cripto-autobiográfico de José Maria Arguedas, que se 
passa na cidade de Abancay, nos Andes peruanos, há uns cinqüenta anos. Em 
relação à usurpação dos valores de uso pelo sistema de mercado, são as mulheres
238
que desafiam as injustiças do sistema comercial e do Estado. Ao agirem dessa 
forma, elas criam não apenas a “desordem”, sob a forma da rebelião (e aqui proce­
deríamos bem em fazer uma pausa e perguntar a nós mesmos por que sempre a 
rebelião é qualificada como desordem e não o sistema contra o qual ela se in­
surge). As mulheres também provocam a animação da paisagem e de outras coi­
sas mudas. Fundamental para este processo de dar voz às coisas, no calor de uma 
desordem inspirada pela mulher, que se volta contra a desordem criada pelo sis­
tema de mercado das coisas, o qual triunfa sobre as pessoas, é a descida da 
mulher às florestas orientais e á zona feminina, onde habitam os chunchos.
Devido ao açambarcamento praticado pelos comerciantes há uma séria falta 
de sal. As chicheras locais (mulheres que preparam e vendem a chicha, bebida 
feita com milho fermentado) lideram uma rebelião que objetiva garantir o forne­
cimento do sal e a sua distribuição, gratuitamente, às mulheres da cidadezinha e 
aos servos índios das fazendas do arredores. 0 Exército intervém para abafar a 
insurreição, e a líder da revolta, Dona Felipa, foge para o rio e de lá, segundo se 
comenta, desce para a selva, de onde promete voltar com os chunchos e atear 
fogo nas haciendas. As autoridades receiam que, se isso acontecer, os servos 
fugirão e se aliarão às chicheras. Os chunchos, ao que se diz, são capazes de se 
zangar terrivelmente. Os meninos do colégio especulam que o rio Pachachaca 
pode tomar o partido dos chunchos e de Dona Felipa e reverter ser curso, tra­
zendo lá para cima as canoas dos chunchos, que queimarão o vale e os canaviais 
dos proprietários das haciendas, matando todos os cristãos e seus animais tam­
bém. Na igreja de Abancay o diretor do colégio, que também é padre, anuncia 
que um destacamento de guardias civiles, constituído por policiais bem treinados 
para manter a ordem, será instalado permanentemente no quartel, e prossegue com 
o seguinte sermão (em espanhol, em vez de quechua):
"A ralé está invocando um fantasma a fim dc assustar os cristãos. É uma farsa ridí­
cula. Os servos dc todas as haciendas têm almas inocentes, são melhores cristãos do que 
nós; c os chunchos são selvagens que jamais saem dos limites da selva. Se, por obra do 
demónio, eles vierem, suas flechas sc revelarão dc pouca serventia diante dos canhões. 
Devemos nos lembrar de Cajamarca...!", ele explicou e, voltando seus olhos para a Virgem, 
com sua voz metálica implorou perdão para os fugitivos, para aqueles que seguiram o mau 
caminho. "Tu, querida c amada Mãe, saberás como expulsar o demônio dc seus oorpos”, 
disse cie.22
Por esta forma acionadas, vemos como as ambigüidades politizadas da “de­
sordem", imputadas e transmitidas através da polaridade das mulheres, diabóli­
cas e virginais, dão vida a distinções binárias, sob outros aspectos estáticas, firmes e 
intelectualizadas, unificadas pela montanha e pelas terras baixas. Podemos sentir 
como a progressiva trajetória dos acontecimentos, desencadeados pelas contradi­
ções do sistema de mercado das trocas não apenas faz irromper distinções laten­
tes, mas poderosas, como também o decorrer dos acontecimentos muito deve ao 
acaso e à inesperada confluência de oposições. É uma espécie de jogo semiótico,
239
no qual os signos abdicam de sua precisão em favor da ressonância política que 
agora anima a paisagem, conspirando com a selvageria da redentora importância 
de uso das mulheres.
“Lembrem-se de Cajamarca...!”, troveja o padre, e seus olhos se movem em 
direção à Virgem. Cajamarca é a planície onde o soberano Inca Atahuallpa e seu 
poderoso exército foram derrotados por um punhado de espanhóis, marcando 
assim o final de um império, o surgimento de outro e, mais adiante, uma dupla 
identidade, agudamente colonizada. É esse primeiro plano e esse antecedente de 
identidade que Frank Salomon retratou recentemente.Trata-se de uma vasta his­
tória colonial, escrita nas danças e nos assassinatos dos yumbo, nos subúrbios da 
cidade de Quito, nas montanhas do Equador. Yumbo pode muito bem significar 
auca, o equivalente andino e nortista de chuncho. Ali, a exemplo do que ocorre 
com o Festival da Estrela da Neve, para o qual Robcrt Randall chama nossa 
atenção de modo tão notável, o ritual anual dos yumbo, durante o qual se dança e 
se mata, está associado com o Corpus Christi.23 Para aquele homem que cuida 
dos equipamentos que guiam os aviões para dentro e para fora de Quito e que 
guia Salomon através do mundo do yumbo (na medida em que esse mundo é 
criado na imaginação dos moradores das montanhas), a dança suscita as polari­
dades de um índio versus uma América branca. Com o Corpus Christi o “com­
passo da existência” (uma imagem que o guia aprecia) gira 180 graus, e aquilo 
que Salomon denomina “o esforço de se tomar algo" desvia-se da cidade da hierar­
quia e da brancura, “retomando não ao mundo ancestral, que se perdeu irreme­
diavelmente, mas ao alter contrário, à selva na qual os poderes da América perseguida 
se recolheram”. Em seu guia, prossegue Salomon, “um senso de distinção étnica, 
desprovido de seu fundamento original, sobrevive como uma tensão elétrica entre 
dois eus potenciais, igualmente irrealizáveis”.24
Aqueles que assumem o papel dos dançarinos yumbo se tomam explicita­
mente auca — não são batizados, não são socializados, são vizinhos dos animais 
e dos espíritos das montanhas e das nascentes, afirma Salomon. Enquanto tal, 
não podem entrar em uma igreja e, ao contrário de suas contrapartidas cristãs, 
nessa versão do Corpus Christi elaborada no Novo Mundo, sua refeição, embora 
formalmente semelhante à santa mesa, parodia a substância desta. Não são as 
traves, mas as lanças, que formam essa mesa; não é o pão fresco, mas migalhas 
roubadas ou mendigadas, além do crânio de um porco, esgravatado e limpo, além 
de um saco de batatas fritas derramadas sobre a “mesa” improvisada, enquanto 
se ridiculariza a oração a Deus. “Vocês vão ter de pagar!", grita o macaco para os 
yumbos. Então os homens formam fila e se dispõem a pagar as contas. Essas 
contas são classificadas segundo sua denominação e enfurnadas debaixo do couro 
do tambor. Em seguida recomeça a música yumbo. O dinheiro, conforme Salo­
mon assinala, não é mencionado e não se toca nele em uma verdadeira mesa 
(cristã). Como se se tratasse de um espetáculo burlesco, rabelaisiano, injetado
240
com humor brechtiano c feroz, com os pés na terra, os yumbo-aucas zombam da 
ordem hierárquica e serena dos oficiantes cristãos e, além disso, do Estado cristão
Esses dançarinos da floresta lá embaixo vivem no colo de seus pais e mães 
das montanhas. “Vim até aqui visitar o apu para curar. Dou boa sorte”, eles 
poderão dizei; e com apu se referem não simplesmente à montanha ou a um senhor, 
mas também aos oficiantes cristãos do Coipus Christi. As montanhas amam essa 
gente das terras baixas. Quando, no monte Guamani, ouve-se o barulho do tro­
vão, ao entardecer, diz-se que o Guamani está chorando porque seus xamãs Quijo 
do sopé das montanhas passam por ele, na estrada que leva à cidade de Quito. 
Eles dançam para as residências cristãs e cantam: “Eu vim, cheguei com minha 
Mãe Montanha. O que você quer? Quer uma cura ou quer matar?”. E quando 
partem, daí a alguns dias, dizem: “Agora precisamos ir para nossa casa. Agora 
nossa montanha está nos chamando, nossa montanha está brincando. Quando nossa 
montanha brinca, vamos embora, nossa montanha não deixa a gente ficar”.
É a brincadeira das montanhas? É o relâmpago que risca o céu, surgindo 
junto às encostas distantes das montanhas, o lado que dá para as florestas da 
planície, visível em Quito como um fulgor pálido (segundo as palavras de Salo- 
mon), alumiando, ao fundo, os perfis escuros das cristas. Esse tremeluzir por 
detrás das cristas que rodeiam a cidade é um sinal do poder dos yumbos. Agem 
como xamãs do Pacífico e das florestas tropicais do Leste, a domam-se com pás­
saros de plumagem reluzente. São xamãs que vieram até a cidade da montanha a 
fim de vender animais da selva e praticar a medicina mágica. É verdade que se 
diz dos yumbos que eles dependem dessas montanhas que os amam e choram por 
eles, dessas montanhas que são suas mães, seus apus ou senhores, cujo senhorio 
maternal se dilata para denotar os oficiantes cristãos, a quem os yumbos, que 
agora representam não apenas o povo da selva, mas sua quintessência mágica e 
selvagem no ofício xamânico, complementam em ponto e contraponto, por oca­
sião do Corpus Christi. Trata-se, porém, de uma dependência profundamente am­
bivalente. Os xamãs vêm da selva e oferecem a seus chefes aquilo que sua 
superioridade lhes nega, isto é, o poder mágico da selvageria, o poder mágico de 
matar e de curar e, diante daqueles oficiantes cristãos, eles exercem selvageria 
sobre eles mesmos, matando um dos seus e em seguida, por meio da arte xamâ- 
nica, trazendo a vítima do espaço da morte para a vida, para algo que é, talvez, 
maior do que a vida, uma diferença estruturada, co-dependente, da floresta e da 
montanha, “índia” e cristã, encenada nestas alturas, nos subúrbios da cidade. 
Caçando e abatendo sua vítima em uma floresta tropical simbolizada, por meio 
do poder divinatório de seus alucinógenos, no dia que se segue a Corpus Christi, 
o xamã que matou saúda seus companheiros selvagens (passo a citar Salomon): 
“E que notícias me traz, irmão? Não viu alguém vir por aqui com os pés e dedos 
virados para trás, com o cu e os bagos cheios de pulgas e talvez com uma corda 
curta amarrada no pescoço? Não viu alguém assim passar por você?”. O matador 
quer comer o fugitivo, mas é persuadido a ressuscitá-lo, caso receba dinheiro.
241
“Irmão, de onde você veio?”, perguntam ao homem que é trazido de volta à vida. 
“O que foi que você viu?” Em tom de voz bem baixo, para que os curiosos não 
ouçam, ele conta: “Irmãos, percorri o mundo inteiro. Vi todos os animais, vi 
todos os meus irmãos e agora trouxe as sementes doces. Fui para outro mundo e 
trouxe o que ali havia: laranjas, colación e todas as frutas”. E assim os irmãos 
yumbos, xamãs, todos eles selvagens, cantam, despedindo-se das montanhas, dos 
cristãos, seus anfitriões:
De um ano para outro aparecemos aqui 
Como o pássaro veranero.
Ah, agora voces vêem. Ah, agora vocês vêem 
A morte vocês vêem, a vida vocês vêem agora 
Ai, não, sim! É assim, é assim!25
Há um tremeluzir de luzes nas sombras da morte: “A morte vocês vêem, a 
vida vocês vêem agora. Ai, não, sim!”. Há um tremeluzir de luzes além dos 
cumes sombrios que rodeiam a cidade das montanhas, um antigo jogo de diferen­
ças que se manifesta tanto no comércio quanto nas trocas ideológicas, que talvez 
agora tenha ficado mais aguçado devido à rapidez com que a circulação de mer­
cadorias criou “o moderno” e “o tradicional”. As danças yumbo florescem mais, 
informa-nos Salomon, “onde a desenfreada expansão de Quito, rica devida ao 
petróleo, ocasionou uma súbita e dramática invasão de comunidades antigamente
' n 26rurais .
Isto levanta algumas questões abordadas por Benjamin e que dizem respeito 
ao efeito cultural do salto em direção àquela Paris de Baudelaire, onde as merca­
dorias passam a adquirir grande importância. Em primeiro lugar, ocorre o con­
fronto da disciplina da cidade com sua selvageria (“James Ensor gostava de 
introduzir grupos militares em suas multidões carnavalescas, e ambos se davam 
esplendidamente, como um piotótipo daqueles estados totalitários, nos quais a 
polícia toma o partido dos saqueadores”, observou Benjamin);27 em segundo lugar, 
é preciso observar como o salto quantitativo para a tecnologia e a oscilação do 
mercado inscreveu nas mercadorias um pathos de promessas negadas, estimu­
lando através delas visões de utopia, extraídas de fantasias do passado primitivo,tais como a selva e seus fabulosos yumbos, aucas e chunchos.
Em relação às cidades do Primeiro Mundo, a própria cidade do Terceiro 
Mundo se aproxima do status do auca. Examinemos o anúncio de página inteira 
publicado no New York Times (21 de outubro de 1984), centrado em uma foto 
colorida de uma índia das montanhas carregando nas costas um bebê adorme­
cido. Usa um manto de um vermelho vivo e um chapéu panamá com uma faixa 
multicor. Em tomo do pescoço há contas de ouro e prata e de suas orelhas pen­
dem brincos dourados. Atrás dela vemos cestos de vime; seus espaçosos inte­
riores, escuros e convidativos, são cavidades sexualizadas, à espera de mercadorias
242
para comprar e vender. Ela tem os olhos baixos e ligeiramente afastados da má­
quina fotográfica, como se estivesse absorta em outro mundo que não o do fotó­
grafo ou o nosso. É um anúncio da revista Gourmet (“o padrão de vida") que, 
conforme é declarado, tem 2,5 milhões de leitores.
Mas os pássaros tropicais lá dos contrafortes das montanhas, que os xamãs 
yumbo trouxeram até Quito, morreram durante a viagem. No entanto as cores 
persistem, e é com elas que os xamãs são ajudados na criação e transmissão de 
suas fantásticas visões.
Quanto à antigüidade dessa enorme distinção que articula a demoníaca magia 
das florestas das planícies com a majestosa ordem das terras altas — é claro que 
do ponto de vista destas últimas —, pode-se apresentar uma justificativa para o 
fato de ela se reportar a épocas muito remotas. Hemy Wassén resume muitos 
indícios relativos a esse tema na monografia que editou sobre o conteúdo do 
túmulo de um curador Collahuaya. O teste com carbono permitiu situar tal con­
teúdo em tomo de 350 d.C.M Salomon cita estudos que sugerem datas mais re­
cuadas (cerca de setecentos anos), no que se refere ao comércio da planície com 
as terras altas. Ele mesmo chega a ponto de dizer que, pelo menos para o século 
XVI, há indícios que sugerem fortemente “algum grau de influência ideológica 
da planície sobre os habitantes das terras altas".29 Entretanto, tal “influência” tem 
todas as probabilidades de ser tanto auto-induzida quanto induzida de fora. Trata- 
se de uma fantasia institucionalizada das terras altas em relação às florestas do 
Leste, cujo romantismo, selvageria, beleza e mistério não podem deixar de consi­
derar o ideológico como algo natural e o ficcional como realmente real. E quem 
permanece imune?
À cientificidade da arqueologia e á antigüidade da datação por caibono acres­
centamos a paixão heróica dos habitantes da planície, liderados pelos xamãs, 
contra os espanhóis e, antes disso, ao que se diz, contra as incursões do império 
Inca. Mais uma observação: os habitantes das terras altas, ricos e pobres, brancos 
e índios, urbanos e não tão urbanos, descem para as planícies á procura dos 
xamãs e de seu poder mágico. Nós também, não menos dependentes das impal­
páveis distinções foijadas pelo mito, por meio de acontecimentos históricos ocorri­
dos em paisagens interiores e exteriores, seguimos esses habitantes, observando, 
nos afastando, mas, finalmente, a exemplo daqueles que descem, imaginando o 
mundo ritualisticamente, não menos tributários da magia das matas e do primi­
tivo, do selvagem, como se o mito se reproduzisse inevitavelmente através de ri­
tuais que, para alguns, são curativos e, para outros, necessitam de uma explicação.
Para encerrar, Salomon nos deixa com esta vigorosa imagem: onda após 
onda de estrangeiros conquistaram e santificaram a cidade de Quito, na mon­
tanha. Os poderes ab-originais são projetados para fora, em direção á periferia, 
passam por cima da borda das montanhas e alcançam o refúgio das florestas 
distantes. “Assim”, escreve ele, “a floresta se toma — e está se tomando sempre
243
— o refúgio do antigo, do aborígine, do autóctone. É um reservatório para aquele 
tipo de conhecimento que os poderes do centro desejam unicamente expelir e 
substituir".30
Mas qual é o grau de autonomia desse conhecimento que o centro projeta 
para fora? Será que a alteridade que marca aquilo que é projetado também não o 
marca como algo que é desejado e necessário ao centro? A magia da zona selvagem 
não será criada tanto pelo centro quanto pelos xamãs, que são feitos para agir 
como aqueles que amortecem os choques da história?
Isso se encontra ativamente inscrito no corpo. Examinemos a história dos 
ferimentos dos espanhóis e da gordura do corpo dos índios.
Bemal Díaz lutou com Cortês e ganhou um império para a Espanha. Seu 
campo de batalha foi o México, e ele escreveu aquilo que é, com toda certeza, o 
relato mais universalmente lido daquela conquista. Ao descrever o primeiro con­
fronto com os Tlascalan, ele registrou que o corpo de um índio bem nutrido foi 
aberto para que dele se retirasse a gordura que curaria os ferimentos dos partici­
pantes da batalha. Não havia óleo, disse ele, mas havia filhotes de cachorros dos 
índios que proporcionaram uma refeição satisfatória. Presumivelmente não eram 
desprovidos daquela gordura que teria aliviado os ferimentos. No próximo em­
bate a gordura dos índios voltou a ser aplicada com a finalidade de curar quinze 
espanhóis feridos, bem como seus quatro cavalos. Naquela noite houve galinhas 
e filhotes de cachorro para comer. Era curioso, escreveu Bemal Díaz, como os 
índios, nessa batalha e em todas as demais, levavam embora seus feridos, e os 
espanhóis jamais viram os índios mortos.31
O grande cavaleiro Hemando de Soto, ao que se diz, também usou a gor­
dura dos índios mortos em combate, quando da expedição contra um dos capitães 
Inca, que resistia na Sieira de Vilcaza, nos Andes peruanos.32 Não posso dizer o 
quão mágico era tal emprego, mas com toda certeza os princípios enunciados por 
Frazer referentes à magia complacente e contagiosa ficam claros: com a gordura 
daqueles que me feriram eu curarei minha ferida. Sabe-se lá o que está sendo 
dito aqui a respeito da gordura enquanto excesso beneficente de vitalidade, de 
corpos vivos e saudáveis, daquele que é mais gordo, em oposição ao infeliz 
magro etc.! Mas se é vã qualquer especulação relativa às opiniões dos espanhóis 
sobre as virtudes mágicas da gordura indígena, ela não é tão vã assim quando 
abordamos as opiniões do índio em tomo desse tema. É o mesmo que dizer — e, 
como sempre, é algo que deve ser dito, em se tratando deste jogo de espelhos — 
que não se trata tanto das opiniões dos índios quanto das opiniões dos espanhóis 
em relação ás opiniões que os índios manifestavam em relação às opiniões dos 
espanhóis. Neste caso tratava-se do untu do índio ou da gordura do corpo.
Quando estava para terminar seu pequeno livro sobre os ritos e fábulas Inca, 
uns quarenta anos depois que os soldados de de Soto curaram seus ferimentos 
com a gordura de índios mortos, o sacerdote católico Cristobál de Molina julgou
244
apropriado estender-se longamente sobre a santidade das montanhas, a extração 
da gordura dos corpos dos índios, a revolta da Doença da Dança contra os espa­
nhóis e os ritos de cura que floresceram durante e após essa insurreição, sem 
dúvida a maior de todas as rebeliões índias ocorridas durante os primeiros duzen­
tos anos de dominação colonial. Dez anos antes desse livro, uma revolta que os 
índios denominaram o Taqui Onqoy ou Doença da Dança irrompeu na diocese de 
Cuzco, anteriormente capital Inca, e propagou-se rapidamente. Segundo o padre 
Molina escreveu, espalhou-se a notícia que os espanhóis ordenaram que a gor­
dura dos índios fosse recolhida, após o que seria exportada para a Espanha, tendo 
em vista a cura de determinadas doenças. Embora ninguém pudesse afirmar com 
certeza, provavelmente os feiticeiros do Inca, escondidos nas misteriosas para­
gens de Vilcabamba, onde os Andes se encontravam com as florestas amazôni­
cas, é que foram os responsáveis por esse relato, destinado a semear a inimizade 
entre os índiose os espanhóis. A partir de então os índios relutaram em servir os 
espanhóis, pois temiam ser mortos e ter a gordura de seus corpos extraída como 
remédio para o povo da Espanha.35
Quase quatrocentos anos após a revolta da Doença da Dança, o peruano 
Efraín Morotc Best publicou em Cuzco um artigo sobre o Nakaq, um fantasma 
das montanhas meridionais do Peru que, ao que se diz, ataca indivíduos na escu­
ridão, em lugares públicos, para extrair a gordura de seus corpos, que, ou é ven­
dida nas farmácias, onde é usada no preparo de certos remédios, ou para certas 
pessoas, que a empregam para lubrificar máquinas, fundir sinos de igreja ou polir 
os rostos das imagens de santos.34 Raramente se dizia que o Nakaq era um índio. 
Quase sempre comentava-se que era branco ou mestiço. Em algumas versões a 
vítima desaparecia imediatamente. Em outras as vítimas eram colocadas para 
dormir ou então entravam em um estado semelhante ao transe por meio de pós 
mágicos. Depois que sua gordura era extraída elas acordavam, sem lembrar-se do 
que tinha acontecido. Não havia qualquer sinal de ferimento. Continuavam a 
viver sua vida de todos os dias e morriam lentamente. Algumas não morriam, 
mas ficavam doentes para sempre, de tristeza. Ao acordar, algumas pessoas se 
lembravam de tudo, como se fosse um sonho.
Em seu ensaio sobre o mesmo fantasma, Anthony Oliver-Smith sugeriu que 
ele serve para confirmar, de maneira grotesca, as experiências cotidianas do índio 
em relação à opressão de classe e de raça. Em comentário á parte, notou que os 
mestiços com quem falou em Ancash, no Peru, em 1966, contaram-lhe com 
grande hilaridade que matavam um cachorro ou um porco e espalhavam suas 
tripas com roupas enxarcadas de sangue para levar os índios a pensar que o fan­
tasma que extraía gordura andava por perto e os mataria, caso não trabalhassem 
com mais afinco ou não se comportassem.35 No entanto esse simulacro da reali­
dade, na qual os mestiços zombam daquilo que acham que os índios pensam que 
os mestiços estão pensando sobre os índios, vai além de uma simples piada.
Em seu trabalho de campo na província andina de Ayacucho, no início e em
245
meados da década de SO, o etnólogo e romancista peruano José Maria Átguedas 
conheceu um homem, um misti, como os índios o chamavam (querendo dizer, 
com isso que se tratava de alguém que não era índio, um membro da classe 
“senoriar), que, com grande encanto, embelezava o fato, certamente bem co­
nhecido, de que os mestiços (bem como os brancos) dessas classes sociais podem 
recorrer a adivinhos e curadores índios quando se vêem em apuros, atribuindo- 
lhes assim o poder de desviar o curso do destino, como se existisse um pacto 
implícito entre a indianidade e a redenção. Aiguedas fez perguntas aos morado­
res da cidadezinha andina de Puquio em relação aos wamanis, espíritos das mon­
tanhas que rodeavam a localidade e cujos sacerdotes recebem o nome de pongos, 
dado aos criados e servos cm boa parte dos Andes. Seu conhecido misti contou- 
lhe o que aconteceu, quando atuou como autoridade em um distrito no interior da 
província.30
Havia uma grande comoção, pois os moradores da capital do distrito, bem 
como das regiões vizinhas, tinham ouvido falar que, em uma cavema na mon­
tanha, havia um pongo capaz de realizar curas milagrosas e de adivinhar o futuro. 
Devido à confusão geral, pois as pessoas, tumultuadas, iam correndo consultar o 
pongo, o governador decidiu colocar um fim naquilo que ele denominava a farsa 
do índio. Enviou quatro homens para prender o pongo. Trouxeram-no amarrado 
para a cidade, onde o governador o tratou muito mal, fazendo-o dormir na prisão 
e sem o desamarrar. Entretanto, pessoas de todas as classes sociais, ignorantes e 
letrados, solicitaram ao governador que o libertasse. Ele decidiu fazer o pongo 
passar por uma prova. O pongo pediu certos ingredientes e armou sua mesa ou 
altar, a fim de invocar os wamanis, os espíritos da montanha. Ele e o governador 
aguardaram sozinhos, em um quarto escuro. Os wamanis chegaram voando, fa­
zendo grande barulho e batendo as asas. O governador disse que conseguiu ver 
um deles, pois tinha deixado uma janela aberta. Tinha a forma de uma águia 
pequena, porém imponente. Também nos contou que os wamanis falavam com 
fúria majestosa e chicoteavam o pongo. O mais furioso era o espírito da maior de 
todas as montanhas, Quarwarasu. Os wamanis contaram ao governador o que lhe 
aconteceria ao longo de sua vida, e lhe deram remédios para suas doenças. Só 
assim ele ficou convencido do poder do pongo e comoveu-se, a ponto de iniciar 
uma amizade íntima com ele, chegando mesmo a dizer-lhe certo dia que também 
gostaria de ser um pongo. Isso, no entanto, estava fora de cogitação, disse-lhe o 
pongo. Não era uma profissão que um misti pudesse seguir. Não conseguiriam 
resistir âs punições e aos testes a que os wamanis submetiam seus pongos. 
Assim, o governador desistiu de sua ambição, mas manteve relações afetuosas 
com o pongo. Certo dia, em Nazca, uma localidade remota situada no litoral sul, 
um amigo do governador, que já não ocupava mais o cargo, pediu-lhe que trou­
xesse um pongo para curar certa doença de uma mulher, que nenhum médico 
conseguia diagnosticar. O ex-governador convocou o pongo, que morava a uma 
distância de três dias de Puquio e, de táxi, atravessaram uma extensa região, indo
246
até a costa, cm Nazca, onde, em um quarto escuro, o pongo preparou seu altar e 
invocou os wamanis, os espíritos das distantes montanhas de Ayacucho. Como se 
encontrava no litoral, invocou também os espíritos das montanhas vizinhas, so­
bretudo os da Montanha Branca, mas foi um equívoco, pois a Montanha Branca, 
situada em uma região onde havia poucos índios, falava espanhol, que o pongo 
não conseguia entender. Os wamanis se encolerizaram
No dia seguinte o ex-governador perguntou à Montanha Branca se poderia 
servir de intérprete. Ela concordou e os wamanis continuaram A Montanha 
Branca acusou a doente de ser uma feiticeira. Disse que ela estava doente devido 
à feitiçaria, pois uma de suas vítimas havia se vingado, mandando um feitiço 
contra ela. O wamani principal ordenou a dois de seus menores espíritos da mon­
tanha que fossem colher substâncias usadas para fazer feitiçaria e lhe trouxessem 
aquilo que a mulher branca e doente empregara contra sua vítima, bem como 
aquilo que sua vítima usara contra ela. Em um abrir e fechar de olhos as aves 
derrubaram objetos pestilentos sobre o altar. Eram dois embrulhos com feitiçaria, 
que imediatamente foram jogados no fogo. O pongo e o ex-governador voltaram 
para as montanhas e a paciente começou a melhorar.
O ex-governador disse a Arguedas que os espíritos das montanhas interes­
sam-se pelos índios e que os segredos desses espíritos só podem ser aprendidos 
no interior das montanhas. Contava-se que o amigo do ex-govemador, o pongo 
índio, permaneceu durante seis meses dentro de uma dessas montanhas e que, 
decorrido esse tempo, ele voltou a aparecer, adormecido no campo. Ele ainda 
vive, disseram a Arguedas.
Entre as posições inferiores, o pongo ocupa a mais baixa de todas e é o 
criado de todo mundo. Ele voltou a aparecer, dormindo, disse o mis ti a Arguedas. 
Ele é também o criado dos sonhos e da arqueologia do mito racista que se des­
loca para o presente, vindo do interior escondido da terra montanhosa, emergindo 
adormecido como se estivesse em um tempo de sonhos, a fim de redimir a classe 
senoríal de sua feitiçaria auto-induzida. Assim como esse pongo voltou a apare­
cer adormecido, outros pongos desapareceram dormindo, violados pelos mistis e 
brancos sob a forma de nakaqs, que vendem suas gorduras como remédio, como 
lubrificante para máquinas ou para polir os rostos dos santos.
Em meio às técnicas que constituem esses ritos, existe uma figura que pro­
picia a substancialidade necessária para ligar a febre efêmera das atribuiçõese 
contra-atribuições a uma força redentora. É uma figura imaginária, constituída 
por aquele campo fugaz da alteridade — as representações que os brancos fazem 
das representações que os índios fazem das representações que os brancos fazem 
dos índios. É a figura da mulher e do homem selvagens, figuras pagãs, a quem se 
atribui a magia de matar e a magia de curar a doença e o infortúnio socialmente 
causados por seus superiores, definidos como civilizados. São estes os grandes 
artefatos: o anti-eu fetichizado, gerado por histórias civilizatórias, a figura selva-
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gemente contraditória do primitivo, menos do que humana e mais do que hu­
mana. É a figura da escrava negra em Cartagena, com seus filtros amorosos e 
suas poções mágicas. É Paula de Eguiliz, condenada à morte na fogueira pela 
Inquisição, acusada de comandar as bruxas negras que assediavam Cartagena. 
Embora fosse objeto de acusação, era solicitada por seus acusadores, o bispo e o 
principal inquisidor, a fim de curá-los. Despindo o sanbenito, traje de penitência 
que a marcava como aliada do diabo, ela saía da prisão coberta por um manto 
bordado de ouro, carregada em uma liteira, lembrando a Mulher Selvagem da 
Floresta, La Montanerita Cimarrona. É o pongo em sua caverna na montanha 
curando mis tis. É o chuncho nas paragens selvagens, abaixo das montanhas. É o 
xamã exorcizando José Garcia, livrando-o daquele feitiço que outros brancos, 
invejosos de sua boa sorte, lhe enviaram. São imagens de selvageria imputada a 
esses escravos, ex-escravos e pongos e, em seguida, extraídas deles, embebidas 
com aquela alteridade que essa imputação tanto intensifica, a exemplo do que 
ocorre com a gordura extraída pelo nakaq. É um poder escorregadio e mágico, 
que pode exorcizar, no eu colonizador, o mal de possuir mais.
Somos todos nakaqs.
248
13
O valor do excedente
1971 foi um ano de esperanças renovadas para muitas pessoas pobres que 
trabalhavam no campo, na região da Colômbia onde eu morava. Desde a década 
de 30 não houvera tamanha atividade política por parte dos camponeses que 
lutavam com os latifundiários pelo controle da terra. Certo dia acompanhei dois 
líderes sindicais camponeses até o alto das montanhas que ondulam para o Oeste, 
a partir da extremidade sul do vale. Luis Carlos Mina e o falecido Alfredo Cortés, 
meus amigos, eram camponeses dos arredores de Puerto Tejada e tinham experiên­
cia pessoal com a deflagração de greves nos engenhos de açúcar. Queriam incor­
porar os índios a seu novo sindicato, solicitando-lhes que contribuíssem com 
madeira das montanhas para a construção da casa campesina a ser edificada na 
cidadezinha onde havia o mercado principal. Isso proporcionaria às pessoas um 
lugar onde passar a noite, na véspera do mercado, e assim elas não precisariam 
dormir na rua. Era um espaço onde as pessoas se reuniriam, discutiriam suas 
preocupações mútuas e se organizariam
Viajamos o dia inteiro, subindo a cordillera ocidental em pangarés esquelé­
ticos, e localizamos a hacienda. Precisávamos da permissão do proprietário para 
conversar com seus colonos. Em troca de um pequeno pedaço de terra, pouco 
fértil, eles trabalhavam durante três dias na hacienda. Eram índios Páez da cor­
dillera central. Tratava-se de quatro ou cinco famílias pequenas, que viviam em 
choças espalhadas. Quando nos aproximávamos de suas casas eles trancavam 
portas e janelas. Olhavam para o chão quando conseguíamos entabular um prin­
cípio de diálogo, o que não acontecia com freqüência.
O proprietário não era menos esquelético do que nossos pangarés. Peludo, 
rude, sua roupa era manchada de suor e de seu cinto pendia um facão, cuja bainha 
era polida e reluzente, devido ao uso constante. Era um blanco, um branco, como 
diziam naquelas paragens, e freqüentara o curso secundário durante alguns anos. 
Vivia na fazenda, bastante só, e descia em média uma vez por semana para o 
mercado, no vale. Era cortês e, embora não manifestasse grande entusiasmo por
249
aquilo que estávamos fazendo, provavelmente achou melhor não demonstrar ani­
mosidade em relação ao novo e florescente sindicato. Permitiu-nos, portanto, que 
fôssemos conversar com seus obreros.
Ao ouvir falar que eu trabalhava como médico, queixou-se de sua insônia e 
de dores de estômago... Quando a situação piorava ele descia para o vale e to­
mava um ônibus que o levaria ao Sul, quase na fronteira com o Equador. De vez 
em quando se fazia acompanhar por seu filho, que servira como mecânico na 
Marinha colombiana. Lá passava a noite e pegava outro ônibus, dessa vez em 
direção ao Leste, descendo os Andes, até as florestas, à procura de um xamã 
índio, um curaca. Lá ficava bebendo remédios especiais, contou-me, até se curar. 
De vez em quando levava terra da fazenda para que ela também passasse por um 
processo de cura, sobretudo quando a colheita ia mal ou o gado emagrecia.
Que estranho, pensei. Era a primeira vez que eu ouvia semelhante coisa e 
não sabia quase nada a respeito dos curacas, yagé, da geografia a que ele se 
referia e, para dizer a verdade, a respeito da feitiçaria ou malefício. Era o malefí­
cio que fazia o gado emagrecer e as colheitas minguarem
Daí a algumas semanas, no dia em que funcionava o mercado, na cidade- 
zinha, deparamo-nos com alguns de seus empregados. Estavam um pouco bêba­
dos, cambaleavam, sorriam e se divertiam em meio à multidão de camponeses 
reunidos na sede do novo sindicato.
“O patrão diz que sofre de malefício", afirmei, tentando puxar conversa com 
eles. “Quem estaria fazendo isso?"
“Ora essa”, comentou aquele que estava mais próximo de mim, “los mis- 
mos compadres!". Referia-se aos colonos índios de cujos filhos o dono da ha- 
cienda era padrinho! Ele não parava de sorrir. Jamais saberemos se os colonos 
enfeitiçaram de fato o proprietário e sua fazenda. Este, porém, sentia-se suficien­
temente atingido para fazer uma longa viagem e adquirir proteção mágica de 
outros índios, habitantes da floresta, cujo poder se igualava ou se sobrepunha 
àquele a que o expunha o fato de ele explorar seus colonos índios da cordilheira. 
Era a magia a serviço da luta de classes, a qual também acabou por envolver-me.
Cinco anos mais tarde fiquei conhecendo um atarracado morador das mon­
tanhas, que morava nos Andes, perto da estrada que ligava as florestas orientais 
da bacia amazônica á cidade andina de Pasto. Era um fazendeiro diligente e 
próspero, um blanco, segundo os padrões locais e, durante três anos, tivera pouca 
sorte. Era um monumento melancólico e sem graça ao conformismo social. Seus 
olhos, que pareciam duas contas, naufragavam na inocência ovóide de seu rosto 
gordo. Sua fazenda se estendia por pastos verdejantes e por plantações de batatas 
lindamente cultivadas, mas saturadas de fungicidas e fertilizantes. Eles termina­
vam nas margens de um lago azul e gelado, no qual somente os mais ousados se 
aventuravam a nadar. Segundo se comentava, o lago era encantado. Em tomo er­
guiam-se pequenas cabanas, pertencentes a camponeses diaristas, blancos como 
ele. Era gente pobre, e ele empregava alguns deles em seus campos férteis, inva-
250
didos por pesticidas. Seus pais o trouxeram para lavrar aquelas paragens á mar­
gem do lago quando ainda era uma criança. Chamava-se Sexto. Conheci-o em 
uma elevação acima de sua fazenda, a alguns quilômetros do páramo do cimo das 
montanhas, lá no vale do Sibundoy, certa noite em que ele tomava yagé com um 
curador índio de nome Pedro, com quem eu costumava hospedar-me por ocasião 
de minhas viagens à região das planícies.
Estávamos quase no final de 1976 e os padres promoviam grandes ativida­
des, pois planejavam fazer com que sua igreja se transformasse em catedral. Um 
dignatário da mais alta hierarquia, o arcebispo de Bogotá, com seu séquito de 
bispos, vinha consagrar a nova catedral. Enquanto isso os missionários, muito 
atarefados, percorriamdiligentemente o vale inteiro, em uma vã tentativa de inspi­
rar fervor religioso.
A mãe de Pedro, o curador índio, tinha mais clareza do que eu em relação 
ao significado de toda aquela movimentação. Contou-me que finalmente os ossos 
de frei Bartolomé, escondidos na catedral, seriam exumados e que o papa iria 
santificá-lo. Era o mesmo Bartolomé que, há sessenta anos, juntamente com o 
frei Gaspar de Pinell, empreendera uma lendária excursão apostólica, descendo 
as montanhas em direção ás densas florestas dos rios Putumayo e Caquetá, com 
o objetivo de batizar os Huitoto e outras tribos novas e selvagens (conforme a 
colocação dos textos publicados pela Igreja). Seu espírito é milagroso, e Pedro 
carrega um retrato dele em sua carteira.
O vento, porém, deixava de enfunar as velas que impelem o mundo. A mulher 
de Pedro participou de nossa conversa, quando falávamos a respeito dos ossos de 
frei Bartolomé e de suas proezas com os selvagens, ambos soterrados na igreja, 
em um subterrâneo que pertencia a um tempo de redenção. A perspicácia dela 
deu lugar a um prolongado suspiro. Declarou que os grandes xamãs da planície 
não existiam mais. O mesmo ocorria com frei Bartolomé, que morreu em 1966. 
“Nos tempos antigos havia grandes curacas”, disse ela, pensativa, referindo-se 
aos xamãs.
Eles eram capazes de se transformar em onças e papagaies. Conseguiam voar. Agora 
acabaram. Cometam um ao outro. Brigaram entre eles. Foram consumidos pela inveja. Eles 
se transformavam em onças para comer a família inteira de seus inimigos. Agora que Salva­
dor morreu, não existe mais ninguém. Ele era como frei Bartolomé. Sabia curar. Era um 
homem de qualidade. Não havia médico como ele e até hoje não existe ninguém. Frei 
Bartolomé ajudava até mesmo as mulheres a dar à luz. E não cobrava nada por isso. Ia a 
lugares distantes no campo, até mesmo quando chovia. É por isso que ele é um santo. Está 
no céu. Foi o pai de todos nós. Fundou a catedral, o convento das Santas Irmãs e o dos 
padres também. Foi o fundador de Sibundoy.
“Por que os capuchinhos foram embora do vale?”, perguntei.
“Porque o frei Bartolomé morreu. Recebeu uma carta do INCORA (o insti­
tuto de reforma agraria do governo, que desapropriou a maior parte das terras 
que os capuchinhos haviam tomado dos índios no início deste século). O frei
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abriu a carta e teve um ataque cardíaco. Os capuchinhos venderam quase todas 
suas fazendas ao INCORA. Agora o povo tem que pagar ao INCORA, mas isto 
não é bom. Agora só se ouve falar de dinheiro, de conseguir empréstimo para 
trabalhar a terra, comprar arame farpado, usar tratores. É melhor ser pobre e dormir 
sem essas preocupações.” Nem ela nem Pedro tinham qualquer outra terra que 
não um pedacinho de solo árido nas colinas acima da cidade, cuja parca produ­
ção eles complementavam com a pouca renda que Pedro obtinha graças a suas 
atividades de curador, adivinho e carpinteiro.
Aquela noite os missionários haviam escolhido a casa de Pedro como local 
de encontro de uma das reuniões destinadas a consolidar a fé, antes da chegada 
do arcebispo. Aconteceu, porém, que justamente naquela noite Pedro planejara 
tomar yagé com seu grupo de pacientes. Imperturbável, disse a mim e aos outros 
que aguardássemos sem fazer barulho, sem sermos vistos, no quarto de chão 
batido, enquanto a reunião dos padres se realizava na sala da frente. Separados 
unicamente pelas toscas pranchas de madeira da parede, ficamos sentados no 
escuro. Nossos temores e expectativas em relação ao yagé que tomaríamos mais 
tarde eram sublinhados por raios de luz e pelos sons que vinham da sala.
Cerca de trinta vizinhos, entre adultos e crianças, haviam comparecido à 
reunião com um padre e uma freira. Todos, muito rígidos, estavam sentados em 
bancos, à luz de uma lâmpada. O padre começou.
“Viemos aqui para discutir problemas. Vim até aqui com a Irmã e gostaria 
que nos chamássemos por nossos nomes. Somos iguais perante Deus.”
Silêncio.
“Estamos aqui pata procurar a unidade, a base de tudo”, declarou o padre, 
que em seguida percorreu a sala, perguntando o nome de cada pessoa. Muita 
gente riu, contrafeita.
“Precisamos ser amigos”, afirmou a freira. “Temos de fazer amigos, pois a 
maior parte de nossos problemas se deve à falta de comunicação.” Em seguida 
ela fez um discurso criticando os protestantes. Pedro interveio com uma pilhéria 
que aprendera com os padres, em sua cruzada contra o comunismo. Ele igualava 
os comunistas aos protestantes, e sua pior característica era a desconsideração 
pela Virgem, a mãe da terra. A freira censurou o grupo pelo fato de ele não ser 
suficientemente amistoso entre si. Até então, com exceção de Pedro, ninguém 
ousara dizer o que quer que fosse. A freira, sem dúvida, estava se empenhando.
“Vamos cantar um hino que fala da amizade”, ela sugeriu, mostrando a 
todos uma partitura. “O quê! Vocês não sabem ler!" Girou a manivela de um toca- 
discos. O padre estava de pé, e todos os demais, sentados. Ele começou a fazer 
preleções, fazendo todo tipo de perguntas relacionadas a conflitos entre casais.
“O que falta?", perguntou, dando a resposta em tom triunfal. “Compreen­
são! Falta compreensão!” Invocou a fraternidade. “Todos nós procedemos de 
Deus e a Ele retomaremos.”
252
A freira perguntou: “Vocês se sentem sozinhos ou acompanhados?”.
Pela primeira vez o grupo se manifestou: “Acompanhados!".
A freira leu seu hinário e tocou o disco. Obrigou uma mulher a ler um hino 
em voz alta. Ela e o padre falaram a respeito da pobreza.
“Como nos livramos da pobreza?", perguntaram.
“Com dinheiro", alguém disse.
“Não! Não!", exclamou o padre. “Dinheiro todo mundo pode ganhar. Existe 
algo mais importante do que o dinheiro. 0 que é?"
Fez-se um prolongado silêncio. “Com a palavra de Deus, conhecendo a 
palavra de Deus!"
Alguns jovens, reunidos em frente da casa, gritaram: “Reunião e merda é a 
mesma coisa!".
“É difícil os vizinhos se comunicarem", disse o padre, “realmente difícil.” 
E assim, decorrida uma hora, a reunião chegou ao fim.
Pedro, empolgado, entrou no quarto onde nos encontrávamos, declarando: 
“E agora vamos ao que interessa”. Acendeu-se uma pequena fogueira e sentamos 
todos no chão em tomo dela. Oito dentre nós conversavam animadamente, en­
quanto ele preparava a panela do yagé. Ele não nos exortou a dizermos nossos 
nomes ou a sermos amigos, e embora naquela noite se tivesse falado muito a res­
peito de pobreza e conflitos, isso não se resolveu por meio de um apelo à com­
preensão, à comunicação ou á palavra de Deus.
Silêncio. Pedro começou a cantar para o yagé. Alguém repetiu algo que o 
padre dissera: “Fraternidade". Uma sensação de suavidade invadiu o quarto. Pedro 
cantava com mais vigor, e após bebermos o primeiro copo houve uma conversa 
prolongada, porém interrompida com freqüência, sobre os preços e lucros obti­
dos com as colheitas. Decorrida uma hora Pedro estava sentado com a cabeça 
apoiada nas mãos, sofrendo. De repente olhou na direção de Sexto, o homem do 
lago, e perguntou:
“Desconfia de alguém de lá que tivesse posto o sal?" Ao empregar a palavra 
sal ele estava referindo-se à feitiçaria. Sexto disse que sim.
“Muito bem", disse Pedro. “Devemos continuar a pensar, a nos concentrar, a 
examinar tudo.” Daí a pouco voltou-se para Julio, um negro de meia-idade que se 
mudara para lá havia muitos anos, vindo do litoral do Pacífico, e disse-lhe que 
sabia quem lhe havia feito o mal, quem era o homem que...
Decorrido um tempo, que pareceu ser quase uma hora, um índio da locali­
dade aproximou-se de Pedro, que sofria e estivera vomitando. “Este remédio é 
violento”, ele disse, entre uma golfada e outra.
O homem começou a desfiar o rosário de suas desgraças. “Minha mulher 
me abandonou... meu filho está doente., o mal invadiu minha casa... não sei o 
que fazer..."
“Que ruim!”, exclamou Pedro, com empatia e dor, voltandoa apoiar o rosto 
nas mãos.
253
Isso durou a noite inteira. As pessoas se levantavam para defecar e vomitar. 
Em seguida voltavam para perto da fogueira. Longe dela o frio era grande. Todos 
falavam principalmente sobre a prevenção e cura da feitiçaria. Havia muita zom­
baria, muitas piadas, e em meio às interrupções e retomadas, a arroios e grandes 
ondas, as cores e configurações do yagé avançavam e recuavam; as ondas amare­
las das flores em tomo do lago, copas rosadas e brancas, gelatinosas, ondulavam 
lentamente como se fossem plantas aquáticas, mescladas com serpentes e porcos. 
Uma sombra se mexeu, a fogueira crepitou, ouviu-se um som, uma emoção se 
infiltrou no interstício da discussão lenta e dispersiva. Essas súbitas irrupções 
esquadrinhavam e punham em estado de alerta nosso ser, moldando a consciên­
cia, assemelhando-se ao jardim das delícias do curador, no quintal da casa. Ali, 
em meio à maior desordem, cresciam várias plantas: cipós, arbustos e grandes flores 
de estramônio com formato de sinos, brancas e laranjas, no maior alvoroço.
Quando o dia nasceu Pedro começou a exorcizar o mal dos doentes, um por 
um, por meio de seu leque curador de folhas farfalhantes, acompanhando com 
vigor o ritmo de seu canto. Graças a seu cristal de quartzo, sua “lente’’, ele enxer­
gava o interior dos corpos. Mandava o doente respirar e expirar na lente e, de vez 
em quando, pedia que olhasse nela e visse a forma vaga do mal. Passava o leque 
de folhas pelo corpo do doente, ritmando sua ação com o canto. O leque farfa­
lhava, se agitava, recolhia o mal que estava lá dentro. Ele sugava coisas ruins do 
corpo do paciente e as cuspia em um canto do quarto, fazendo muito barulho. 
Nisso levou muito tempo, cerca de duas horas e meia para atender quatro pessoas.
Todo mundo parecia estar descontraído e livre. A fogueira foi atiçada, ofe- 
receu-se aguardiente, e a conversa girava em tomo dos acontecimentos da noite. 
Comentava-se rapidamente, porém com freqüência, o tema da feitiçaria, algo que 
interferia na história de vida de todos os presentes, enquanto que o tempo todo, 
embora com interrupções constantes, Pedro entoava seus cânticos, marcando o 
ritmo com seu leque de cura, sugando e cuspindo.
Normalmente taciturno e estóico, Sexto, o homem do lago, descreveu os sofri­
mentos pelos quais havia passado nos três últimos anos. Fez uma pausa.
“Mal aires”, concluiu uma mulher, em tom confidencial
Havia uma chispa no olhar de Sexto, quando ele a encarou. “Não!... Feitiça­
ria!”, exclamou.
“Puro sal, pura feitiçaria", concordou um rapaz, sentado em um canto, “com 
toda certeza!”
Sexto tinha 57 anos. Quando veio para o lago com seus pais havia pouca 
gente ali, mas agora o número de moradores aumentara muito. Poucos tinham 
sítios maiores do que um hectare. O de Sexto media quase sessenta. Engordar o 
gado e produzir batata agora exigia capital e empregados, os brancos pobres que 
viviam em pequenas cabanas, nas redondezas dos campos.
Quando fui visitá-lo ficou claro que ele temia a inveja dessa gente e a feiti­
254
çaria a que isso poderia levar. “As pessoas daqui são consumidas pela inveja”, 
comentou, “e enfeitiçam a fazenda. Não dão duro como eu. Eles me vêem pros­
perar e tentam me fazer mal, mas se a gente tomar yagé a cada seis meses se 
garante contra o maleficio. Então nada poderá nos prejudicar. O que aconteceu 
comigo é que eu me descuidei. Parei dè tomar yagé durante algum tempo.”
Ha três anos ele percorria as ruas de Pasto, tão contente quanto alguém 
pode ficar devido às boas vendas no mercado, quando foi assaltado e esfaqueado. 
Caiu com todo o peso do corpo sobre a pema direita e foi levado ao hospital. A 
radiografia não acusou fratura alguma, segundo lhe disseram, e os médicos deram- 
lhe alta após uma semana, porém ele mal conseguia andar. Durante um ano e 
meio precisou de muleta e ainda mancava, o que diminuía sua capacidade de 
executar tarefas mais árduas. Ainda assim ele não deixou de desempenhar várias 
delas, conforme testemunhei durante aqueles dias passados junto ao lago. Como 
se isso não bastasse, sua filha sofreu ataques de paralisia, para os quais não havia 
um motivo óbvio. Foi obrigado a vender com grande prejuízo financeiro o pe­
queno ônibus que servia a zona rural, de sua propriedade, pois o motorista que 
contratara o estava roubando.
Movido pela curiosidade, tomou o yagé quando tinha 21 anos. Desde então 
o tomara várias vezes e acabou conhecendo a maior parte dos xamãs do vale, nas 
montanhas. No momento parecia estar feliz com Pedro e lhe levava pacientes da 
região do lago, agindo como uma espécie de intermediário. Na verdade Sexto 
nutria a silenciosa ambição de se tomar xamã.
Passamos pela cabana de um vizinho pobre. Somente as crianças se encon­
travam em casa, e entre elas havia uma menina pequena que estava doente. Com 
pompa e ares de mistério Sexto sentiu seu pulso e apalpou-a, dizendo que lhe 
traria certas ervas. Em sua casa tinha um jardim de plantas medicinais, cuidado­
samente cultivado. Era um pedacinho de terra que encerrava promessas mágicas.
Mais tarde, quando tremíamos devido ao ar noturno que varria o lago, tos­
sindo devido à fumaça da fogueira na qual as batatas estavam sendo cozidas, ele 
falou de seu sonho de adquirir cristais de quartzo, empregados na adivinhação, e 
penas de xamã, vindas da região das matas. No entanto entoar cantigas era algo 
que estava além de suas possibilidades. Até receber esse dom precisaria ter pa­
ciência. “Quando a gente toma yagé", explicou, “adquirimos o poda do xamã. O 
xamã nos dá este dom e é isto que cura as pessoas, o gado... tudo, incluindo a 
feitiçaria da terra e das colheitas.” Ele fez uma pausa, reunindo em uma única 
paisagem encantada todos aqueles atos mágicos. “Os xamãs das montanhas can­
tam”, declarou, “e com isso invocam o espírito do xamã da floresta, que lhe ensinou 
a ajudar os outros. Eles agem assim porque o xamã deu a eles esse dom”
Segundo entendo, a visão de Sexto é de que as regiões da floresta, ao leste, 
são ligadas á região das montanhas por uma cadeia de um discurso espiritual que 
se estende através do tempo, apreendido como uma imagem espacial. É uma 
paisagem que interfere no presente, conforme vimos, aos nos referirmos aos chun-
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chos ao leste de Cim», gente sepultada em um subterrâneo do tempo na região das 
selvas, semente dotada de força mágica a fim de florescer no presente. O que 
Sexto indicava era uma conexão temporal fixada em uma topografia moral, que 
consistia em sucessivos fortalecimentos do poder através das trocas de dons, as 
quais ocorrem entre os espíritos e o xamã, entre o xamã e o paciente, entre o 
paciente e você, caro leitor.
O dom do passado ao presente, dos xamãs das selvas aos das montanhas, 
foi apreendido por Sexto, o camponês rico, como algo que impediria a feitiçaria 
que, segundo ele desconfiava, era praticada por seus empregados. O manto de 
proteção mágica, propiciado pelos índios xamãs e pelo yagé, tomava-se para ele 
um instrumento de controle da mão-de-obra, em uma economia camponesa na 
qual o capital e o trabalhador assalariado estão se tomando características distin­
tivas, algumas vezes superando e outras coexistindo com uma agricultura de 
subsistência, diferente e mais antiga, na qual não se empregam pesticidas ou ferti­
lizantes e na qual não intervém o capital ou o trabalho assalariado. Quanto a José 
Garcia, o dom que um camponês empreendedor como Sexto adquiriu do yagé e 
dos xamãs da região das florestas era algo que facilitava a difusão da economia 
de mercado na agricultura de subsistência, na qual a desigualdade fertilizava a in­
veja e esta gerava a feitiçaria.
Em tal situação cabe a um xamã das montanhas, como Pedro, agir como 
médium não apenas dos espíritos de um passado primordial, soterrado nos sub­
terrâneos do tempo, nos ermos da floresta. Ele também medeia aluta de classes, 
conforme aquela que se trava entre Sexto e seus empregados. Deparamo-nos 
também com outro conjunto de mediações: o fato de que Pedro intermedeia a 
força cultural dominante da região, os mistérios e a autoridade da Igreja Católica 
e a feitiçaria e a imponderabilidade do cotidiano. Quando perguntei-lhe como 
haviam funcionado as reuniões do padre na sala da frente de sua casa, ele deu 
uma risada. “Estou a meio caminho do céu”, declarou.
256
14
A magia da caça
Quando cheguei ao Putumayo, foi Pedro quem descreveu para mim um 
mundo no qual ele invocava os espíritos da “primeira tribo" e os Huitoto das 
cálidas florestas situadas mais abaixo. Era com eles que criava o poder necessá­
rio á cura e à adivinhação. Recorria àquelas criaturas de fantasia, que vinham do 
início dos tempos e que se situavam no limite do mundo civilizado, naquela região 
onde figuras sagradas, como os freis Bartolomé e Gaspar haviam penetrado com 
a cruz, várias décadas antes de nosso encontro. Era impossível deixar de sentir a 
presença das florestas nesses xamãs das montanhas. Lá estava essa presença en­
carando-nos, devido à dependência dos xamãs das montanhas em relação ao yagé, o 
qual é encontrado unicamente nas florestas das regiões mais quentes das planí­
cies. No entanto essa dependência não é tão radical quanto parece. Não se trata 
de “um fato natural". Existem muitos xamãs e curadores em todo o mundo que 
não recorrem a drogas alucinógenas. Além do mais, existem muitos alucinógenos 
nas montanhas, a começar pela abundância de estramônios que florescem em todo 
o vale do Sibundoy e a que os xamãs locais tanto recorrem Aos olhos dos habi­
tantes das montanhas, segundo me parece, a importância e o poder mágico do 
yagé é devido em grande parte ao fato de que ele é investido do podei mítico e 
metafórico das florestas da planície e de seus habitantes. Trata-se de poderes de 
primitivismo e de selvageria, especificados pela colonização e pela Igreja Cató­
lica. Tomar o yagé significa tomar tudo isso, através de um gole alucinatório, que 
provoca náuseas.
Também não se pode deixar de ver a imagem das planícies nos adornos 
rituais dos xamãs, todos provenientes das florestas quentes: as penas e os cristais 
de quartzo que Sexto tanto deseja, para não mencionar os cantos. Anseia que eles 
cheguem igualmente dessa maneira. “Por que usa este colar com dentes de onça?”, 
lembro-me de ter perguntado certa vez a um velho do vale do Sibundoy.
“Por quê? Porque ele tem o mesmo dono que o yagé. Vem do mesmo lugar, 
do monte, e é o yagé a que chamamos tigre ahayuasca."
257
“E o cascabel?", indaguei, referindo-me aos colares feitos com sementes e 
que, agitados, reproduziam o barulho de um guizo de cascavel.
“Eles são o som da floresta, de onde vem o yagé
“E como é que eles ajudam a curar?”
“Bem, eles mostram pra gente... tudo!"
E as penas? Elas provêm das aves das florestas da planície. Ajiidam a fazer 
a pinta, a pintura que se cria ao se tomar o yagé.
No entanto, a despeito dessa dependência em relação á floresta, a filha dele 
deixou bem claro para mim que os xamãs da montanha são melhores que os lá de 
baixo; más inteligente, foi a frase empregada. “Deus nos fez com inteligências 
diferentes”, disse ela, “e os xamãs do Sibundoy são estimados pelos xamãs da 
planície”. Quanto aos índios que habitam na extremidade oeste do vale, em tomo 
da cidade de Santiago, ela observou o seguinte: “Eles têm uma inteligência dife­
rente da nossa. Gostam de perambular por aí, até Palmira, Pereira, Bogotá, Vene­
zuela. Vendem bugigangas (cachorro) e aprendem um pouco de medicina nos 
livros”.
“Somos preguiçosos demais para sair de nossa cidade, Sibundoy”, interveio
o pai dela.
Três anos mais tarde eu discutia essas coisas com meu amigo xamã Santiago, 
montanha abaixo, na planície.
“Até agora os xamãs da planície têm mais sabedoria do que os lá de cima”, 
ele comentou. “Até agora ninguém ouviu dizer que um xamã da montanha se 
transformou em uma onça, em um pássaro e foi capaz de voar. Era o que Miguel 
Piranga fazia. Era o que Casemixo fazia. Era o que Patrício, quando jovem, fazia.” 
Conversamos sobre Patrício, com quem Santiago tomou yagé algumas vezes, em 
sua juventude.
“Os outros pediam a ele sorte, para ganhar dinheiro. Eu, porém, pedi a ele 
sorte na caça. Isso é que é bom. Quem pede sorte na caça acaba trazendo tudo. 
Então um sujeito me perguntou: ‘Você está recusando a riqueza?’. E Patrício 
explicou: ‘De modo algum. Caçar é melhor do que ter dinheiro. Isto é que é bom. 
A sorte na caça acaba trazendo o resto. Outras pessoas vêm e pedem: quero 
chontear [matar gente por meio de dardos mágicos, soprados por meio de uma 
zarabatana] e matar brujos [feiticeiros, xamãs]. Mas aprender isso não presta’. 
Foi esta a explicação de Patrício. A magia, tendo em vista a caça, é sabedoria e 
inclui ganhar dinheiro. A magia da caça é mais poderosa do que aquela para se 
ganhar dinheiro, pois ela proporciona tudo, em primeiro lugar animais e, mais 
tarde, dinheiro. A magia do dinheiro é boa unicamente para o dinheiro. A outra 
pinta permite que se aprenda como curar e como ter sorte para se ganhar di­
nheiro.” Ele fez uma pausa. “Os sujeitos que vieram do vale do Sibundoy é que 
pediam magia para se ganhar dinheiro. Eu, porém, pedi a visão, para aquelas
258
ocasiões cm que ia caçar. Então o xamã disse i sso é que é bom. Disso vem tudo 
o mais’.”
“E como é que funciona essa magia para se ganhar dinheiro?”, indaguei 
“Aqueles que bebem yagé com essa finalidade são os que sabem disso. 
Tentam fazer mal às pessoas por pura inveja e acabam ficando com nada, a não 
ser o mal. Está entendendo?”
Rosário me dissera quase o mesmo, em sua casa no sopé das montanhas. “0 
povo das montanhas tem outro sistema", disse ela, “e isso dá a eles mais di­
nheiro, não? Atravessam a nação e vão de um lugar para outro com suas amoras 
c suas castanhas, quando na verdade estão trapaceando. O sistema deles é uma 
mentira e um jeito de enriquecer através da sujeira!” Com sujeira ela queria se
I referir â feitiçaria.
O filho de Salvador demonstrava o mesmo desprezo em relação aos curado­
res índios errantes das terras altas do vale do Sibundoy. “Eles não sabem nada de 
plantas", disse-me naquela região quente onde se erguia sua casa, junto a um 
tributário do Putumayo. “Gostam de vender ilusões. Percorrem todo o país com a 
finalidade de ganhar dinheiro. Agora estão indo para a Venezuela. Alguns foram 
presos lá, devido a seus truques.”
Mesmo assim existem alguns laços amistosos entre a gente da planície e a 
da montanha. Como é que os últimos poderiam adquirir o yagé a que dão ta­
manho valor? A mulher de Salvador contou-me, em 1975, que dois irmãos, cura­
dores da cidade de Santiago, no vale do Sibundoy, costumavam vir a sua casa 
todo ano, pouco antes do Carnaval. Vinham acompanhados de suas mulheres e 
filhos da distante Venezuela, onde praticavam medicina mágica. Voavam de Bo­
gotá até a selva e de lá subiam o rio de canoa. Segundo ela me disse, bebiam uma 
grande quantidade de yagé lá na floresta, com Salvador. Declaravam que faziam 
isso para obter sorte e ter a capacidade de curar. Traziam muitos presentes — 
comida, roupas e utensílios de cozinha, como, por exemplo, baldes de plástico. 
“Deram-nos muitas coisas”, ela prosseguiu, “pois diziam que ganhavam muito 
dinheiro na Venezuela e deviam isso a Salvador, que é o taita ou pai deles." Então, 
decorridas duas semanas ou pouco mais, subiam a montanha e iam para a casa de 
Santiago, durante o Carnaval, levando um yagé muito espesso, que Salvador prepa­
rava para que eles o transportassem para a Venezuela e que equivalia a uma 
quantia de mil pesos.
Por outro lado, havia relacionamentos como o de Santiago e de Esteban, no 
qual o curador da montanha toma-se o inimigo invejoso e implacável do xamã da 
floresta. Poderá recorrernão apenas à arma que é o capacho, isto é, o embrulho 
de feitiçaria, graças ao qual os xamãs da montanha são notórios, como também 
tem acesso à magia, aquele poder maléfico que resulta do fato de se fazer um 
pacto com o demônio, a partir de livros de magia. É o que disseram que aconte-
r
259
ceu com Santiago, quando clc se recusou a vender yagé para Esteban, um homem 
da região das montanhas, que há muito era seu inimigo.
Parecia ser a situação na qual um homem que solicitara a magia da caça 
estava sendo atacado por um homem que tinha o poder de praticar a magia a fim 
de ganhar dinheiro. Até então o homem que solicitara a magia da caça conse­
guira defender-se, embora houvesse uma época em que parecia que ele seria 
derrotado. Mas o que era aquela magia e de que tratavam aqueles seus livros?
260
15
O livro da magia
A exemplo de quase tudo — quando não tudo — aquilo que eu gostava de 
imaginar como sendo conceitos fundamentais, ninguém se mostrava suficiente­
mente esclarecido a respeito da magia. Florencio, um velho amigo índio, afir­
mava que ela havia chegado com os brancos e unicamente com eles. “Usam-na 
para tirar nossas terras”, declarou, acrescentando que onde quer que fosse cui­
dava sempre de ter uma raiz de chondur em seu bolso, no caso o chõndur blanco, 
pois precisava de uma magia muito forte para combater a magia dos blancos, as
Parecia haver um acordo geral no sentido de que a magia requeria um pacto 
com o demônio e o uso de livros mágicos. Não ficou muito claro se um xamã 
poderoso da planície que usasse o yagé poderia ser mais forte do que a magia. 
Santiago fora salvo por Salvador, é verdade. Mas nem Salvador ou qualquer 
outra pessoa, quando pressionados, esclareceu se a magia se encontrava ou não 
presente. Uma confusão a mais estava no fato de que os brancos procuram os 
xamãs índios para serem curados de feitiçaria feita por outros brancos, e embora 
não denominem essa feitiçaria magia, parece que ela, no final, resulta no mesmo.
Quando Antonio, o irmão de José Garcia, foi atingido pela doença e se 
revolvia em sua cama à noite, sem conseguir dormir, lutando contra Satã, embos­
cado na floresta, o amigo de José Garcia, Luis Alegria, um migrante mulato que 
viera para a região, lhe deu um conselho. “Ouça!", disse. “Magia c coisa muito 
boa. Por exemplo, magia contém um segredo que envolve a flor do alhecho. 
Com essa flor é possível curar tudo! Tudo! Pode-se curar qualquer pessoa, pro­
porcionar boa sorte, tudo, enfim. Sim! É uma maravilha!" Foi o que José Garcia 
me cantou, decorrido muito tempo.
Luis Alegria prosseguiu. “Compre o livro da magia", aconselhou José Gar­
cia, “e na página tal procure o segredo. Com ele nós também poderemos usar um 
segredo para enfeitiçar o feiticeiro com a magia que ele mesmo empregou!"
261
Vários anos depois que José Garcia me contou essa história, uma velha 
índia trouxe uma menina triste á presença de Santiago Mutumbajoy. De vez em 
quando ele sentava-se com a garota e cantava com suavidade, passando em seu 
corpo o leque de folhas, como se quisesse limpá-la. Os dois permaneciam em 
profundo silêncio, sozinhos naquele espaço criado pelo murmúrio suave do rio, a 
distância, que despencava em pequenas quedas d’água e que prosseguia, dei­
xando para trás os redemoinhos, semelhante ao sussurro de um pensamento que 
se toma consciente de si mesmo, no espaço existente entre as palavras. Alguém 
contou-me que o pai da menina morrera recentemente e vivia chamando a mãe 
dela, que então adoeceu e também morreu. Agora havia somente suas jovens 
filhas, e o curador cantava para elas, lentamente, suavemente.
O pai fora pescar certa manhã, bem cedo, e viu uma pessoa estranha á 
margem do rio. Ao voltar para casa começou a vomitar e sentiu-se febril. Morreu 
daí a uma semana.
Muito depois Santiago Mutumbajoy contou-me que o pai estava estudando 
magia nos livros, mas não era suficientemente forte para se relacionar com o 
espírito mau a quem havia invocado por meio das orações e conjuros que apren­
dera nos livros. É preciso ser muito corajoso e ter sangue forte para resistir, 
observou Santiago, mas o pai era um homem fraco, começou a morrer. Veio tomar 
yagé uma ou duas vezes, mas de nada adiantou. Ele não conseguia tolerar a 
chuma, aquela abertura do mundo, invadido por sons estonteantes e fragmentos 
de cores e odores. Só de tomar um pouco de yagé ele caía no chão, aos berros: 
“Me dê o contrai".
Após morrer ele voltava sem cessar a sua casa e espantó a la mujer. A exemplo 
do que acontece com as almas daqueles que morrem violentamente ou devido ao 
abraço de Satã, creio que poderíamos dizer que aquele espírito sem paz vivia 
voltando com a finalidade de levar sua mulher para a mesma sepultura intran- 
qüila, e ela também acabou morrendo.
Tendo isso em mente, uma pessoa seria certamente temerária se acaso se­
guisse o conselho de Luis Alegria, amigo de José Garcia: “Compre o livro da 
magia e na página tal procure o segredo...".
Era como se a magia e, mais precisamente, o seu livro fosse uma prefigura­
ção daquilo que se poderia denominar a mercantilização da magia, mas também 
a magia da mercantilização. O que estamos ouvindo, nesses relatos de almas ator­
mentadas e nessa aquisição de livros mágicos, é a inscrição irregular, no corpo 
social, do sentido de se poder fazer aquisições em um mercado. A vivacidade de 
tal significado é suscitada quando se toma mágica a mercadoria que está sendo 
discutida. Por magia deve ficar bem claro que estamos nos referindo ao conheci­
mento, âs palavras e à capacidade que elas têm de operar. Na verdade estamos 
falando sobre a mercantilização de uma teoria do significado e da retórica, não 
apenas do conhecimento, mas daquilo que, em um sentido profundamente signi-
262
ticativo, é o conhecimento do conhecimento, que precisa permanecer inacessível 
para que esse conhecimento exista.
Em oposição a adquirir pinta de um curador de yagé como um meio (se­
gundo se diz) de a pessoa também se tomar um curador, a aquisição da magia 
através do ato de se comprar um livro é uma atitude essencialmente anônima e 
individualista, uma transação de mercado, na qual o dinheiro é desembolsado 
tendo em vista a obtenção de um conhecimento padronizado. Em contraste, o 
conhecimento do yagé é adquirido através de uma imensa privação e é essencial­
mente a acentuação ou extensão da substância do xamã, o doador. É sua pinta e 
parte dele. Além do mais, é a antítese de um conhecimento padronizado e retira 
seu poder do inefável, das sutilezas inerentes ao jogo de luzes e sombras, das 
alusões e das súbitas transformações. É o poder em seu estilo, não em sua subs­
tância ou, melhor dizendo, sua substância é seu estilo.
Ambos os poderes são perigosos para aqueles que os praticam, quer se trate 
da aquisição ou da prática, mas, enquanto no caso do yagé o que se teme é a 
inveja de outro xamã, em se tratando da magia o que se receia é a personificação 
de uma abstração, do próprio mal no emblema de Satã, o que, aliás, está de 
acordo com o poder abstrato das forças do mercado. A luta aqui se trava com o 
eflúvio do mal, onisciente e onipresente, com a aura miasmática daquilo que oprime 
e não com este ou aquele determinado xamã, devido a um temor concreto à inveja.
O que é fascinante, neste caso, e não apenas complexo, é o modo como essa 
inscrição irregular, no corpo social, do sentido de se poder fazer aquisições em 
um mercado, acarreta uma discussão a partir de várias perspectivas, a mais im­
portante das quais é aquela imanente ao discurso colonial, com a visão dos bran­
cos, por um lado, e a dos índios, por outro — se quiserem, o conselho de Luis 
Alegria, contrapondo-se ao relato de Santiago Mutumbajoy. O que importa, neste 
caso, não é apenas o modo como a magia é identificada pelos índios como algo 
intrínseco à cultura colonial, mas também aquilo que seobtém efetivamente atra­
vés da aquisição de livros de magia. Com efeito, a magia da palavra impressa 
adquiriu esse poder através do exercício da dominação colonial, com o feti- 
chismo daquilo que é impresso, tal como se dá com a Bíblia e com a lei. A 
magia, segundo me parece, não só confere “magicidade" à imprensa coloniza- 
dora, como também prolonga a magia inerente à sua racionalidade e à função 
monológica presente na dominação.
Uma das primeiras coisas que os índios me contaram, nos dias que se segui­
ram à tomada de Villa Garzón, cidadezinha do Putumayo, por misteriosos guerri­
lheiros, na década de 70, foi o fato de que estes, a quem os índios denominavam 
bandidos, queimaram toda a papelada existente na sala do juiz e na delegacia de 
polícia. Alguns anos mais tarde fiquei sentado durante muito tempo, observando 
um jovem índio que tentava provar a um padre, em Sibundqy, que ele era real­
mente quem afirmava ser e que precisava de uma certidão de batismo. O padre,
263
no entanto, se recusou a atender sua solicitação, pois a carteira de identidade 
expedida pelas autoridades do Estado não correspondia ao registro do livro da 
igreja. Nele o sobrenome da avó do rapaz aparecia em último lugar e não o do 
avô, conforme o costume. Além do mais a mãe não era casada. Surpreendente e, 
no entanto, uma ocorrência de todos os dias: o rapaz não existia, mas os livros de 
registro e os documentos, sim.
No livro de B. Traven, The rebellion ofthe hanged [A rebelião dos enforca­
dos], que se passa em Chiapas, México, o professor da escola expõe suas idéias 
revolucionárias:
Se quiserem que vençamos e permaneçamos vencedores, precisaremos queimar todos 
os papéis. Muitas revoluções começaram e fracassaram simplesmente porque os papéis não 
foram queimados, conforme deveria acontecer. A primeira coisa a ser feita é atacar o cartó­
rio e queimar todos os documentos, todos os papéis que tenham selos e assinaturas — 
atestados, títulos de dívida, certidões de nascimento, casamento e morte... Então ninguém 
saberá quem é quem, como se chama, quem foi seu pai e o que ele teve. Seremos os 
herdeiros, pois ninguém terá condições de provar o contrário. Para que precisamos de certi­
dões de nascimento? Já li uma pilha de livros. Li tudo o que foi escrito sobre revoluções, 
revoltas e motins. U tudo aquilo que os povos de outros países fizeram quando não agüen­
tavam mais aqueles que os exploravam. No entanto, no que diz respeito à queima de papéis, 
não li nada. Não está escrito em livro algum. Descobri isso na minha própria cabeça.
Em seu relato sobre a cosmologia dos Siona, idealizado de modo muito 
típico, Jean Langdon descreve o que os índios do Putumayo lhe falaram sobre as 
últimas camadas do Universo, onde um ser denominado diosu (comparar com o 
termo espanhol Dios) se encontra sentado na companhia de alguns poucos 
“seres vivos de Deus” ou anjos voando ao redor, enquanto ele consulta um livro 
(a Bíblia) que contém todos os remédios. Acima dele, no mais alto céu, pombas 
escrevem em um papel. Esta profusão de livro, escritos e papel, nas nuvens puras 
que pairam sobre o Ente Supremo colonizado desse cosmos índio, exaure-se na­
quela zona inferior onde a camada cósmica das pombas escritoras dá lugar ao 
nada absoluto, com exceção do tronco de uma árvore, do qual pende um espírito 
solitário.2
Na simbologia onírica dos índios Sibundoy, de acordo com o frei etnógrafo 
Castellví, que passou quase metade de sua vida no vale, sonhar com papéis é 
sinal de que se irá encontrar um homem branco e que algum infortúnio, tal como 
um processo legal, irá ocorrer.3
No entanto os padres não estão menos sujeitos do que a lei a figurar na 
magia onírica que cerca os livros. Quando estava morrendo e atravessava o es­
paço da morte, conforme sua colocação, meu amigo Horencio, um índio Ingano, 
viu os padres consultando seus livros sobre remédios. Falou-me de uma visão 
provocada pelo yagé, na qual ele subia até o vale do Sibundoy e via os xamãs 
índios vestidos com penas e espelhos e, em seguida, o Exército colombiano ves­
tido de ouro, cantando e dançando. A pinta que surgiu em seguida foi a de três
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bispos em um aposento repleto de livros dourados, que expeliam ouro. Era uma 
cascata de ouro, segundo ele.
A extremidade leste do desfiladeiro que leva às florestas formadas pelo vale 
do Sibundoy é ocupada atualmente por uma cidadezinha chamada San Francisco. 
Foi fundada pelos capuchinhos no início deste século. Na introdução ao livro que 
o frei Jacinto Maria de Quito dedicou a sua história, publicado em 1952, encon­
tramos as seguintes palavras do frei Damián de Odena, que constituem um teste­
munho de magia reluzente das cartas:
Certamente todas as obras realizadas pelos arautos de Cristo permanecerão indelevel­
mente gravadas com letras de ouro no livro da eternidade... resulta também para a glória do 
Senhor registrar e exaltar as proezas de seus santos, as obras daqueles que anunciam "paz e 
bem-estar'*, as conquistas realizadas por aqueles que procuravam as almas, conquistas estas 
mais preciosas do que o ouro. Ao superior de uma congregação, que ofereceu ao papa Pio 
XI uma grande coleção de livros e diários publicados por seus monges, disse o santíssimo 
frei, após examiná-los: “Isto vale tanto quanto qualquer missão**.4
Ao interpretar literalmente esses sentimentos dourados, ao ver o aposento 
dos bispos expelindo uma cascata de ouro, Florencio redime sua visão por meio 
do poder da fantasia e da inocência, que a Igreja descarta. Sua visão informal 
toma a oficial retórica. Ao agir assim, a magia é espremida do domínio do uni­
verso oficial do mesmo modo que o suco o é de uma fruta madura.
O livro da Igreja, a natureza enquanto livro do Senhor, os livros da lei, a 
escrita, a papelada oficial que vai se acumulando — tudo isto faz a magia vazar 
para as mãos do povo que eles dominam O símbolo de tudo aquilo que é civili­
zado, cristão, o próprio Estado, os escritos e os livros criam seu contraponto nos 
livros de magia vendidos nos mercados por ervanários e curadores índios, que se 
deslocam de um lugar para outro, vindos do Putumayo.
Don Benito falou-me sobre a trapalhada em que se meteu, devido a um 
desses livros de magia. Disse que quando jovem deixara a cidade de Santiago, no 
vale do Sibundoy, após curar-se de um maleficio com yagé. O curador era um 
xamã da planície, perto de Mocoa. O pai de Benito tinha sido ervanário e o filho 
encaminhou-se para aquele gênero de vida típico dos homens de sua cidade, isto 
é, tomou-se curador e ervanário — agora fortificado, curado y cerrado, graças às 
curas que operou na planície. Aprendeu algo mais quando trabalhou como por­
teiro do hospital de San Juan de Dios, na cidade de Cali, mas viu-se obrigado a ir 
embora, devido a uma ligação por demais íntima com o médico chefe, que era 
gay. Benito acabou tomando conhecimento de um livro de magia, que decidiu 
usar com proveito. Pesava quase quinze quilos e quase três quilos a mais por 
ocasião da lua cheia. Na reclusão de um bosque de bambus, na fazenda San 
Julián, próximo aos canaviais de Puerto Tejada, no Sul do vale do Cauca, ele 
preparou um talismã, seguindo as instruções do livro. O preparo envolvia a morte 
e o cozimento de um gato preto, mas o feitiço virou contra o feiticeiro, criando 
terríveis problemas. Durante mais de um ano ele ficou doente, sem dinheiro,
265
passou fome e não teve clientes. Voltou para o Putumayo, deixou para trás San­
tiago, sua cidade natal, situada na montanha, prosseguiu descendo até a borda da 
bacia do Amazonas onde, mais uma vez, submeteu-se a um tratamento com um 
xamã e se curou.
O yagé tem um espírito. O yagé é o rei das plantas. É o dono das plantas, 
disse-me, e declarou que ele também o empregava, exercendo um próspero ofí­
cio, lá onde a planície do vale do Cauca, ocupada pela agricultura, se encontra 
com os primeiroscontrafortes da montanha, ao sul. “O yagé abre o espírito de 
uma pessoa", afirmava ele, “e dá força mental." No entanto, em seus tratamentos 
corriqueiros Benito raramente empregava remédios fortes, e quando o fazia, a 
exemplo do que ocorreu com uma mulher da cidade de Cali que era louca, recor­
ria a um alucinógeno da montanha, ao qual chamava Tunga Negra. Usava eméti­
cos e purgantes ao curar casos de feitiçaria, a exemplo do que sucedeu com um 
velho que tinha uma lojinha ao lado de sua casa. Seu nome era Don Juan, um 
branco encanecido de Popayán, capital da região. Don Juan era a encarnação de 
um enigma típico: repleto de ódio pelos índios (e negros), no entanto, procurava 
um índio para ser curado. Contou-me que era proprietário de uma próspera banca 
no mercado de Popayán até ser atacado pela feitiçaria, após o que perdeu o di­
nheiro, amigos, a esposa, a mercadoria e, finalmente, o próprio ponto no mer­
cado. No entanto Don Benito, o índio, curou-o com yagé, contou-me Don Juan, 
mostrando-me não apenas uma, mas três garrafas de culebritas, pequeninas co­
bras que havia vomitado. Eram sinais irrefutáveis de feitiçaria.
Tratava-se de uma situação curiosa: um velho branco, mesquinho e arrui­
nado, proprietário de uma banca no mercado, agora curado por um índio e que, 
como um parasita, abriu uma lojinha junto ao portão da casa do curador, tirando 
vantagem dos pacientes que apareciam diariamente. Era um lugar distante, perto 
da estrada de ferro. Tinha apenas umas duas casas, uma ponte sobre o rio, e Don 
Juan, com seu pomo-de-adão saliente e seus cotovelos ossudos, semelhante a 
uma marionete, visível somente da cintura para cima, no balcão de sua loja. Ele 
oscilava para a frente e para trás, pronto para dizer aos recém-chegados o que 
deviam esperar e exibindo com orgulho suas culebritas. No fim da semana cente­
nas de camponeses negros atravessavam a ponte, em uma caravana interminável, 
composta de adultos e crianças, mulas, burricos, galinhas e instrumentos agríco­
las. Enrolavam-se como uma serpentina em tomo da casa de Benito e da lojinha 
de Don Juan. De vez em quando um ou dois se consultavam com Don Benito, 
compadre dos consulentes. Regressavam no início da semana. Cascos e pés fa­
ziam a ponte ressoar. Em seguida subiam e atravessavam a borda da cordillera 
ocidental, em direção ás encostas recobertas de densas florestas, que desciam 
para o Oceano Pacífico. Estavam colonizando aquelas paragens distantes, mas 
ainda queriam viver nas comunidades onde haviam nascido e que agora não passa­
vam, em sua maior parte, de casas desoladas, cujas paredes eram de aigila vermelha. 
Talvez nem mesmo isso ainda existia. De vez em quando um pequeno grupo de
266
r
mulheres explorava um ribeirão com suas batéias, à procura de ouro. Era uma 
recordação da escravidão que as trouxera pata aquelas encostas estéreis; havia al­
guns séculos.
Um médico “direito" costumava ir à aldeia mais próxima, uma vez por se­
mana, como parte de um trabalho oficial. Cobrava por uma consulta mais da 
metade do que Benito pedia. A popularidade deste último de modo algum era 
devida ao fato de ele ser mais barateiro do que o sistema médico oficial Ocu­
pava-se de doenças que não constavam do catálogo oficial de sofrimento humano, 
tais como a feitiçaria ou malefício, que afligia os adultos, e o mal de ojo ou 
mau-olhado, que matava recém-nascidos e bebês. Muitas mães levavam seus bebe- 
zinhos para que ele os curasse de mal de ojo. Repassando meu diário de pesquisa 
relativo a setembro de 1975, encontro, por exemplo, este registro:
Uma mulher branca aparentando uns 25 anos chegou às 9h30 da manhã com uma 
menina de cinco semanas, queixando-se de que o bebê tinha diarréia havia cinco dias. 
Viajou durante três horas, a cavalo. Vive lá na loma (sopé da montanha), ao leste. Don 
Benito trabalhou desde as 7 da manhã, preparando o terreno para plantar maii (milho). 
Está cansado, sujo, não lava as mãos e começa a curar o bebê. Diagnóstico: põe a mão 
esquerda na testa do bebê durante 20 segundos. Tira a mão, coloca-a em cima da mesa, com 
a palma voltada para cima e a estuda atentamente durante um minuto. Pergunta ou, melhor 
dizendo, declara: “A diarréia é como água?“. “Sim", responde a mãe. Faz outra pergunta 
que não consigo registrar. Em seguida pede à mãe que dispa o bebê. Coloca-o em seu colo, 
dá leves pancadas em sua cabeça com ambas as mãos e massageia sua barriga. O bebê 
começa a soltar gases ruidosos. Benito continua a massageá-lo durante uns dois minutos, 
com GRANDE CONCENTRAÇÃO e finalmente se pronuncia: “O bebê esti ojeadoV. A 
mãe inclina a cabeça, em sinal de aprovação, mas não diz nada, olhando atentamente o 
tempo lodo. Aproxima-se para reconfortar o bebê. Benito diz a ela que se abstenha disso. 
Devolve-lhe o bebê daí a um minuto e, conforme sempre faz, começa a escrever uma com­
prida e minuciosa lista de instruções relativas ao tratamento em sua caderneta. Rasga a 
página, lê em voz alta para a mãe (álcool etc. etc.), vai até o quarto dos fundos c volta com uma 
garrafa de aguardente com um remédio amarelo (algo que contém bismuto), entrega-a à mulher 
c cobra 50 pesos (em tomo de um salário diário nas plantações do vale. Àquela época).
Pouco depois surge outra mulher com um bebê e faz a mesma queixa. Ele passa a 
mão na testa do bebê, diz que está com mal de ojo, mas que não tem mais remedioi Só 
voltará a recebê-lo na quarta-feira. Hoje é segunda. A mãe lhe adianta vinte pesos, mas ele 
devolve, dizendo que esperará até o remédio chegar de Cali. Ela, porém, pede-lhe que fique 
com o dinheiro, pois isto o ajudará a adquirir o remedio.
O que sempre me surpreendeu em Benito foi a informalidade e a continui­
dade, o que incluía em grande parte a cura, constantemente entremeada à ativi­
dade doméstica. Todo tipo de gente sentava-se em tomo do paciente e de Benito, 
na sala da frente, ouvindo e contribuindo com seus comentários, sobretudo um 
velho que fugira de uma casa de repouso para pessoas idosas, instalada pelo 
governo nas proximidades de Cali. Costumava divagar em voz alta sobre seu 
passado, animado pela discussão que se estabelecia entre o curador e os doentes. 
Nunca lhe disseram para se calar. Era um velho branco, um refugiado sem um 
tostão, refestelado na sala de tratamento de um curador índio, que esmiuçava o
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passado enquanto as crianças entravam e saíam ou bisbilhotavam, afastando a 
cortina, por detrás da qual as velas se consumiam em louvor á Virgem de Lajas e 
ao Senhor dos Milagres de Buga. Acima de nós todos, descrevendo preguiçosas 
elipses, balançava o crânio de um grande peixe da Venezuela, segundo Benito me 
contou.
Com freqüência Benito parecia perdido em seus pensamentos, distante e 
taciturno. Era sua mulher Carmen quem animava o ambiente. Lembrava-se de 
todos e de tudo, sempre tinha um séquito em tomo dela, na cozinha, organizado 
para desempenhar pequenas tarefas. Era uma mulata da cidade de Cali, onde 
vivia da venda de frutos do mar para os restaurantes. Havia muitos anos ficara 
muitíssimo doente. Foi um maleficio, obra de um concorrente invejoso. Ela ia de 
um curador a outro, sem o menor resultado, até que, em desespero de causa, leva­
ram-na para o Sul, ao vale do Sibundoy, e lá foi tratada por um índio. Agora estava 
casada com Don Benito e o tempo todo tinha a seu lado o apoio de um índio.
Muitos jovens procuravam Benito. Seus corações haviam sido partidos por 
um amor indiferente e eles enlouqueceram. Alguém colocara certas coisas em sua 
bebida e somente um curador como Benito poderia fazê-los melhorar. Ele também se 
dedicava a fazer talismãs e de vez em quando se envolvia com disputas trabalhistas 
nos canaviais. Na verdade foi devido a isso que ouvi as primeiras referências a seu 
nome, quando morava na cidade canavieira de Puerto Tejada, no início da década 
de 70. Um amigo meu, negro, que trabalhava com um grupo que cavavafossos, 
contou-me o seguinte.
Estavam sendo pagos por um pequeno empreiteiro que tinha um contrato 
com um dos engenhos. O empreiteiro e o grupo tentaram subornar o administra- I 
dor do engenho, para que ele registrasse um volume maior de trabalho do que 
eles haviam realizado. No entanto o administrador se recusou, e o grupo decidiu 
enviar meu amigo até os confins do vale do Cauca — um dia de viagem — a fim 
de consultar Benito, para ver se não haveria um jeito de se livrarem do tal admi­
nistrador. Benito disse a meu amigo que voltasse a procurá-lo e lhe trouxesse 
pedaços de barro, nos quais estivessem impressas as marcas dos cascos do cavalo 
do administrador. Era uma despesa e um incômodo consideráveis para pessoas 
que raramente dispunham de dinheiro para pagar a passagem de um ônibus, 
mesmo em se tratando de uma curta distância. Providenciaram o barro e aguarda­
ram. No entanto, em vez do administrador, o empreiteiro é que foi prejudicado. 
Perdeu o contrato e, com isso, lá se foram os empregos. “Talvez a gente tenha se 
enganado com as marcas dos cascos", observou meu amigo.
Decorrido algum tempo Juana, sua irmã por parte de pai e mãe, teve uma 
briga violenta com uma de suas meias-irmãs, alegando que ela estava recorrendo 
à feitiçaria para tirar seu marido. Procurara Don Benito para conseguir o que 
queria. x
Benito não era o único índio das terras altas do Putumayo que viajara para 
longe e encontrara meios de realizar curas e resolver assuntos ligados á feitiçaria,
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em cidades como Puerto Tejada, cuja economia se apoiava na atividade agrícola. 
Eu via com freqüência dois ou três homens como esses, algumas vezes acompa­
nhados de uma mulher, vendendo seus produtos espalhados na calçada, ao longo 
do mercado, nos dias em que este funcionava, duas vezes por semana. A despeito 
do calor os homens usavam muitas vezes uma característica ruana. Em geral as 
bancas eram pequenas e os produtos eram simplesmente colocados no chão. No 
entanto, por menor que fossem as bancas, sempre se dava grande destaque aos 
livros de magia, expostos ao lado de raízes, cascas, pilhas de enxofre, limalha de 
ferro e espelhos. Esses livros eram pequenos, porém caros. Custavam o equiva­
lente a dois dias de trabalho. Tive a impressão de que raramente eram vendidos. 
Um que eu via com freqüência era A Santa Cruz de Caravaca, com o seguinte 
subtítulo:
Tesouro de Orações 
de Enorme Virtude e Eficácia 
para a Cura de todo Tipo de Dorcs, 
tanto do Corpo quanto da Alma, 
juntamente com Práticas Inumeráveis 
para Libertar Uma Pessoa da Feitiçaria 
e dos Encantos: com BcnçSos e Exorcismos 
Etc.
Outra obra de grande aceitação era O livro de São Cipriano.
O Livro Completo da Verdadeira Magia 
ou
Tesouro da Feitiçaria 
Escrito em Hebraico Antigo, num Pergaminho 
Entregue pelos Espíritos ao Monge Alemão 
Jonas Sufurino 
contém:
A Clavícula de Salomão, Pactos de Exorcismo,
O Dragão Vermelho e o Bode Infernal, a Galinha 
Preta, Escola de Feitiçaria, O Grande Grimorio e o Pacto de Sangue, a Vela Mágica para a 
Descoberta de Encantos, Compêndio de Magia Egípcia e Caldéia, Filtros,
Encantos e Conjuros Mágicos
Quando percorri a rua principal de Puerto Tejada, no último domingo de 
novembro de 1976, e passei pelo mercado, lá estavam três homens identificáveis 
como índios das terras altas do Putumayo. Sim!, declarou um deles, tinha um 
pouco de yagé. Vendia-o a pessoas de Cali para que elas pudessem asegurar e 
cerrar, isto é, que lhes permitisse se garantir e se fechar, livrando-se da feitiçaria 
e das pessoas invejosas. Contou-me que estava para regressar ao Putumayo. Iria 
até a região das florestas, a fim de conseguir mais remédio e então iria para a
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Venezuela. Outro homem contou-me que havia sido ensinado por um cacique 
(termo muito usado na Colômbia, com o significado de chefe, mas que não era 
empregado no Putumayo) chamado Maurício, perto de Mocoa, na região tropi­
cal. Do outro lado da rua estava um homem vestido como um índio das monta­
nhas do Putumayo, mas com uma postura bastante diferente daqueles ervanários 
tranquilamente confiantes, reservados e, de vez em quando, altivos. Estava ro­
deado por uma pequena multidão em parte cínica, em parte aparvalhada. Gesti­
culava e repreendia sua assistência. Uma galáxia de medalhinhas de santos católicos 
pendia de seu peito e ele emitia sons semelhantes aos cânticos xamânicos do 
Putumayo, intercalados com orações e hinos cristãos. Na calçada, diante dele, 
havia dinheiro, sob a forma de notas. Ele ia “curar" aquelas notas para que pudes­
sem reproduzir-se e, com essa finalidade, usaria sangue sagrado.
Na cidadezinha vizinha de Santander de Quilichao, mais ou menos na mesma 
época, fiquei conhecendo uma jovem e um homem das terras altas do Putumayo, 
Andréa e Luis Miguel, que vendiam ervas e remédios mágicos nos diferentes 
mercados da província. Na segunda-feira iam a Popayán, na terça a Silvia, na 
quarta a Santander etc. Tinham três filhos. Andrea carregava o tempo todo nas 
costas um bebê de um ano. Os outros dois ficavam com uma babá em Popayán, 
onde alugavam um quarto desconfortável. Passavam a noite que antecedia o mer­
cado no chão do corredor de um quiosque que se alinhava ao longo da estrada de 
rodagem. Levantaram-se às três da madrugada para pegar o ônibus que se dirigia 
a Corinto, onde haveria mercado no dia seguinte.
Luis Miguel contou-me que fora ensinado por Don Daniel, um cacique que 
morava perto do rio Putumayo, abaixo de Puerto Asís e com quem tomava yagé 
uma vez por semana. “A gente vê cobras... e até mesmo onças!", declarou. “É a 
salvação da vida”, afirmou Andrea, enquanto falava sobre os remédios com um 
cliente em potencial. “Porque fui depurado com yagé", prosseguiu seu marido 
Luis Miguel, “não preciso de injeções”. Fez uma pausa. “Estou muito bem!”
Eles voltavam para sua pequenina aldeia nas montanhas do Putumayo du­
rante o Camaval, que era belo e muito especial. Lá faziam um estoque de remé­
dios. Jovens e inexperientes, dificilmente se poderia considerá-los como 
pertencentes ao grupo superior dos ervanários, mas em suas pequenas bolsas e 
trouxas, espalhadas na calçada, havia pelo menos 65 remédios diferentes:
• Linaza — para a febre, conforme disseram.
• Yagé Zaragoza
• Yacuma Negra
• Misclillo (um caracol) e tatolia. Esses três eram empregados em con­
junto para o tratamento do susto e espanto. Misturar com aguardiente,
assoprar e cuspir a mistura no paciente (com oraciones).
• Uma pata de coelho, para dar sorte.
• Gualanday — para os rins. Vem da região quente.
• Romero (alecrim) — para insônia e pesadelos. Faz-se incenso com ele.
270
• Para diarréia: Japio, Granizo do páramo e Guavilla dopdramo.
• Quina — para a calvície. Provém do litoral do Pacífico.
• Barbasco — purgativo feito com aparas de madeira. Dizem que vem do 
páramo do cume das montanhas, mas nas terras baixas do Putumayo 
usa-se o barbasco como veneno para matar peixes e ele cresce nas mar­
gens dos rios.
• Raiz de China — para os rins, proveniente do páramo.
• Pionía — para a vesícula biliar. Sementes muito pequenas e reluzentes, 
vermelhas e pretas, originárias do litoral do Pacífico.
• Guacia — para a febre e o fígado. Parte do tronco de uma árvore. Se­
gundo dizem, é originária do litoral do Pacífico.
• Paradero — para estimular a fertilidade. Provém do páramo. São pe­
quenos nozinhos ligados como sinos a um cipó.
• Tuercemadre — para inibir a fertilidade. Provém das regiões quentes 
das terras baixas. É uma noz retorcida, semelhante a uma rolha, com as 
bordas em forma de pétalas.
• Para dores do útero: Tamarindo, da região quente; Balsamo Rosado, da 
mesma região; Balsamo Espingo, do Equador.
• Cedrón Chocuana — para crises de nervosismo. É uma semente grande 
e contém um caroço. Originária do litoral. É necessário raspá-la um 
pouco.
• Spingo —para crises de nervosismo. Vem das regiões quentes do Equa­
dor. É uma semente com formato de vieira.
• Gordura de urso — para reumatismo. Vendida em frascos pequenos que 
continham soluções de antibióticos para serem injetadas. Originária do 
Putumayo, “recomendada”.
• Bilimento Chocuano — sais odoríferos vendidos em garrafinhas, para 
resfriado e dor de cabeça. Luis Miguel diz que é feito com sete plantas.
• Chondur de Castilla — originário das regiões quentes. Deve-se mascar 
ou moê-lo e misturá-lo com aguardiente. Depois deve-se soprá-lo e 
cuspi-lo sobre a pessoa doente, a fim de livrá-la do espanto ou susto 
(essa raiz é indispensável para os xamãs das terras baixas que conheço. 
Mascam-na quando estão adivinhando e curando).
• Altamisa, várias espécies. Empregada em aspersões para a “cura” de 
uma casa salada, isto é, uma casa enfeitiçada.
• Pele de uma cobra (do tipo conhecido como cascabet), pele de coelho e 
pata de uma onça. Servem para muitas coisas, possuem um segredo, 
previnem roubos.
• Havia muito mais remédios feitos a partir de plantas e também:
• Argolas, apitos, lâminas de barbear, agulhas, algodão, grampos, contas, 
pentes, pedaços de enxofre e limalha de ferro “de uma mina do Putu-
271
mayo. Todos esses itens são usados com outros remédios, a fim de com­
por a boa sorte de uma pessoa".
Livrinhos de orações, muitas delas dirigidas ao espírito do famoso ci­
rurgião venezuelano José Gregorio Hemández.
Retratos coloridos e emoldurados de vários santos e Virgens.
Doze livrinhos diferentes sobre magia — quem sabe originados a partir 
do livro de Don Benito, que pesava quase quinze quilos (e ganhava 
alguns quilos a mais na lua cheia).
272
16
A sujeira e a magia do modemo
Devido à localização privilegiada de sua casa junto ao rio, no sopé das mon­
tanhas, além dos canaviais e da vasta e plangente humanidade que os faz prospe­
rar, Don Benito pode se permitir ser um pouco esnobe. “Não passam de chiqueiros!”, 
afirma, referindo-se ás cidadezinhas da zona canavieira, todas elas cortiços ru­
rais, criadas pelo novo sistema agrocomerciaL “Pura sujeira!”, exclama. Ao falar 
em sujeita de está se referindo à feitiçaria.
No entanto poderia muito bem referir-se á sujeira no sentido literal, pois 
esse vocábxilo resume muito bem aqueles lugarejos comprimidos, desprovidos de 
esgoto, onde moram trabalhadores diaristas, que não dispõem de água pura para 
beber, nem de comida necessária para alimentar seus filhos, com barriga d’água e 
vermes, que montem de diarréia e bronquite. “No litoral comida não falta, porém 
não há dinheiro”, lamentam as mulheres migrantes que fugiram de uma econo­
mia de subsistência das florestas do litoral do Pacífico. “Aqui há dinheiro, mas 
não comida.”
Existem muitos médicos e farmácias nessas cidades agtocomerciais. Em Puerto 
Tejada, por exemplo, havia em 1982 cerca de 30 mil habitantes, cinco farmácias, 
três das quais bastante grandes e aproximadamente uns doze médicos. O povo 
procurava os curadores populares, mas isto não se devia à ausência ou falta de 
médicos com seus diplomas devidamente registrados. Também não era doente 
devido à escassez de tais médicos e de seus remédios. Os que procuravam esses 
médicos recebiam vastas receitas, que compreendiam uma verdadeira comucópia 
de pílulas, cápsulas e substâncias injetáveis. Retomavam, porém, àquela mesma 
água poluída e à mesma feita de comida que criavam as pté-condições para pro­
blemas de saúde Tais pré-condições constituíam um verdadeiro maná para as 
multinacionais que fabricavam remédios, na verdade, abutres que se alimenta­
vam de lixo e de tripas.
Um amigo meu que arranjou emprego como trabalhador braçal permanente 
em um canavial e, portanto, tinha condições de gozar da assistência médica, ra-
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chava lenha quando entrou uma lasca em seu dedo. Foi procurar um médico e eu 
o vi quando voltava para casa. O dedo estava ligeiramente inchado, mas não era 
nada de muito sério. Ele disse que o médico mal examinou seu dedo e receitou 
comprimidos de esteróide (Fenylbutazona, vinte comprimidos), algo denominado 
“narcótico 222”, e um creme muito caro, chamado Lasonil, que continha hepari- 
nóide e hialuronidase, tudo isto para curar um simples machucado! Até mesmo o 
mais incompetente dos curadores não seria pior do que esse tipo de tratamento 
médico oficial. Para a maioria das pessoas, sobretudo no Terceiro Mundo, é o tipo 
de tratamento que se deve esperar, quer se trate de uma lasca no dedo, do nasci­
mento de uma criança ou de uma situação que implique perigo de vida.
Minha amiga Juana fora aconselhada a ter seu primeiro filho no hospital 
local, ao contrário de sua mãe, por exemplo, cujo parto ocorrera no chão de terra 
batida de uma choupana, nas florestas do Chocó. Ninguém recebeu a permissão 
de entrar com Juana no hospital, na noite em que ela foi dar à luz em Puerto 
Tejada, e um guarda vigiava para que ninguém pusesse os pés naquele recinto 
sagrado. Bem mais tarde ela nos contou que, quando a criança nasceu, encontiava- 
se absolutamente sozinha, apenas ela e aquela vida que emeigia, mais ninguém: sem 
enfermeira, médico, amigos ou qualquer outra pessoa de sua família. O pessoal do 
hospital encontrou-a de manhãzinha com o nenê que ela e a mãe natureza haviam 
parido sozinhas. Como é romanesco o Terceiro Mundo!
No entanto todo mundo dispensava grande respeito aos médicos, e a fé — 
na verdade uma fé mágica nas maravilhas médicas da ciência moderna — era res­
tringida unicamente pelo fato de que poucas pessoas contavam com meios para 
colher seus benefícios ou até mesmo um fragmento deles, a exemplo daquela 
jovem criatura que não tinha condições financeiras para tomar anticoncepcional 
durante o mês todo e, assim, encorajada pelo farmacêutico, comprava unica­
mente uma pílula para a noite em questão. Em outros momentos não se tratava 
apenas de recorrer a uma parte de todo — uma pílula em vez de 21 —, mas era 
uma questão de fazer uma escolha cruel entre quem, naquele amontoado de gente 
doente, deveria ser designado para ir ao médico. Minha amiga Rejina frisou esse 
aspecto, com aquele seu modo de ser sincero.
Ela tirava o sustento vendendo mingau frio para os trabalhadores dos cana­
viais, nos dias de pagamento. Morava com seus três filhos em um quarto de uma 
casa de chão de terra batida, com três compartimentos, e que construíra na cidade 
de Puerto Tejada com o dinheiro ganho com a metade de um bilhete de loteria 
premiado, dado a ela por uma pessoa amiga. Não se dispunha de qualquer outra 
privada que não um buraco raso no minúsculo quintal, e não havia água. Sua 
situação representava o padrão do que ocorria naquela cidade. Ela alugava o 
outro quarto a uma jovem chamada Maura, que trabalhava de vez em quando nos 
canaviais e, em outras ocasiões, como empregada doméstica em Ca li. Maura 
morava com seu filhinho de um ano e estava grávida. Ela e Rejina compartilha­
vam o terceiro compartimento, onde cozinhavam em um fogão de lenha.
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Passei lá algumas semanas após o nascimento do bebê de Maura. Ela e o 
menino de um ano estavam doentes. Ela tossia sem parar e falava de tuberculose. 
O meninozinho, apartado do seio, não comia nada. Encontrava-se em avançado 
estágio de inanição, aparvalhado, como se estivesse em transe. Maura não dis­
punha praticamente de dinheiro, apenas o suficiente para consultar-se na mais 
barata clínica de saúde. O pai do novo nenê recusava-se a ajudar, alegando que a 
criança não era sua. A mãe dela e suas irmãs, que moravam ali perto, eram 
paupérrimas e não se preocupavam muito com sua sorte. Aquilo era um fato 
bastante comum Rejina e Maura discutiam o que fazer.
“Se você for ao médico em vez do bebê", argumentava Rejina, “ele mor­
rerá, mas você sobreviverá e o bebe zinho também Mas se o gaiotinho for ao mé­
dico em vez de você, então você morrerá, o bebê também e provavelmenteo 
mesmo vai acontecer com o garotinho. Portanto é melhor você ir ao médico e 
ele não."
Juntamos algum dinheiro de tal modo que a mãe e o filho pudessem procu­
rar o médico. Este era jovem, experiente e entusiasta. Pediu radiografias, porém 
Maura não tinha condições de pagar. Receitou antibióticos e alimentos com pro­
teínas para o garotinho, porém Maura não tinha como pagar. E se acaso ele 
internasse o menino em um hospital durante uma ou duas semanas para que ele 
se alimentasse por via intravenosa, o que aconteceria em seguida? A que condi­
ções de vida ele iria se submeter, ao sair do hospital?
Estávamos rodeados por férteis plantações de ondulante cana-de-açúcar e 
de sorgo cor de ferrugem, tendo como pano de fundo o azul das montanhas. A 
soja amarelava a acariciava o solo quente. No entanto tudo aquilo estava plan­
tado em um campo social que fazia com que crianças como os filhos de Maura 
morressem de fome e que gente como Maura, que trabalhava naqueles campos, 
não tivesse como adquirir comida em quantidade suficiente para poder viver. 
Nenhum médico poderia curar aquilo, mesmo dispondo de todos os raios-X e 
antibióticos do mundo. Tal situação não era enfrentada sequer pelos médicos 
americanos da Fundação Rockefeller, na vizinha Faculdade de Medicina da Uni­
versidade de Valle. Eles afirmavam que o problema era que mulheres como 
Maura tinham filhos em quantidade excessiva.
No entanto, por mais absurdos e inacreditavelmente espantosos que sejam, 
tais serviços, proporcionados pelo sistema médico oficial e por seus médicos 
com boa formação universitária, apoiados por corporações multinacionais de 
“ciência" — farmacêuticas e agrocomerciais —, são procurados por muita gente. 
Essa procura, otimisticamente desesperada, é testemunha de uma atração mágica, 
neste caso pelo mundo oficial e pela “ciência", que não é menor e provavelmente 
muito maior do que aquela que se encontra na magia da assim denominada medi­
cina mágica.
Subsistindo nas sombras do poderio econômico e científico dos Estados 
Unidos, esse culto do moderno, encontrado no Terceiro Mundo, ilumina o poder
275
mágico inerente àquele poderio e necessário a ele. A exemplo do que ocorre na 
relação entre a magia que brilha como ouro nos livros elaborados pelos arautos 
de Cristo e nos livros de magia vendidos pelos ervanários do Putumayo, da mesma 
forma, nessas modernas cidadezinhas agrocomerciais de trabalhadores sem-terra, 
existe um curioso relacionamento de poder, profundamente mágico, entre os fun­
damentos da classe dominante e entre as classes dominadas, que faz ressaltar a 
magia implícita em semelhantes fundamentos, aquela que toma tais fundamentos 
socialmente eficazes. Esse ressaltar da magia implícita no discuiro dos funda­
mentos dominantes constitui uma arte. Mesmo quando ele se apresenta com a 
cara mais séria do mundo pode conter o caricato.
Tome-se como exemplo o hospital do irmão Walter em Puerto Tejada, con­
forme o conheci em 1981. Duas de suas auxiliares negras, originárias do litoral 
do Pacífico, o mostraram para mim porque a mãe de uma amiga minha enlou­
quecera e afirmara que queria ser tratada ali. Ela viera das florestas do litoral do 
Pacífico havia bem uns 25 anos e agora vivia precariamente de jornadas ocasio­
nais de trabalho nas grandes fazendas. Seu marido a abandonara há alguns anos. 
Precisava cuidar dos dois filhos mais novos e, com freqüência, no meio de sua 
infelicidade, enlouquecia, rasgava as roupas e perambulava pelas ruas, proferindo 
pendejadas, tolices.
Não havia altar no estabelecimento do irmão Walter, nem as velas queima­
vam em louvor dos milagrosos santos e Virgens. No entanto, naquilo a que deno­
minavam quarto de tratamento, havia uma grande lâmpada azul fixada em um 
elaborado painel de madeira, no nível dos olhos, na parede. Tratava-se de um 
importante aparato terapêutico. Ao longo das paredes, belos e sensuais, corriam 
tubos de plástico. Aqui e lá, colados nessas mesmas paredes, viam-se, em grande 
profusão, anúncios multicores, absolutamente surpreendentes, cortados de revis­
tas de medicina que os médicos costumam assinar. Retratos de radiografias do 
tórax e de cortes transversais do corpo humano, cor de carne, brilhavam nas 
paredes de adobe, gastas e rachadas, rebocadas com esterco de vaca. Um par de 
luvas verdes de borracha segurava dois rins rosados e, de seus ureteres, espre­
miam uma urina dourada. Era o anúncio de um diurético made in USA. “Não 
olhe para a luz azul”, avisou nossa guia, “pode provocar câncer."
A tia de Rejina, Sebastiana, apresentou-me a outra forma de cura por meio 
da magia da medicina moderna. Era cozinheira de um dos engenhos e tinha o 
direito de consultar gratuitamente o médico da companhia. Teve um súbito mal- 
estar na região lombar direita, com cólicas, febre e ardor na urina. Ele a tratou 
com três injeções intravenosas e ampicilina oral, uma penicilina de espectro 
amplo. Daí a dois dias ela melhorou e seu filho levou-a a um curador espírita na 
cidade de Cali, o qual lhe disse que ela tinha um problema com o rim e com a 
vesícula biliar. Prescreveu-lhe remédios no valor de 800 pesos, que poderiam ser 
adquiridos em qualquer farmácia, isto em uma época em que o salário mais alto
27ó
no campo era de 50 pesos por dia. Disse-lhe que retomasse daí a três dias para 
ser operada e já se sentia muito melhor quando regressou.
“Por que você precisava ser operada?”, perguntei.
“Quem sabe?”, ela respondeu. Durante a operação o curador espírita disse: 
“Oh! A senhora está com pedras no rim!". Ela ignora o que ele fez, mas precisou 
ficar na cama durante seis dins c seguir uma dieta especial. A sala de operação 
tinha muitas velas acesas e um altar. O curador usava um casaco branco. Todos 
os pacientes foram reunidos e oravam. Ela contou que o curador chamava e os 
pacientes respondiam. Então o curador ficou possuído pelo espírito de José Gre- 
gorio. Começou a sacudir-se, transpirar, e sua voz se modificou. Todo mundo rece­
beu a ordem de se retirar e, em seguida, um por um foi chamado para sua operação. 
Havia cerca de vinte pacientes, e a operação de Sebastiana durou uns vinte minu­
tos. O lugar tinha o nome de “El Centro Hospitalario de José Gregorio”, em 
homenagem ao famoso cirurgião venezuelano, cujo espírito é hoje invocado pelos 
curadores espíritas na Colômbia inteira.
No Putumayo, José Garcia e Rosário estavam muito envolvidos com a irmã 
Carmela, que também recebia o espírito do famoso cirurgião venezuelano. Foi 
José Gregorio quem tomou a medicina venezuelana científica e moderna, se­
gundo declaravam os recortes de jornais afixados nas paredes de seu centro espí­
rita em Pasto. Foi ele quem introduziu na Venezuela o microscópio, que aumenta 
o invisível, e no entanto a modernidade foi o motivo de sua morte. Morreu atro­
pelado por um dos primeiros automóveis da Venezuela, em 1919, quando atra­
vessava a rua correndo para ir em busca de remédios para um paciente pobre.
A magia da ciência e da indústria, que se expressa através do hospital do 
irmão Walter e do culto do irmão José Gregorio, é uma magia que encena a 
promessa de poder e riqueza, mas trata-se de uma promessa até agora negada 
para a vasta maioria dos pacientes. Sem a mão-de-obra e o talento desses últi­
mos, haveria pouca riqueza. Por outro lado, a magia de praticantes como Don 
Benito e os ervanários do Putumayo reporta-se ao início dos tempos, ao próprio 
primitivismo, tal como ele é concebido pela modernidade.
Em conjunto esses curadores tão diferentes compõem o espectro de extin­
ção ritual do infortúnio que aflige cidades agrocomerciais como Puerto Tejada. 
Trata-se de magias co-determinantes: uma delas aninha-se na esperança de um 
futuro oferecido e simultaneamente negado pelo mundo moderno, a outra abriga- 
se na mitologia onírica latente naquela esperança e que recorre ás origens jmagi- 
nadas das coisas.
Emseu manuscrito inacabado sobre o fetichismo das mercadorias e a ci­
dade européia moderna, Walter Benjamin escreveu que “no sonho em que cada 
época vê, através de imagens, a época que a sucederá, esta aparece unida a 
elementos da pré-história, isto é, de uma sociedade sem classes".1 Certamente 
havia uma paixão pela ausência de classes entre um deteiminado setor de “ele-
277
mentos pré-históricos" na moderna cidade agrocomercial de Puerto Tejada, nesse 
caso o grande grupo de migrantes negros procedentes das luxuriantes selvas do 
litoral do Pacífico. Eram eles que executavam a maior parte do trabalho árduo e 
servil, na qualidade de empregadas domésticas nas cidades ou como cortadores e 
carregadores nos canaviais. Eram altivamente igualitários e decididamente mar­
cados pelo primitivismo. Diante da civilização mostravam-se essencialmente 
deslocados. Formavam uma espécie de classe intocável, assemelhavam-se a ma­
cacos, segundo se dizia, eram contaminados pelo cheiro de peixe e não sabiam 
falar corretamente. A esse retrato coletivo acrescentava-se a reputação de feitiçaria 
e de curas mágicas. Mostravam-se atentos diante da menor infração ao ato de 
compartilhar e à igualdade. A reciprocidade era seu código. “Aqui no litoral”, 
rezava um ditado, “uma mão lava a outra." Temiam e dominavam a arma do 
malefício, caso esse código fosse negado. Era uma sensibilidade litorânea, inten­
sificada devido ao fato de eles terem migrado em busca de trabalho assalariado.
Dos rios do litoral trouxeram muitos segredos. Alguns desses segredos pro­
vinham de uma velha igreja colonial, congelada no tempo, quando os brancos 
partiram porque os negros se recusavam a trabalhar para eles, após a abolição da 
escravidão, em 1951. Outros segredos eram devidos aos xamãs índios que mora­
vam ao longo dos rios do litoral, os “cholos”, que usavam um alucinógeno seme­
lhante ao yagé, denominado pildé. Segundo me contou meu amigo Otazio, um 
feiticeiro negro dos rios litorâneos do Chocó, o pildé era empregado para traba­
lhos “a longa distância". Os migrantes da costa eram famosos por seus venenos e 
feitiços com sapos, suas inumeráveis oraciones, suas curas de picadas de cobra e 
sua superlativa arte com malefícios, que faziam com que o estômago de suas 
vítimas inchassem adquirindo uma circunferência enorme, expandindo-se e mur­
chando com o movimento das marés, observado naqueles rios tão distantes. Sim, 
era um grupo que chamava a atenção! As mulheres, na estrada que descia para 
Villarica, não contavam que, em Cali, havia algumas empregadas que enfeitiça­
vam suas patroas, que as empregadas procedentes do litoral do Pacífico não se 
dedicavam a isso? Elas apareciam e iam embora quando bem entendiam. Algu­
mas chegavam até mesmo a fazer feitiços contia suas patroas!
Corriam outras histórias sobre o modo como essa gente “primitiva" das flores­
tas além. das montanhas e à beira-mar empregava a feitiçaria para atingir as clas­
ses dominantes que se aproveitavam dela. Lembro-me de que o jovem filho da 
mulher que enlouqueceu contava-me com freqüência como sua mãe reagiu ao ser 
despejada com seus quatro filhos do barraco no qual moravam em Puerto Tejada. 
O aluguel estava muito atrasado e o proprietário arrancou as telhas a fim de os 
forçarem a desocupar o barraco. Aquela mulher frágil e perturbada do litoral 
cavou então um buraco raso na frente do barraco, á vista de todo mundo, e nele 
colocou substâncias empregadas na feitiçaria, tena e ossos do cemitério etc. 
Então o barraco ficou salado, enfeitiçado, e a partir desse fato o proprietário não 
conseguiu mais alugá-lo, confidenciou-me o rapaz, muito satisfeito.
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No litoral os xamãs índios empregam bonecas de madeira em seus feitos 
mágicos. Há cinqüenta anos alguns etnólogos suecos afirmaram ter encontrado 
bonecas no litoral surpreendentemente semelhantes aos “fetiches" da África cen­
tral. Seja como for, na Colômbia as bonecas são privativas do litoral e de sua arte 
mágica. É certamente interessante notar que nas histórias sobre os trabalhadores 
assalariados dos canaviais em tomo de Puerto Tejada que, segundo se comenta, 
celebram um pacto com o diabo a fim de aumentar sua produtividade e, portanto, 
seu salário, diz-se que tal ato se dá por meio da assistência de uma boneca de 
madeira. A influência “primitiva" do litoral, ao que parece, é decisiva nessa es­
tranha ritualização da magia, em uma produção capitalista em laiga escala. Gra­
ças ao pacto com o diabo o trabalhador assalariado aumenta o salário sem 
intensificar o esforço físico. No entanto o canavial acaba se tomando improdu­
tivo, tal como o salário. Este serve unicamente para adquirir tudo aquilo que é 
considerado um luxo e não bens féiteis, tais como a terra ou o gado. Jamais se 
ouviu dizer que as mulheres ou os produtores, proprietários de sítios, tenham 
feito semelhante pacto. Existe um motivo para tanto. Por que o sitiante ou a 
sitiante haveriam de querer tomar sua teninha infértil, por mais que necessitas­
sem de dinheiro? Por que as mulheres, as sitiantes e as sem-terra, haveriam de 
querer salários tão pouco férteis quando é responsabilidade delas, segundo todos 
dizem, sustentar seus filhos, criaturas que estão crescendo? Não! O demoníaco passa 
a ter vida própria quando a rápida constituição de uma classe de trabalhadores 
assalariados põe a nu e extrai a magia implícita no fetichismo das mercadorias da 
cultura capitalista e o modo como ela organiza as pessoas enquanto coisas, atra­
vés do mecanismo do mercado. E é aqui que o “primitivo" dá sua contribuição 
estratégica, sob a forma dos trabalhadores negros, provenientes da economia de 
subsistência do litoral, sempre sensíveis ás infrações relativas á igualdade e aos 
belos cálculos de crescimento e esterilidade, embutidos na economia de recipro­
cidade: aqui no litoral (mas não aqui no canavial) uma mão lava a outra. No 
litoral existe comida, mas não há dinheiro, lamentam as mulheres. Aqui existe 
dinheiro, mas não há comida; daí decorre a “sujeira" e a magia do moderna, que 
os curadores índios como Don Benito temem e, ao mesmo tempo, apreciam.
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Plantas revolucionárias
17
O s ervanários do Putumayo combinam e distribuem as plantas curativas da 
Colômbia. Levam as florestas tropicais do litoral do Pacífico às florestas da bacia 
do alto Amazonas; põem em contato os frios e pantanosos páramos do cimo das 
montanhas com as terras quentes, bem como com as zonas temperadas que se 
estendem entre ambas as regiões. Os ervanários do Putumayo personificam essa 
ecologia. Perambulando de um lugar conturbado para outro, escrevem a língua 
dos significantes mágicos na face da topografia tropical. Expostas em ruas em­
poeiradas, maculadas pela lama respingada pelos caminhões e mulas de passa­
gem, suas plantas se assemelham a assinaturas de uma mitologia vívida, quando 
não inconsciente, relativa ao espaço e á raça. O poder mágico atribuído a esses 
ervanários enquanto índios e, mais especificamente, ervanários índios do Putu­
mayo, é uma imputação que enquadra e surrealiza o forasteiro que percorre uma 
paisagem encantada. É um mosaico de significados ligados a lugares, desajeita­
damente correlacionados através da raiz, da planta, do pedaço de casca, que pos­
sui partes do corpo e doenças ligadas a essas partes: raiz da China para os rins, 
procedente do páramo; Pionía, sementinhas reluzentes, vermelhas e pretas, das 
florestas quentes do litoral do Pacífico, para a vesícula; raízes de chondur, com 
gosto de menta, das terras baixas do Putumayo, empregadas para tratar das crian­
ças com susto...
Esses ervanários podem também atuar como curadores, transmitindo, adqui­
rindo, integrando, criando verdadeiras colchas de retalho com novas palavras, 
novas pronúncias, novos conceitos, á medida que se deslocam de uma cidade 
para outra, de um povoado para outro, de um litoral para outro, revestindo o novode indianismo. A exemplo dos condutores de luz, eles absorvem a inveja e a 
feitiçaria que se abatem sobre as pequenas comunidades e bairros das grandes 
cidades. Meu amigo, o curador mulato Chu Chu, foi salvo, segundo me contou, 
por um desses curadores errantes do Putumayo.
280
Alguns permanecem em um único lugar, colhendo as plantas de uma vasta 
região e levando-as para suas farmácias. Era o que fazia Antonio Benavides. 
Duas vezes por semana era possível encontrá-lo no mercado de Puerto Tejada 
cuidando de uma grande banca de remédios feitos com plantas medicinais. Era 
um homem corpulento, de meia-idade, que viera das terras altas do Putumayo 
havia vinte anos e agora morava em Cali. Ele era uma mescla espetacular de 
bom senso e de impostura. Contava-me que costumava ir regularmente ao litoral 
do Pacífico a fim de obter trezentos tipos diferentes de plantas, incluindo o aluci­
nógeno pildé, semelhante ao yagé. “Em tomo do pildé existem muitas cobras", 
ele me contou, “pois a planta tem muito poder." Graças a uma planta especial do 
litoral ele conseguia curar a lepra e o câncer. Conforme dizia, mantinha aproxi­
madamente 4 600 plantas diferentes e vendia de 200 a 250 variedades em Puerto 
Tejada.
As plantas não são como os remédios que se compram nas farmácias. Elas 
encerram um mistério e é preciso rezar e concentrar-se, antes de as colher e usar, 
garantiu-me Antonio. Era um homem muito viajado, segundo seu relato. Vendera 
plantas na Venezuela e no Panamá e também estudara os livros de magia. Seus 
pais eram ervanários e sua tia, segundo ele me contou, era tão famosa que, de sua 
aldeia de San Francisco, no vale do Sibundoy, levaram-na aos Estados Unidos 
para verificar se era verdade que os índios conseguiam curar loucos.
“Minha tia mostrou-lhes que isso era possível", ele relatou, enquanto seu 
filhinho enrolava algumas folhas para um camponês negro que necessitava de 
algo para o reumatismo, “mas não lhes mostrou o segredo. Usou yagé para as 
curas, bem como outras plantas. Eu costumava acompanhá-la até a floresta a fim 
de colher plantas, mas na verdade ninguém, além de Deus, me ensinou o que 
quer que fosse. É uma profissão hereditária. Minha mãe era parteira e minha tia 
também. Meu tio consertava ossos quebrados e fazia massagens."
“Não”, respondeu ele a uma pergunta minha, “não estudei com um cacique 
das terras baixas. Só fui conhecê-los quando era um naturalista profissional." 
Antonio fez uma pausa para atender um cliente. “Antes de mais nada é preciso 
ser atento, limpo e ter um coração compassivo para poder seguir aquilo que Deus 
nos reservou. Esses caciques com certeza conhecem certas coisas, é verdade, 
mas não tão bem quanto um naturalista. Um naturalista precisa ser muito atento. 
Por quê? Porque no mundo em que vivemos existe muita inveja e cobiça. Como 
é que alguém pode ser um bom médico quando os médicos da universidade 
cagam na sua cabeça? Para ser um bom médico é preciso ser quase um santo. 
Limpo. Eu costumava me apresentar com cobras nos mercados, durante muitos 
anos. Sou um cacique de verdade.”
Conversamos sobre o yagé.
“Ele encerra noventa por cento do poder do reino das plantas!", declarou 
Antonio, “mas é preciso ser um grande conhecedor para poder trabalhar com ele. 
Eu não sou", confessou. “O yagé tem esse grande poder graças aos desígnios da
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Providência Divina e transporta o espirito para qualquer lugar do espaço...” Sua 
voz morreu e recuperou o vigor quando a conversa girou em tomo da cidade de 
Cali, onde ele morava há anos e que fora tão boa para ele. Dera-lhe a possibili­
dade de estudar la metafísica “e para isso não preciso de yagél”.
Creio que foi a cidade que propiciou-lhe ensinamentos sobre a astrologia. E 
sobre o capitalismo também. Quando ele tentava dar mais explicações sobre o 
yagé, referia-se ao modo como ele abria o corpo, despertava-o por meio da coor­
denação das forças corporais com a das estrelas e dos minerais, de tal modo que 
a pessoa se fundia com o globo, o Universo. No entanto, dizia ele, havia um pro­
blema: o capitalismo está destruindo o globo, e os líderes do mundo o estão 
contaminando. Essa gente, disse ele, empregando a palavra pueblo, está confusa 
e nos arruina. Agora já não existem mais laços que nos liguem. “Tudo se deve ás 
grandes potências, quando construíram as armas de guerra, as armas bélicas. Alega­
vam que era para a defesa, mas na realidade era para destruir seus próprios ir­
mãos e irmãs que, um dia, poderiam servir. E não foi só no Vietnã”, acrescentou, 
“já está se aproximando daqui” (isto foi em 1976).
De repente chegou uma camponesa negra de Obando, a fim de comprar 
algo que permitisse... ela hesitou... “asegurar la vida... como la vida hoy en dia 
es muy complicada”. Os canaviais estão avançando rapidamente sobre as terras 
dos camponeses, desorganizando as plantações mistas, compostas por aquilo que 
eles colhem, mais os pés de cacau, os bananais e cafezais.
A reação de Antonio ao avanço das práticas agrocomerciais assemelhava-se 
bastante ás daquele outro curador das terras altas do Putumayo, Don Benito, agora 
estabelecido nas encostas das montanhas, nas bordas daquele vale tão rico e vasto. 
“É bom para os ricos e mau para os pobres", disse Antonio. “A fumigação pro­
voca um dano terrível para a cultura do café e do cacau, de tal modo que as 
pessoas têm que vender seus sítios e se tomar escravas. Muitas vezes têm que ir 
morar em outros lugares. As plantas produtivas estão sendo destruídas — a iúca, 
os bananais... Estão se tomando estéreis."
Ao se referir a esse sistema de metafísica, inspirado pela cidade, a essa 
assombrosa mistura de yagé, astrologia e organicismo medieval, ele prosseguiu: 
“O ser humano tem que implorar às plantas do mundo para que elas produzam e 
para que o façam para todo mundo. Se isto não acontecer, então todos nós estare­
mos perdidos. Tudo ficará infestado, a começar pelas raízes. Com o fracasso da 
esfera produtiva haverá o da esfera criativa".
Ele continuou, como se estivesse lendo meus pensamentos: “O problema 
com essa gente da universidade é que eles estudam apenas dois aspectos, o eco­
nômico e o material. Quanto ao corpo e ao espírito, nada! Estou ensinando”, 
acrescentou, “venho ensinando ao povo a revolução através de meu trabalho com 
as plantas”.
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