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Segunda parte
Cura
Uma história de sorte e infortúnio
Conheci José Garcia sm dezembro de 1975, quando ele participou de um
grupo que esperava para beber yagé com Santiago Mutumbajoy, um reputado
xamã índio que vivia nos contrafortes do Putumayo, onde os sopés orientais dos
Andes se encontram com a floresta pluvial da bacia do alto Amazonas, na Co
lômbia. Ele foi o último a juntar-se a nosso grupo de pobres forasteiros brancos e
de índios da região que observavam o crepúsculo das montanhas, e me foi assi
nalado como amigo íntimo e discípulo do xamã. O que chamou minha atenção
foi o fato de que José Garcia era um branco que se dispusera a estudar com um
curandeiro índio.
Lembrei-me de que havia alguns meses, quando eu me encontrava na com
panhia de outro xamã, dois brancos se aproximaram da casa certa noite e um deles
se pôs a berrar: “Graças a Deus eu sei\ Mate-me agora, com tudo aquilo que você
sabe, seu monte de merda, filho de uma puta! Feiticeiro de merda, filho da puta!
Eles não podem fazer nada! Maldito! Mas eu sei... Estou parado, aqui... Eles não
sabem nada, filhos da puta! Não conseguem fazer nada contra mim!". Quando
atravessei pela primeira vez a pequena cidade, próximcJ ao lugar onde Santiago
morava, um técnico empregado pelo serviço especial de saúde do governo dis
sera em altos brados: “Nós do INPES combatemos os curacas (xamãs). Somos a
vanguarda do progresso. Nossa tarefa é nos livrarmos de toda essa charlatanice".
Os proprietários brancos dos armazéns em volta da praça garantiram-me que os
xamãs eram inúteis ou perigosos. Somente mais tarde fiquei sabendo que aqueles
mesmos proprietários procuravam os xamãs para dar um jeito em seu pequeno
comércio.
Devo assinalar que o yagé cresce unicamente na floresta pluvial das terras
baixas e dos sopés das montanhas e que os índios que conheço, habitantes dos
contrafortes do Putumayo, dizem de vez em quando que se trata de uma dádiva
especial de Deus para os índios, e unicamente para eles. “Yagé é nossa escola”,
“yagé é nosso estudo", poderão dizer, e o yagé é concebido como algo ligado à
origem do conhecimento e de sua sociedade. Foi o yagé quem ensinou aos índios
o bem e o mal, as propriedades dos animais, os remédios e as plantas comestí
veis. Alguns índios Cofán, ao sul do rio Putumayo, certa vez me contaram uma
história sobre a origem do yagé que ilustra as tensões bem como as mediações
que se dão entre as tradições indígenas e cristãs: Quando Deus criou o mundo ele
arrancou com a mão esquerda um fio de cabelo e o plantou no chão, mas unica
mente para os índios. Abençoou-o com sua mão esquerda. Os índios descobriram
suas propriedades e desenvolveram os ritos do yagé e de todo o complexo xamâ-
nico. Ao ver isto, Deus demonstrou incredulidade. Disse que eles estavam men
tindo. Pediu e Lhe foi dado um pouco de infusão de yagé. Ele tremeu, vomitou,
defecou e gritou bastante, fascinado com as muitas coisas maravilhosas que viu.
Quando o dia amanheceu ele declarou: “É verdade o que esses índios dizem. A
pessoa que toma isto sofre, mas se beneficia. É assim que a gente aprende: atra
vés do sofrimento”.
Embora possam beber o yagé com um xamã índio a fim de se livrarem do
mal, seria excepcionalmennte raro que os brancos considerassem com seriedade
assumir todos os perigos que se acumulam sobre a pessoa encarregada da respon
sabilidade de seu preparo e ritual. José Garcia é um desses poucos brancos.
A noite caiu e entramos na casa de dois quartos, empoleirada na colina. A
luz de uma vela tremeluzia, iluminando as traves do teto e as redes que balouça
vam. Encardidas estampas católicas contemplavam a penumbra oscilante, e São
Miguel, o santo padroeiro da pequena cidade vizinha e que Santiago Mutumba-
joy afirma ser o santo dos índios, que os preveniu da chegada dos espanhóis,
começou a livrar-se de Satanás, que se afundava no fogo do inferno. Uma con
versa em voz baixa sobre os momentos difíceis de cada um deu lugar à expecta
tiva e ao temor, até certo ponto dissipados pelo curandeiro, que fazia piadas e
brincava. O incenso de copal invadiu a sala e os sons noturnos do rio e do vento
se uniram aos ruídos da floresta, preenchendo nosso silêncio. Um rapaz ajudou o
curandeiro a encher uma panela de yagé. O curandeiro se agachou e começou a
cantar ao ritmo do compasso de seu leque de cura, waira sacha — espírito da
floresta, escova do vento.
Ele estava curando o yagé do mal que este traz da floresta. Entoava sons
yagé, mas não palavras, pedindo-lhe que fosse forte e trouxesse boa pinta, isto é,
pintura, visões. Decorridos uns dez minutos ele bebeu, cuspiu, pigarreou e então
serviu a todos nós, cantando diante do copo cheio, antes que cada pessoa bebesse.
Sentamo-nos e aguardamos. Daí a meia hora alguém foi vomitar no escuro, trope
çando, e o xamã recomeçou a cantar, mal parando até o dia amanhecer. Solicitou
boas visões; sua voz e o ritmo que ele imprimia ao leque ressoavam em nossos
corpos trêmulos. Eis alguns trechos de minhas anotações, feitas naquela noite:
Então surge o feo (feio). Meu corpo se distorce e estou muito assustado. Minhas
pernas se esticam e se desprendem, meu corpo não mais me pertence e então volta a me
pertencer. Sou um polvo, condenso-me em uma forma bem pequena. A luz da vela cria
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formas de um mundo novo, formas animais e ameaçadoras. A metade inferior de meu corpo
desaparece. Aprendo a usar a dissociação como uma vantagem, como um modo de escapar
ao horror. Não sou a pessoa que está passando por aquilo tudo, mas o rosto-prcsença, sem
corpo, calmo, que olha com atenção e observa aquele outro eu desprovido de importância.
Espio meu outro eu e sinto-me seguro. Mas então este segundo eu, este observador objetivo
e desligado, também sucumbe e tenho de dissociar-me em um terceiro e, em seguida, em
um quarto, pois a relação entre meus eus se rompe, criando uma série quase infinita de
espelhos confusos de eus que espiam e de outros que sentem. O ódio a mim mesmo e a
paranóia são estimulados por animais horríveis — porcos que grunhem estranhamente, co
bras coleantes que deslizam uma em cima da outra, roedores com asas que se assemelham a
barbatanas. Estou tá fora, tento vomitar, as estrelas e o vento pairam sobre mim, apoio-me
na cerca do curral. Está repleto de animais, que se mexem. A história de minha vida se
desenrola diante de mim, em uma torrente de medo e de autocensura. Volto para dentro e
assim que entro vejo o xamã, Santiago; ele transformou-se em um tigre! Está sentado na
rede e José Garcia ajoelha-se diante dele. A sala se transformou e sinto o vômito que chega.
Vou lá para fora, vomito e defeco. Sinto as odiosas situações do passado e o medo sendo
expelidos. Junto-me ao grupo, calmo, e agora flutuo em cores e visões maravilhosas. Dou-
me conta que Santiago pôs seu colar de dentes de tigre. Sua cabeça aninha-se naquele
suporte de dentes de tigre, criando uma nova imagem: a parte superior de seu corpo é como
a de um tigre. Ele acaricia suavemente José Garcia e pergunta-lhe se quer mais yagé. Esten
dem um pano e se agacham no chão. Alvoroçados, excitados, pedem uma faca para abrir
uma concha de madrepérola. Mais tarde José Garcia faz perguntas relativas a seu gado;
quer vê-lo curado naquela mesma noite e quer que Santiago vá até sua fazenda e veja o que
está acontecendo. Mais tarde percebo que ele está se referindo à feitiçaria. Pela manhã
Santiago contou-me que mal conseguiu funcionar durante a noite, pois esbarrava no gado o
tempo todo; era um bonito gado. Oh! Um belo gado de todas as cores, que mugia, o lambia
e era muito gotdo. O Banco Mundial finandou um projeto de criação de gado, naquelas
regiões da floresta pluvial desde o inicio da década de 70.
O genro de Santiago me conta que José Garcia deseja ser um xamã, que ele sabe
muita coisa e que está passando por um período de má sorte.
Muitomais tarde ficou claro para mim que José Garcia estava aprendendo a ser
um curandeiro como parte do fato de ele estar sendo curado de uma aflição
profundamente perturbadora. Ao fazer isso, ele atravessava todo um ciclo de
aflição, salvação e transformação, que parece tão eterno quanto a humanidade.
No entanto o poder deste ciclo não se origina da eternidade, mas do ativo engaja
mento com a história, do qual a aflição depende para sua cura. José Garcia não
deve ser historicizado, pois o passado do qual sua aflição e sua cura dependem é
uma ativa construção do passado, original para cada novo {»esente, e isto tam
bém se aplica ao xamanismo
Os contrafortes dos Andes, na região do Putumayo, foram percorridos pela
primeira vez por europeus, em 1541, á procura da cidade de El Dorado — O Rei
Dourado. Os índios que habitavam a selva, na região do rio Mocoa (descritos
pelos contemporâneos como canibais que lutaram ferozmente contra os espa
nhóis, colocando-os em fuga), asseguraram a Hemán Pérez de Quesada e seus
260 companheiros de conquista que a Terra Dourada situava-se ali perto, nas
montanhas que se erguiam na direção oeste, em uma terra fabulosa chamada
Achibichi, onde os espanhóis encontraram o vale do Sibundoy, mas não o ouro e,
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mais adiante, a-nova vila espanhola de Pasto. Após essa predadora expedição
surgiram por lá alguns traficantes de escravos espanhóis e missionários francis-
canos. Era um punhado de homens amargurados, que muito padeceram com o
clima e com a hostilidade dos índios dos contrafortes dos Andes, que, segundo se
dizia, rebelaram-se instigados por seus xamãs.
No entanto o cristianismo assumiu importância na cultura da conquista. A
distinção entre índios cristãos e pagãos se tomou ideologicamente decisiva de
vido á importância que ela assumiu, ao facilitar a legalidade da escravização e o
emprego da força militar. Em seu manual de instrução para os missionários, pu
blicado em 1668, o superior da missão franciscana estabelecida em Quito, bispo
Pena Montenegro, forneceu um exemplo de racionalização cristã, tendo em vista
o emprego da força contra os índios do Putumayo. A conquista por meio da força
armada, escreveu ele, era justificada “para reduzir aqueles que, embora não
sendo vassalos de alguém, injuriaram gravemente aqueles que o eram, a exemplo
dos índios pagãos que, sendo vizinhos naquelas regiões de índios católicos, inva
diam suas terras, suas vidas e fazendas, aprisionando as mulheres e as crianças,
como ocorre comumente e como ocorreu este ano de 1663, nos contrafortes da
montanha, em Mocoa".1 Outros relatos de franciscanos declaravam que índios
cristianizados do vale do Sibundoy (provavelmente os “índios católicos" a que se
refere o bispo) estavam sendo usados para escravizar pagãos (tais como os de
Mocoa) nas terras baixas, a fim de trabalharem na mineração do ouro.
Com o cristianismo, ao que me parece, os missionários também introduzi
ram a magia, como ela é denominada atualmente no Putumayo, em referência ao
poder que deriva de um pacto com o demônio. Os missionários acreditavam
firmemente na eficácia da feitiçaria e supunham que os índios eram especial
mente dados a praticá-la, devido ao fato de terem sido seduzidos pelo demônio.
O bispo Pena Montenegro afirmava que sendo tão brutos e ignorantes, os índios
haviam sido conquistados pelo diabo, a ponto que ele se tomou unha e carne com
os nativos. As características do demônio se tomaram um traço hereditário. Atra
vés de seus ritos e superstições, os índios mantinham a memória da idolatria e da
feitiçaria. Quando ficavam doentes e procuravam os xamãs, reforçavam a ambas.
Além do mais o bispo se preocupava com a influência herética qué os índios exer
ciam sobre os brancos, pois estes também procuravam os curandeiros índios.2
O bispo instruiu seus frades a tomar cuidado, ao tirarem os “instrumentos”
dos feiticeiros índios e ao proibirem suas danças e seus cânticos, “pois neles os
índios guardam a recordação da idolatria e da feitiçaria”. Tendo em vista essa finali
dade, era necessário destruir “seus membros, cabeças de veado e penas, pois
estes são os instrumentos do mal e trazem à baila a recordação do paganismo”.3
No entanto a memória de que se trata aqui não seria a dos espanhóis e não a
dos índios? A ironia estava no fato de que ao se empenhar em apagar essas
“recordações", a Igreja, na verdade, as criava e as fortalecia como uma nova força
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social e, em conseqüência, garantia a transmissão do mito para a realidade e a
transmissão da memória para o futuro.
Expulsos das missões em 1767, os franciscanos deixaram o Putumayo, que
se tomou um lugar ainda mais isolado, virtualmente livre de contatos com bran
cos durante um século, com exceção de alguns comerciantes á procura de laca de
bamiz (verniz) e de plantas medicinais para as pequenas cidades das serras. Se
guindo-se ao boom da casca de quinino, nas décadas de 1860 e 1870, o da bor
racha irrompeu nas terras baixas do Putumayo, bem no fim do século XIX,
acarretando durante cerca de vinte anos aquilo que Walter Hardenburg descreveu
como “O Paraíso do Demônio”, isto é, o espaço onde ocorreu a escravização e a
morte, a uns 3S0 quilômetros ao sudoeste do lugar onde José Garcia se estabele
ceu, meio século mais tarde. Foi concedido a capuchinhos da Espanha o controle
quase total da Amazônia colombiana em 1900, e eles estabeleceram sua primeira e
mais importante base nas toras altas do vale do Sibundoy. Suas escolas e clínicas
foram bem-sucedidas, em contraposição ao fracasso dos franciscanos, e sua tenta
tiva, um tanto falha, de colonizar a região através de camponeses brancos pobres foi
grandemente impulsionada pela Texaco Oil Company, que construiu estradas no
início da década de 50, pelas quais camponeses pobres, negros e brancos afluíram
em grande número. Um desses brancos pobres era José Garcia.
Nascido em 1925 em Narino, localidade situada no altiplano andino, José
Garcia desceu para os contrafortes da bacia do Putumayo em 1950, em compa
nhia de sua mãe e de seu irmão, após a morte do pai. Haviam ouvido falar da
beleza de Santa Marta, esperavam encontrar lá a riqueza e passaram anos árduos
preparando a terra para a criação do gado. Contou-me que tomou yagé pela pri
meira vez com um curador índio da região, chamado Andrés Hinchoa. Sua irmã
ficara gravemente doente, após romper com o homem de quem estava noiva. Ela
e José Garcia temiam que tivesse sido enfeitiçada, em um ato de vingança e,
finalmente, procuraram Andrés Hinchoa para ver o qué ele poderia fazer. José
Garcia relembra:
Andrés Hinchoa era meu compadre. Foi quem me ensinou a tomar yagé. Me deu a
primeira pinta e passei por coisas que jamais tinha visto. Ele me disse: “Bom. Vou te dar
um copo de yagé para que você tenha boa sorte e assim sempre se lembrará de mim. Mas
você terá de ser corajoso, compadre\". Então ele me deu o primeiro copo e dai chegou a
chuma (embriaguez e visões). Mas Ave Maria!... Eu estava morrendo. Vi um outro mnndo.
Estava em uma outra vida. Vi-me num atalho estreito, comprido, que não terminava mais. E
me sentia angustiado, sofrendo. Tinha ido embora por toda a eternidade. Estava naquele
atalho, caminhava sem parar; e dal cheguei a uma planície imensa, bela como a savana. Os
campos eram verdes. Lá estava um quadro de Nossa Senhora do Carmo, e eu disse para
mim mesmo: “Agora vou até Nossa Senhora do Carmo“. Então vi uma ponte bem pequena,
com um buraco no meio; não havia nada além daquela pontezinha, fina como um dedo, e
pensei com meus botões: “Tenho medo de atravessar. Minha Virgem Santa, não me deixe
cair! Não deixe que nada de mal me aconteça!“. Fiz o sinal-da-cruz e comecei a atravessar
a ponte, mas comecei a cair. De repente fiquei assustado. Naquele momento invoquei a
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Santíssima Virgem do Carmo, pedindo que me ajudasse a passar. Daí chegueiaté perto dela
e disse: “Vim para que todos os meus pecados sejam perdoados!". Forque eu estava morto,
não é mesmo? E então ela disse: “Não vou perdoar nada!'. Então me pus a chorar com
amargura, soluçava, procurava aquela salvação que a Virgem Santa me negava. Chorava
sem parar e implorava que ela me salvasse. Daí ela me disse que eu estava perdoado, que
eu estava salvo! Fiquei feliz e voltei pata este mundo. Estava sentado no mesmo lugar; com
o rosto banhado de lígrimas.
Em seguida, pelo que deduzi — pois José Garcia se mostrou um tanto reti
cente em seu relato —, ele se envolveu em um caso amoroso e conflitante. O fim
do relacionamento se deu em um clima desagradável, até mesmo agressivo. Com
efeito, as cicatrizes ou aquilo que ele considera como tal, estão presentes até o
dia de hoje. A jovem e sua mãe, proprietárias da fazenda vizinha, nunca estão
longe de seu pensamento, quando as coisas não vão bem.
Foi por tomar yagé, segundo me contou Santiago Mutumbajoy, que José
Garcia pôde escolher entre três mulheres, e a eleita foi Rosário, com quem casou
em 1962. Nascida em 1935, ela viera da região de Narino mais ou menos na
mesma época que José Garcia e morava em uma fazenda das redondezas. Tinha
16 anos quando o homem a quem amava e com quem desejava se casar moiTeu
em um acidente com um caminhão. Ficou desolada, chorou e sonhou com ele
durante meses.
Após oito anos de casamento saíram da floresta e foram morar na cidade-
zinha de Mocoa, no sopé da montanha. Alugaram quartos da tia da jovem que
fora a primeira noiva de José Garcia. Essa tia se tomou a madrinha da primeira
filha do casal, mas tomou a vida impossível para eles, segundo me contou José
Garcia, pois dizia que eles sentiam excessivo orgulho da beleza da criança e que
ela morreria em breve. Assim o orgulho deles seria castigado.
Mudaram-se para o outro lado da estrada e passaram por uma fase difícil de
doença e pobreza. À noite estranhos sons os assustavam, e Rosário foi assom
brada por um espírito que, muitas vezes, sentava-se acima de seu ombro es
querdo. Ele a seguia por toda a casa, sobretudo quando José Garcia não se
encontrava presente, de acordo com o que ela me contou. Não ficou claro de
quem era aquele espírito (em 1977 ela contou-me que era um rapaz com aparên
cia de gringo, alto, bonito e que a desejava profundamente). Seu lado direito
tomou-se pesado e sem reflexos. Em seguida ficou parcialmente paralisado. Em
um ato de desespero José Garcia procurou um curandeiro poderoso.
Fui tomar yagé em um lugar, em seguida em outro e depois em mais outro e nada!
Não vi nada! Fui até o xamã Flavio Pena. Ele sabia! Ele sabia como curar! Mas nem
mesmo ele conseguiu fazer alguma coisa! “Não!**, disse ele, "isto é realmente difícil”. Ele
cuidou bem de mim. Preparou um bom yagé, curou-me como deve ser feito, mas nada! Não
tive visões. O yagé era como uma garapa. Nada! Nada!
Fomos procurar outro xamã em Umbría. "Isto é um maleficio com magia"', disse ele.
“Não é qualquer um que pode curar isso. O maleficio a gente pode curar; mas a magia, não."
Quando Andrés Hinchoa morreu, todas as minhas visões acabaram. Algo terrível tinha
acontecido comigo. Procurei seis xamãs, mas com nenhum deles obtive sucesso.
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Então um amigo perguntou se eu já tinha ouvido falar de Santiago Mutumbajoy. “Vá
lá", disse-me ele. “É uma boa pessoa e alguém que sabe, de verdade, como tomar yagé."
Assim, cato dia, visitei-o e levei-lhe alguns presentes. Ele se mostrou muito atencioso e, após
conversar um pouco, disse-me: "Don José, de acordo com o que me disse, quer tomai yagé a
fim de ver; mas não posso prometer nada! Se Deus e a Virgem me ajudarem, então, sim,
poderei ajudá-lo. Venha, mas somente sob essa condição".
O dia marcado chegou c tomamos yagé. Sim! Era aquilo que eu queria! Sim! Surgiu
uma clara visão de minha casa e eu estava vendo tudo, exatamente como na época em que
Andrés Hinchoa me dava yagé. Bebemos yagé a noite inteira. Sets copos! Finalmente ele
disse: "Gosto, gosto de fato deste José García. Ele foi feito para tomar yagé. É uma boa
pessoa. Você vai ficar rico". Eu estava em um estado de estupor, deitado no chão, mas
ouvia o que ele dizia. Não perguntei a ele como, nem por quê, mas fiquei cheio de con
fiança em suas palavras. No dia seguinte, porém, as dúvidas assaltaram minha mente. Fal
tava-me fé!
À luz do dia Santiago lhe disse que uma outra pessoa teria de curá-lo. Tratava-se
de um maleficio terrivelmente difícil, feito com magia, e ele não queria ficar com
o dinheiro de José García em troco de nada.
Mais tarde a esposa de José García, Rosario, explicou-me: “Existem índios
que fazem feitiçaria. Don Santiago não faz. Essa feitiçaria que se faz entre os
índios... bem, os índios não conseguem curar, por causa da magia, somente a
pessoa que trabalha com a magia... Os índios não conhecem a magia. Não conse
guem curá-la. As pessoas que conhecem são os compactados, aqueles que estu
daram o livro da magia e que fizeram um pacto com Satanás. São eles que conhecem
a magiaV.
“Tudo aquilo que os índios conhecem", prosseguiu, “é o yagé e as plantas
com as quais eles curam e praticam sua própria feitiçaria. As feiticeiras coloca
ram capachos — que é como elas chamam isso. É muito especial. Uma pessoa
branca faz cruzes com terra do cemitério, tirada de um túmulo. O que mais pode
existir?”.
José García continuou a procurar um curandeiro suficientemente poderoso
para combater a magia. Consultou um velho conhecido, Luis Alegria, um mé
dium espírita mulato que curava com os espíritos dos santos e dos mortos e que,
anteriormente, lhe havia dado conselhos relativos a seu irmão doente, Antonio,
hoje um médium espírita de sucesso, segundo me contaram, que mora no vale do
Sibundoy. Antonio começou sua carreira como aprendiz de um xamã índio, e
José García me contou a história de seu irmão:
Antonio era um yagecero, sabia como servir o yagé. Tinha muitos conhecimentos
sobre o yagé, mas foi enganado pelo amigo que o estava ensinando a curar. Foi danado
(enfeitiçado) por seu mestre, um velho xamã índio que vivia em Sibundoy. Bem, lá estava
ele, e tudo o que conseguia dizer era que o yagé era terrível. Ele estava em um estado
medonho, lutava o tempo todo, dizia que o yagé era tremendamente perigoso. Era só o que
ele dizia. Mais tarde iniciou-se como médium espirita, com um homem de Sibundoy cha
mado Don Pedro. Este, porém, viu que ele estava fazendo progressos tremendos com o
espiritismo e também enfeitiçou Antonio. Ele ficava virando de um lado para outro na
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cama, à noite, sem conseguir dormit, lutando contra Satanis, contra os espíritos. Eles o
emboscavam na floresta com suas armadilhas.
Mal falei sobre isto com Luis Alegria e ele me disse: ’‘Ouça! A magia é muito boa.
Por exemplo, a magia encerra um segredo que diz respeito à flor do alhecho. Ouça! Com
essa flor você consegue curar o que quer que seja! Qualquer coisa! Pode curar qualquer
pessoa, atrair a boa sorte e tudo o mais. Sim! É uma maravilha'*. Foi o que ele disse.
’Compre a magia", dissem-me ele, "e na página tal procure o segredo. Com isto
podemos fazer o segredo, de modo a enfeitiçar o feiticeiro com a mesma magia que ele usou!”.
Luis Alegria começou seu trabalho, visando a cura de José Garcia, mas
pediu um alto preço. Desconfiado, José Garcia voltou a procurar Santiago Mu-
tumbajoy para tomar yagé e adivinhar se Luis Alegria o estaria ou não trapaceando.
Teve uma visão que lhe mostrou que era exatamente o que estava acontecendo e, ao
voltar para casa, enfrentou Luis Alegria. “Você está nos enganando; ninguém
nunca mais vai acreditar em você.”
“Isto é uma história mal contada, compadre", ele disse. “Vá lá em casa que
eu te curarei de verdade." José Garcia disse-lhe que estava esperando uma mu
lher branca que adivinhava por meio de um baralho. Seu nome era Lydia. “Muitobem", disse ele, “traga ela também Ela examina para ver o que está acontecendo
e eu me encarrego da cura!”.
Foi assim que as coisas se passaram. Lydia examinou primeiramente Luis
Alegria e, em seguida, José Garcia. “Ai!”, exclamou, “Ave Maria, você foi mesmo
atingido. É de fato um bobo! Já que quer se afogar, por que não pula no rio?
Amanhã irei até sua casa e providenciarei uma cura".
“Mas Luis Alegria ouvia e implorou que ficássemos e comêssemos com ele.
Recusei, mas Lydia comeu e ficou doente. Estava querendo prejudicar a ela
também.”
Lydia organizou a cura deles. Levou a família para os Andes, até a cidade
de Pasto. Primeiro foram ao hospital, para um exame detalhado e, em seguida, à
casa de um médium espírita. A casa, porém, estava fechada e procuraram outra, o
próspero centro de “irmã" Carmela, uma mulher branca que adivinhava e curava
invocando o espírito de José Gregorio Hemández, atualmente um santo popular
muito prestigiado na Venezuela e na Colômbia. José Gregorio morreu em Cara
cas em 1919, onde, segundo me disseram, foi o introdutor do microscópio.
Grande cirurgião, era extremamente piedoso e benevolente. Foi morto por um
carro, quando atravessava a rua ás pressas, a fim de ir buscar remédios para um
paciente pobre. Retratos seus, pequenos ícones como aquele que aqui se mostra,
são facilmente encontrados em diferentes formatos na Colômbia e na Venezuela.
Não há a menor dúvida que José Gregorio inseriu o mito e a lenda na era mo
derna, ainda que essa lenda se transformasse em algo profundamente burguês.
Nas estampas o vemos todo pomposo, vestido de temo, colete, engravatado, com
uma ponta de um lenço branco saindo do bolso. Ele se apresenta sereno, con
fiante e, lá no fundo, as montanhas se alteiam até o céu coberto de nuvens, acima
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dos torreões e de uma planície relvosa na qual, extraída do mais puro surrea
lismo, uma figura de avental cirúrgico, com máscara e touca, debruça-se sobre
uma figura seminua, que definha inconsciente, deitada em um feixe de palha, a
qual também serve como mesa de operação. “O servo de Deus”, reza a legenda.
Colocando as mãos sobre o paciente, em seu quarto na cidade de Pasto, situada
em uma planície relvosa, entre altas montanhas, Irmã Carmela invoca o espírito de
José Gregorio e começa a tremer. Seu espírito a está possuindo. A voz dela toma-
se áspera e masculina, enquanto ela se refere aos órgãos doentes e ao tratamento
necessário, que, com freqüência, inclui cirurgias profundas, praticadas espiritual
mente. “Ela é grande amiga do bispo de Pasto”, contou-me José Garcia. “Ele vai
ao centro espírita dela para rezar a missa.” A irmã Carmela chega a atender 150
pacientes por dia.
“Quando eu estava lá, ás cinco da manhã", informou-me José Garcia, “todos
nos encontrávamos na cama, acordados, mas com os olhos fechados. Então vi
claro como o dia, perto da margem do rio, um padre com um grosso livro, que
fazia um exorcismo. Eu tinha a impressão de estar vendo minha fazenda em Santa
Marta. Sim, eu via tudo. Via meu gado sendo exorcizado com aquele livro grosso,
que tinha vinte centímetros de espessura”.
O padre era o espírito de Francisco Montebello, um santo popular mulato,
segundo me disse José Garcia. Ele começou a rezar. “Nós nos encontrávamos
numa situação terrível. Alguém fizera um malefício contra nós. As crianças esta
vam muito, muito doentes, e minha mulher também Tudo o que tínhamos eram
nossos méritos e nada mais."
Isso se passou em 1973. Naquela ocasião o Banco Mundial iniciou seu projeto
de criação de gado. José Garcia adquiriu sua primeira fazenda por uma quantia
equivalente a mais ou menos 2 mil dólares; em 1975 comprou a segunda, por idêntica
quantia e, em 1978, mais outra. Por voltà de 1979 possuía uns noventa hectares e
pouco mais de cem cabeças de gado. Além das crianças nascidas em 1965 e 1971,
havia mais duas, nascidas em 1973 e 1977.
Rosário foi informada por um xamã índio que estava padecendo de mal
aires, isto é, ataque de um espírito, e tomou yagé três vezes. O espírito parou de
assombrá-la, a paralisia parecia curada e, em suas visões, ela enxergou uma tre
menda confusão de pessoas desconhecidas, uma igreja e a Virgem. Contou-nos
que a única pessoa a quem reconheceu foi uma sobrinha, que estava se casando.
Durante todos aqueles anos José Garcia continuou a tomar yagé com Santiago
toda semana, ou a cada duas semanas, e de vez em quando também visitava a
irmã Carmela na cidade de Pasto. Em 1977 ele convenceu a irmã Carmela a
descer das montanhas e curar sua família. Em seguida levou-a para tomar yagé
com Santiago, que não se sentia bem. Ela dirigiu ritos de cura na casa de San
tiago e este ficou impressionado com o fervor com que ela orava. Disse-me,
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porém, que não entendia nada de espíritos e de médiuns espíritas e ficou, senão
em estado de dúvida, pelo menos de perplexidade.
Foi assim que José Garcia prosperou. Seus filhos desabrocharam, Rosário es
tava bem e ele desenvolvia com assiduidade seus poderes curativos.
Atraía pacientes e para alguns deles atuava como intermediário, enviando-
os a Santiago ou a irmã Catmela. Suas técnicas de cura e os mistérios em que
elas se baseavam representavam, segundo me parece, não tanto o sincretismo ou
a unificação presentes nas curas de Santiago e de Carmela, quanto o fato de que
nenhum desses dois curadores existiam isolados um do outro. Cada um deles
pressupunha o outro, e figuras como José Garcia tomavam manifesto esse pres
suposto.
Suas concepções relativas àquilo que acarretava o infortúnio ou quaisquer
que sejam os nomes que se queira dar a semelhantes coisas pareciam, ao que me
consta, com as concepções dos xamãs índios a quem conheci. Uma grave aflição
era provavelmente o resultado de uma substância de feitiçaria que penetrava no
corpo ou então a obra de espíritos caprichosos — dos mortos ou da natureza —
que, na aparência, agiam independentemente da malícia humana. Talvez José
Garcia se diferenciasse de modo muito significativo dos xamãs índios na medida
em que ele atribuía um peso maior aos espíritos dos mortos. Em todo caso, à
semelhança dos xamãs, o objetivo de seu ritual era o exorcismo após a adivinha
ção, atingido através de um estado alucinatório ou parecido com ele. José Garcia
usava um leque de cura igual ao dos xamãs, e seus cânticos também se asseme
lhavam até certo ponto. A fase de abertura, de grande importância aliás, ocorria
quando ele consagrava seus remcdios, invocando o poder de transformar o mal
em um poder dispensador de vida. É aqui que percebemos mais claramente o
caráter das oposições que ele encarnava e que lhe davam poder, sobretudo
quando tomava yagé com Santiago.
Depois de Santiago cantar para o yagé e servi-lo, José Garcia começava a
cantar baixinho. Chamando Deus e a Virgem, ele invocava os espíritos dos san
tos populares católicos, bem como os dos xamãs índios mortos que o haviam
ajudado em sua busca anterior da cura. No que se referia a Andrés Hinchoa, o
xamã índio que lhe deu yagé pela primeira vez e morrera, ele dizia o seguinte:
“O espírito dele está entrando no centro espírita dirigido pela irmã Carmela.
Agora ele está fazendo curas perfeitas. Está entrando no centro espírita dela.
Tomás Becerra (outro xamã índio morto) também vem entrando no centro. A
mesma coisa acontece com Salvador, de Umbría. Todos estão com a irmã Car
mela e lá se concentram Falam línguas indígenas”. Ao entrarem no centro espí
rita da irmã Carmela eles se purificam... a exemplo do que acontece com ele,
iluminado pela luz das velas, na casa de Santiago, junto á floresta. José Garcia
começa a ver coisas — como a irmã Carmela, na cidade de Pasto, está concen
trando o poder dos espíritos dos xamãs índios, articulando-os com os espíritos de
santos populares católicos, tais como o de José Gregorio, o cirurgião venezuelano
152
morto,unindo todos eles com a Virgem de Lajas. Evocando esse panteão, articu
lando o índio com o branco, a floresta com a cidade, o xamã índio com a médium
espírita branca, José Garcia punha-se então a cantar o Magnificat, purificando e
fortalecendo o yagé que o purificará e o fortalecerá.
Graças a isso ele podia enxergar o interior dos corpos e as intenções secre
tas dos outros. Exatamente como um xamã índio, quando tomava yagé José Gar
cia tomava-se delicado e aberto aos ataques. Ao beber o yagé e penetrar em seu
mundo ele precisava ser capaz de se defender. Ele fez essa descrição, ao explicar
como combinava o yagé com aquilo que Caimela lhe ensinara.
O yagé me dá o poder de trabalhar, não é? Vou lhe contar uma história. Certa vez que
tomei yagé vi uma vizinha de nossa fazenda nova tentando subir em uma árvore muito fina,
mas sem conseguir (essa mulher era mãe da jovem com quem ele rompeu o noivado no
inicio de 1960). "Pobre mulher... pobre mulhei; ela não consegue subir", disse eu a mim
mesmo, mas sem conseguir entender o que aquilo significava. "Essa árvore í muito fina,
ela nãò vai poder subir", eu disse. "Pobre velha." Aquilo fazia parte da visão do yagé, não é
mesmo?
Depois disso tomei yagé uma outra noite. Era muito forte. Eu estava com o amigo
Santiago. A chuma (embriaguez) do yagé pegou para valer. Foi muito bonito, eu estava
atuando de fato quando voltei a ver aquela velha. Eu estava de costas para ela. A velha se
aproximou e derramou um pouco de água nas minhas costas. Era uma água muito limpa.
Uma chuma terrivelmente forte se apoderou de mim. Virgen Sanlísima! Senti que estava
morrendo... que exaustão, que tenor! Era uma coisa tão forte que eu não tinha a menor
idéia do que fazer
Então, como eu tinha meus próprias remédios, disse a mim mesmo: "Conheço essa
mulher, ela está atrás de mim e eu sei quem ela é". Eu estava na minha fazenda. Sabia quem
estava praticando o mal contra mim. Nesse momento peguei uma garrafa de álcool, meus
remédios e me massageei com eles. Acendi incenso e seu cheiro me fez tossir. Esconjurei,
em nome do Senhor. E assim que a gente cura.
Dai pedi ao amigo Santiago um galho de urtiga e comecei a bater ele em todo meu
corpo com muita força. A chuma foi embora, sabe? Em outras palavras, o mal se dissipou.
E foi uma linda pinta (visão) que me curou, ouviu? Naquela noite vi que eles esta
vam fazendo mal para mim. Tentaram matar todo meu gado. Vi a velha que fez mal para
mim, com a intenção de que um dia todos nós morreríamos. Pedi a Deus e à Virgen Santi-
sima que me ajudassem, me concentrei e comecei a me curar. Ganhei força, mas não conse
gui entrar na casa dela para poder curar minha fazenda.
Rezei e rezei até ter a capacidade de me concentrar na casa dela. Então tive condição
de limpar todas aquelas coisas más que ela jogou no meu gado. Ela tinha poder e conhecia
aquilo tudo. Bem, Deus me assistiu e eu fiz a cura bem lá na casa de Santiago. Foi uma cura
espiritual. Peguei todas as coisas más, entrei na casa dela, voltei e tornei a fazer. Assim, ao
curar, vi que não estava enfeitiçando ela; não prejudiquei ninguém, apenas me certifiquei de
que não tinha ficado nenhum feitiço para trás, que tudo estava de volta para ela e que ficaria
por lá, deixando ela ás voltas com aquilo.
Ao voltar para casa ele contou a Rosário o que havia acontecido. “Conhece
aquela mulher?”, perguntou. “Sim”, respondeu Rosário, “conheço, sim Ela sabe
como fazer o mal!”. Rosário, porém, mostrou-se cética, e José Garcia disse-lhe
que iria procurar Lydia, aquela mulher que adivinhava por meio do baralho. Esta
confirmou tudo o que ele havia visto na companhia do índio.
153
Daí a algunS dias, segundo ele me contou, Rosário ficou assustada com a
braveza do gado, o que dificultava a ordenha. José Garcia disse que o iria curar.
Ao chegar ao pasto deparou com sinais de feitiçaria. Aturdido, começou a traba
lhar imediatamente com seus remédios e o incenso. À tarde apressou-se em ir até a
casa de Santiago, mas a preocupação era tanta que se esqueceu dc levar os pró
prios remédios. Naquela noite tomaram yagé.
Quando a chuma chegou — que chumal Virgen Santísimal Pensei que estava mor
rendo! Que exaustão. Eu vomitava sem parar e não podia fazer nada. Senti-me dominado
pelas substâncias da feitiçaria. Não conseguia fazer nada, estava a ponto de morrer. Então
pedi ao amigo Santiago: ‘Tem incenso? Pelo amor de Deus, me dê um pouco'*. Ele, porém,
disse que não tinha nem sequer um grão. Dal tive a sensação de que eu ia engasgar até
morrer. Estava sem meus remédios; era o fim. Trabalhei sem parar na chuma do yagé, mas
sem resultado. Eu tinha perdido todo meu poder para a feitiçaria.
Pedi um pouco de ortiga a Santiago. “Pegue o quanto você quiser“, disse ele. Agarrei
um belo galho, assoprei nele e o curei. Curei a ortiga para valer... Então purifiquei, me
curei. Cantava sem parar, me limpava, rezava e batia a ortiga em meu corpo, mas com
força, com muita força!
Daí tudo começou a clarear. As coisas estavam indo embora. Mais uma vez as visões
mais feias se afastavam, a força da feitiçaria me deixava. E vi minha fazenda mais bonita
do que nunca.
Fui envolvido por uma linda visão. Olhei para mim mesmo e vi a feidçaria em três
lugares. Aquilo era uma força, uma força para me esmagar, para me obrigar a abandonar a
esperança de que não valia a pena cuidar de minha fazenda e que seria melhor desistir dela.
Era disso que se tratava, mas consegui me curar. Deus me ajudou. A velha não conseguiu
me atingir. Ela é uma feiticeira. Em breve vai querer me matat; mas não conseguirá.
Daí a mais ou menos um ano, em 1978, Santiago ficou doente. Perdeu a
visão de um olho, enquanto pescava á noite, e começou a sentir tonturas. Não
conseguia ficar de pé sem vomitar. Suas pernas incharam A morte parecia imi
nente. Ficava sozinho, entoando canções de cura, baixinho, mas, quando tomava
yagé, ou não via nada ou tinha visões de milhares de espinhos de ouriços, muito
eriçados, como acontece quando o animal está se defendendo. Eles entravam em
sua boca, engasgando-o, e em seus olhos, cegando-o.
E isso sob a influência do yagé! Que exaustão isso provoca! E as cobras, rãs, lagar
tos, jacarés... dentro de meu corpo... E ninguém conseguia tirá-los de lá! Quando eu tomava
yagé era só o que eu via. Só isso.
Mas quando a gente não está doente vê coisas lindas; pássaros de todas as cores, tão
belas como quando a gente vê um bonito tecido e diz: “Oh! gosto deste tecido. Tem cores
maravilhosas!“. Então uma pessoa está vendo de verdade e dificilmente sente que está bêbado.
A casa dele estava repleta de gente, sobretudo de índios, que bebiam cerveja
de milho e de mandioca e, de vez em quando, se entregavam a especulações: quem
o enfeitiçara e por quê? Seria um outro xamã que usava yagé e apenas yagé? Ou
seria uma feitiçaria que incluía a magia e, portanto, passível de estar acima dos
poderes do yagé?
154
José Garcia subiu a montanha até Pasto, a fim de consultar-se com a irmã
Carmela, e levou uma vela que havia sacudido por cima do corpo de Santiago.
Ela confirmou as suspeitas que circulavam na região onde ele morava: Esteban,
um índio Ingano da serra, xamã originário do vale do Sibundoy, enfeitiçara San
tiago, usando ao mesmo tempo a magia e o yagé.
A inimizade existente entre Santiago e Esteban pareceu-me enfocar e am
pliar muitas das tensões provocadas pela expansão da economia nacional na re
gião das fronteiras, operando em uma esfera pouco habitual, isto é, a transformação
do poder mágico e da aura mágica da “indianidade” em mercadoria. Durante
muitos anos xamãs índios da serra, originários do vale do Sibundoy, índioã In-
gano tais como Esteban, ganharam a vida percorrendo as pequenas cidades e
aldeias da Colômbia, onde vendiam aos brancos e negros ervas medicinais, amu
letos, estampas de santos católicos, livros deencantamentos mágicos e seus ser
viços de curadores populares. Hoje os índios xamãs do vale do Sibundoy chegam
até mesmo a Venezuela, onde o dinheiro é mais abundante do que na Colômbia, e
alguns deles, segundo os padrões dos camponeses locais, se tomaram ricos. Ro
sário os comparou com os índios das regiões dos contrafortes e das planícies, os
quais, disse ela, ignoram a magia e conhecem unicamente suas plantas medici
nais, seu yagé e seus próprios tipos de feitiçaria.
“Mas os índios da serra”, disse ela, referindo-se a curandeiros como Este
ban, do vale do Sibundoy, “conhecem outro sistema, que dá mais dinheiro para
outra pessoa, sabe? Eles atravessam a fronteira que separa as nações e vão de um
lugar a outro, com seus frutos, suas castanhas e outras coisas, dizendo que sabem
curar, quando na verdade são uns charlatães. São astuciosos como ninguém! Gra
ças a isto conseguem juntar um bom dinheiro. Vão até a Venezuela, ao Peru... O
sistema deles é diferente porque conseguem o dinheiro com mais facilidade e
porque a cura deles é uma mentira e não passa de um jeito de enriquecerem fazendo
sujeiras!".
“E os índios da planície não fazem isso?", perguntei.
“Ah! Não! Não! O povo daqui? Não! Não! Essa gente de que eu falo é
chegada a viajar. Gostam de uma viagem São tão espertos! Vão por aí, dizendo
que sabem curar. E não curam nada! A única coisa que fazem é mistificar e
enfeitiçar!”
É provável que os índios Ingano do vale do Sibundoy tenham sido curan
deiros itinerantes há vários séculos. Frank Salomon descreveu um julgamento,
levado a efeito por funcionários espanhóis em 1727, que envolvia um índio da
serra, originário de uma aldeia situada nas vizinhanças de Pasto, acusado de enfeiti
çar seis parentes e um funcionário espanhol. As testemunhas atribuíram a sobre
vivência deles a um curandeiro de Sibundoy, que recorreu a uma planta que
provocava visões, provavelmente o yagé* Ao desempenhar semelhante papel, é
provável que os curandeiros do Sibundoy agissem como mediadores de um sis-
155
tema pan-andino de cura e de crença mágicas, que atribuía aos índios da selva,
habitantes dos contrafortes e das planícies, poderes xamânicos especiais. Era possí
vel recorrer a eles por intermédio dos moradores da serra ou através da mediação
dos índios que moravam entre a serra e a planície, tais como os Sibundoy.
Hoje, em todos os lugares por onde passam e obtêm clientes, é sua imagem
mítica de índios na posse de poderes ocultos que lhes garante o sucesso. No entanto,
nem todos os índios da Colômbia fazem o mesmo que os curandeiros do Sibun
doy. Eles possuem confiança e um orgulho enorme, pois estão fora do alcance de
contra-ataques mágicos, graças a sua habilidade e ao conhecimento do yagé e das
visões que este provoca ou — o que é mais provável — porque simplesmente
insinuam que as coisas se passam assim. Para isso apóiam-se na existência dos
xamãs da região dos contrafortes ou da planície, não apenas no que se refere ao
yagé, que cresce apenas abaixo do vale, mas no poder supostamente superior dos
xamãs, os quais em outras circunstâncias estão abaixo deles, no sentido literal e
figurado. As sementes da discórdia entre xamãs como Esteban, no vale do Sibun
doy, e Santiago, que habita mais abaixo, nos contrafortes, são plantadas neste
solo de contradições peculiares, mas muito firmes, as quais provavelmente ad
quirem intensidade na medida em que oportunidades de um mercado cada vez
mais amplo favorecem a capacidade dos xamãs do Sibundoy de ganharem mais
dinheiro e fama do que os da planície. Por ocasião de suas jornadas de cura, os
raizeiros e xamãs do Sibundoy se deparam com um amplo espectro de técnicas de
cura e de fantasias demonológicas ocultas nas ansiedades de um povo mais dire
tamente integrado á sociedade nacional do que eles. Tomam-se mais cosmopoli
tas do que os xamãs da planície, isolados em um bolsão muito remoto da nação;
aperfeiçoam tanto o discurso da magia, baseada em um pacto com Satanás,
quanto o uso de sua imagem como indios misticamente revestidos de poder.
Prisioneiros de sua imagem de pagãos que têm laços inerentes ao oculto,
eles ganham a vida a partir dessa imagem, assegurando sua vitalidade na imagi
nação popular da nação e para além dela. No entanto, para se apropriarem e se
aproveitarem amplamente dessa imagem, os xamãs itinerantes do Sibundoy, tais
como Esteban, não apenas necessitam do yagé — e, talvez, dos serviços rituais
— dos xamãs da planície, tais como Santiago; necessitam também dos xamãs da
planície como objetos míticos, a fim de realizar aquela mitologia, colonialmente
inspirada, que confere o poder pagão.
Nem é preciso dizer que os xamãs da planície não se sentem satisfeitos com
isso. De modo geral desconfiam dos xamãs da serra e até mesmo os desprezam.
Consideram-nos trapaceiros e inferiores, excetuando sua capacidade de praticar o
mal por meio da magia e de capachos, isto é, pacotes de feitiçaria. Tudo isto
culmina com a questão do fornecimento do yagé aos xamãs da serra, ao que se
sabe cada vez mais escasso. Os habitantes da planície, tal como Santiago, relu
tam em vender-lhes yagé, e ele se mostrou inflexível diante das solicitações de
Esteban. Os moradores da planície com quem conversei receiam que, com o
156
yagé, a gente da serra poderá misturá-lo com a magia e os dominará. Graças a
isso, entre outras coisas, terá um suprimento garantido de yagé. Por outro lado,
recusar seu pedido poderá resultar em morte pela magia daquela mesma gente.
É, segundo se imagina, a triste sorte que se abateu sobre Santiago.
À medida que a saúde de Santiago se deteriorava até alcançar a iminência
da morte, José Garcia envolveu-se como nunca. Até então fora um paciente e
uma espécie de discípulo, que lutava o tempo todo para livTar-se da feitiçaria.
Agora ele era convocado para curar seu mentor.
Certa tarde fui até a casa dele. Estava terrivelmente bêbado e sua mulher implorou-
me que o curasse. Contou que ele estava muito mau humorado em relação a ela e a todo
mundo. Ficamos lá sentados, conversando, bebendo e, quando caiu a noite, Santiago disse
que todos nós tomaríamos yagé — ele, seu sobrinho, seu genro e eu. “Ótimo, estamos todos
aqui”, observou.
Ele serviu o yagé, cantou para ele e deu a cada pessoa um copo cheio, mas esqueceu-
se de mim. Então lembrou-se e me serviu o copo mais cheio que eu já tomara até então.
“Ah!“, eu disse, “em nome da Santa Virgem isso há de fazer alguma coisa“. Consagrei o
yagé, invoquei Deus e os espíritos dos xamãs índios, Tomás Becerra e Andrés Hinchoa, para
que viessem me ajudar, para que curassem aquele yagé, em nome de Tomás Becerra, e assim
por diante, pois eram dos melhores bebedores de yagé. Enlão Santiago disse; “Mas quem vai
cantar? Ninguém? Bom, cante o senhor, Don José! Não vive cantando só pata o senhor,
debaixo desse poncho? Durante o tempo todo em que tomou yagé aqui ficou cantando e
curando, escondido debaixo de seu poncho, não é mesmo? Pois então agora se mostre, para
vermos se sabe de fato ou não!“.
"Muito bem, senor”, respondi, “é o que faremos". Naquele mesmo instante ele caiu
no chão, como se estivesse morto. Nós nos levantamos is pressas e deitamos ele em sua
rede, mas ele ficou como se estivesse morto. Apenas suas mãos se mexiam. Estava mudo,
só falava com as mãos. Os outros acharam que ele ia morrer. Seu genro me implorou para
que eu tentasse curá-lo. Então o yagé estava me pegando. Peguei um leque de cura c come
cei a curar. A chuma estava chegando em mim. Era lindo e eu comecei a ver em que estado
a casa se encontrava. Era um cemitério e estava tendo um enterro. O que estava aconte
cendo era uma total aniquilação. Muito bem! Ocupei-me com meus remédios, a chuma
pegou todo mundo e foi terrível! O genro dele chorava. "Don José, por favor, por favor,
venha me curar porque eu estou morrendo!" Dcbrucci-me sobreele e exorcizei, limpando,
varrendo, chupando. Foi a mesma coisa com o sobrinho dele. Foi terrível. Eu ia de um para
outro e voltava. Eles logo melhoraram e eu fui atender o amigo Santiago. Trabalhei com ele
até as três da madrugada e enlão ele começou a reviver, a falar de novo. "Sim, ha, ha, ha!"
Ele assoviava e gritava. “Nós não somos qualquer um, Don José”, ele dizia. “Nós sabemos,
não é mesmo, Don José?” Daí então voltava a ficar inconsciente. “Nós sabemos. Eles não
podem nos pegar! Não é mesmo, Don José?“ Ele também viu o cemitério inteiro. "Ave
Maria", disse, “os mortos estão apodrecendo em todos os lugares". Outros agonizavam, a
ponto de morrer. A casa inteira era uma sepultura. Ave Maria!
Continuamos a tomar yagé. Finalmente ele disse: "Muito bem. Voltem na terça-feira.
Se eles vão nos matar; então eles também morrerão!”.
Na terça-feira voltamos a tomar yagé e ele começava a cantar quando, de repente,
declarou que tinha uma doença bem no fundo dele e que ia pata a outra sala, para ver se podia
curá-la! Levou o leque de cura e podíamos ouvir ele cantando. De repente a vela se apagou
e ficou tudo na mais completa escuridão. Figuei lá, nervoso, assustado, certo de que estava
para morrer. O amigo Santiago calou-se. Parou de cantar. Curei-me com meus remédios,
que passei por todo o meu corpo, assoprando incenso. Acabei melhorando daí a mais ou
menos uma hora. Quando minha força voltou comecci a cantar e curar os outros. Cantava e
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curava, cantava e curava. "Ah, Don José", disse Santiago, “parece que eles estão querendo
nos matai; não? Mas eles não vão conseguir! Portanto, vamos tomar mais um pouco e daí
veremos se eles têm poder para isso! Tome mais yag/1".
Tomamos mais um copo e quando a chuma chegou ele voltou a cair no chão. Dessa
vez durou uma hora e meia. Ele levantou, começou a cantar e disse: “Na sexta-feira tomare
mos mais um pouco”. Na sexta-feira voltei à casa dele e a chuma foi boa. Pui até Pasto e
trouxe de lá água-benta e incenso. Curei o gado, fui uma segunda vez a Pasto, e a irmã
Carme la me deu remédios para eu levar a Santiago. As coisas ficaram assim.
A doença de Santiago cedeu muito pouco até que, decorrido um mês, o
mais apreciado xamã da região dos contrafortes do Putumayo veio e o curou. Era
Salvador, filho de uma índia Cofán e de um branco, um cauchero (pequeno co
merciante de borracha) da região serrana de Narino, que deixara o meninozinho
com os índios. Há muito esperávamos que Salvador aparecesse. Sua jornada foi
muito demorada e ele precisava colher rapidamente o arroz, devido à época das
chuvas que se aproximava. Foi a notícia que chegou até nós, enquanto esperáva
mos um dia após outro. Santiago, enquanto isso, cantarolava para si mesmo sua
canção de cura, e o restante das pessoas bebia a maior parte do tempo. O motivo
verdadeiro pelo qual Salvador não aparecia, de acordo com Santiago, era o fato
de que sua mulher estava receosa. Preocupava-se com sua voz e sua saúde deli
cadas, com todos aqueles índios Ingano que viviam nas proximidades de Mocoa
e se embebedavam sem parar, como sempre fazem, ao passo que os Cofán mal
bebem chicha. “Ela sabe que se ele vier aqui vai beber e então ficará doente. É
esse o problema", suspirou Santiago. Ele finalmente apareceu, acompanhado de
sua mulher e da mãe dela, a mama sefiora, viúva de um xamã Siona. A mama
senora é muito velha, toma yagé sem que nada lhe aconteça e canta lindamente,
disse-me Santiago. É ela e unicamente ela quem prepara uma chicha muito espe
cial, feita de abacaxi, milho e mandioca, que Salvador oferece aos animais, os
quais, por intermédio de suas cantigas de yagé, atrai para os caçadores. Mais
tarde me contaram que vieram muitas outras pessoas para a cura com yagé, que
durou três noites, e a maior parte delas tomava a bebida. A mama senora também
cantou; mi novia (minha noiva), eis como Santiago se referia a ela, com uma
risada zombeteira. Dom Apolinar também cantou. Era um velho xamã Core-
guaje, sogro de uma das filhas de Santiago, e viera da província de Caquetá. Era
uma viagem árdua e até mesmo perigosa, devido às ações que o Exército colom
biano desencadeava lá contra as guerrilhas.
Santiago melhorou consideravelmente, a não ser por seu olho. Porém não
ficou claro o que acontecera de fato com ele ou o que Salvador dissera sobre a
causa de sua doença. Seria yagé misturado com magia, segundo dissera a irmã
Carmela e José Garcia repetira? Seria culpa de Esteban? Todo mundo dissera
algo diferente. À medida que o tempo se passasse, todos modificariam o que
haviam dito.
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Quando voltei daí a um ano, no início de 1979, verifiquei que muita coisa
mudara. Santiago estava bastante bem e ativo, mas Salvador morrera, e Rosário,
a mulher de José Garcia, encontrava-se muito doente. O sobrinho de Salvador
declarou que ele morrera em razão de ter perdido o poder, através das muitas
curas que fez para muite gente de fora, sobretudo brancos e negros. Assim, tor
nou-se poluído e incapaz de lidar com os ataques de feitiçaria dos xamãs índios
da região do rio Napo, no Equador. Rosário tinha virtualmente paralisados o
braço e a pema direitos. O braço direito se agitava, e sua fala era ininteligível.
Ela parecia desolada e triste. Sem a menor expressão em sua voz, afirmava que o
espírito do homem de quem fora noiva aos 16 anos, e que morrera em um aci
dente de caminhão, viera assombrá-la e sentava-se em seu ombro direito.
Essa fase de doença começou em 1978, segundo ela me contou, quando surgi
ram problemas em um dos sítios do casal. Foram roubadas cabeças de gado, e ela
teve que trabalhar arduamente na ordenha, enquanto José Garcia e seu filho iam
à procura dos animais. Contraiu pneumonia por ocasião de um temporal e foi
tratada com antibióticos por um dos médicos locais. Experimentou um certo alí
vio, mas começou a sentir-se pesada, com dores de cabeça, a que se seguiu uma
paralisia gradual. Voltou a ser tratada pelo mesmo médico, que lhe deu tranqüili
zantes, até que Lydia, aquela velha amiga do casal que adivinhava por meio do
baralho, convenceu-os a procurar tratamento na capital, Bogotá, onde o diagnós
tico foi um derrame cerebral. Recebeu os cuidados necessários, voltou para casa
e não conseguia parar de chorar, segundo me disse sua filha. Voltou a Bogotá e
ali procurou vários médicos. Um médium espírita disse-lhe que sua doença era
parcialmente devida a Deus (uma causa natural) e, em parte, á feitiçaria, agindo
juntamente com a causa “natural".
Então Lydia, a adivinha responsável por apresentá-los à irmã Carmela em
Pasto, em 1973, graças a que eles ingressaram no caminho da riqueza, trabalhou
mais uma vez com seu baralho e adivinhou que a doença de Rosário era obra da
irmã Carmela! Esta evocara o espírito do noivo de Rosário, morto havia tanto
tempo, para atuar como um poder malévolo.
Rosário e José Garcia lembraram-se então que Carmela sempre insistira que
os poderes dele, tais como foram desenvolvidos em associação com a irmã, eram
destinados ao bem da humanidade; ela também afirmava que ele estava adqui
rindo um número muito grande de cabeças de gado, muitos sítios e deveria dar os
animais e as terras para os pobres, guardando apenas uma pequena parte para si.
Carmela se voltara contra ele porque ele se negava a fazer isso, contou-me o
casal com muita calma. Ao mesmo tempo, acrescentou José Garcia, Carmela
sentia inveja de seu sucesso e agia movida pelo despeito.
O próprio José Garcia entendia seus poderes de cura em termos que corres
pondiam à denúncia que Carmela fizera de seu sucesso material. Por exemplo, há
pouco mais de um ano ele fizera o seguinte pronunciamento:
159
Sim! Eu vi a grandeza deste mundo. É algo de que a gente se lembra, leva em conta e
conduz sua vida de acordo com isso. É por este motivo que Deus me ajuda. Deus me
escolheu especialmente, para eu ser bem-sucedidoem tudo aquilo que eu desejar, mas não
em excesso: fazer grandes coisas, realizar grandes curas... de acordo com minha fé e com o
modo como me comporto. Mas sabe que tudo isto não me pertence? Sou apenas o adminis
trador dos bens deste mundo. Não tenho nenhum orgulho, não sou como aquelas pessoas
ricas a quem a gente cumprimenta e que nem sequer respondem. Sou apenas um adminis
trador. O dia que o Pai quisei; ele me chamará à sua presença para que eu preste conta de
tudo: “Venha, mayordomol Vamos prestar contas!“.
Este sentimento cristão anticapitalista, que corre paralelo à acumulação e posse
da riqueza, é igualmente reforçado por outros aspectos de sua filosofia enquanto
curador:
• O quadro do mundo, evocado por este texto, nos remete a uma ha-
cienda feudal, na qual Deus é o senhor e José Garcia o mayordomo —
um mordomo que cuida dos domínios de Deus e não um proprietário
dos bens deste mundo. Um impulso importante, por detrás da credibili
dade desse quadro ou cosmologia, reside no fato de que José Garcia
“viu a grandeza deste mundo”, lembrou-se dela e a levou em considera
ção. Isto tomou-se patente de modo extremamente vigoroso pelo fato de
ele tomar yagé, um remédio e um ritual indígenas. A inter-ligação orgâ
nica deste quadro do mundo pressupõe uma hierarquia de reciprocida-
des que ascendem ao Ente Supremo.
Nessa hierarquia um curador como José Garcia se vê como participante
de uma relação de troca com Deus, a Virgem, os santos católicos popu
lares e os espíritos dos xamãs índios mortos. Seu poder deriva dessa
cadeia de trocas recíprocas, uma cadeia que evoca um passado tomado
mítico, por meio das gerações de santos e de xamãs índios. É o poder
que pode curar a doença e combater a feitiçaria, conforme depreende
mos quando José Garcia descreve este tipo de canto:
Não canto como os xamãs, mas canto uma outra cantiga que vem com o yagé; por
exemplo, com uma música que ouço. O próprio yagé nos ensina o que cantar... baixo ou
alto e dai por diante. Você vê as orações, mas são orações cantadas... com o cântico do
yagé. Assim, você faz sua cura através disso; cantando... por exemplo o Magnificat. Você
canta o Magnificat sob a influência do yagé, curando os doentes, ou sob a influência da
quele que está curando. O Magnificat tem a seguinte letra: “Minha alma está repleta da
graça que emana do Senhor e meu espírito se eleva a Deus, meu Salvador. À luz de Seus
olhos, agora todas as gerações dizem-me: 'Sejas bem-vindo!’, pois, em mim, grandes coisas
se fizeram e, em mim, está o poder onipotente, cuja misericórdia se estende de geração em
geração para aqueles que o temem; de meu coração seus braços se estendem para todos os
necessitados. Livrai-vos dos poderosos; elevai os humildes. Enchei os famintos de bens e
dispensai os ricos, sem nada lhes dar. Em memória de Vossa compaixão, por terdes tomado
Israel como Vosso servo, de acordo com Vossas promessas, feitas a nossos pais, Abraão e
seus descendentes, por todos os séculos dos séculos... Amém“.
É isso o que eu canto, bêbado com yagé. Canto o Magnificat, curo e limpo. Com isso
a gente pode curar a feitiçaria, por mais séria que ela seja. Com isso a gente está cantando,
entoa o Magnificat, com isso a gente acalma a doença.
160
(Entre as classes populares, no Peru inteiro, escreveu Hermillio Valdizán,
juntamente com Angel Maldonado, em sua obra La medicina popular peruana,
impressa em 1922, ocorre um grande número de crenças, mais comuns entre os
brancos e mestiços do que entre os índios, relacionadas com os perturbados espí
ritos do purgatório. Quando tudo o mais fracassa, no sentido de afastar esses
espíritos, quando eles, em conseqüência, são os verdadeiros condenados e, possi
velmente, pertencem ao próprio demônio, então é preciso cantar o Magnificat.
Os autores transcrevem os versos finais: “Despossuí os poderosos; elevai os hu
mildes. Enchei os necessitados de bens, deixai os ricos sem nada... Gloria al
Padre y al Hijo".*)
• A ênfase que o cristianismo coloca na virtude da caridade e na negação
dos bens deste mundo emparelha-se com a necessidade que o curador
tem de atender os pobres. Um homem como Santiago jamais seria sufi
cientemente hipócrita para se incomodar com um discurso de negação
dos bens mundanos. Ele os ama. Seu apetite é rabelaisiano. Quanto
mais, melhor, e ele não aceita aquele servilismo que José Garcia, o
espírito branco piedoso, demonstra. No entanto Santiago não se consi
deraria menos cristão ou menos sujeito às manobras do invejoso.
O subtexto desse atendimento ao pobre é o campo cósmico subconsciente
de vícios e virtudes, nos quais o curador adquire poder através da luta contra o
mal. O poder do curador diz respeito a um relacionamento dialético com a doença e
o infortúnio. O mal confere poder e é por isso que um curador por necessidade
atende os “pobres", ou seja, aquelas pessoas economicamente pobres e atingidas
pelo infortúnio. Desse modo é possível compreender a relação entre Deus e o
diabo, pois eles não se colocam apenas em oposição, mas em uma sinergia mu
tuamente fortalecedora. A percepção que Dante tem do paraíso só é alcançada
graças e após a jornada que ele fez ao inferno, onde encontrou Satanás (e, tendo
em vista nossos propósitos, convém notar que Dante realizou essa jornada acom
panhado de um guia pagão — leia-se um “curador" ou “xamã" —, proveniente
de um passado pré-cristão).
No entanto essa necessidade de descer e imergir na luta contra o mal pode
ser autodestrutiva. A vida de um curador se equilibra no limite dessa estratégia, e
é por isso que ele sempre precisa fazer uma aliança com um curador mais pode
roso. José Garcia os encontrou na pessoa da irmã Carmela, na cidade da mon
tanha e no xamã índio, Santiago, na borda das florestas da planície. O mais
poderoso curador poderá, no entanto, matá-lo.
• De todas as reciprocidades existentes nesse quadro orgânico do mundo,
com sua hierarquia de formas e emaranhado dialético do bem e do mal,
a que mais ressalta é aquela que ocorre entre o cristianismo e o paga
nismo, equivalente àquela que se dá entre Deus e o demônio. Os pode
res de José Garcia derivam dessa reciprocidade de contrários. É uma
antifonia, estabelecida em sua particularidade concreta, bem como em
161
suas abstrações harmoniosamente cadenciadas, pela conquista européia
do Novo Mundo, ocorrida alguns séculos antes, como se pode testemu
nhar, por exemplo, nos escritos dos franciscanos, que abriam as trilhas
para Cristo nas selvas ao leste de Quito e Pasto. Além do mais, essa
antifonia provavelmente existia na sociedade transandina antes da che
gada dos espanhóis, bem como na relação entre os habitantes do alti
plano, no império Inca, e os índios das florestas.
É naquilo que, com muita hesitação, podemos denominar a “lógica” da cura
e da história de vida de José Garcia (conforme ele a narra) que podemos ver essa
moldagem de oposições, esse crescimento de um esplendor apocalíptico atiçado
pelas oposições. No entanto, com outros povoadores da floresta, bem como com
Manuel Gómez, um velho conhecido meu do rio Guaymuez, essa padronização
pode assumir uma expressão mais vividamente explícita, tal como ocorreu na
visão que Manuel teve, ao tomar o yagé. Nela um xamã índio, que distribuía o
yagé, foi visto transformando-se numa onça e, em seguida, no demônio. Então
Manuel morreu, e em sua ascensão ao céu, tal como se deu no Paradiso de
Dante, ele alcançou a glória, após transcender o mal, ganhou as bênçãos do Se
nhor, foi curado e obteve algo mais do que uma simples cura.
Ao enfrentar a feitiçaria da magiapraticada contra ele há muitos anos, José
Garcia tomou-se não somente um curador, que podia transformar o mal; tomou-
se também um homem rico aos olhos de seus vizinhos. Em uma sociedade na
qual as pressões a favor da acumulação individual do capital encontram a oposi
ção daforça da inveja, contra-hegemônica, sua carreira de homem empreendedor
exigiu o desenvolvimento de sua capacidade espiritual de cura, em um ritmo cada
vez mais arrebatado, de tal modo que ele pudesse resistir ás farpas dessa inveja.
Finalmente, conforme ele já dissera em uma ocasião, chegara o dia em que
seu pai o chamou: “Venha, mayordomo! Vamos prestar contas”.
Desde o início da doença de Rosário, José Garcia parou de tomar yagé e de
visitar Santiago. Rosário sempre se mostrara cética e talvez um tanto temerosa
pelo fato de ele confraternizar com os índios e, sobretudo, tomar yagé. Carmela,
bem como outros médiuns, freqüentemente o preveniam em relação ao fato de
ele exceder-se no consumo do yagé. Agora ele também parecia assustado.
Lydia disse-lhe que parasse ou que o tomasse raramente, pois quando al
guém está bien chumado os outros tomadores de yagé “jogam" uma feitiçaria
nele. “Certa vez caí no chão”, ele me confidenciou. “Don Santiago bateu em mim
com galhos de urtiga. Tomei um copo cheio e vi alguns índios de um lugar distante
do Putumayo, com os rostos pintados de achiote. Eram eles que tinham feito
aquilo comigo!” “De uma outra vez", ele prosseguiu, “um vento forte soprou,
vindo não se sabe de onde. Chegou a apagar a vela. Estranho... Cantei o Magnifi-
cat. Defendi-me. Continuamos a curar".
Rosário ouviu falar de famoso médico de Popayán, uma cidade serrana ao
162
noite de Pasto. Ela e José Garcia foram consultar-se com ele várias vezes. O
tratamento era doloroso. Segundo ela, o médico aplicou injeções em sua língua
em várias ocasiões. Era também um tratamento caríssimo. Formado por uma
universidade renomada, o médico aprendera sua especialidade na Rússia e em
muitos outros países estrangeiros, frisava Rosário. Então ela ficou conhecendo
uma médium espírita nova no Putumayo, uma mulher branca do Brasil, que não
permitia contatos pessoais. Rosário comunicava-se com ela através de uma inter
mediária, amiga de ambas. A brazilera conseguiu livrar Rosário do espírito que
flutuava em seu ombro direito. Afirmou que Carmela havia provocado a doença
de Rosário por meio da magia e acrescentou que ela também era a culpada pelo
fato de Santiago ter estado à morte. Era por isso que ele ainda padecia de can
saço, vertigens e tinha um problema em um dos olhos. Devo acrescentar, a esta
altura, que Carmela (grande amiga do bispo, conforme José Garcia dissera),
havia alguns meses, fora mandada embora de Pasto graças aos esforços combina
dos de médicos, da polícia e da Igreja e lutava para manter-se em uma pequena
aldeia situada a alguns quilômetros da cidade. Sua estrela se apagara, pelo menos
no momento.
Tentei convencer José Garcia a acompanhar-me a visitar Santiago, mas ele
se recusou. Assim, seu filho, Pedro, foi em minha companhia. Seguimos pela
trilha e entramos na floresta, quando a noite caía. Ele tinha 14 anos e tomava
yagé desde os oito. Passamos pela fazenda de seu pai. O garoto contou-me que o
gado, bem como as bananas e outros produtos agrícolas, sempre corria o risco de
ser roubado. Recentemente seu pai fora atacado por um trabalhador que pedira
um salário maior e revidou com seu facão. O trabalhador foi embora, roubou o
cachorro preferido da família, castrou-o e cortou suas orelhas. Ao que parecia,
Pedro temia constantemente a feitiçaria. Por que ele tomava yagé? Ele declarou
que uma pessoa o tomava para ver quem a estava enfeitiçando, para clarear a
própria situação e, ao mesmo tempo, para limpar os males provocados por al
guém Sentia medo de andar por aquele caminho â noite. Ao chegarmos a uma
bifurcação, seguimos pela trilha que entrava na floresta. O sol se punha. Chega
mos ao rio e atravessamos a pinguela feita de bambu e arame, suspensa a nove
metros acima de uma catarata que despencava pelas pedras. Tinha uns três me
tros de largura e precipitava-se por entre as águas reluzentes. Perguntei a Pedro o
que via quando tomava yagé.
“Vi um homem fazendo o que chamamos de brujerias (feitiçaria) em nossa
fazenda", respondeu.
Ele queria ver todo nosso gado morto e nós pedindo esmola. Ele queria que ficásse
mos como eu estava vendo. Daí a pouco vi meu pai, e seus maus amigos queriam ver ele
como se fosse um feiticeiro como eles. Então vi meu pai de cueca, com um rabo (igual ao
do demônio), como se fosse uma corrente, e o resto do corpo nu. Foi o que vi. Os outros
disseram que era assim que o queriam. E riram quando viram o que eu vi. Queriam levar
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meu pai embora. Disseram que queriam que eu visse exatamente daquele jeito, como eles,
fazendo o mal.
Mais tarde a irmã Carmela disse que o homem que eu vira fazendo bnixaria era o
feiticeiro. Ela ouve os espíritos e consegue curar através deles. Ela chama os espíritos...
como o de Tomás Becerra (o xamã índio, já morto, que deu yagé ao pai de Pedro pela
primeira vez).
Mais tarde, tomando yagé, vi meu pai curando a fazenda. A chuma me pegou e me
levou até IÂ. Achei que eu também ia sofrer. Então vi meu pai se transformando em pombo
e, na força do yagé, vi a irmã Carmela e meu tio Antonio, todos vestidos de branco, lim
pando a fazenda.
Certa vez vi a Virgem Maria. Passei para o outro lado e a encontrei parada, como
uma estátua. Rezei e chorei. Daí a pouco a chuma mudou e vi a Virgem como se fosse uma
pessoa igual a qualquer outra. Então chamei meu pai e disse: “Veja! Veja! A Virgem do
Carmo!”. E ele perguntou: “Onde está ela?” Ele também sentiu vontade de chorar, mas
disse para mim: “Não chore. Por que está chorando7 Não está vendo a Virgem do Carmo?”.
E lá estava ela, me abençoando, com um rosário nas mãos. A partir daí a chuma mudou e
não vi mais nada.
Eu estava chorando porque pedia o perdão dela... para todos nós. Então ela me aben
çoou... Meu pai contou que o mesmo aconteceu com ele, só que ele passou por cima de um
abismo, apoiado em um cajado pequenininho. Não conseguia enxergar o fundo do abismo,
mas a Virgem levou ele até o outro lado sem que nada de mal acontecesse.
Pedro fez dois desenhos dessas visões e mais tarde os comentou:
A Virgem
Este é o rio para onde eu ia e que tinha de atravessar. Está é a pinguela de bambu que
eu tinha de atravessar. Quando cheguei na metade quis voltar. Este é o sol que ilumina tudo,
que traz sua luz para o lugar onde estamos. A face do sol está na frente da Virgem. Na
frente do sol está o chão amarelo. Aí está a pena (peanha) e a Virgem está de pé nela. Tudo
isto é a pena. Foi onde eu encontrei a Virgem... parecia uma estátua de santo feita de gesso.
E ela ficou viva, como se fosse uma mulher, e me deu sua bênção.
(O arame farpado na frente do desenho é a cerca de uma fazenda. Ao interrogar Pedro,
pareceu-lhe que a Virgem estava em uma fazenda, no campo onde o gado vai pastar.)
O Feiticeiro
Este desenho consiste de três partes; 1. canto superior esquerdo; 2. canto superior
direito e 3. parte inferior.
1. Este é o rosto de um daqueles índios maus. Vi três, todos com o mesmo rosto,
igual ao dos índios do vale do Sibundoy.
2. Então eu me voltei para a fazenda e vi um vizinho colocando coisas de feitiçaria
(um capacho ou pacote de feitiçaria) dentro do tronco podre de uma árvore.
3. Este homem está vestido apenas com as cuecas, segura o rabo do demônio e uma
vassoura com a mão esquerda e o capacho com a direita. O capacho contém pó de ossos
humanos, retirados do cemitério, tetra do cemitério, cabelo humano etc... É este homem, Sán-
chez (um vizinho), que queria ver meu pai fazendo feitiçaria; queria ver do jeito que viu.
Daí a um ano, no mesmo lugar da estrada e quando o sol se punha, recordei
nossa conversa. Ele voltou-se para mim e tirou uma garrucha debaixo da camisa.
“Sim”, disse “e agora tenho isto”.
164
Perguntei à mãe dele, Rosário, se ela havia pensado em procurar tratamento
com um xamã índio como Santiago. Ela deu um muxoxo. “O índio é um bruto, oíndio não entende nada. Quando se embriagam, peidem a razão; onde quer que
sintam vontade de vomitar, vomitam e então deitam e dormem. Não são como as
pessoas educadas. Os índios... Ha! É por isso que não quero nada com eles. Fico
longe deles...”
“E José, seu marido?", perguntei.
“Bem... ele está contente com Santiago. Aprendeu as idéias deles. Isto me
deixa aflita. Isto me aflige de verdade porque não aceito. Ele está com essa idéia.
São amigos velhos. É o yagé."
“Mas que idéia?”
“É que ele aprendeu os costumes deles, não? O sentimento, o genio (genio
pode significar temperamento, brilho, gênio).
“Lá em Sibundoy”, ela prosseguiu, “tem um índio que sabe falar catorze
línguas. Esqueço o nome dele. É muito capaz. Porém, quando chega o carnaval,
é o índio mais porco que existe. Ele se emporcalha, cai na lama, se suja todo,
dança na lama, cantando. Põe uma daquelas máscaras índias, pois normalmente
usa as roupas de um branco. Aí chega o tempo do carnaval, os índios põem
máscaras de índios, dançam, bebem chicha, brigam, se espojam na lama como
porcos. É por isso que eu digo que educar os índios é um desperdício. Puxa! Ele
fala catorze línguas! Não é pouco!”.
O irmão de Rosário chegou e começou a falar da recente visita dela ao
santuário do Senhor dos Milagres, na cidade de Buga, a centenas de quilômetros
ao noroeste, no vale do rio Cauca, e que é uma região agrícola. Trata-se de um
santuário popular e, de acordo com Rosário e seu irmão, ele se originou ao ser
descoberto por uma lavadeira índia, há muitos e muitos anos, quando ela estava
economizando dinheiro para comprar uma imagem de Cristo. Ela trabalhava na
margem do rio, em Buga, quando chegou a polícia, que levava um homem para a
prisão, devido ao fato de ele não ter pago uma dívida. Compassiva, a índia deu
ao homem o dinheiro necessário para sua liberdade e, ao voltar a lavar roupa,
deparou com um pedaço de madeira que descia o rio. Nele se encontrava escul
pida grosseiramente a figura de Cristo na cruz. Ela o tirou da água e a cada dia
que passava a figura assumia traços cada vez mais perfeitos. O bispo de Popayán
condenou aquilo como uma heresia e enviou gente para queimá-lo. No entanto
ele resistia às chamas, transpirava, assumia uma semelhança cada vez maior, até
que a Igreja reconheceu que se tratava de uma imagem verdadeiramente mila
grosa, descoberta por uma índia para a redenção da sociedade colonial, há milha
res de anos, em um tempo mítico.
165
8
Realismo mágico
O poder do imaginário suscitado pelo infortúnio e sua cura, no caso da doença
de Rosário e José Garcia, é um poder que adquire existência quando uma história
de vida se ajusta como uma alegoria aos mitos da conquista, da selvageria e da
redenção. A esta altura deve ter ficado claro que a fé religiosa e a magia envolvi
das nesse processo não são místicas ou programáticas e, certamente, não consti
tuem uma adesão cega a uma doutrina ofuscante. Constituem, ao contrário, uma
epistemologia imagética que entrelaça a certeza com a dúvida e o desespero com
a esperança, e na qual o sonho — nesse caso o de pobres camponeses — reela-
bora o significado do imaginário de que instituições de classes dirigentes, tais
como a Igreja, se apropriaram, tendo em vista a tarefa de colonizar fantasias
utópicas.
Ao objetivar essa realidade através do real maravilloso ou realismo mágico,
a literatura latino-americana moderna constrói uma ponte de mão única direcio
nada para a literatura oral, mas ainda assim, segundo me parece, encontra dificul
dades em subtrair-se àquela mão pesada contra a qual Alejo Carpentier reagiu, no
surrealismo parisiense — a saber, o esforço de criar a magia onde podia existir
unicamente uma forma metaforizada. O surrealismo congelou o tempo e suprimiu
toda a narrativa das composições previsíveis da realidade burguesa por meio de
formas tiradas dos sonhos e dos artefatos descontextualizados (e, portanto, ainda
mais suneais) do mundo primitivo, tal como ele foi percebido de relance e com
imaginação graças às máscaras africanas e objetos semelhantes exibidos no Tro
ca de to. Pois bem, Carpentier descobriu que não precisava desses artefatos, pois
nas ruas, campos e na história do Haiti o maravilhosamente real o encarava de
frente. Lá tudo isso era vivido, era cultura, maravilhosa e, no entanto, comum.
Sua descoberta do real maravilloso em 1943 traz todas as marcas do pró
prio maravilhoso. Ao descrever como, após voltar de Paris, ele tropeçou nos
fatos ordinários do extraordinário, Alejo Carpentier escreve o seguinte:
166
Isto se tomou particularmente evidente para mim por ocasião de minha estada no
Haiti, ao eftoontrar-me diariamente em contato com aquilo que poderiamos denominar o mara
vilhosamente teaL. Dei-me conta, além do mais, que essa presença e essa foeça do maravilho
samente real não pertencia unicamente ao Haiti, mas constituía um patrimônio de toda a
América, cujo inventário da cosmogonia ainda precisa ser terminado. O maravilhosamente
real é encontrado a cada passo nas vidas daqueles que inscreveram datas na história do
continente e deixaram nomes ainda gerados por ela: os exploradores da Fonte da Eterna
Juventude... Devido à virgindade de sua paisagem, de sua formação, de sua ontologia, da
fantástica presença do índio e do negro, devido i revelação que sua descoberta constituía e
i fecunda síntese que ela favorecia, a América está longe de ter exanrido sua riqueza de
mitologias.1
Mas por que lo real maravilloso toma-se uma categoria tão importante no
consciente das escolas literárias a partir de 1940, após quatrocentos anos de ela
boração de mitos e de magia na cultura latino-americana? O despertar dessa sensi
bilidade para a qualidade mágica da realidade e para o papel do mito na história é,
talvez, uma indicação daquilo que Emst Block denominou “contradições não-
sincrônicas", e é um solo feito para que dele brotem “imagens dialecticiais”, con
forme a terminologia empregada por Walter Benjamin, para quem (e aqui cito o
ensaio de Susan Buck-Morss sobre as notas que ele escreveu em Passagenwerk)
o sonhar coletivo do passado recente surgiu como um gigante adormecido, pronto para ser
despertado pela geração presente, e o poder mítico de ambos os estados de sonho (o da geração
recente e o da geração presente) foram afirmados; o mundo reencantou-se, mas apenas para
romper com o encantamento mítico da história e, na verdade, para reaptopriar-se do poder
conferido aos objetos da cultura de massa, que se tomaram símbolos utópicos do sonho.2
A contradição não-sincrônica ocorre quando mudanças qualitativas no modo
de produção de uma sociedade animam imagens do passado, na esperança de um
futuro melhor. Na Alemanha, o fascismo canalizou essas imagens e essas espe
ranças e, de acordo com Bloch, o empobrecimento da esquerda em relação á
fantasia revolucionária a tomou cúmplice de sua própria derrota. Do mesmo modo
Benjamin censurou seus companheiros da esquerda; o materialismo histórico po
deria tomar-se vitorioso na luta ideológica “se ele acolhesse os serviços da teolo
gia, a qual hoje, conforme sabemos, anda mirrada e precisa ser mantida fora do
alcance do olhar”.3 Ele argumentou que à persistência de formas mais antigas de
produção, no desenvolvimento do capitalismo, correspondiam imagens que en-
tremesclavam o velho e o novo como ideais que transfiguravam a promessa ofe
recida pelo presente, mas que este bloqueava. Essas imagens utópicas, embora
estimuladas pelo presente, reportam-se ao passado de modo radical — aquilo que
Benjamin denominou “pré-história”, isto é, uma sociedade sem classes.4 Os fas
cistas se mostravam dispostos e tinham a capacidade de explorar esses sonhos,
mas isto não significava que o mito e a fantasia fossem necessariamente reacio
nários. Ao contrário, as imagens continham sementes revolucionárias, que o solo
aradopela dialética materialista poderia nutrir e fazer germinar.5
De modo geral na América Latina, a função política da Igreja foi a de atre-
167
lar essas imagens e sonhos coletivos a propósitos sociais reacionários. É aqui
onde a sensibilidade de Carpentier ao mito como experiência da história na con
figuração de um presente em mudança é tão apropriada e necessária ao desenvol
vimento da cultura e da literatura revolucionárias. Este desenvolvimento se relaciona
com o realismo mágico da cultura popular como a única força contra-hegemônica
capaz de confrontar o uso reacionário que a Igreja faz desse mesmo realismo
mágico a fim de o mistificar.
No entanto aqueles que tentam usar tais forças correm o risco de serem
usados por elas. Quando Carpentier enumera os motivos pelos quais “a América
está longe de ter exaurido sua riqueza de mitologias”, precisamos indagar como é
possível nos subtrairmos a seu encanto, principalmente aquele provocado pela
“fantástica presença do índio e do negro”, a própria fantasia por meio da qual o
domínio de uma classe permeia o inconsciente político. No encontro dolorosa
mente romantizado de um xamã índio com o herói europeu de Carpentier, no
romance Los passos perdidos, publicado em 1953, encontramos a promessa e os
fatos da tentativa do sonho revolucionário, no sentido de orquestrar a magia do
realismo com a realidade da magia. É um dos motivos pelos quais achei útil relatar
a história da sorte e do infortúnio, na qual José Garcia, um povoador branco
pobre, talvez um contador de histórias, mas não um romancista, tentou inteceptar
os poderes de um xamã de verdade, cujo dilema — libertar-se de uma mitologia
colonial opressiva, ao mesmo tempo que mantém sua essência — não é menos
grave do que o nosso próprio.
É no entanto a mulher de José Garcia, Rosário, que padece da doença e ela
não freqüenta xamãs. Os índios são brutos! Dançam com suas máscaras, espo
jam-se na lama. Catorze línguas!
Mas ela foi bem longe, atravessou a montanha para visitar o santuário do
Senhor dos Milagres, nosso Senhor que foi entregue a essa nação por uma pobre
índia, há milhares de anos.
Ficando mais do lado do Senhor, descoberto por uma índia, do que do lado
do índio descoberto por seu marido, Rosário não apenas endossava a mitologia
colonial do primitivismo, que enxerga nele não somente o signo do pagão, mas
também o signo do poder — nesse caso, de um poder redentor? No Senhor dos
Milagres, dependurado na cruz, na penumbra da igreja de Buga, não vemos essa
configuração colonial ritualizada e adorada como um poder curativo? Não so
mente os índios e os negros foram identificados com o mal, nas profundezas de
uma estrutura de classes, mediada por brancos que ascendiam à presença do
Divino; só que dessas profundezas emana o poder.
No que se refere ao trabalho manual, às capacidades e á teira, esse poder do
primitivo pode ser apropriado, nesse caso transplantando-o para a mitologia da
conquista, de tal modo que a doença possa ser curada, o futuro adivinhado, as
fazendas e sítios exorcizados, a riqueza obtida e mantida e, acima de tudo, os
168
vizinhos invejosos passam a ser controlados. No entanto, ao contrário do que su
cedia com a terra e a mão-de-obra, esse poder não se encontrava nas mãos dos
índios ou dos negros, mas era projetado neles e em seus seres, muito especial
mente na imagem do xamã. Na tentativa de se apropriar desse poder, vemos
como os conquistadores reificaram sua mitologia relativa ao selvagem pagão,
tomaram-se sujeitos a esse poder e, ao agirem assim, procuraram salvar-se da
civilização que os atormentava, bem como do primitivo nos quais eles projeta
vam seu anti-eu.
Aqui não lidamos tanto com as idéias quanto com o corpo, mediado pelo
reino da imagem Na saga, tal como ela é representada pela infindável procura da
paz e, quem sabe, da redenção, empreendida por Rosário e por José Garcia,
vemos algo mais do que a construção de uma história pessoal que cruza com essa
fetichização e reificação coloniais da selvageria. Vemos mais do que povoadores
camponeses desejosos de obter riqueza, em uma economia política que recorre
ao medo da inveja para enfrentar a acumulação do capital. Vemos também que
em uma doença do corpo se encontra presente uma tentativa corporal de inscre
ver a história da alteridade do corpo que é o eu, uma historiografia experimental,
mas ainda assim salvadora da vida, que se depara com o peso morto do passado
terrivelmente vivo, a exemplo do que ocorre com os ataques desferidos pelos
espíritos intranqüilos (o noivo de Rosário) ou com a feitiçaria praticada por inve
josos. Através do infortúnio e de sua definição mutante, quando se trata de tentar
a cura, essa descrição do eu corpóreo como locus da alteridade inclui-se ineluta-
velmente na troca de poderes mágicos, estabelecida entre os xamãs índios e a
Igreja, uma troca que se dá por intermédio do vigoroso meio das imagens vi
suais. Alucinógenos e pontos de ruptura na vida cotidiana — doença, acidente,
coincidência e penumbra — podem tomar esse reino da imagem manifesto e
manifestamente fortalecedor. Foi tarefa de Rosário atar o poder pagão ao da Igreja,
garantindo por meio dessa circulação de imagens sua solidariedade dialética. Foi
ela quem mediou a circulação social de significados essenciais para a vitalidade
de tais imagens, a partir do xamã, passando por José Garcia e por ela e o Senhor
dos Milagres, no templo oficial de Deus.
Ao santificar uma imagem tal como a do Senhor dos Milagres, a Igreja santi
fica a si própria. A aura de mistério hipnótico, agora assumida pela imagem na
escuridão artificial do templo, revela e ao mesmo tempo oculta essa troca, tão
comum em sociedades como a da Colômbia, onde a descoberta epifanica de santos
e virgens é uma ocorrência freqüente e fonte primária de regeneração do poder
sacerdotal que sustenta a reprodução ideológica e a opressão de classe. Precisa
mente devido a essa apropriação pela Igreja de uma imagem popular como um
tesouro que enfeita o altar, essa imagem se expande através do espaço e do tempo,
como membro da nação universal de santos à espera do dia do julgamento, quando
a luta de classes em tomo dos meios de produção e de troca incluirá os meios de
169
produção e interpretação de imagens. A santificação oficial distorce e reprime a
mensagem política latente na imagem, mas garante a essa imagem uma longa
vida em sua forma material, como uma escultura na qual os primeiros clarões da
alvorada de sua criação popular luzem, repletos de esperança.
Cópias encontram espaço nos lares dos trabalhadores assalariados e dos
camponeses, tecendo uma teia muito fina de ligações com o original. Em mo
mentos de crise essas teias absorvem o choque, liberando-o mais tarde através de
recordações domésticas que reconstroem a história do original para cada novo
presente. A cura popular se apossa respeitosamente da doutrina da Igreja através
dos padres e se apropria dos ícones dependurados nas paredes dos templos, reto
mando para seu próprio uso aquilo de que a Igreja se apropriou, relativo à mito
logia popular extraída dos sonhos dos oprimidos. Então as imagens petrificadas
na pintura e na escultura nascem para a vida, a paitir daquele mistério opaco no
qual a Igreja as velou e as preservou na memória coletiva. Tomam-se seres vivos.
Entram na textura vibrante e contraditória da vida social. A estátua de gesso da
Virgem do Carmo é transformada em uma mulher de verdade, que dá ao filho de
Rosário aquela bênção de que ele necessita tão desesperadamente a fim de resol
ver as contradições que forçam os camponeses a se explorar mutuamente. Ao
conseguir a bênção da Virgem por meio da magia dos índios, seu pai pode conti
nuar a investir um capital fornecido pelo Banco Mundial e obter lucros para os
banqueiros, bem como para ele, do trabalho dos vizinhos pobres,cuja inveja é
controlada magicamente. Existem, porém, limites quanto à capacidade dos íco
nes da Igreja em mediar as contradições capitalistas. O aviso profético da irmã
Carmela indica tais limites. José Garcia acumulou um excesso de sítios e de gado;
eles devem ser compartilhados com os pobres.
Confrontada com tudo isto encontra-se sua mulher, Rosário, que tem de me
diar o conflito, na paralisia e na virtual mudez de seu ser, e cuja história procura
animar e dar voz a uma estátua silenciosa e santificada, proveniente de um pas
sado colonizado e mítico. Quando estive com ela em dezembro de 1980, decorri
dos vários meses de sua visita ao Senhor dos Milagres, ela me contou que estava
sendo curada por uma médium espírita branca, de meia-idade, em Pasto.
“Ela trabalha com o espírito de José Gregorio?”, indaguei.
“Não. Invoca o espírito de Tomás Huamanga, um venezuelano que morreu
há 350 anos.” Ela mostrou muita precisão. Exibiu-me um retrato desse espírito.
Era uma fotografia retocada de um índio da região (jamais ficaremos sabendo se
ele era das terras altas do Vale do Sibundoy ou da região dos contrafortes)! Ela
prosseguiu e contou que ele não falava espanhol, apenas Inga e que, em vida,
fora um feiticeiro famoso.
Santiago Mutumbajoy, o xamã índio que durante tanto tempo atendera seu
marido José Garcia, suspirou ao ouvir falar disso. “Eu não lhe disse que o índio é
mais cristão do que o branco?"
170
9
Las Très Potências: a magia das raças
O espaço místico e mágico fixado pela imagem do índio no Novo Mundo
é juncado de ironia política. Em um país como a Colômbia, onde todas as pes
soas classificadas pelos censos do governo como índias caberiam em alguns quar
teirões de uma cidade, a enormidade da magia atribuída àqueles índios é notável.
Trata-se de uma atribuição tão vigorosa entre as classes baixas de brancos, negros
e mestiços quanto entre a classe média, alta e os intelectuais, incluindo os ar
queólogos e antropólogos.
A ironia não se restringe ao feto de que os assim denominados índios for
mam uma pequenina parte da população. Os índios também se incluem entre as
classes mais pobres, oprimidas e marginalizadas e, além do mais, têm a reputa
ção de ser maliciosos e até mesmo de praticar o mal, sendo também considerados
ignorantes e brutais. Todo mundo sabe que o indio es malicioso. Por que também
se atribui a eles poder mágico é tuna questão intrigante e, além do mais, uma
questão política importante, já que a magia do índio é intrínseca não somente à
opressão que eles padecem, mas também à teia de religião popular e de cura
mágica do infortúnio que atravessa a sociedade como um todo, para não mencio
nar os antropólogos (como eu) que a estudam. Essa atração mágica exercida pelo
índio não é apenas um objet d ’art ’colonial sutUmente elaborado; é igualmente
algo renovado e revitalizado. Não se trata apoias de primitivismo, mas de um
modernismo terceiro-mundista, uma reelaboração neocolonial do primitivismo.
Quando nasce uma criança no vale do Cauca, pelo maios no caso de pais
pobres (e eles formam a imensa maioria), a mãe, cm geral, se apressa em adquirir
um coralito, um bracelete de contas coloridas, outrora de coral e atualmente de
plástico, a fim de espantar o mau-olhado, ojo ou mal de ojo. Tais contas devem
ser “curadas”, isto é, consagradas por meio de poder mágico por um índio do
Putumayo. São os índios do Putumayo que vendem essas pulseiras, e é mais
* Objdo de aite. (N.T.)
171
indicado adquiri-las deles. Assim, a partir do nascimento, um número grande ou
até mesmo preponderante de pessoas, naquele vale imenso — senão em outras
regiões da república — são, por assim dizer, “batizadas" e introduzidas no reino
da magia do índio (disseram-me que o mesmo ocorre na costa atlântica da Co
lômbia, só que lá a pulseira, pepita, é comprada dos índios Guajira, da península
do mesmo nome).
A criança não tem consciência desse pacto celebrado entre sua mãe e o índio e
do qual ela é objeto. No entanto, tal como aconteceu com sua mãe, a criança fará
o mesmo, se e quando ela despontar para a maternidade. A ausência de percepção
assegura com maior firmeza a potência dessa prática e a mitologia que a sus
tenta. Tal é o caráter do conhecimento social implícito que aqui examinamos.
A causa e, até certo ponto, a cura da doença provocada pelo mau-olhado
também são inconscientes. A pessoa cujos olhos são maus e cujo olhar provoca a
gastroenterite, freqüentemente fatal, não tem a percepção do poder desse olhar.
Trata-se de um poder inconsciente e de um ato que não é premeditado, talvez a
quintessência da inveja — a envidia, que assume vida própria, acima e além da
intencionalidade. Assim como a causa, dentro dessas características, é inocente,
o que poderemos dizer da cura, quando nos damos conta de que o mau-olhado
não se enquadra na categoria de doença entre os índios do Putumayo, habitantes
da serra ou da planície? Com efeito, o resto da sociedade lhes solicita a cura de
algo que para eles não existe. É claro que os curandeiros ambulantes em breve
tomam conhecimento desse fato e praticam todos os atos necessários à diagnose
e ao tratamento, mas tais atos são os prescritos pelo restante da sociedade, não
pertencem a eles. Eles se posicionam fora do círculo encantado dos crentes, ne
cessário para a existência da doença. Lá na floresta pluvial, onde tantos desses
curandeiros ambulantes ganham boa parte de seu poder mágico (é o que dizem),
fiz indagações a um xamã Cofán e a sua mulher, relativas ao mal de ojo. Eles
acharam que estava me referindo a algo bem literal como, por exemplo, uma
doença nos olhos, uma conjuntivite. Quanto ao sal e ao capacho, os tipos predo
minantes de feitiçaria de que se ouve falar no vale do Sibundoy ou no interior,
eles afirmam que se trata de tolices, tonterías dos brancos, que os índios do vale
do Sibundoy, que perambulam pelo país, exploram a fim de ganhar dinheiro.
Certo dia o xamã revelou-me que curava as jóias que os brancos lhes traziam.
“Não entendo”, eu disse.
“Nem eu”, foi a resposta.
“Mas por que age assim?"
“Para deixá-los contentes”, respondeu, sorrindo sem malícia ou supe
rioridade, segundo me pareceu, mas com timidez e algum constrangimento, con
tando-me a história de Dona Teofila, cujo talismã ele curou, para que ela
conseguisse ganhar no jogo de cartas. Havia também um curioso branco de nome
Gabriel Camacho, o qual, durante dois anos, doente e solitário, perambulou de
xamã em xamã através do Putumayo, há quinze anos, aprendendo o que podia
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sobre o yagé e tentando tomar-se um grande curador. A mulher do xamã encon
trou-o chorando, sentado num rochedo perto do rio e deu-lhe roupa, abrigo e
alimento durante meses. Ele queria aprender os segredos do yagé muito rápido
— rápido demais, conforme se viu — pois caíra nas mãos de outro xamã Cofán,
Pacho Quintero, o qual, confoime todos o preveniram, era um bruxo, um brujo
fino, de acordo com os outros xamãs. Gabriel Camacho teria moirido na casa de
Pacho, situada na região do rio Hgre, desolado e faminto, se não fossem seus
paisanos, seus conterrâneos, que voavam pela região no helicóptero de uma
companhia petrolífera e o levaram para Bogotá. Com os xamãs Don Gabriel apren
deu a prever quais os cavalos que ganhariam as corridas dominicais no hipó
dromo da capital do país. Enquanto tomava yagé, via o número dos animais e
dizia: “Vamos até Pasto apostar no Cinco y Seis". Mas deitado de costas, bêbado
de yagé no seio da floresta, como poderia chegar até Pasto?
Santiago Mutumbajoy nunca se cansava de rir e contar uma história de que
Gabriel Camacho era protagonista. A primeira vez que a ouvi cortávamos lenha e
cozinhávamos o yagé durante todo o dia, a n um pequeno bosque escondido, perto
do rio. Batíamos o cipó com pedras até nossos pulsos doerem “Gabriel Camacho
tomava yagé certa noitecom um xamã, no baixo Putumayo", narrou Santiago.
“O cozinheiro não tinha dinheiro, mas Don Gabriel pagou sessenta pesos ao
xamã. Pediu que enchesse sua cabaça. ‘Lleno! Lleno! Cheio! Cheio!’, ordenou ao
xamã. Então o cozinheiro, invejoso, explodiu: To, pobre indio dei Putumayo,
aguantando frio e hambre y ese Bogotano pidiendo lleno, lleno. Eu, pobre índio
do Putumayo, agüentando frio e fome e esse bogotano pedindo cheio, cheio!’.’’
No Putumayo os povoadores brancos que desprezam abertamente a magia
indígena levam seus filhos, doentes de susto, a um curandeiro índio para que
cuide deles. O irmão de Rosario, por exemplo, que raramente deixava passar a
oportunidade de ridicularizar as curas operadas por índios, teve seu filho curado
de susto por um índio. Há muito a se ponderar no recurso aos índios como seres
mágicos que afugentam as coisas que assustam as crianças e o “mau-olhado” que
assusta seus pais. Talvez o índio seja considerado ainda mais temível e malvado,
mas, assim como ele foi dominado pelos conquistadores cristãos, essas doenças
também podem ser dominadas.
Ao acalmar o medo, o papel do índio não se restringe ás crianças ou aos
camponeses pobres. A uma grande distância do Putumayo, na antiga cidade colo
nial de Popayán, na Colômbia ocidental, uma mulher de nome Emilia revelou-
me o quanto se sentiu melhor, desde a última vez que nos vimos. Ela certamente
parecia mais calma e animada. Declarou que queria separar-se do seu marido,
um advogado que a deixara havia dois anos. Mostrou-me uma garrafa com ervas
misturadas com aguardiente. Era um remédio que conseguira com um indio do
Putumayo. Agora ela não acordava mais de repente á noite, cheia de susto. Não
padecia mais daquela terrível insônia que a acometera desde a partida de Elias.
Não sentia mais dores em todo seu corpo. Procurou o indio muito espontanea
173
mente. A idéia lhe ocorreu certo dia em que percorria o mercado. Ninguém o
recomendou. Ellos saben. Eles sabem.
Maria Sol, uma jovem negra de 18 anos, conhecida minha, que trabalha como
empregada doméstica na região sul do vale do Cauca, garante-me que os índios
sabem como fazer a magia mais poderosa. Quando morava em Cartago, ao norte
do vale, sua irmã apaixonou-se por um rapaz, mas ele demonstrou-se arredio e
indiferente. Uma amiga a aconselhou a procurar um dos curandeiros índios que
vinham das florestas pluviais do litoral do Pacífico, na província de Chocó. Ele
lhe vendeu uma garrafa verde com remédio, recomendando-lhe que pingasse al
gumas gotas na palma da mão e, em seguida, apertasse a mão do homem por
quem estava apaixonada. Foi o que ela fez, e ele, com efeito, apaixonou-se lou
camente por ela, mas a mãe da jovem não aprovou.
Wilma Murillo, outra amiga negra que eu tinha, da distante província de Chocó,
que compra e vende as jóias de ouro feitas na região e atualmente está casada
com um rapaz que tem uma boa posição (trabalha com computação, na capital),
certa vez falou-me de um índio de Chocó que foi enganado por um feiticeiro negro,
por meio da pepita. Acusado pelo índio indignado, ele negou que houvesse trapa
ceado, o que deixou o índio ainda mais furioso. Daí a alguns dias o corpo do
negro estava coberto de vermes e pústulas, e cm breve ele morreu.
A cunhada de Wilma, Juana, falou-me de Don Miro, que morava perto de
sua loja de confecções, em Puerto Tejada, ao sul do vale do Cauca. “Ele é fa
moso”, afirmou. “As pessoas tomam um táxi em Cali e vão consultá-lo.” Juana
era uma habilidosa costureira e passou vários anos contrabandeando roupas fe
mininas, que adquiria nos portos livres do Caribe. Conhecia, portanto, alguma
coisa sobre o emprego da magia, já que era preciso driblar a lei. Era amiga de
uma cabeleireira de Cali, que nunca cheguei a conhecer e que se tomara proprie
tária de um salão de beleza e devia toda sua boa fortuna a Don Miro. Ele era por
demais ríspido, porém fiquei sabendo que aprendera a maior parte do que conhe
cia com um índio, um Cholo residente em Quibdó, capital de Chocó. Esse índio
era um Colorado do Equador. Sete anos mais tarde, na aldeia índia de Humán,
situada na serra, famosa em todo o Equador por seus feiticeiros e curandeiros,
disseram-me que muito poder mágico circula entre ela e aqueles mesmos Colo
rado das terras baixas do Pacífico, de quem Don Miro me falou na Colômbia.
Em seu livro publicado em 1972, relativo aos índios Jívaro da Amazônia equato
riana, Michael Hamer menciona que os xamãs Jívaro atravessavam as monta
nhas para visitar os Colorado e praticar a magia. O curandeiro Ilumán com quem
conversei naquela tarde chuvosa, enquanto ele, bêbado, curava um casal, pas
sando pedrinhas de um formato esquisito em seus corpos quase nus, contou-me
que seu tio visitara Don Salvador, o xamã Cofán que salvara a vida de Santiago e
cuja casa (e, agora, seu túmulo) situava-se a uma grande distância, em outra
região, descendo os Andes e ao norte do lago Agrio. Era preciso atravessar o
rio San Miguel até chegar às margens do Guamuez, antes que ele desembo-
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casse no Putumayo. Esse curandeiro do Ilumán ostentava signos de poder prove
nientes das florestas da planície: peles de onça dependuradas na parede, bastões
feitos de palmeira chonta, que ele usava na cura, e aquelas penas verdes e azuis
dos pássaros da floresta que formavam o mesmo tipo de colar luxuriante que os
xamãs Cofán usam. “Mas elas são tiradas unicamente das asas”, assinalou Don
Santiago, que se encontrava em minha companhia e fazia o possível para não
demonstrar desprezo. “As penas boas são as da cauda. Cada cauda fornece ape
nas um pouco. Para fazer um colar são necessários muitos pássaros.”
Alejandro Casarán, um agrimensor com muitos anos de experiência nas flores
tas do litoral colombiano do Pacífico, pertence a uma proeminente família negra
da cidade açucareira onde morei durante alguns anos, no vale do Cauca. Ele
também afirmou que o brujo índio é o mais forte que existe. Certa noite ele me
contou como, em meados de 1960, por ocasião de suas viagens, quando traba
lhava para o Instituto de Reforma Agrária, deparou-se com um curioso incidente
no rio Saija, um lugar perdido, em meio a mangues, pântanos, lama e mosquitos.
Era aquele litoral que tanto deprimiu Pizarro e sua gente quando se viram força
dos a deter sua expedição de conquista, ao sul das terras desconhecidas dos Incas,
há 450 anos. Os negros descendentes de escravos africanos trazidos para traba
lhar nos aluviões de ouro existentes naquela região queixavam-se amargamente
de uma terrível praga. Pediram aos índios Embera — “Cholo" —, habitantes do
local, que a exorcizassem. Os xamãs índios concordaram e, segundo Alejandro
me contou, pois se encontrava presente, isso acabou dando origem a um gigan
tesco festival índio. Veio gente até mesmo do Panamá e do Equador, remando ao
longo da costa e avançando através das esteras em suas canoas. Segundo ele,
compareceram mais de trezentos índios, e qualquer empregada doméstica ou tra
balhador dos canaviais, migrantes negros, moradores do vale do Cauca, originá
rios dos rios do litoral, lhe contarão o quão poderosos são esses brujos Cholo.
Talvez, enquanto se tomam mais civilizados, eles também se tomem mais
palpavelmente reais e, portanto, menos mágicos. Lembro-me de que certa manhã,
bem cedo, vi duas pequenas canoas atracadas no pequeno porto da cidadezinha
de Santa Bárbara, inteiramente habitada por negros. Nas canoas, imóveis cano está
tuas, com as mãos segurando os remos, se encontravam duas mulheres Cholo, nuas
da cintura para cima. No armazém, junto ao porto, estavam dois homens Cholo,
aguardando para vender bananas. “Vá em frente!”, disse-me o proprietário negro
do armazém. “Eles são Cholo. Agora são meio civilizados e você pode tocá-los.”
Muito longe da costa do Pacífico e da cena onde se desenrolou a história de
Alejandro, na qual os negrospediam aos índios que exorcizassem a praga, ao leste
daquela enorme massa dos Andes que separa o litoral da bacia amazônica, os
xamãs Cofán que conheço no Putumayo afirmam que nada podem fazer contra tais
pragas. Para lidar com elas apelam aos feiticeiros negros da costa do Pacífico!
“São eles que sabem como lidar com pragas”, insistiu Gratulina Moreno. Ouvira
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falar de curas de pragas verdadeiramente extraordinárias, efetuadas por negros da
região do Chocó, na costa do Pacífico, e que recorriam a preces de livros espe
ciais. “Eles chegam com suas orações e secreto, fazem o sinal-da-cruz, cospem por
cima do ombro... sim, eles conhecem!” Havia um homem que não parava de pôr
sangue pelo nariz. Chamaram um curandeiro negro, pobre migrante da costa do
Pacífico. Ele pegou uma moeda de cobre de cinco centavos, quebrou um ovo em
cima dela, colocou a moeda lambuzada na testa do paciente e fez o sinal-da-cruz
sobre ela. Em seguida cavocou o chão, no local em que o sangue escoara, remo
veu a terra, fez uma cruz com a sujeira no local onde o sangue estivera e a hemorra
gia parou! “Todos os negros conhecem essas orações”, comentou Gratulina.
“É útil para nós termos esses remédios”, disse-me o esposo xamã de Gratu
lina, Salvador, quando nos encontrávamos na margem do rio Guamuez, um afluente
do Putumayo. Ele evocava certa ocasião em que um touro adoeceu, apresentando
infecções e inflamações, após ter sido castrado. Convocaram um curandeiro negro
que migrara havia alguns anos do litoral do Pacífico. Isto aconteceu apenas dois
anos antes de Salvador ser morto pelos dardos de feitiço enviados pelos xamãs
invejosos do rio Napo, no Equador. Ele era muito estimado na região da mon
taria, e esse sentimento se fazia sentir até mesmo em um lugar tão distante quanto o
Napo, conforme ficamos sabendo. Gratulina disse-me que aquele acontecimento
já era esperado, pois a voz de Salvador, quando ele entoava suas canções de cura,
soava como uma flauta muito débil.
Santiago Mutumbajoy disse-me que aqueles migrantes negros que habitam
as regiões situadas no outro lado da cordillera conhecem muitas magias podero
sas, por intermédio das quais se pode ferir e matar, e que esse conhecimento vem
dos livros. Manuel Gómez, que migrara para o Putumayo havia 25 anos, disse-
me a mesma coisa. “Na costa do Pacífico tem gente que é muito forte nisso, seja
por inveja ou para fazer mal a alguém. Isto é muito, muito ruim Eles estudam
livros de magia, aprendem orações e não gostam de tomar yagé.” “Existem
maestros em Tumaco (o principal porto da região meridional do litoral)”, disse-
me Santiago, “que atravessam as montanhas e vão até o Putumayo ensinar seus
discípulos, que são feiticeiros em Orito e San Roque”.
Supõe-se que exista muito dinheiro em Orito, pois é o centro das operações
da Texaco Oil Company nas florestas do Leste. É o protótipo da cidade colonial
tropical repleta de energia, rodeada pela floresta, e uma chama constante, prove
niente da queima do gás natural, projeta-se em direção ao céu. Cabos grossos
pendem dos postes de iluminação. Existem luminárias enormes, semelhantes a
faróis, ao longo da margem dos esgotos que correm a céu aberto paralelamente
ás ruas. Estas são revestidas com uma camada fina de piche, que derrete como
sorvete sob aquele sol escaldante, e só Deus sabe o que acontece com os cascos
dos cavalos. A cadeia dos Andes é claramente visível a uma longa distância, por
cima das árvores, e as altas montanhas são coroadas pelas nuvens que se asseme
lham a penugem. O calor é opressivo e mistura-se com o cheiro da gasolina e do
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asfalto que derrete. As mulheres passam com sapatos de salto alto, chapinham e
escorregam no piche pegajoso. Em todo lugar se vêem pilhas de garrafas de
refrigerantes. Quanta habilidade, quanto dinheiro envolvido na distribuição da
Coca-Cola, para ela acabar chegando àquele lugar tão remoto! Nas ruas, onde não
se vê uma árvore sequer, alinham-se barracos com teto de zinco, e as antenas de
televisão, amarradas em bambus, projetam-se para o alto, formando ângulos es
quisitos. É a Cidade do Petróleo na Selva.
“Orito é um lugar bem feio”, comento.
“Mas o dinheiro não é feio”, retruca Santiago, que com freqüência tem sido
convocado para ir até lá realizar emas de pessoas atingidas pela feitiçaria. O
lugar é repleto de inveja. Estávamos conversando a respeito de Dona Leila, uma
senhora branca que viera de Orito para que seu caminhão e sua casa fossem
curados da feitiçaria. Quem a trouxe foi um pobre migrante negro que trabalhava
para ela. “Sim", disse Santiago, “o nome dele é Luis... Luis... Quinones. Ele veio
até aqui me fazer um pedido. Veio de Tumaco para encontrar trabalho em Orito.
Empregava-se e, quando ia começar a trabalhar, uma outra pessoa ocupava o
lugar dele. Muito bem! Ele resolveu procurar um emprego no qual pudesse traba
lhar com contrato. A mesma coisa se repetiu. Não conseguia encontrar trabalho.
Então... uma pessoa de Tumaco veio até aqui, pediu que eu tratasse dele e tudo
correu bem. Ele era ourives, não?”.
“Era."
“Então ele me pediu que tratasse dele para que tivesse sorte quando fosse
vender suas coisas, pois precisava ganhar dinheiro para poder sustentar a família.
Fiz o que ele me pediu, a vida dele começou a melhorar, as pessoas o procura
vam e pediam que fizesse para elas anéis, brincos., e daí por diante. Daí ele disse
a seu paisano, a seu conterrâneo, o seguinte: ‘Vá em frente! Vá até a casa do
amigo Santiago. Ele curará você’. Ele chegou, curei-o, mas não dei yagé para ele
tomar! Curei-o com uma planta. Disse o seguinte: ‘Ouça! Você voltará a Orito
com isso e, quando tiver de procurar um emprego, quebre um pedaço desta
planta, ponha na sua mão e na sua boca e daí negocie. Ninguém tirara o emprego
de você! Faça esta experiência!’... E foi assim que aconteceu. Ele imediatamente
arranjou um emprego com Dona Leila.”
Estávamos sentados na varanda de sua casa com seu sobrinho Esaís, tomando
chicha. Era o começo da tarde e a chuva começava a passar. As nuvens deslizavam
rapidamente ao longo da silhueta recortada da cordillera. As flores do pátio
como que imitavam o movimento das nuvens, que formavam tufos bem alvos e
pairavam sobre os montes de um verde muito vivo. O sol fazia com que pontas
aguçadas de verdes-cintilantes e de amarelos dardejassem das colinas e atingissem
nossos olhos. Bebendo goles de chicha, ao som do vento que zunia e do rio que
deslizava em seu leito rochoso, Esaís falou. “Os feiticeiros aprendem com os
livros", falou em voz baixa no ouvido do vento. “Usam orações que tiram dos
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livros que compram nos mercados. Tudo isso funciona através de Satã. Você
trabalha com ele ou com o yagé. Ou um ou outro; ião se pode trabalhar com os dois."
“Aquele sujeito negro a quem chamávamos de ‘filho mais velho’ e que veio
do litoral para tomar yagé acabou se revelando um feiticeiro", disse Santiago.
“Aquele morocho trabalhava com Satã”, explicou-me Esaís. “Foi ferido num
duelo de feitiçaria. Sentia dores horríveis e estava envolvido com todo tipo de
feitiçaria. Contou que certa noite, lá no litoral, foi baleado e as balas atingiram
seu peito. Mergulhou ou caiu no rio e escapou. Quando veio até aqui estava
afundado na feitiçaria. Meu tio Santiago tomou yagé com ele, viu o que aconte
cia e o repreendeu dizendo que tinha de mudar de comportamento."
Conheci esse morocho em novembro de 1976. Ele viera da floresta, do outro
lado do monte, à procura de Don Santiago, pois queria tomar yagé e ser curado
de um certo mal. Eu estava sozinho em casa e, enquanto aguardava, ele contou-
me que sua boa sorte acabara. Sua casa se incendiara, sua canoa tinha sido rou
bada (no litoral, em Puerto Merizalde) e ele precisava muito ser curado. Mudou
de roupa, tirou a calça e (mal pude acreditar no que via), vestiu uma cusma índia,
aquela túnica quesomente os índios usam. Já havia estado lá e amava o yagé e
tudo aquilo que o acompanhava. Queria muito tomar-se um curaca índio.
Quando comuniquei a Santiago que um paciente o esperava em sua casa
com uma triste história para contar, ele resmungou qualquer coisa e continuou
trabalhando com seu facão. “Isto significa que ele não quer pagar. Quer que eu
faça tudo grátis!”
O nome do “filho mais velho" era Félix. Sentado, vestido com sua cusma
índia, contou-me que vivia basicamente daquilo que pescava no estuário lama
cento do rio Naya. Há muitos anos os negros que viviam naquela região do rio
costumavam tomar pildé, o nome que se dava no litoral ao yagé ou a um cipó
que cresce lá, semelhante ao yagé. Disse-me que tomavam grandes quantidades,
mas os jovens, atualmente, afirmam que se trata de coisa do demônio e não
querem saber daquilo. Um pouco acima, no rio Naya, ele tivera uma experiência
de cura, praticada por índios Cholo do rio Saija.
“Eles fazem um altar, um mesa com seis copinhos de aguardiente, seis de
vinho branco e seis de refrigerante, com charutos e ciganos. É para os espíritos”,
revelou-me, enquanto aguardávamos a volta de Don Santiago. “Em seguida a
pessoa doente é deitada junto á mesa. O médico segura um bisturi que, na ver
dade, é o remo de uma canoa, em miniatura. De vez em quando dão pildé a uma
tonguera, geralmente uma mulher. Ela se deita, fecha os olhos e dentro de alguns
minutos tem a resposta. O curador e os outros índios cantam durante a noite
inteira e, pela manhã, a pessoa já apresenta melhoras. Mas não se vê nada",
enfatizou Don Félix, “não é como acontece com o yagé-, não se vê uma sombra ou
um movimento sequer... e de manhã, quando tiram o pano que cobre a mesa, a
bebida ainda está lá!". Ele me pareceu indeciso.
Don Félix foi lá a primeira vez há dez anos e padecia de uma feitiçaria que
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ningucm conseguia curar. Tudo começou com uma diarréia sanguinolenta e in
tensas cólicas abdominais, seguidas de dores nas juntas, que avançavam em dire
ção ao centro de seu corpo e se transformavam em uma dor crônica no estômago,
como se ali houvesse algo sólido, procurando passar e ser vomitado. Contou-me
que foi tratado por médicos de Buenaventura, Cali, Bogotá e outras cidades, que
julgavam que ele tivesse amebas, mas sem nenhum resultado. Então um amigo
de Buenaventura, um porto no Pacífico, disse-lhe que lá longe, no Putumayo,
havia bons brujos.
Santiago chegou de seu trabalho no campo e aquela noite o índio do Putu
mayo e o negro do outro lado das montanhas, vestidos com as suas cusmas, as
túnicas índias, tomaram yagé. Félix começou a cantar tarde da noite, como um
xamã. Gostei de suas cantigas, mas não era a mesma coisa. Após meia-noite
Santiago levantou-se da rede e, cambaleante, ligou o rádio. Ele raramente ouve o
rádio e fica zangado se está ligado enquanto tomam o yagé.
“Por que ligou o rádio ontem à noite?", perguntei pela manhã.
“Aquele morocho canta de um jeito muito feio”, disse ele, suspirando.
Tais são as dialéticas da magia, da cura e da raça.
Conforme comenta meu bom amigo Orfir, morrendo de rir, onde quer que a
gente vá os grandes brujos se encontram em outro lugar. Em nossa cidade de
Pueito Tejada comenta-se que os brujos do Chocó são surpreendentes. Se você
for a Chocó lá dirão que os grandes bruxos se encontram em Pueito Tejada. E
assim por diante, o distante se fricciona com o familiar, o primitivo com o mo
derno, a floresta com a cidade e a raça com a raça, por meio de um movimento
criador de magia. Essas imputações de magia à alteridade induzem ao encanta
mento da mistura da diferença, em uma poética do lugar e da raça não moios
política e econômica do que estética. Tomemos, por exemplo, a servidão, con
forme o relato que me fizeram algumas amigas, em uma aldeia situada nas proxi
midades de Puerto Tejada. São filhas de camponeses e agora se tomaram mães.
Algumas trabalham nos canaviais, outras são mascates e muitas se empregam
como criadas nas cidades próximas ou distantes. Walter Benjamin viu na reunião
do viajante que retoma com aqueles que ficaram em casa, não menos do que as
reuniões que se realizam na loja de um artesão, uma oportunidade toda especial
para a narração de histórias mágicas.1 No Terceiro Mundo dos dias de hoje exis
tem muito mais empregadas domésticas do que artesãos, mas, ainda assim, as
histórias fluem. “Algumas patroas recorrem á magia para amarrar (ligar) suas
empregadas na casa e tomá-las leais e trabalhadoras”, contava-me minha amiga
Elbia. “Algumas empregadas combinam com suas patroas de fazer feitiçaria com
os maridos delas e ‘amarrá-los’!” Algumas vezes ouve-se falar de uma empre
gada que faz uma “amarração” para a própria patroa! As empregadas do litoral
do Pacífico são inclinadas a isso! Sim! Elas se empregam e vão embora quando
bem entendem. Algumas chegam a bater nas patroas!
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“As patroas fazem tão pouca coisa", comentou com um suspiro uma moça
que ouvia nosssa conversa. “Jogam bingo, passeiam pelas ruas ou batem papo no
telefone. O assunto principal é como somos boas ou más."
Aqui, nesta aldeia, somente as bruxas conseguem voar. “Um homem e uma
mulher estavam aprendendo bruxaria, estavam aprendendo a voar. Eles tinham
de repetir ’’sin Dios, sin ley y sin Santa María' (sem Deus, sem lei e sem a
Virgem Maria). A mulher disse direitinho e conseguiu voar. Mas o homem disse
con Dios, con ley y con Santa María (com Deus, com a lei e com a Virgem
Maria) e daí não teve condições de voar. Os homens não voam nunca!"
Eles, porém, se preocupam quando são considerados como pessoas que se
colocam acima das outras, quando atiçam a inveja e ela se transforma em ação,
em situações em que eles fracassam e deixam de fazer o que deles se espera. Foi
por isso que o marido de minha amiga Elbia, dono de um barzinho onde havia
duas mesas de bilhar alugadas, teve seu estabelecimento curado em três noites
sucessivas, por meio de líquidos mágicos, garrafas com ervas enterradas na so
leira, e remédios que ele tomou e o fizeram mergulhar em um sono profundo.
“Fizemos isso para impedir que a inveja entrasse no bar e nos matasse”, contou-
me ele. O curandeiro era um mulato e cobrou caro (2.000 pesos, numa época em
que o salário girava em tomo de 150 pesos por dia). Ninguém sabia de onde ele
tinha vindo. Lembravam-se apenas que ele dizia que tinha aprendido sua arte
com os índios do Putumayo. Depois disso ninguém soube dizer para onde ele foi.
As três potências
Um novo espírito curador haveria de se manifestar na capital da nação. Seu
nome era El Negro Felipe, e disseram-me que ele vinha da Venezuela. As pes
soas que até recentemente depositavam sua fé em outro espírito venezuelano, o
piedoso médico José Gregorio, agora o deixavam de lado e procuravam a cura
com El Negro Felipe. Fui a um centro espírita localizado em um bairro da cidade
onde moravam trabalhadores, e ali médiuns espíritas brancas faziam seu culto.
Ele era retratado e esculpido como um negro que usava um turbante indiano e
um elegante casaco de soldado, com um colarinho rendado e dragonas. Ele ine
gavelmente se assemelhava a um negro, mas ainda assim a médium espírita branca
disse a um grupo de cerca de 35 pessoas, entre as quais eu me incluía, e que
foram ao centro se consultar, que era um índio, nascido em uma tribo da Vene
zuela há muito tempo, e que Deus lhe concedera um grande carisma.
Decorridos alguns dias naquela terra quente, comprei um quadro emoldu
rado, no formato de cartão-postal, de Las Tres Potências; adquiri-o no mercado
de Puerto Tejada de um homem que vendia retratos de diversos santos. Meu olhar
foi cativado por uma imagem familiar. Era nada mais nada menos do que El
Negro Felipe, agora apresentado como uma das três potências. Perguntei ao ven
180
dedor, um branco da cidade de Cali, quem eram essas três figuras. O rosto àesquerda, disse ele, na de Huefia, um negro nômade. A mulher do centro era Teresa
Yataque e a figura da direita era Francisco Chasoy. Os três eram do Putumayo!
Fiz a mesma pergunta a minha amiga Maria Sol. Ela recuou assustada,
dizendo que era um retrato usado na feitiçaria. A pessoa à esquerda era um feiti
ceiro negro, o brujo Mayombé; a do centro era a rainha dos feiticeiros e a da
direita, um feiticeiro índio.
Com grande autoridade uma índia que vendia ervas medicinais e amuletos
mágicos nas fervilhantes ruas de Cali declarou-me que aquelas três figuras eram
de índios panamenhos. Um velho branco que vendia limonada passou por nós e
ficou muito excitado. “É o retrato de três índios do Putumayo”, exclamou. Um
rapaz de Bogotá que vendia quadros de santos na calçada da igreja de São Fran
cisco, em Cali, disse-me que era o retrato de santos venezuelanos: o Negro Fe
lipe à nossa esquerda, Maria Lionsa no centro e o indio Guaicaipuro à direita.
Em uma barraca ao lado da sua uma negra lançou um rápido olhar às três potên
cias e, sem hesitar, declarou que eram três índios de Quito, Equador. “Cada pes
soa tem sua própria história", comentou com um sorriso minha amiga Dalila, de
14 anos. Eis, portanto, outra história de como a sociedade opera com uma reserva
de imagens e relações entre imagens correspondentes à magia das raças, as Três
Potências.
O eflúvio mágico do índio primordial também pode ser encontrado nos so
nhos de rendenção dos moradores dos cortiços da cidade de Cali, um lugar onde
não existem índios desde o início da conquista espanhola, em 1536. Chris Birk-
beck publicou o seguinte sonho, extraído de suas anotações de campo, em 1977.
Dou Colo é proprietário de um pequeno armazém situado em um dos bairros mais
pobres de Cali. Certo dia, não faz muito tempo, andava pelos arredores da cidade e sentiu
vontade de evacuar. Dirigiu-se então a um bananal, ao lado da estrada. Como não dispunha
de papel, usou as folhas de uma planta e, ao voltar para casa, se deu conta de que havia
perdido o anel. À noite sonhou que a perda do anel estava relacionada com a planta, cujas
folhas usara aquele dia. No dia seguinte voltou ao bananal, juntou algumas daquelas folhas
e as levou para casa. Esfregou as folhas no anel de ouro de sua filha e ele tomou-se eUstico
e maleável. Compreendeu então que havia encontrado aquela planta legendária, há muito
tempo perdida, que os índios usavam para trabalhar o ouro com grande delicadeza. Ele, por
sua vez, poderia tomar-se uma lenda, mas isto não haveria de acontecer; pois Doo Colo temia
divulgar seu segredo. Receava que alguém se aproveitasse desse fato e ganhasse a fortuna
que lhe era devida.2
Esta história foi usada como prova do desespero do povo, sempre à espera
de um falso milagre, e como ilustração do “mesquinho individualismo burguês"
daqueles que ganham a vida no “setor informal" da economia. No entanto há
mais coisas a serem ditas (e não apenas o fato de Don Colo esfregar o anel de
ouro de sua filha). Focalizar-se exclusivamente os interesses econômicos cons
cientes do indivíduo é perder de vista a mitopoética colonial que abre caminho
181
através do inconsciente político. O conteúdo do sonho, bem como dessa história,
que, no todo, se assemelha a um sonho, nos remetem não só á expectativa de um
falso milagre por parte do indivíduo, mas também às concepções populares do
milagroso e dos segredos redentores do conhecimento alquímico, podido para a
história manifesta e, no entànto, acessível através da coincidência e do infortú
nio, sob a forma de um sonho, no qual a história (e não unicamente um anel de
ouro) se toma maleável através da magia indígena.
O Museu do Ouro, universalmente conhecido, localizado na sede do Banco
de La República, em Bogotá, pode com toda certeza ser qualificado como um
totem nacional. Repleto de artefatos de ouro que datam da época da conquista
européia e de muito antes, suas peças pequenas, porém reluzentes, brilham como
estrelas na escuridão artificial, fazendo do museu uma igreja cujos rituais diários
da magia, planejados e supervisionados por uma equipe científica de etnólogos e
arqueólogos, que operam nas sala dos fundos para a multidão de peregrinos,
recriam os sonhos de moradores de cortiços como Don Colo, em Ca li. A expe
riência suprema, segundo a definição do museu, está em seu santuário mais re
côndito, protegido por homens armados e pesadas portas de metal, através das
quais a multidão é desviada a cada momento. Lá dentro é escuro como breu. Espe
ramos. A multidão se mexe, inquieta. Esta é a fase da communitas que, na ver
dade, não passa de um rito de iniciação. Ela termina abruptamente, quando um
fulgor dourado invade a sala e todos os nossos sentidos. Encontramo-nos em um
recinto abarrotado de objetos indígenas de ouro amontoados um em cima do
outro: argolas de nariz, peitorais, braceletes, vasos, rãs, onças, morcegos, jacarés,
índios, todos dourados... jogados um ao lado do outro, como lixo espalhado no
quintal. O ouro prolifera como velhas latas de conserva. A multidão solta um
suspiro de admiração.
Lembro-me de que Santiago Mutumbajoy ficou muito contente quando uma
mulher branca de Cúcuta lhe petguntou não apenas se ele era batizado e um
verdadeiro cristão, mas se podia revelar o secreto que permitia encontrar ouro.
A alguns quarteirões do Museu do Ouro, na ma que passa pelo Cemitério
Central, reúne-se toda segunda-feira um numeroso grupo de pessoas dedicadas
ao culto dos mortos ou, mais precisamente, ao culto das almas do purgatório,
almas perdidas e solitárias. Algumas delas se dirigem aos túmulos de gente fa
mosa e lá praticam ritos mágicos, solicitando sucesso, saúde e dinheiro. Outras
vão até os buracos negros e vazios, que outrora abrigavam corpos, e lá acendem
velas, no espaço da morte. Lá fora na ma, por detrás das mulheres que vendem
flores e velas, perfumes e sabonetes mágicos, amuletos e quadros de santos, in
cluindo agora as Tres Potências, e por detrás da multidão — algumas pessoas
ficam paradas, eretas, outras oscilam para a frente e para trás, murmurando ora
ções mágicas diante dos pingos ressequidos de velas há muito queimadas —, por
detrás de tudo isto, enfim, estende-se ao longo da ma Vinte e Seis o carnaval do
grotesco, dos marginalizados, dos miseráveis entre os mais miseráveis: uma
182
trouxa em forma de tenda que, na verdade, é um anão sem membros. Um par de
órbitas oculares, alvas como o alabastro, com cicatrizes de um vermelho muito
vivo, brilha no rosto de um homem. Um velho magro, vestido de preto, senta-se
muito ereto em uma cadeira de rodas feita em casa e segura um guarda-chuva
negro que lhe protege a cabeça. Em seu colo acaricia um cachorrinho peludo, obsce
namente normal e entemecedor, nessa terra de deformados e inomináveis. Ele
está absolutamente parado. Seu cotovelo repusa em uma plataforma sobre rodas,
que é um verdadeiro trambolho. Nela está deitada uma garota totalmente parali
sada, e seu rosto é um arrebatamento de vacuidade desprovida de fala. Atrás
deles estão algumas índias que vieram de longe, do vale do Sibundoy, na extre
midade setentrional do país. Estão vendendo coralitos e amuletos, além de algo
mais: garrafas de remédios, escondidas debaixo de seus tabuleiros.
A multidão é compacta e se pisoteia na rua Vinte e Seis, no dia das almas
perdidas do purgatório. A multidão zumbe, como um enxame de abelhas. O que
está acontecendo? No alto de uma escada de mão encontra-se uma caixa qua
drada de madeira, e cada lado mede cerca de um metro. Por 100 pesos um homem
com um megafone abrirá as portas da caixa. Dentro, desprovido de expressão,
está um menino sem corpo. É meigo, tal como um anjo. Em sua boca segura um
envelope, o qual contém uma profecia. Ela é sua por 100 pesos. As portas se
fecham sobre o rosto sem corpo. Queremos ver mais. Tão meigo. As portas quese abrem para o futuro revelado por uma criança amputada.
Sim, disse-me Carlos Pinzón. Há alguns meses havia uma coisa mais ou
menos idêntica, só que em vez de um menino meigo usaram um cérebro metido
dentro de um saco de plástico — o cérebro de um indio. E era assim que chama
vam esse oráculo das ruas: o cérebro do indio.
Longe do barulho e da sujeira dos cortiços, nas livrarias freqüentadas pela
classe média, pelos ricos e pelos turistas do que se convenciona chamar os países
desenvolvidos, existem muitos livros sobre os índios. Muitas vezes esses livros
mostram índios, animais selvagens exóticos e plantas, todos agrupados, como se
pertencessem e constituíssem uma única categoria. Tais livros são verdadeiros
fetiches, ícones resplandecentes em suas fotografias coloridas brilhantes e em
seu preços salgados. Até mesmo os textos de história adotados nas escolas de
todo o país dedicam de um quarto a um terço de seus capítulos aos índios, sobre
tudo às sociedades e aos costumes da pré-conquista (no entanto neles mal se lê
uma menção, para não falar de um capítulo, á escravidão africana ou à história
do negro, em uma sociedade cuja economia apoiou-se grandemente nas costas
dos negros e de seus descendentes, muito mais do que nas dos índios). Seja na
linguagem categorizada da história, da antropologia ou da arqueologia, ou nos
sonhos dos pobres, a imagem do índio enfeitiça. É um feitiço não menos cati
vante do que a magia no interior da Igreja e do que a descoberta epifãnica de
seus milagrosos santos e virgens, conforme veremos a seguir.
183
10
A mulher selvagem da floresta
toma-se Nossa Senhora dos Remédios
O Senhor dos Milagres de Buga introduz uma profunda ironia na história
do infortúnio de Transito. Declarando enfaticamente que despreza índios, ela rea
lizou uma árdua peregrinação, percorrendo centenas de quilômetros e atravessando
montanhas para visitar um Cristo que, segundo diz, foi descoberto há milhares de
anos por um índio. Há muitos santos milagrosos na América Latina que foram
descobertos por índios ou se manifestaram a eles pela primeira vez, e cada santo
apresenta determinada característica ligada á sua descoberta. Esses santos que se
manifestaram a índios e as circunstâncias especiais que cercam a história de sua
descoberta constituem um mapa de redenção traçado na terra. Cada circunstância
é como um significante, dependendo do mapa como um todo para realizar seu
significado. Cada peregrino que participa de cada peregrinação é como o ato de
falar, transportando aquele significado para uma atualidade concreta.
Deslocando-nos alguns quilômetros em direção ao sul, a partir do Senhor
dos Milagres de Buga, e seguindo o vale chegamos a Cali, a maior cidade do
Sudoeste da Colômbia, cuja padroeira é Nossa Senhora dos Remédios, venerada
na capela da igreja de La Merced. De acordo com o livreto publicado pelos
padres da igreja e que recebi de presente em 1982, o primeiro branco a vê-la foi
um missionário que propagava a fé nos Andes, ao norte de Cali, em 1560, decor
ridos 24 anos do início da conquista espanhola naquela região. Um índio contou-
lhe que no mais recôndito da selva havia uma imagem idêntica àquela que ele
venerava em seu quarto. Os índios chamavam-na a “Mulher Selvagem da Flo
resta", La Montafíerita Cimarrona. Faziam-lhe oferendas de produtos de suas
roças e de animais da floresta, para que suas colheitas e caçadas fossem abun
dantes. Tocavam suas flautas e dançavam para ela “com a flexibilidade de corpos
livres da opressão imposta pelas vestimentas européias". No século XVII, se
gundo um testemunho autorizado, citado no livreto que mencionei, os índios são
constantemente referidos como indios bárbaros.
184
O missionário, Miguel de Soto, era manco e fez os índios levarem-no em
suas costas até a “Senhora Selvagem” para verificar se o que eles diziam « a
verdade. Ele foi transportado através de florestas marcadas pelas pegadas de ani
mais selvagens. O sol filtrava suavemente através do rendado verde da selva,
deixando rastros de ouro nas folhas caídas que cobriam a beirada das trilhas. Ao
longe ele ouvia o silvar das cobras. Os cipós se entrelaçavam, formando mono
gramas caprichosos. As noites não eram apenas o que existia de mais escuro, mas
infinitos rumores invadiam a selva. É o que lemos.
Naquelas selvas aromáticas, cheias de ruídos, situadas a apenas algumas
léguas do mar de Balboa, o padre Miguel de Soto viu-se diante da mais perfeita
imagem da feminilidade com que jamais se havia deparado, talhada em pedra,
em um nicho enfeitado com cipós e samambaias. Seus olhos encerravam uma
doçura mística, seu sorriso era divino e em seus braços o Menino Jesus segurava
um ftuto tropical.
O padre ordenou que a imagem fosse transportada para o convento de La
Merced, na nova cidade de Cali. Certa noite ela desapareceu e foi encontrada
novamente na selva. Foi levada de volta para seu altar em Cali, mas por duas vezes
conseguiu escapar e voltar para seu nicho na floresta, situada a apenas algumas
léguas do mar de Balboa, até que lhe construíram uma capela especial. Em con
seqüência dos muitos milagres comprovados que ela operou em favor da gente
branca e civilizada de Cali, seu nome passou de Mulher Selvagem da Floresta a
Nossa Senhora dos Remédios. Conquistada e domesticada, a selvageria conserva
seu poder de cura. Nos dias de hoje imagens de índios seminus rodeiam a santa.
Como ocorreu com o Senhor dos Milagres de Buga, farol que guiava a
peregrinação de Rosário, é o índio que a história escolhe para fornecer à raça
civilizada e conquistadora um ícone milagroso. Assim como o escravo atende as
necessidades de seu senhor, os conquistados redimem seus conquistadores. No
caso da Senhora Selvagem da Floresta, transformada em Nossa Senhora dos Re
médios, sua mitologia, que a Igreja autentica, é surpreendentemente clara no que
diz respeito à contradição que constitui o que Jean Barstow denomina “o poder
insuspeitado dos que são privados de poder”; o status moral ambivalente de rá
dios, pagãos-cristãos, índios bárbaros das selvas, abençoados por um parentesco
espiritual aborígine com a Mãe do Deus dos cristãos conquistadores.
Embora aqui os índios sejam claramente selvagens e, como tal, contrastan
tes com o Velho Mundo da Europa, não há indício algum de que sejam maus ou
combativos. No entanto, a selva que contém os índios e seu ícone milagroso é
diferente. Ela é verdadeiramente maléfica, barroca em sua folhagem rendada,
fala com o homem através de monogramas caprichosos, em meio aos cheiros da
noite e aos barulhos que se filtram na escuridão, através da qual, a exemplo do
que ocorre nos círculos do infemo, o padre manco é transportado por seus guias
pagãos, a fim de encontrar sua Beatriz esculpida na parte superior de um ro
chedo. Em vista disso, sua jornada assombrosa pode ser comparada com aquela
empreendida pelo capitão Cochrane, que abordaremos posteriormente, aquele ca
pitão Cochrane da Marinha inglesa, que também foi carregado nas costas de
índios, em meados do século XIX, naquela mesma selva “situada a apenas algu
mas léguas do mar de Balboa".
A Nina Maria de Caloto: a história oficial
O singular paradoxo que reveste a figura do índio privado de poder e lhe
confere o poder de criar santos e virgens milagrosamente poderosos manifesta-se
também por uma famosa Virgem, nos contrafortes da cadeia central dos Andes, a
uns oitenta quilômetros ao sul de Cali. Trata-se da Virgem de Caloto, conhecida
como a Nina Maria. Em seu caso, porém, ocorre uma inversão do relaciona
mento manifestado pela Mulher Selvagem da Floresta com Nossa Senhora dos
Remédios. Na história oficial que a Igreja apresenta, ao abordar a Nina Maria, os
índios, do modo mais enfático possível, não são retratados como criaturas angeli
cais e inocentes, mas, ao contrário, como canibais pagãosselvagens e rebeldes,
os opostos mais acabados ao que um cristão deve ser. Ao lado dos testemunhos
absolutamente contraditórios, propiciados não somente pela história oficial mas
também pela história oral, essa característica abre pistas para que se entenda a
realidade mágica de que tratamos, isto é, a realidade dessa Virgem milagrosa, tanto
quanto a natureza milagrosa da realidade depende, de modo muito curioso, das
histórias contraditórias que circulam em tomo dela, através daquilo que se diz. É
este ouvir e falar efervescente e contraditório, que se dá em tomo do ícone, que
precisa ser levado em consideração antes de mais nada, se acaso quisermos en
tender o modo pelo qual o milagroso é cotidiano e o ícone serve como um meio
de apropriação experimental da história.
A Nina Maria é uma pequenina boneca de madeira e mede 67 centímetros
de altura. Até o fim do século XVIII era conhecida como a Virgem do Rosário e
carregava um Menino Jesus nos braços, mas nos dias de hoje está sem ele, e é a
figura central atrás do altar da única igreja da pequena cidade. Trata-se de uma
edificação colonial, simples, que chama a atenção e forma um dos lados da praça
principal. Sua fiesta anual, realizada no mês de setembro, é esplêndida e atrai
milhares de devotos, sobretudo gente que os moradores da cidade denominam
indios, provenientes dos acidentados contrafortes dos Andes, que se erguem ma
jestosos nos limites orientais da localidade. Caloto é habitada principalmente por
brancos, e a cálida planície, que se estende em direção ao oeste e ao norte, abaixo da
cidade, com seu gado e seus canaviais ondulantes, é habitada sobretudo por cam
poneses negros pobres e por diaristas. Não sei o que os índios pensam daquela
cidadezinha plantada no sopé das montanhas. Eles raramente descem de suas
habitações e vão até lá. No entanto, os negros que conheci não hesitam em des-
186
crevê-la como uma localidade dc brancos, solitária, silenciosa, entediante, um
bastião do Partido Conservador.
De acordo com um folheto publicado pela arquidiocese de Popayán, a efí
gie da Nina Maria foi trazida pelos primeiros espanhóis que fundaram o povoado
de Caloto em meados do século XVI. Era então uma localidade de “mineradores”
de ouro (isto, em geral, referia-se a brancos que obrigavam os escravos índios ou
africanos a garimpar ouro). O povoado teve de mudar de lugar várias vezes, no
decurso de meio século, devido ás investidas dos índios Pijao. Em 1585, de acordo
com essa história oficial, os índios atacaram Caloto a fim de se apoderarem da
Nina Maria, enquanto se celebrava a missa, na Quinta-feira Santa. Mataram o
padre e levaram a imagem. Segundo a versão do padre Lozano, inserida no corpo
da narrativa principal, diz-se que os índios mataram a maioria dos brancos. Era
costume dos índios, após uma expedição bem-sucedida, comemorar durante três
dias com bebidas que provocavam a embriaguez, e dormir durante mais três.
Então o imortal Calambas, chefe dos índios cristãos, investiu contra eles, acom
panhado de seus guerreiros. Certos de que a Nina Maria seria horrivelmente profa
nada, é de se imaginar sua surpresa, escreve o padre Lozano, ao descobrir que os
selvagens a haviam colocado em um belo trono de flores. Após 24 horas de sangui
nolento combate, os espanhóis conseguiram dominar os canibais e se apoderaram
da imagem
Os Pijao voltaram a atacar mais duas vezes e, na terceira ocasião, em 1592,
levaram de novo a imagem sagrada. Os espanhóis conseguiram trazê-la nova
mente de volta e desde então ela realizou muitos milagres. Um deles — e não o
menor — foi vir em defesa do pueblo de Caloto, freqüentemente perseguido, a
exemplo do que ocorreu em 1810, por ocasião das guerras da independência e
das persistentes guerras civis daquele século de conflagrações, quando Caloto
apoiou orgulhosamente a causa do Partido Conservador contra o Partido Liberal,
nos conflitos de 1851,1860,1879 e 1899.
A exemplo do que aconteceu com a Mulher Selvagem da Floresta, que se
tomou Nossa Senhora dos Remédios, a natureza milagrosa da Nina Maria de
pende grandemente da presença do índio, mas, cm profundo contraste com Nossa
Senhora dos Remédios, os índios, na história que a Igreja publicou sobre a Nina
Maria, são retratados como rebeldes militantes e canibais selvagens. Além do
mais o ícone não é aborígine. Foram os espanhóis que a trouxeram para a fron
teira daquela região selvagem rica em ouro. O fato que propicia á lenda aquilo
que poderíamos denominar a “chave política”, que vive ativamente no presente,
é que, a despeito de sua selvageria, os índios são seduzidos por ela. É este “mi
lagre” que confere significado, desvenda e desenvolve a natureza milagrosa da
imagem, cuja magia, daí por diante, serviu para defender os cristãos de outras
investidas dos selvagens e protegeu a localidade durante a Guerra Civil.
Nas xilogravuras feitas recentemente por um romeiro com a intenção de
retratar a história oficial, em exibição na residência do padre, é feita uma nítida
187
distinção entre dois diferentes grupos ou tipos de índios, os católicos que ajuda
ram os espanhóis e os selvagens que roubaram a Virgem, assassinaram o padre e
levaram sua cabeça. A distinção é importante, na medida em que não apenas
ressurge nos relatórios dos franciscanos sobre a região do Putumayo no tempo
colonial (estabelecem igualmente uma distinção entre os índios das montanhas e
os da planície), representa os aucas, chunchos etc., estabelecidos na montaria
andina do Equador, Peru e Bolívia, como índios selvagens, e representa também
o caráter dualizado do “índio" como uma categoria social e um personagem moral.
Não somente havia índios pagãos e índios convertidos existindo como verdadei
ros grupos sociais, mas a imagem colonialmente sugerida e ainda efervescente
do índio depende precisamente dessa combinação de opostos, na qual a selvage-
r iaeo cristianismo se apóiam e se subvertem mutuamente.
Esse debruçar sobre a relevância semântica da dependência de um ser se mani
festa em um registro diferente, através do contraste entre as histórias oficiais da
Nina Maria e de Nossa Senhora dos Remédios. Tal debruçar toma-se, no entanto,
positivamente insistente quando nos voltamos para as disparidades existentes entre
os relatos oficiais e oficiosos relativos a virgens milagrosas, introduzidos no reino
deste mundo pelas descobertas pagãs. Tomemos a Nina Maria como exemplo.
A Nina Maria: história popular e histórias
Das 32 pessoas com quem me encontrei pela primeira vez em 1982 e com
quem falei rapidamente na cidade de Caloto e ao longo da estrada principal que
levava á planície, seis declararam que não tinham conhecimento da Niiía Maria.
Ao todo falei com três índios, dezesseis brancos e treze negros, todos adultos.
Somente cinco pessoas fizeram relatos que coincidiam com a história oficial.
“É uma imagem espanhola", disse a sobrinha do padre. “Os índios a rouba
ram Graças a ela conseguiam atacar os espanhóis e a veneravam Os espanhóis a
recuperaram e desde então conseguiram resistir aos índios."
“Os índios a cultuavam", enfatizou o padre. “Estimavam-na e foi por isso
que a levaram. Odiavam os brancos, mas não a religião."
Contrariamente a essas declarações, catorze pessoas me surpreenderam ao
dizer que ela era uma Virgem india, que apareceu em primeiro lugar para os índios e
não para os brancos, e que tinham sido estes que a roubaram dos índios! Seis
negros, seis brancos e dois índios prestaram esse depoimento. Um negro, pro
prietário de um pequenino armazém a um quilômetro da cidade, disse: “Alguns
indios a encontraram, porém mais do que isso eu não sei". Uma branca que
vendia café em uma aldeia das redondezas disse: “A Virgem apareceu para os
índios selvagens nos morros de Caloto para fazer com que eles tivessem fé”.
“É uma santa dos índios!”, exclamou uma mulher brancade meia-idade que
vendia amendoins na praça principal da cidade. “Esta terra era inteira deles e ela
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os protegia. Quando os espanhóis chegaram ela fez com que parecesse que exis
tiam milhares de guerreiros índios, e isto assustou os espanhóis, que fugiram’*
Uma negra que vendia bananas no mercado declarou: “Ela potência ao povo
índio, a seus caciques. Encontraram-na lá nas montanhas. Ela apareceu como se
fosse uma pessoa de verdade. Então outro grupo de índios a roubou. Os caciques
pegaram-na de volta e a puseram na igreja de Caloto. O grupo que a roubou
também queria sua coroa de ouro. Ela faz milagres, mas os índios não lhe dão o
devido valor. No dia 8 de setembro (sua festa anual) ficam terrivelmente bêba
dos. Porém têm muita fé nela, embora fiquem largados na sarjeta como cachor
ros. No ano passado um ladrão tentou roubar a coroa, que era vigiada por um
policial. O ladrão abriu a porta, mas por um milagre pareceu-lhe que tinha mais
de mil policiais montando guarda lá. Muitos pueblos sentem inveja de Caloto e
tentaram destruir a cidade e levar a Virgem embora. Invejam a Virgem tanto
quanto o pueblo. E por que a inveja? Ninguém consegue explicar a inveja; é que
o mundo tem gente de mau coração (gente de mala corazón)”.
Quatro pessoas não fizeram a menor menção a índios ou á história colonial
e à conquista. Em vez disso declararam que ela apareceu posteriormente, no
século XIX. Um negro, no ônibus que entrava na cidade, disse simplesmente que
ela apareceu pela primeira vez na época da Guerra Civil, a fim de salvar o Par
tido Conservador. Um barbeiro, homem branco muito velho, sentado diante da
praça da qual se avistava a igreja, disse que ela apareceu durante “as guerras”,
isto é, as guerras entre os liberais e os conservadores. Os liberais, muito confian
tes, atacavam a cidade mas fugiram, atemorizados; a Nina Maria havia criado uma
ilusão de barulho e confusão, dando a impressão de que a cidade era defendida por
conservadores que superavam em grande número seus atacantes. O rapaz branco
que tomava conta do salão de bilhar ao lado da barbearia disse que não conhecia
de fato sua história, mas que ela apareceu durante a Violência, isto é, aqueles
embates sangrentos entre liberais e conservadores que devastaram boa parte da
Colômbia rural de 1948 a 1958.
Na cidadezinha predominantemente negra de Puerto Tejada, vizinha de Caloto,
um amigo me disse que a primeira aparição da Virgem ocorreu durante a Guerra
dos Mil Dias, que durou de 1899 a 1901. Um famoso general negro, Juan Zappe,
habitualmente conservador (mas, até certo ponto, um camaleão), travava, junta
mente com seus guerrilheiros, um árduo combate com as tropas liberais. Sua muni
ção quase chegara ao fim. A derrota parecia certa. Então a Nina Maria apareceu
milagrosamente, provocando alucinações no inimigo e criando a ilusão de que os
conservadores eram muito mais fortes do que parecia. Então os homens do gene
ral Zappe foram vitoriosos, e atualmente a família Zappe participa orgulhosa
mente todo ano da festa da Nina Maria em Caloto.
Uma senhora de certa idade, Ana Guambia, faz parte da elite de Caloto. É
pintora e é a principal, se não a única, estimuladora do movimento de folclore local.
Ela encara a Virgem milagrosa como uma arma mágica quando se trata de confli
189
tos raciais e espirituais. Afirma que os espanhóis eram muito supersticiosos, bem
como os índios, e que, em suas campanhas de conquista, eles transportavam uma
imagem da Virgem, possivelmente feita em Quito, que os protegia. Os índios
compreenderam esse fato. Entenderam que a Virgem era uma arma mágica e
decidiram roubá-la, minando desse modo o poder de seus opressores. Eles se
apoderaram da imagem c começaram a destruí-la. Hoje percebe-se que embora o
rosto ainda esteja perfeito, debaixo das roupas seu corpo está desfigurado. Então
os índios começaram a padecer de pragas, tais como a varíola e o sarampo, seu
cacique morreu de um ataque cardíaco e eles começaram a se dar conta de que
em vez de destruí-la deveriam venerá-la. Foi então que os espanhóis a encontraram,
adorada pelos índios, que a cobriam inteiramente de flores.
Finalmente uma enfermeira negra que atendia um amigo meu que estava à
beira da morte, nos arredores da cidade, em uma choupana encostada nos cana
viais, fez uma ligação lírica entre a Nina Maria e o Senhor dos Milagres de Buga,
a uns 200 quilômetros ao norte de Caloto.
“Alguns índios a encontraram num bambual, e daí ela foi embora. Estava
descalça. Os índios voltaram a encontrá-la, trouxeram-na para Caloto e começa
ram a fazer festas para ela. Você não viu?", perguntou-me. “É uma fies ta de
índios!" Fez uma pausa. “As pessoas contam que quando ela foi embora, partiu
para Buga, a fim de ficar com o Senhor dos Milagres, pois naquela época ele era
uma criança.”
Um diálogo de dupla visão
Das 36 pessoas com quem conversei, seis declararam não ter conhecimento
da gênese da Nina Maria. Apenas cinco coincidem com a história oficial. Alegam
que a imagem pertenceu aos espanhóis, que foi brutalmente roubada por índios
canibais e que seu poder milagroso foi truzido a este mundo por selvagens que
sucumbiram a seu encanto cristão.
Em completa contradição com a história oficial, a versão oral mais comum,
sustentada por negros, brancos e índios, afirma que os espanhóis roubaram a ima
gem dos índios e que se trata de um ícone essencialmente indígena. Isto abrange
vários relatos, com diferentes implicações políticas.
No relato da negra que vende bananas no mercado, dois temas de importân
cia são abordados. Reconhecendo que a Virgem milagrosa pertencia inicialmente
ao povo indígena e que este deposita grande fé nela, a vendedora de bananas nota
que os índios não a apreciam devidamente. Ficam bêbados em sua festa, esten
dem-se na sarjeta como cachorros. Ao passo que a bestialidade do índio é neces
sária para trazer ao mundo a Virgem e seus poderes milagrosos, uma apreciação
consciente, a percepção, os cuidados subseqüentes e o desenvolvimento desse poder
requerem uma sensibilidade muito diferente, isto é, aquela associada a quem não
190
é índio. Existe aqui uma divisão racial do trabalho espiritual na criação do poder
milagroso da santa, na qual o índio bestial, pagão e selvagem, é necessário, do
mesmo modo que um cachorro ou um bêbado conseguem sentir e atrair influên
cias às quais um homem civilizado e sóbrio é insensível
Um segundo tema no relato da vendedora de bananas diz respeito á impor
tância primordial da inveja, da reciprocidade e da ilusão. A Virgem estimula a
inveja da parte de outros pueblos, da mesma forma que protege Caloto da agres
são dos invejosos. Ao estimular e desviar a inveja ela apresenta um dilema bá
sico não apenas para a feitiçaria e a cura mágica, mas para os relacionamentos
interpessoais em geral, tão vividamente ilustrados nas vidas de Rosário e José
Garcia. A exemplo do que acontece com eles, a alucinação salta do seio da in
veja, rompe-o e faz com que essa inveja seja provocada, resolvida ou ambos.
Além do mais, o modo pelo qual a Virgem protege seu povo da inveja que ela
estimula nos outros consiste em induzir á alucinação, transformando uma reali
dade em outra, e com isso causando confusão. Pelo que foi dito, a alucinação se
fez presente nas guerras de conquista, nas da independência, nas guerras civis do
século XIX, na Violência de meados deste século e há alguns meses, quando um
ladrão tentou roubar a coroa da Nina Maria (cabe notar aqui que a magia é usada
a fim de impedir o roubo na Colômbia, e na maioria dos casos de que tenho
conhecimento o objetivo dessa magia é o mesmo atribuído à Virgem, isto é, criar
o medo, quando não a confusão, por meio da ilusão de uma força protetora, tal
como uma cobra ou uma onça).
Voltemos agora â mulher que vende amendoins na praça. Ela disse que a
Virgem é umasanta dos índios. Esta terra lhes pertencia. Ela os protegia. Quando
os espanhóis chegaram ela fez com que parecesse existir um número imenso de
guerreiros índios, e isso assustou e afugentou os espanhóis. O que me parece intri
gante é que o poder mágico da Virgem no sentido de criar uma realidade assusta
dora por meio da ilusão é empregado primeiramente contra 06 espanhóis, sustentando
seus mitos e fantasias relativas aos poderes dos índios. Além do mais, a história,
tal como é narrada, reconhece a base ilusória desse poder imputado ao índio
selvagem Essa história fala ao mesmo tempo do que está dentro e do que está
fora do encantamento da magia, registrando assim não apenas uma duplicidade
da epistemologia, como também dois universos separados. Cada um deles requer
o outro, cada um deles demole o outro. Se quisermos, este é o paradoxo da
própria noção da ilusão — menos real, igualmente real, mais do que aquilo que é
realmente real e do que aquilo que toma o real realmente real. Tal é a fé que
compõe as histórias que compõem a Virgem e seus milagrosos poderes.
Por detrás dos poderes ilusórios da Virgem mascara-se, é claro, a ilusão da
imagem do índio como um ser composto e decomposto pelo fluxo e refluxo da
história colonial. Em ambas as instâncias, a da Virgem milagrosa dependente do
índio e a do índio dependente da Virgem milagrosa, o princípio de adesão à reali
dade da história não deixa de assemelhar-se ao princípio da colagem, na qual a
apresentação coexiste com a representação e na qual cada ordem da realidade
aliena, quando não zomba da outra.
Em outro registro essa colagem se manifesta através da mulher branca vende
dora de café, que dizia que a Virgem pertence aos índios e apareceu para tomá-
los cristãos. Quase equivale a dizer que a função histórica da Virgem é política,
de acomodar o pagão ao deus do conquistador e, assim, neste caso, estabelecer a
legitimidade divina do domínio do branco. É a crítica familiar que se fez ás virgens
mágicas: são criaturas inventadas por clérigos astutos a fim de ludibriarem índios
crédulos. No entanto sentimo-nos tentados a perguntar por que eles se mostraram
tão crédulos em relação a esta questão específica? E se eles se deixavam enganar
com tamanha facilidade, por que os eclesiásticos precisavam recorrer a meios tão
tortuosos para levá-los a acreditar no deus dos espanhóis e em sua mãe virginal?
Além do mais, não é a crença dos índios que se questiona aqui, mas a crença do
branco em relação à do índio. O fato é que a vendedora de café, que observou
que a Virgem apareceu primeiro para índios, e assim agiu para tomá-los crentes,
é ela mesma uma crente no poder milagroso da Virgem. A força e a lógica que
sua declaração encerra, enquanto interpretação cética, depende da própria fé e a
presume.
Não apenas a fé no poder da Virgem em fazer milagres é criada e reprodu
zida através desse duplo entrelaçamento de uma concepção que se apóia em um
relato fixo, e não apenas os relatos se contradizem mutuamente, como, em geral,
contestam a voz oficial da própria Igreja. Creio que isto aponta para algo que vai
além da simples negação, multiplicidade ou dialética. Em vez disso, parece que a
vida do ícone e, portanto, a realidade do milagre, depende da reprodução social
de uma realidade constantemente inconstante, na qual o significado depende de
seu oposto e ao mesmo tempo o destrói, em um confronto incessante com a fonte
da verdade formalmente institucionalizada. A fim de repelir o inimigo e extrair a
vitória de uma derrota, a imagem da Virgem cria mais imagens, que, ao que se
diz, não passam de ilusões.
Historiografia virginal
Quando nos debruçamos sobre os quatro relatos, nos quais jamais se faz
menção ao papel do índio pagão em omitir o poder salvacionista da Virgem, somos
inclinados a indagar mais incisivamente que espécie de historiografia a imagem
alimenta e expressa através do discurso. Embora seja tentador dizer que um ícone
tal como a Virgem de Caloto possa preservar mitos de origem da sociedade colo
nial, esses relatos indicam, além do mais, que os mitos de origem permitem que
o ponto originário deslize pelo tempo ou o salte a fim de representar diferentes
acontecimentos. Nesses quatro relatos a origem da Virgem é deslocada para
diante e situada em outros campos de batalha, nas guerras de independência tra
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vadas no século XIX, nas guerras civis que lhe sucederam e na Violência de
meados do século XX. Enraizada em deteiminada paisagem, tão mítica quanto
física, enraizada cm um determinado partido político, o Conservador, a Virgem
está livre para perambular através de um tempo cronológico e para fixar aconte
cimentos memoráveis mediante o frescor de sua gênese recorrente.
Ao agir assim ela serve como um lembrete de pontos focais da história
social, pontos revestidos do tempo messiânico de perseguição e salvação da co
munidade moral A função mnemónica reabastece o presente com temas e oposições
mfticas, colocadas em uma atuação semiótica no teatro da justiça e da redenção divinas.
A magia do índio — obstáculo pagão, militante, anticristo, ao ouro das re
giões incultas — coloca a Virgem em seu curso redentor. A ironia divinamente
forjada, por meio da qual, em sua derrota, os índios descobrem e também criam a
defensora milagrosa de seus conquistadores, estabelece o complexo das relações
míticas e mágicas com o qual os relatos compõem e decompõem a história da
Virgem Quando a voz do índio já não se faz mais ouvir, a figura mais genérica
de um intruso ameaçador e de um “Outro Invejoso” emerge nos partidários da
realeza, no século XIX, ou nos partidários liberais das guerras civis e da Violên
cia, omitindo a recorrência contrastante do milagre.
Trata-se de um processo hermenêutico, politizado, sensível á raça e à classe,
de interação semiótica com a estrutura de signos estabelecidos como imagens na
experiência social, introduzido pela conquista espanhola. Incrustada em ícones
coloniais tais como a Nina Maria de Caloto, tal estrutura é trazida para a vida
diária não como um modelo inerte e fixo, mas, ao contrario, existe por meio de
uma criatividade espasmódica, dialógica, e como gama de possibilidades inter-
pretativas. A esse respeito, vale notar que o relato oral mais comum cm temo da
gênese da virgem subverte a fala oficial do passado, tal como é proposta pela Igreja,
ao mesmo tempo em que mantém fidelidade à forma santificada pela autoridade
dessa mesma Igreja.
Referi-me à imagem e aos relatos que derivam dela, circulam em tomo dela
e a ela retomam, como se se tratasse da mesma coisa. É uma ordem de realidade
que existe em dois meios distintos — por um lado, a boneca de madeira e, por
outro, os relatos que adornam e animam sua nudez virginal Eu disse “imagem”,
quando poderia muito bem ter dito “a comunidade de pessoas entre as quais a
imagem existe, a comunidade de pessoas que realizam o imaginário e, por meio
disto, trazem a imagem para a vida, em um procedimento que se repete muitas
vezes”. É claro que é um fetichismo revestir a imagem per se de um papel ativo,
tendo em vista aquilo que, na realidade, é uma relação de reciprocidade entre
aquele que vê e aquilo que é visto.
Chegara o momento de examinar com maiores detalhes o relacionamento
daqueles que vêem com a imagem vista. Neste momento quero colocar o leitor
de sobreaviso em relação a um tipo de cegueira, presente em pessoas preparadas,
que podem apreender esse relacionamento como algo análogo àquele modelo
193
conhecido, agora tão na moda, de texto e leitor, no qual é creditado a este último
um papel significativamente ativo na construção do texto que está sendo lido.
Neste momento a analogia tem sua utilidade somente se a compreendermos
como algo mais brutalmente político e mais finamente nuançado do que se cos
tuma elaborar. Para tanto basta nos reportarmosao passado e pensarmos na cons
trução dialógica do imaginário da tortura e nos horrores do boom da borracha no
Putumayo para avaliarmos o que foi uma política brutal. Quanto ao segundo
aspecto, que diz respeito à sutileza, ele pode ser indicado ao nos referirmos à
formação de imagem que ocorre no relacionamento entre os xamãs do Putumayo
e seus pacientes, um relacionamento que em geral muito nos tem a ensinar quanto á
construção dialógica dos tumultos da alma e da formação de imagem corporal
mente eficaz. Pois aqui, ao que se diz, o xamã é aquele que verdadeiramente vê
e, em virtude dessa capacidade, proporciona ao paciente, aquele que não conse
gue ver, as imagens curadoras — a pinta ou pintura.* Porém não é tanto o xamã
quanto o paciente que confere fala e forma narrativa a essas imagens, as quais
não apenas perturbam mas também podem modificar a percepção, o registro de
uma vida, bem como os relacionamentos sociais. Assim, é na atividade combi
nada daquele que vê mas não fala do que é visto, juntamente com o paciente que
fala, mas que não vê verdadeiramente, que encontramos a fusão de uma forma
ção de imagem socialmente eficaz. Ao que parece, não deixa de ser o caso de
ícones mudos, tais como a Virgem de Caloto que, a exemplo do xamã, provocam
imagens (pinta, pintura). Outras pessoas, desprovidas dessa visão, resgatam essas
imagens por meio da fala e dos relatos. Ao agir assim, elas também resgatam a fé
messiânica no milagre e em pontos focais que condensam retroativamente, sob
forma de colagetn, a epopéia da conquista imperialista, das lutas da independência,
das guerras civis e da Violência.
O imaginário dialético e a tarefa do crítico
Este tipo de historiografia que se apóia na formação e na dependência da
imagem é também o tema de uma contribuição agudamente excêntrica à teoria
da revolução social, elaborada na Europa ocidental no século XX. Refiro-me aos
conceitos de crítica redentora e de imagens dialéticas, desenvolvidos por Walter
Benjamin. Em sua juventude, em 1914, Benjamin invocava exatamente aquele
tipo de historiografia tal como é exibida na formação de imagem provoada pela
Virgem de Caloto. Contrário à visão da história como algo que se apresenta como
um conünuum progressivo, o jovem Benjamin introduzia o conceito de que “a his
tória permanece acumulada em um ponto focal, tal como acontecia outrora com
* Entre os adeptos da União do Vegetal e do Santo Daime, dois grupos devoeionais brasileiros que
consomem a ayahuasca (ou yagi) com finalidades religiosas; a pinta é conhecida como miração. (N. T.)
194
as imagens utópicas dos pensadores. Os elementos da condição final não se en
contram presentes como tendências de progresso, desprovidas de forma, mas, em
vez disso, estão incrustadas em cada presente como criações e idéias expostas a
um perigo, condenadas e ridicularizadas”. A tarefa histórica, prosseguia ele,
“consiste em conferir forma absoluta, de modo autêntico, á condição imanente da
realização, a fim de tomá-la visível e predominante no presente”.1
A tarefa do crítico da obra de arte consiste, portanto, em associar-se a essa
tarefa de redenção, resgatando, conforme coloca Richatd Wolin, “as poucas vi
sões únicas de transcendência que embelezam o continuum da história". Com
toda certeza não será precisamente isto que os camponeses e habitantes urbanos
de Caloto inserem em todo presente, ao nos oferecerem suas versões sobre as
origens da Virgem no passado? Somente aqui os fragmentos seculares e teológi
cos desse passado apresentam uma configuração mais nítida, mais concreta,
menos grandiosa e mais brechtiana do que aquela sugerida pelo tom grandilo
qüente da formulação de Benjamin. É a terra do índio, por exemplo, tanto quanto
o fato de eles elidirem a força messiânica da história, que constitui o enfoque
dessa história; é o alarido confuso da batalha, das guerras raciais e das guerras
das civilizações que ressoa através desta visão da transcendência, a qual embe
leza o continuum da história.
Mais tarde, em outra época de sua vida, quando reajustou a critica redentora
a fim de fundi-la com sua ligação idiossincrática ao marxismo, Benjamin referiu-
se a sua tarefa como algo que envolvia a “dialética em um momento de pausa”. A
galeria de imagens com que se preocupa o crítico da alta cultura agora se ex
pande e inclui aquele imaginário que incendeia a imaginação popular. Se, por meio
dessa expansão, a história da arte chega mais perto de uma visão da história
enquanto arte, não se deve esquecer que, para Benjamin, esta é uma visão da arte
que se apóia no conflito de classes, bem como uma visão messiânica. Ela vincula
o parecer de que, enquanto o poder das idéias e a ideologia se situam mais no
reino das imagens e de que não pode existir um desejo revolucionário desprovido
de uma representação pictórica exata, essa capacidade das imagens foi bloqueada,
com exceção de raras ocasiões, pelas representações da classe dirigente em tomo
do passado que esse imaginário evocava. “Esse salto para o passado”, escreveu
Benjamin, sobre a evocação imagética da Roma antiga pela Revolução Francesa,
“se exerce em uma arena onde a classe dirigente dá as ordens”. No entanto, o
mesmo salto “em direção ao ar livre da história é o salto dialético, que é como
Marx entendeu a revolução”.2
Incitando o critico a arquitetar modos de libertar o imaginário do peso debi-
litador da tradição e da prisão das classes dirigentes, Benjamin parece sugerir que as
imagens ou pelo menos algumas delas conduzem a essa tarefa. Por isso o crítico
dedicado ao método da “dialética em um momento de pausa” é exortado a não
forçar a dialética através de imagens, mas a trabalhar com esse potencial desesta-
bilizador e a nutri-lo, quando e onde ele existir enquanto sinal de um término
messiânico do acontecer. Em suas próprias palavras, guando se aproximava do
fim da existência, ele definiu mais ou menos essa tarefa (foi em 1940, após os
acontecimentos turbulentos que se seguiram ao pacto Stalin-Hitler):
!
O pensar envolve não somente o fluxo de pensamentos, mas também sua suspensão.
L i onde o pensar se detém subitamente em uma configuração prenhe de tensões, ele dá a
essa configuração um choque, através do qual a cristaliza em uma mônada. Um materialista
histórico aproxima-se de um tema histórico somente quando o encontra como uma mônada.
Nessa estrutura ele reconhece o signo de um término messiânico do acontecer ou, dito de
outro modo, como uma oportunidade revolucionária, na luta pelo passado oprimido. Toma
conhecimento dele a fim de detonar uma era específica, subtraindo-a ao curso homogêneo
da história. Detona uma vida especifica, subtraindo-a dessa era, ou uma obra específica,
subtraindo-a à obra de toda uma vida.3
No entanto, apesar de sua ousadia, ele hesita. Há uma falha no atrevimento
com que ele concebe a imagem dialética; há ênfase excessiva na tarefa do crítico
enquanto ativista e não há confiança suficiente no modo como as imagens (pelo
menos algumas) se comportam na cultura popular. Para elidir a dialética de ima
gens como essas, pelo menos no Terceiro Mundo, a varinha mágica e dialética do
formador de imagens precisa apenas de uma leve pancada.
Tome-se como exemplo a Virgem de Caloto. Aqui não há necessidade de se
recorrer à mão pesada da arte surrealista, não é preciso invocar como metáfora o
término messiânico do tempo, não há por que se dar ao trabalho de contestar a
visão oficial do passado evocado pela imagem e, acima de tudo, não há necessi
dade de ir além dos limites, argumentando que a imagem pode funcionar como
“mônada” no sentido a que anteriormente me referi. Tudo isto existe como uma
ocorrência cotidiana na maravilhosa realidade continuamente evocada através da
criação dialógica da vida da Virgem e da força vital.
Talvez o escrito de Benjamin relativo a esse estratagema tão fundamentalpara sua concepção do artista e do crítico revolucionários tivesse se beneficiado
de um estudo mais detido de algumas imagens populares, tal como a da Virgem
de Caloto. No entanto é possível que seja realmente isso que Alejo Carpentier
assinala no prólogo de The kingdom o fth is world [O reino deste mundo]: en
quanto os surrealistas europeus eram condenados por sua sociedade e suas tradi
ções (incluindo as de revolução e rebelião) a manipular e a justapor desajeitadamente
um imaginário impróprio, construindo laboriosamente realidades descomunais,
nas colônias e ex-colônias européias algo semelhante ao realismo era inerente
enquanto prática social profundamente incrustada na vida cotidiana. Quanto ao
surrealismo, o mesmo (gostaria de sugerir) se dá em relação às imagens dialéti
cas. A diferença critica entre suas expressões européias e coloniais é que en
quanto na Europa elas eram grandemente ignoradas pelo populacho, ainda que
(para os surrealistas) “a serviço da revolução", nas colônias e ex-colônias tais
expressões são intrínsecas à forma de vida e estão a serviço de seus mágicos,
sacerdotes e feiticeiros.
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Raramente Bcnjamin conseguiu afastar-se dessa sua paixão pela melanco
lia. Não era tarefa fácil para uma alma tão firmemente ligada à promessa reden
tora de um passado cujo traço, levado â quintessência, reside na premonição da
catástrofe. No entanto o surrealismo evocava nele um apreço pelos modos graças
aos quais a risada conseguia fazer o mundo rachar, expondo as terminações ner
vosas da zona de luta do formador de imagens politizado, na qual “a esfera da
imagem, há tanto tempo procurada, se abre... em uma palavra, a esfera na qual o
materialismo político e a natureza física compartilham o homem interior”. Pois
se o surrealismo tentava modificar aquela trouxa de feitiços que contém repre
sentações míticas nas quais se baseia a cultura ocidental, e o fazia usando ima
gens que acionavam amplas contradições, abrindo as portas para o maravilhoso,
sua própria representação tinha de ser icônica e irônica, trazendo à mente não
apenas a análise de Freud relativa ao imaginário inconsciente minado e subver
tido pelas piadas, mas também o fascínio que Mikhail Bakhtin e Georges Bataille
experimentavam pela poética anarquista, a qual mesclava o grotesco e o jocoso
em sublevações de de-gradação e renovação, que se assemelhavam a um carnaval.
E aqui penso no “realismo mágico” dos romancistas latino-americanos. Suas
criticas deixam a desejar. Existe uma verdade quando Carpentier alega que os
europeus estavam forçando a porta que se abre para o maravilhoso em suas pró
prias sociedades com um desespero de brutos, enquanto que nas colônias esta
vam entreabertas, quando não escancaradas. No entanto nem em sua obra, nem
na de Arguedas, Asturias ou Garcia Márquez ouve-se, segundo me parece, a força
da risada e da anarquia acentuando o reino enevoado do maravilhoso. Com ex
cessiva freqüência o espanto que sustenta suas histórias é representado de acordo
com uma tradição do folclore, de exótico e de indigenismo há muito estabeleci
dos e que, ao oscilar entre o engraçadinho e o romântico, é pouco mais do que a
apropriação padronizada da classe dominante em relação àquilo que é conside
rado a vitalidade sensual do povo e de seu imaginário. No entanto, para os sur
realistas, precisamente devido á extremada autoconsciência que caminhava de
par em par com o “desespero de brutos”, permaneciam gravados como um axioma
o espanto e a irritação expressos por Wilhelm Fliess, otorrino de Berlim, que,
após l a as provas de A interpretação dos sonhos, de autoria de seu bom amigo
Dr. Freud, no outono de 1899, queixou-se de que os sonhos apresentavam um
excesso de piadas.
Isto nos leva de volta ao universo das piadas e da atuação semiótica nos sonhos
presentes na iconografia popular. Penso aqui não apenas no dedilhar da corda da
derrota e da salvação que cria uma multiplicidade de versões relativas à Virgem e
que faz malabarismos com a semiótica do milagre. Penso também no modo como
o tom pesado e a autoridade mística da voz oficial do passado é atraída para a terra e
familiarizada com uma sagacidade amável e, de vez em quando, picante. As
evidências indicam que a profusão de variações que unem e desunem uma reali
dade diversa é obra de uma atividade que esvazia a sistematicidade. Trata-se de
197
um estratagema no qual se brinca com as palavras, com toda sua multiplicidade
e duplas epistemologias, com as pretensões de uma língua mestra, não simples
mente manifestada mas reivindicada pelas classes dirigentes. “Alguns índios en
contraram-na em uma moita de bambus", este foi o relato que me foi feito,
acompanhado de uma risada da enfermeira que atendeu nossa amiga, moribunda
nas proximidades de um canavial. “E então ela se foi... 0 povo diz que quando
ela foi embora dirigiu-se a Buga para ficar com o Senhor dos Milagres, pois ele
também era uma criança.”
Nessa reflexão posterior da enfermeira a perspicácia cria outro mundo e
outro modo de ver. A traquinagem dos santos, mais do que ser revelada, é um
deleite e com o mesmo assomo generoso de emoção o Norte do vale, em Buga, é
ligado à região Sul do vale, em Caloto. O Senhor dos Milagres de Buga, majesto
samente arredio, é trazido suavemente para a tara, para a materialidade e para o
povo graças ao encontro amoroso pré-púbere que ocorre entre ele a Ninã Maria,
que tanto gosta de viajar.
Talvez a coisa funcicme assim: embora as aparições dela sejam milagrosas,
seus desaparecimentos é que a tomam humana. Nisto também existe algo forte
mente anticlerical, como se o fato de notar os desaparecimentos levasse a notar
os direitos do povo em relação à Igreja, que a tranca durante a noite. Algumas
vezes isto se toma muito claro, a exemplo do que ocorreu com a Virgem da ilha
do lago Cocha, ao leste do Peru, a qual, de acordo com o depoimento de um velho
soldado que participou da guerra contra o Peru, travada no Putumayo em 1933,
foi descoberta pelos índios e desaparecia toda vez que o padre comparecia a sua
capela a fim de celebrar a missa. As pessoas comentavam que ela ia visitar a
Nina Maria na distante localidade de Caloto, relatou-me o velho soldado.
Talvez exista uma vida secreta e uma oculta Sociedade de Santos e Virgens
da qual a Igreja não tem conhecimento. Talvez essa sociedade inclua não apenas
santos e virgens famosos na Colômbia ocidental, mas também admita santos
populares de outros lugares, tão distantes quanto a Venezuela, por exemplo, de
onde vieram El Negro Felipe e José Gregorio Hemández. Nessa sociedade os
santos se parecem mais conosco e talvez até mesmo se assemelhem a nossos
filhos. Como estamos longe daqueles semblantes impassíveis que eles exibem apati
camente para os fiéis, quando ficam escondidos atrás do altar ou quando posam
para suas estampas vendidas no mercado e nas ruas! E se as pessoas gostam de
preencher as vidas dos santos e das virgens com paixões por demais humanas,
deslocando assim o monólogo inscrito pela Igreja, esses mesmos santos e virgens
preenchem a paisagem por meio de significados inscritos pelas rotas de suas
inter-relações. Dado que são humanos, bem como sagrados, não seria correto
afirmar que eles, em conseqüência, “santificam” padrões espaciais, a menos que
endossemos uma noção de santidade que apóie o vigor das fraquezas humanas.
Sc assim agirmos poderemos então descrever um contorno “sagrado” da terra,
composto de pedacinhos e fragmentos interligados, referentes aos significados
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dos lugares. As tomarias, os ritos pata curar o infortúnio, os hctbanários ambu
lantes e os curadores populares trazem intermitentemente à luz esses contornos e
lugares, os quais, acima de tudo, não passam de redes implícitas, de trilhas esfuma-
çadas, que só se manifestam indiretamente através das fendas, sonhos e anedotas
davida cotidiana.
Algumas vezes os ícones da Igreja interagem com os do Estado. Cali, a
maior cidade do Sudoeste da Colômbia, está no ângulo onde as planícies se inter
penetram com as alcantiladas encostas dos Andes. Dominando e protegendo a
cidade desde cima, no pico da montanha, encontra-se uma enorme estátua de
Cristo crucificado, com os braços estendidos. Lá na cidade, segundo me afirmou
um de seus jovens vagabundos, há uma estátua em homenagem ao fundador da
cidade, o grande conquistador Sebastián Benalcázar. Ele é representado de pé,
numa postura tensa e, em vez de empunhar uma espada, leva a mão à cintura.
Furioso, mal pode acreditar que acabam de lhe roubar a carteira (é preciso assi
nalar que Cali é notória por seus batedores de carteira). Com a outra mão aponta
não para o sonho do sublime e para as futuras perspectivas da cidade que fundou,
mas para outra estátua, a do primeiro prefeito de Cali (conforme diz meu jovem
amigo), acusando-o de toubo. O prefeito, por sua vez, defende-se apontando para
a estátua de outro dignitário da cidade, o qual aponta em direção á montanha,
assinalando nada menos do que o próprio Cristo, que estica os braços, como se
estivesse se submetendo a uma inspeção da polícia: “Não roubei nada. Podem
verificar!”. O fado do vagabundo utbano e o de Cristo são assim unidos, mas
ambos são injustamente acusados pelos fundadores da cidade, pelos conquista
dores e pelos bons burgueses.
A Virgem e o Arcanjo
Bem ao sul, na escarpa rochosa de uma profunda ravina, lá no alto dos
Andes, e próximo a uma estrada, verdadeira montanha-russa que se dirige para o
Equador, há uma representação pictórica da Virgem de Lajas. A intensidade com
a qual ela irradia a fantasia popular pode ser aferida por sua presença nas visões
provocadas pelo yagé em Pedro, filho de Rosário, bem longe, nos contrafortes
orientais, onde seu poder se difunde ainda mais, ao longo dos cursos de água e
dos grandes rios como o Putumayo e o Caquetá, os quais acabam por criar o Ama
zonas. Negros, brancos, índios, mesmo os da longínqua floresta tropical, vêm
visitar a Virgem
Salvador, o grande xamã Cofán que trouxe Santiago de volta do abismo da
morte, foi visitar a Virgem de Lajas quando sua filha mais velha ficou cega. Ela
se recusara a dar a mão em casamento a um colonialista negro, conforme me narrou
sua mãe muitos anos mais tarde. Ele enfiou uma agulha em um retrato dela,
furando-lhe o olho e ela ficou cega daquele olho. Pediu novamente sua mão e ela
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tomou a recusar. Mais uma vez ele furou o retrato e cegou o outro olho. Salvador
tentou curá-la por meio de seus cânticos, juntamente com yagé e com suas ervas,
mas sem resultado. Seguiram então o curso do rio, através da floresta, e subiram
a montanha até as cidades e o santuário da Virgem, mas a filha estava muito triste.
“É preferível eu partir com a Virgem a ficar cega”, ela confidenciou a sua mãe e
logo após morreu. Somente muito mais tarde eles ficaram sabendo da história do
colonialista e do retrato, quando ele se embebedou e mostrou os olhos vazados
da fotografia para o cunhado de Salvador, que estava bebendo com ele. Salvador
não tomou nenhuma atitude, afirmando que Deus puniria o culpado.
A exemplo do que ocorreu com o Senhor dos Milagres em Buga, com Nossa
Senhora dos Remédios em Cali e com a Nina Maria de Caloto, a Virgem de
Lajas também foi descoberta por um índio. De acordo com o padre Augustín M
Cora, em seu livro Nuestra Senora dei Rosário de las Lajas (publicado em Bo
gotá em 1954), a Virgem de Lajas fez sua aparição em 1794, na ravina de Lajas,
próximo a Ipiales. É uma ravina espetacular, vista pelos viajantes como a boca
do inferno, onde o diabo apoderou-se de mais de uma vítima, precipitando gente
no rio Guáitara, lá embaixo. O filho de uma das famílias proeminentes de Pasto
ouviu dizer que sua velha ama-de-leite, uma índia, estava vivendo na miséria, no
campo, e foi buscá-la para que ela morasse no conforto de sua casa. Quando
atravessavam a ravina ela ouviu som de música. Contornou algumas pedras e eis
que viu a Virgem. Nesse momento entrou em transe, chamando seu companheiro
para que testemunhasse o que estava acontecendo. Assim que pôs os olhos na
Virgem ele desmaiou, e as aparências indicavam que havia morrido. Ela andou a
noite inteira, até Pasto, onde deu o alarme. No dia seguinte o padre e outras
pessoas apressaram-se a ir até o local da aparição e o encontraram vivo, ajoe
lhado diante da Virgem, com o rosto banhado de lágrimas.
No entanto, a exemplo do que sucedeu com a Nina Maria de Caloto, a história
oficial é apenas um dado em uma miscelânea de vozes que, por meio de suas
diferenças interligadas, conferem vida aos poderes milagrosos da Virgem
Rosário e seu marido virtualmente viraram às avessas o relato oficial, di
zendo-me que a Virgem de Lajas não foi encontrada por uma índia que era con
duzida por um branco rico, mas por uma índia que viajava sozinha, trazendo um
bebê às costas. Não foi para a mulher que a virgem apareceu, mas para o bebê.
“Olhe”, disse o bebê. E lá estava ela.
Dona Emilia, uma negra velha e pobre que estava sendo tratada de reuma
tismo por Santiago, contou-me que a virgem é milagrosa, faz milagres e que
visitou-a em seu santuário quatro vezes. Quanto à origem da Virgem, disse o
seguinte: “Há muito tempo uma índia andava por lá com sua filhinha, à procura
de lenha. A filha disse: ‘Mamãe! Olhe! Aquela mestiza está me chamando’”.
Dona Emilia explica que mestiza não é simplesmente filha de índio com branco,
mas uma gringa, uma forasteira de pele clara. A denominação racial, expressa
pela criança, deixando de lado seu significado específico de gringa, tomou-se
200
ainda mais significativa quando o neto de Santiago, o menino César, de 10 anos
de idade, que visitava o avô vindo de Caquetá, afirmou, ao ouvir nossa conversa,
que a meninazinha, até aquele momento epiíânico, era muda! No momento cm
que viu a Virgem mestiza gringa, a indiazinha adquiriu o poder de falar (e de
mencionar categorias raciais).
A mãe de César, Natividad, também havia visitado a Virgem quatro vezes.
Por ocasião da última visita fazia-se acompanhar de sua sogra, que não viu a
Virgem como uma pintura, mas como uma estátua. “Seu olhar era vivo", disse
ela a Natividad. Outras pessoas também viram a transformação da Virgem em
uma escultura, bem como seu olhar. O filho de Rosário viu a Virgem do Carmo
modificar-se dessa forma por ocasião de uma visão com yagé, que ocorreu como
contraponto àquela que ele tivera de sua casa sendo objeto de feitiçaria. Ao ex
plicar a visão que tivera com a Virgem, descreveu o atemorizante cruzar de um
rio, necessário para chegar até ela, e contou como o sol iluminava a Virgem em
seu nicho no rochedo da ravina. Então, afastando-se do rochedo, ela tomou-se
“semelhante a uma mulher, viva, e me deu sua bênção", libertando-o e a sua
família do nicho rochoso da feitiçaria e da inveja.
“Para algumas pessoas ela simplesmente desaparece!”, comentou a mãe de
Natividad, Ambrosia, juntando-se a nós na cozinha, com um feixe de lenha nos
braços. Mas seu marido Santiago, xamã e homem de visão, jamais viu seu olhar
onde a vida brilha ou jamais a viu viva. Para ele a Viigem permanece na tela onde
está pintada, e eu, que jamais a vi, sou informado que no lado oposto da ravina,
diante dela, se encontra meu xará, meu tocayo, São Miguel, pisando com força
na serpente. Ambrosia, Natividad, Emilia e eu abanávamos a fumaça que tei
mava em entrar em nossos olhos. A conversa assumiu um tom animado. “A Vir
gem de Lajas consegue curar os doentes, os cegos e os aleijados", declarou
Ambrosia. “Ela também exorciza os pecadores.”
“Se você for com fé, será curado. Se não for com fé, nada acontece!”,
exclamou Natividad. Cada declaração sua era corroborada por uma réstia de sol
que atravessava a fumaça.
Introduzina conversa o tópico de índios que trouxeram santos e virgens
milagrosos para a sociedade da Colômbia como um todo. Natividad mencionou
mais um santo desses em Huila, fez uma pausa e disse: “É que nós, índios,
somos inocentes. É por isso".
“Mais religiosos”, interveio Roberto, seu marido.
“Mas isto foi antes", declarou Natividad. “Agora os índios degeneraram.”
Então, solenemente, deu uma risadinha. “Mas aquelas pessoas antigas”, prosseguiu,
“não eram apenas inocentes. Eram também muito selvagens. Comiam gente. Mata
vam gente. Viviam como animais... Pergunte a Don Santiago. Ainda existem
alguns que fazem assim”.
No relato eclesiástico de Nossa Senhora dos Remédios, em Cali, os índios
que participaram da descoberta da Virgem são excepcionalmente pacíficos. Na
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história eclesiástica da Virgem de Caloto, a Nina Maria, os índios são formida
velmente selvagens. O poder do índio pagão de revelar os signos milagrosos e os
santos de Deus a seus conquistadores cristãos é um poder que depende da ino
cência e da selvageria, de tal modo mesclados que, quando uma característica
como a inocência é enfatizada, é para fazer com que seu oposto reprimido, a
selvageria, se destaque através de sua ausência e com conotações emocional
mente ampliadas. Ao contrário disso, Natividad, filha de um xamã índio, traz
simultaneamente para nossa atenção a inocência e a selvageria do índio. Ela o
faz de tal modo que une o presente ao passado do mesmo modo como o pathos
se une ao humor, mediado pela Queda a partir de uma “inocência” que acolhe a
selvageria. Ela se refere a essa queda como sendo uma degeneração.
Na sala onde, durante vinte anos, seu pai curou negros e brancos com
aquele mesmo imaginário de inocência e selvageria, representado para eles em
sua própria pessoa, está dependurada uma estampa empoeirada de São Miguel
Arcanjo derrotando o demônio e precipitando-o na fumaça e nas chamas do in
ferno. Em sua mão esquerda ele segura a balança da justiça bem junto à cabeça
do demônio, enquanto que na direita empunha bem alto sua espada. Suas asas
estão estendidas. Com exceção da auréola, seu traje é o de um soldado, como um
antigo romano. Muitas vezes me surpreendi divagando em tomo desse quadro,
dependurado no centro da sala onde, durante tantos anos, muita gente tomou um
remédio alucinógeno e, graças ao cântico índio, debelou o demônio, assim como
São Miguel. Ele também se encontra naquela ravina distante, em frente á Virgem
de Lajas, e o modo como Ambrosia, Natividad e Emilia se referem a ele, na
cozinha, me levam a imaginar como tudo aquilo teria sido para o romeiro que
caminhava até lá atravessando um campo de poder composto pela Virgem em
um dos lados da ravina e o arcanjo do outro lado. Essa mestiza descoberta por
uma meninazinha índia é uma espécie de mãe para todos nós e, conforme Am
brosia declara, ela cura os doentes e limpa o pecado. Diante dela está aquele
guerreiro implacável que empurra o demônio para os infernos.
Não presenciei isto, mas muitas noites vi o velho Don Santiago, marido de
Ambrosia, lá nos infernos de uma região tórrida, situada bem abaixo do santuário
da Virgem, sentado em sua rede, do outro lado do retrato do arcanjo, coberto de
teias de aranha, rindo, enquanto as lágrimas desciam por seu rosto, cantando e
curando gente que se dobrava ao peso do infortúnio. Parece-me óbvio que curadores
como ele contêm a imagem da mãe e do guerreiro, do mesmo modo como sua filha
Natividad, por meio do pathos e da risada, junta a inocência e a selvageria índia,
de outro modo dividida entre relatos icônicos de imagens milagrosas, tais como
Nossa Senhora dos Remédios, a Mulher Selvagem da Floresta e a Nina Maria.
Com efeito, o peso das tradições do Velho Mundo ampara a visão de São
Miguel Arcanjo como uma entidade que contém em si os poderes duais de cura
dor e guerreiro. Donald Attwater diz que a referência existente no livro da Reve
lação á guerra travada no céu contribuiu para que São Miguel fosse honrado no
202
Ocidente, desde o início do cristianismo, como capitão das hostes celestiais, pro
tetor dos cristãos em geral e dos soldados em particular. No Oriente, entretanto,
bem como em Constantinopla, não era seu status de guerreiro, mas seu poder de
curar os doentes que importava.4
Acontece que esse arcanjo é também o padroeiro da cidadezinha de Mocoa.
Há um enorme quadro que o representa ao lado do altar, mas ninguém na locali
dade parece saber muita coisa a seu respeito. Creio que nenhum dos padres e
freiras saiba algo relativo a suas origens locais. Devo muito a Don Santiago por
ter tomado conhecimento delas. Ele recebeu esse conhecimento de seu papa
serior, seu avô, que teve uma existência notavelmente longa. Os últimos anos ele
os passou virtualmente dobrado em dois, devido ao peso dos padres e de outros
brancos que ele carregou Andes acima. Por sua vez papa senor ouvira folar da
chegada dos brancos por gente mais velha do que ele.
Foi de um tomador, um bebedor de yagé, que os índios em tomo de Mocoa
ouviram folar da chegada iminente dos brancos e, naquela visão, havia indícios de
dor e mal Antes de fugir, os índios esconderam seu santo mais precioso, São Mi
guel, na fortaleza labiríntica das raízes de um higuerón, que se erguia junto ao rio.
Quando os espanhóis chegaram eles puseram os santos dos índios no templo
deles, índios, e os usavam como cepos onde cortavam a carne. Chocados, alguns
índios fugiram com tamanha pressa que deixaram para trás seus filhinhos. Outros
ficaram, mas se recusaram a fazer o que quer que fosse e morreram lentamente.
Outros venderam suas terras por uma ninharia, por alguns facões ou uma trouxa
de roupa. Certa noite a cabana onde os espanhóis dormiam pegou fogo. Eles se
queimaram dos pés aos joelhos e perderam as pernas. Foi o castigo de Deus.
índios das colinas e das montanhas, de Aponte, Descanse, Yunguillo e Sibun-
doy desciam até o rio Mocoa para pescar. Naquele tempo o rio tinha peixes em
abundância. Eles retiravam o veneno barbasco das árvores â beira do rio e, ao
procurarem lenha, descobriram a imagem escondida de São Miguel, que coloca
ram na igreja da velha cidadezinha. Os espanhóis, sem pagá-los, os obrigaram a
construir uma nova igreja na cidade nova, rio abaixo, onde a estátua de São
Miguel se encontra até hoje.
“Se conseguir permissão dos padres, você poderá ver a imagem em uma
sala trancada, no fundo da igreja. É esculpida em madeira e é pequena”, disse
Santiago, levantando a mão a uns setenta centímetros do chão.
Fui até a igreja. O padre que me acompanhou até a sala trancada se mos
trava tão contrafeito quanto eu. É claro, assinalou ele, havia uma esplêndida ima
gem de São Miguel Arcanjo, que media cerca de um metro e meio, vestida com
armadura romana, composta de elmo, peitoral e botas compridas. O arcanjo piso
teava o demônio. No entanto, por mais que procurássemos entre os restos de asas,
braças e auréolas, naquela floresta de santos bem preservados e outros arruina
dos, não conseguimos encontrar outro São Miguel que não aquele.
203
“Mas ele está lá com toda certeza!”, insistiu Don Santiago, quando puxei
conversa com ele á noite. “Tem os braços erguidos, asas prateadas e é pequeno."
Voltei á igreja, ao depósito de santos, e lá, com efeito, se encontrava a
imagem O padre não tinha a menor idéia de quem era ou de que se tratava, mas,
no entanto, era a única que se ajustava à descrição de Santiago. Mas que tipo de
São Miguel era aquele? Não havia nem espada nem demônio. Em vez disso ele
flutuava, ajudado por asas de um comprimento desmesurado. Era um pequenino
querubim, com os braços e os olhos voltados para cima. Era o anjo mais meigo
que já foi esculpido.
204
11
Selvageria
Estou tentando reproduzir um modo de percepção, um jeito de enxergar
através do modo de falar, delineando o mundo por meio de um diálogoque se
toma vivo, provido de uma súbita força transformadora, que irrompe pelas fen
das pausas e justaposições da vida cotidiana, tal como ocorre nas cozinhas do
Putumayo ou nas ruas em tomo da igreja, no caso da Nina Maria. É também um
modo de representar o mundo, na “fala” sinuosa da colagem das coisas, como
nos coralitos (medicados pelos indios) em tomo dos punhos dos bebês. Trata-se
de um modo de percepção que opera nos escombros da história, tais como os
santos e virgens desprovidos de membros e auréolas, espalhados pela sala dos
fundos da igreja de Mocoa, onde a poeira cobre pedaços de um mundo sagrado
mutilado, reduzido a cepo de açougueiro. É um modo de percepção que coloca
em primeiro plano esses fragmentos, os quais invadem a ordem que reina no
altar, na obscuridade artificial da própria Igreja.
Essa inscrição nos limites da história oficial, esse “autêntico" e verdadeira
mente obscuro São Miguel, pequenino e desprovido de palavras, flutuando com
suas asas imensas nos confins do quarto de despejo da igreja, são imagens de espe
rança, irregulares e oscilantes. Em um acesso de sentimento poderemos querer
murmurar coisas encorajadoras e valentes sobre a “resistência" e daí por diante,
enfatizando a fragilidade de tais vozes contra-hegemônicas e de significantes por
tadores de asas encarnes, prontos para voar. No entanto esse tipo de resposta
destina-se mais a nós do que àquelas vozes. Somos nós que obtemos coragem,
graças àquela confluência de força e fragilidade, a força na fragilidade dada aos
fracos e aos derrotados, inscrita de vez em quando nos ícones milagrosos e tam
bém nos xamãs índios.
Com os derrotados está o poder redentor, com o selvagem está a santidade,
afirma Natividad, a filha do xamã, dando uma risadinha.
Do mesmo modo existiu santidade na selvageria, porém sentimos que sem
muitas risadas, a exemplo do que ocorre na tela portuguesa que retrata a Adora-
205
ção dos Magos, pintada na primeira década do século XVI, na qual o lugar habi
tualmente ocupado pelo mago negro foi tomado por um índio brasileiro, de cocar
de penas, brincos, pulseiras e tomozeleiras de ouro e um colar de pérolas. Em
uma das mãos ele traz uma tigela que é metade de um coco, repleta de ouro, e na
outra um tacape, que, ao que se dizia, os índios brasileiros usavam. Vestido com
um calção e uma camisa de variegado padrão, “poucos selvagens poderiam pare
cer”, escreve Hugh Honour, “mais gentis, corteses e eminentemente humanos”.1
No entanto, em outra tela portuguesa pintada uns cinqüenta anos mais tarde,
um índio com o mesmo cocar e um manto de penas preside, como o demônio, os
tormentos dos condenados, em um inferno semelhante àqueles pintados por Hie-
ronymus Bosch. Eles eram deuses ou demônios, nota Richard Comstock, “criatu
ras que não sofreram a queda, que possuíam uma inocência original, ou demônios
providos de uma maldade brutal, além da compreensão humana. Nos primeiros
encontros dos colonizadores europeus com os nativos americanos observamos
ambas as imagens operando na mente do homem branco".2 Talvez menos mítico,
mas nem por isso carente do reconhecimento da dualidade na imagem do índio, o
norte-americano Henry Boller, que comerciava com os índios, assim se expres
sou, em carta dirigida a seu irmão no ano de 1859:
Se não fosse pelas constantes interrupções, eu poderia “pintar** para você... dois qua
dros.
O primeiro deles representaria o lado brilhante da vida do índio, com suas penas e lanças,
vestido com exuberância, com seus estandartes, lutas, caça ao búfalo etc.
O outro lado, que é o escuro, mostraria a sujeira, os parasitos, a pobreza, a nudez, o
sofrimento, a superstição etc. Ambos seriam igualmente verdadeiros, sem exageros ou dis
torções; ambos totalmente dessemelhantes!3
Quando Manuel Gómez, um colonialista branco dos contrafortes do Putu-
mayo, nos Andes, tomou yagé com um xamã índio, ele também viu as coisas
dessa maneira dualizada, luzes e trevas, antes de morrer. Decorridoà muitos anos,
ele me contou que, após o caos de formas que se modificavam e se moviam, após
os sons que zumbiam e murmuravam em paradas e retomadas e depois que as
cobras, em grande número, penetraram em sua boca através do vômito, uma onça
se aproximou, logo desaparecendo. No lugar onde estivera o xamã, junto à fo
gueira, agora se encontrava o diabo.
Ele era exatamente como o pintavam, disse Manuel, inflamado e vermelho,
com rabo e chifres. Enquanto Manuel não tirava os olhos dele, sentado ao lado
da fogueira, nas grandes florestas do Putumayo, o diabo, fumando um charuto,
transformou-se em xamã e perguntou a Manuel se ele sentia medo. Mais uma
vez o índio transformou-se no diabo, e Manuel sabia que estava morrendo. Na
verdade já estava morto, contou-me mais tarde, e começou a subir por uma es
cada esplêndida até encontrar um velho, no limiar do nada. Esse homem aben
çoou Manuel e disse-lhe que voltasse para a terra. Passo a passo ele regressou,
206
deparando-se com a luminosidade verde da alvorada que irrompia através da
floresta. Foi o índio como xamã e este como diabo que encenaram essa passagem
para ele, através do espaço da morte e da redenção. A linguagem é dramática,
não menos do que a experiência registrada, e a experiência deve ser percebida
não simplesmente como uma glosa sobre o poder colonial, mas um modo de ver
como o poder propicia uma visão de sua constituição interna, lá onde a fabula e a
fantasia irrompem no cotidiano da opressão da raça e da classe. É um munda-
nismo que se toma hiper-real, lá onde a sociedade confina com o ermo, na fron
teira. Por esta forma abençoados, colonialistas como Manuel Gómez e José Garcia
destroçam a feitiçaria do invejoso: o colonizador reifica seus mitos relativos ao
selvagem, toma-se sujeito ao poder deste último e, ao agir assim, procura a salva
ção naquela civilização que o atormenta, tanto quanto o selvagem em quem ele
projetou seu anti-eu.
Ao observar a pintura portuguesa de meados do século XVI, que representa
o índio como o demônio a presidir os tormentos dos condenados, Hugh Honour
comenta que essa imagem enquadrava o índio como uma fera da selva. Contras
tando com o primeiro quadro, a Adoração dos Magos, e sua ligação com a mito
logia de uma Idade de Ouro, o segundo quadro liga o índio não somente ao
diabo, mas também àqueles homens da lenda renascentista e medieval, cruéis,
lascivos, bestialmente peludos e deformados.
Foram essas lendas que propiciaram o imaginário dos nativos do Novo Mundo
como seres monstruosos, sugere John Friedman em seu estudo sobre as raças
monstruosas na arte e no pensamento medievais.4 Ele sugere que houve um de
senvolvimento iconográfico que caminhava paralelamente ao do imperialismo
europeu, começando com aquela galeria de criaturas e monstros fabulosos, as
maravilhas do Oriente, na índia e na Etiópia, nos confins do (Velho) Mundo,
reduzindo-se a uma única figura, o homem selvagem, identificado com os povos
encontrados no Novo Mundo. Essas maravilhas do Oriente incluíam gigantes,
pigmeus, unicórnios, formigas que escavavam ouro, pessoas com cabeças de ca
chorros, outras com caudas, algumas com a cabeça saindo do peito, canibais e
amazonas — criaturas metade humanas, metade espíritos, que povoavam as mar
gens da sociedade, a qual, além do mais, fora dar às margens de terras exóticas.
Tais criaturas ocuparam seu espaço em livros que exerceram grande influência,
tais como Imago Mundi, de Pierre d’Ailly, Historia Rerum, do papa Pio II e nos
relatos de viagem de Sir John Mandeville. Como se sabe, todos eles, principal
mente os dois primeiros, atraíram a atenção de Cristóvão Colombo. Em sua tão
apreciada biografia do almirante, Samuel Morrison declara que Imago Mundi e a
Historia Rerum foram as duas principais fontes de Colombo (na medida em que
as fontes foram preservadas) quando ele recorreu a argumentosintelectuais a fim
de apoiar seus planos. Foi graças a essa última obra que ele tomou conhecimento
dos antropófagos (canibais) do Amazonas, em cujas trilhas julgava estar em 1492
e 1493.5
207
Em seu estudo sobre as maravilhas do Oriente, Rudolf Wittkower concluiu
que, através da disseminação pictórica, nas formas populares, bem cómo nas
eruditas, tais maravilhas impressionaram grande número de pessoas e influencia
ram muitas correntes do pensamento medieval Seus significados poderiam mudar.
Por exemplo, no final da Idade Média elas poderiam surgir na iconografia cristã
sob a forma de raças fabulosas, capazes de redenção, que aguardavam os apósto
los de Cristo. No início do século XVI, período da conquista do Novo Mundo, tal
visão parece ter sido substituída por outra, a qual enxergava o monstro como um
mau agouro. Essa visão se associava a uma irrupção de crenças populares que
não tinham lugar na concepção medieval oficial do mundo. No entanto, uma
modificação tão brusca de julgamento, do monstro como um cristão em potencial
e o monstro enquanto arauto do mal, não deveria causar surpresa. Conforme o pró
prio Wittkower enfatizou na conclusão de seu erudito ensaio, “em todos os lugares
atribuiu-se ao monstro os poderes de um deus ou as forças diabólicas do mal”.6
Essa monstruosa dualidade do diabólico e do bem é nitidamente delineada
na descrição que Richard Bemheimer faz do homem selvagem do final da Idade
Média. Com efeito, essa figura, conforme sugere Hugh Honour, é util para que se
compreenda a qualidade mágica imanente ao imaginário europeu da selvageria, à
época da conquista do Novo Mundo (quando não até hoje).7 Metade humana,
metade animal, desprovida da fala e da razão, essa peluda criatura das florestas
assemelha-se a uma criança gigantesca, temida por seu terrível gênio e por seu
poder mágico. Irritando-se com facilidade, ela pode reduzir os intrusos a peda
ços, atacar as mulheres e raptar crianças, sobretudo as que não foram batizadas.
Desenraiza árvores, faz os lagos desaparecerem e as cidades afundarem no chão.
Prefere viver sozinha em lugares escondidos, tais como as cavernas, e luta cons
tantemente contra outros homens selvagens e as feras e dragões da floresta. Em
sua ira, ela cria tempestades e chuvas de granizo (é o tempo que mais aprecia),
pois não há nada que favoreça mais o retomo dos mortos. Ignorante de Deus,
essa criatura exerce poder sobre os animais da floresta (assim como os xamãs) e
possui conhecimento oculto dos poderes mágicos das plantas (a exemplo dos
xamãs). Inferior aos humanos na grande cadeia do ser, ela também lhes é superior.
Os poderes a ela atribuídos não a fazem menos perigosa do que desejável.
Bemheimer inclui em seu livro um quadro de Brueghel, o Velho, o qual mostra
camponeses capturando, pela força das armas, um homem selvagem, com o pro
pósito de matá-lo, assim como aconteceu há muitos anos no Putumayo com o
irmão de Santiago Mutumbajoy, igualmente um xamã. Mas Bemheimer também
chama a atenção para a escultura de um selvagem no portal de uma igreja do
século Xm, em Provença, a qual mostra sua mão através do braço de um homem
que conta dinheiro em um saco. A intenção dessa representação, diz Bemheimer, é
demonstrar que o lucro pode ser obtido a partir da associação íntima com o selva
gem. Eis aí uma interpretação com a qual mais de uma colonialista do Putumayo,
tal como José Garcia, haveria de concordar (mas talvez não sua mulher, Rosário).
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E é claro que, de vez em quando, o selvagem dá um passo adiante e, com a
maior das boas vontades, atende os necessitados e talvez cuide com ervas mági
cas dos ferimentos daquele cavalheiro, peisonagem do Faerie Queene de Spen-
ser, que se perdeu nas florestas pertencentes àquela criatura. Atualmente os
colonialistas do Putumayo podem sonhar em obter plantas como essas. José Gar
cia usa algumas delas em sua garrafa de remédios, e meu caro amigo que já se
foi, Chu Chu, um curandeiro mulato que morava longe do Putumayo, no vale do
rio Cauca, aconselhou-me com grande cuidado que plantas eu deveria solicitar
aos ervatários do Putumayo, tanto para meu próprio bem quanto para o dele. Nos
cortiços de Ca li, Don Colo também sonhou com uma planta indígena, mágica e
secreta, que poderia ser dele. Essa planta, perdida para a história, amaciava o
ouro. E talvez algo daquele cavalheiro de Spenser, perdido na floresta, império
do selvagem, se reproduz na vida, a exemplo do que se narra daquele branco de
Bogotá, Gabriel Camacho, que durante muito tempo perambulou pelas florestas
do Putumayo, perdido e enlouquecido, sendo cuidado pelos xamãs com o yagé,
sua erva mágica.
As surpreendentes inversões que se nota quando o conquistador atribui po
deres mágicos ao primitivo nos é mostrada nas descrições renascentistas dos feitos
de Alexandre, o Grande, com as raças maravilhosas da índia. Em um manuscrito
francês do início do século XV vemos iluminuras de Alexandre e seus soldados
em combate mortal com um homem e uma mulher selvagens, jogando-os na
fogueira.
Em total contraste com essa imagem, em um Alexanderbuch do mesmo sé
culo, vemos esse monarca tão poderoso, acompanhado de seus cortesãos, togando
ao selvagem, agora descrito como um sacerdote, que consulte as árvores-oráculo
do sol e da lua. Alto, escuro e peludo, esse sacerdote/homem selvagem tem pre
sas enormes e uma língua comprida como a de um cão. Apresenta-se nu e usa
apenas um brinco de ouro e a mitra de um bispo. Nos textos latinos, nota Ti-
mothy Husband, ao ouvir o selvagem profetizar sua morte iminente, Alexandre
reconhece o poder do pagão, exclamando Júpiter omnipotens.*
Entre os vários aspectos, quero chamar especial atenção para aquilo que
Bronislaw Malinowski denominou “uma verdade bem conhecida”, isto é, que
“uma raça mais elevada em contato com uma menos elevada tende a atribuir a
esta última poderes demoníacos misteriosos".9 Ele se reportava às experiências
vividas com o discurso colonial no Sudoeste do Pacífico, por ocasião da Primeira
Guerra Mundial, muito tempo depois das descrições renascentistas de Alexandre
e de suas proezas com as raças selvagens e maravilhosas da índia. As distâncias
também eram muito grandes.
A imputação de misterioso e de demoníaco que as classes mais poderosas
fazem às outras — os homens às mulheres, os civilizados aos primitivos, os
cristãos aos pagãos — é de tirar o fôlego. É uma concepção velha, persistente,
paradoxal e ubíqua. Atualmente ela existe não apenas sob a forma de racismo,
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inas também como um culto vigoroso do primitivo, c é enquanto primitivismo
que ela propicia a vitalidade do modernismo. “É nossa esperança moderna",
entoa a voz atual de W. B. Yeats em “Ego Dominus Tuus” (minha citação é de
um rascunho de 1912):
Com o auxílio das imagens
Eu poderia invocar meu anti-eu, convocar todos aqueles
com quem menos tratei, estimar a todos eles
Pois estou farto demais de mim mesmo
De acordo com Maiy Cathleen Flanneiy, é este rascunho que revela mais
claramente o fato de que Yeats estava escrevendo sob a influência de um espírito
que o visitara durante uma sessão. Era o espírito de Leo Africanus, escritor e
explorador mouro, que fora prisioneiro na corte do papa Leão X e a quem se
dava certa importância, em se tratando das opiniões que ele expressava sobre os
africanos. Yeats correspondeu-se com esse espírito através de uma caligrafia pro-
positalmente disfarçada.10
Qualquer que tenha sido o papel desse espírito na formação do anti-eu mo
derno e que expressa nossa esperança, moderna (“Encontramos a mente sensível
e suave”, escreve o poeta, referindo-se a ele), ficamos um tanto chocados ao
sermos informados por Margaret Hodgen, em seu livro Early Anthropology in
the Sixteenth and Seventeenth Centuries [A antropologia remota nos séculos XVI
e XVn] que Leo Africanus declarou que os negrosnão apenas levavam uma vida
animalesca mas “eram completamente destituídos de razão”. É uma declaração
que ela percebe como algo importante no fluxo de idéias e sentimentos europeus
que separavam os pagãos da grande cadeia de seres humanos, de tal modo que,
por meio da mais extremada ambigüidade, os pagãos eram situados em uma zona
inferior, entre o animal e o humano.11
A dependência do moderno em relação ao primitivismo fica assustadora
mente clara na viagem em direção ao Heart o f darkness.
A terra parecia não ser terrena. Estamos acostumados a olhar com consideração a
forma agrilhoada de um monstro conquistado, mas ali podia se ver uma coisa monstruosa e
livre. Não era terrena e os homens eram — não, não eram inumanos. Sabe, isso foi o pior
de tudo — a suspeita de que não fossem inumanos. Essa suspeita era algo que podia chegar
lentamente a alguém. Eles urravam, saltavam, rodopiavam, faziam caretas horrendas;
porém o que mais impressionava era pensar na humanidade deles — igual & nossa. Era
pensar no remoto parentesco com aquele tumulto selvagem e apaixonado. Feio. Sim, era
bastante feio...12
A magia do primitivo, o colonialismo fundiu sua própria magia, a do primi
tivismo. O destacado antepassado da antropologia, E. B. Tyler, notou em seu livro
Primitive culture [Cultura primitiva] (publicado em 1871) que, na época em que
escrevia, muitos brancos na África e nas índias Ocidentais temiam os poderes do
feiticeiro. Era uma confirmação estarrecedora de sua tese relativa à estrutura de
210
classe da magia e á evolução das sociedades, pois esses mesmos brancos certa
mente pertenciam a uma nação cuja instrução, segundo os termos de Tyler, havia
avançado o suficiente para destruir a crença na magia.
Sua tese chamava atenção para a ubiqüidade com a qual um grupo de pes
soas consideradas primitivas eram consideradas como detentoras de poderes ex
traordinários, por parte daqueles que proclamavam a si mesmos seus superiores:
O mundo modemo instruído, que rejeita a ciência oculta como superstição desprezí
vel, praticamente comprometeu-se com a opinião de que a magia pertence a um nível mais
baixo da civilização. É muito instrutivo verificar que a solidez desse julgamento não é
propositalmentc confirmada por nações cuja instrução não progrediu o suficiente para des
truir a crença na própria magia. Em qualquer país, uma raça isolada ou estabelecida em
lugares remotos, sobrevivente de uma antiga nacionalidade e que resiste, é passível da
reputação de feitiçaria.13
Ele citou exemplos, tais como os dravidianos hinduizados do Sul da índia que, no
passado, afirmou Tyler, temiam os poderes demoníacos de uma casta de escravos
inferior à deles. A partir de relatos contemporâneos ele examinou um caso no qual
essa casta inferior não era a beneficiária de semelhante imputação. Certas tribos
dravidianas tinham um medo mortal dos Kurumba, “párias desprezíveis da flo
resta, mas, segundo se acreditava, dotados de poderes de destruição dos homens,
animais e propriedades por meio da feitiçaria’’.14 No entanto, não se trata apenas
do poder de fazer o mal. Tyler faz menção específica à cura como algo que inte
grava essas atribuições.
No que diz respeito àqueles feiticeiros denominados Obi, em relação a quem
(segundo Tyler) muitos brancos na África e nas índias Ocidentais experimenta
vam grande temor, deve-se notar que os próprios Obi receavam gente ainda mais
feroz do que eles, isto é, aqueles curandeiros e curandeiras das comunidades de
quilombolas da Jamaica, descendentes de escravos fugitivos que, possuídos na
dança e no teatro pelos espíritos de seus ancestrais quilombolas e, portanto, por
tadores de uma história especialmente colonial e jamaicana de “ferocidade” e
magia selvagem, são capazes de apaziguar os males causados atualmente pelos
Obeah.ls
Na vizinha ilha de Cuba, de acordo com o tão considerado antropólogo
Fernando Ortiz, em seu livro Hampa afro-cubana: los negros brujos (cuja pri
meira edição é de 1906), era comum que brancos de todas as classes se valessem
de feiticeiros negros (brujos) que também eram escravos. Além do mais, devido
a questões de amor, saúde e vingança, ainda era comum, à época em que ele
escrevia, que brancos, incluindo os da classe superior, acreditassem em curandei
ros e feiticeiros negros. Disso resultava em parte, segundo ele afirma, “uma cul
tura não muito sólida entre as classes dirigentes da sociedade cubana”.
Não é um conceito interessante o de que a fé na magia por parte da classe
dominada é devida a uma cultura “não muito sólida” no interior da classe diri
gente? Existe aí um curioso sinergismo entre aqueles que dirigem e aqueles que
211
os podem sustentar magicamente, bem como através de um trabalho mais mate
rial. E para além da divisão de trabalho entre aqueles que comandam e aqueles
que lhes fornecem a magia, surge um quadro da sociedade como um todo, com
diferentes espécies de lugares para os dominadores e os dominados, espaços cós
micos unidos vertiginosamente, como um sonho da história do mundo que desfa
lece. A despeito da “psicologia avançada" dos brancos em Cuba, escreve Ortiz,
“as superstições dos negros os atraem, produzindo uma espécie de vertigem, de
tal modo que eles se tomam presas daquelas crenças, mesmo pairando nas alturas
de sua civilização; é como se os planos superiores de sua psiques inicialmente
submeijam e em seguida se desliguem, retomando ao primitivismo e à nudez de
suas almas".16
Em seu estudo sobre o vodu do Haiti, publicado em 1959, o antropólogo
francês Alfred Métraux apresenta uma sugestão relativa à história da “vertigem"
e da primitiva submersão da psique da classe dirigente, sobre a qual Ortiz es
creve. Aos nos prevenir contra a imagem mórbida e alucinatória que rodeia o
vodu no Haiti, Métraux pondera que essa imagem não passa de uma lenda, asso
ciada á feitiçaria usada pelos escravos contra seus senhores. Se essa feitiçaria
existiu de fato ou se apenas se imaginava que ela existisse, é algo de pouca
importância para a lenda, a qual, segundo escreve Métraux,
pertence ao passado. Pertence ao período colonial, quando foi fruto do ódio c do medo. O
homem jamais é cruel e injusto impunemente. A ansiedade que cresce nas mentes daqueles
que abusam do poder freqüentemente assume a forma de terrores imaginários e de obses
sões dementes. O senhor maltratava seu escravo, porém temia seu ódio. Tratava-o como
uma besta de carga, mas receava os poderes ocultos que lhe imputava. Quanto maior a
subjugação do negro, mais ele inspirava medo, aquele medo dotado de ubiqüidade presente
nas narrativas e registros daquela época c que se solidificava através daquela obsessão com
o veneno, a qual, ao longo do século XVm, foi causa de tantas atrocidades. Talvez alguns
escravos se vingassem de seus tiranos por essa forma. Tal coisa é possível e até mesmo
provável, mas o medo que reinava nos engenhos tinha sua origem em recessos mais profun
dos da alma. Era a feitiçaria da África distante e misteriosa que perturbava o sono dos
moradores da “casa grande”.17
Um traço semelhante de sono perturbado se percebe na descrição que Henry
Charles Lea fez da Inquisição no porto de escravos de Cartagena, situado no
Caribe, ao sul de Cuba e do Haiti, no litoral da colônia de Nova Granada, hoje
denominada Colômbia. Era uma colônia dominada pela feitiçaria de três conti
nentes, diz Lea, que escreveu poucos anos antes de Ortiz:
Os escravos trouxeram da costa da Guiné os mistérios do Obeah e as práticas som
brias da feitiçaria. Os índios possuíam um amplo arsenal de superstições (curar ou ferir,
provocar amor ou ódio); os colonizadores tinham suas próprias crendices, às quais acres
centaram a fé implícita nas crendices das raças inferiores. A terra era dominada pela combi
nação das artes ocultas de três continentes, e todas eram consideradas pela Inquisição nãocomo vãs fantasias, mas como o exercício de poderes sobrenaturais, que envolviam fé ex
pressa ou implícita no demónio.18
212
Este é um modo de ver as coisas muito próprio do Putumayo. Coincide com uma
visão que mescla o mundo subterrâneo da sociedade conquistadora com a cultura
do conquistado, o colono e o escravo. Além do mais, ele enxerga essa mescla
como um ataque ativo e mais ou menos contínuo ao poder, ao sistema de segu
rança da doutrina da Igreja e a seus rituais de poder embutidos na Inquisição. Tal
visão compreende implicitamente que mesclar o mundo subterrâneo da socie
dade conquistadora com a cultura do conquistado não é uma síntese orgânica ou
“sincretismo” das três grandes correntes da história do Novo Mundo — africana,
cristã e indígena —, mas uma galeria de espelhos que reflete a percepção que
cada componente tem do outro.
Juntamente com outros estudos sobre Cartagena antiga, baseados em docu
mentos coloniais preparados por inquisidores, padres e funcionários do governo,19 a
história da Inquisição, escrita por Lea, sugere que essa galeria de espelhos era, do
ponto de vista do colonizador, algo que nivelava a feitiçaria à sedição, se não na
realidade, pelo menos como uma metáfora, como se o conceito de um “mundo
subterrâneo" assumisse uma ampla gama de conotações, desde o inferno cultuado
pelos seguidores de Satã ao subterrâneo da conspiração e desconfiança da ordem
social. É extraordinário o quão importante a raça e o gênero são enquanto significa-
dores dessa ameaça subterrânea, que ameaça irromper através da crosta de ma
chismo branco encarnado na autoridade colonial.
De acordo com os textos oficiais, os líderes dos palenques ou lugares de
escravos fugidos provavelmente eram magos e feiticeiros. A rebelião de escravos
nas minas de ouro de Zaragossa figurava no relatório do inquisidor encaminhado
ao Supremo Tribunal, em 1622, como uma efusão maciça de feitiçaria, que objeti
vava consumir pelo fogo e esterilizar as minas, bem como seus donos, através da
magia. Negras escravas e libertas, que trabalhavam como criadas, ao que se dizia
eram feiticeiras consumadas e serviam suas senhoras brancas com as artes da
adivinhação e o preparo de filtros de amor. A Inquisição alegava haver desco
berto confrarias de bruxas que cultuavam o diabo e até mesmo nas confrarias de
espanholas as africanas, ao que se dizia, exerciam um papel muito importante. Dizia-
se também que além dos muros de Cartagena, cidade de cristãos, livres e escravos,
índios pagãos forneciam àquelas feiticeiras negras as ervas que elas solicitavam.
Esses textos oficiais reproduzem uma visão inquisitorial do poder, místico e
malevolente, que rodeava e minava os termos coloniais da ordem. Por mais fan
tástica que seja essa visão, se a experiência do Putumayo pode servir de guia, é
uma visão que se toma incorporada à magia e feitiçaria das classes subalternas.
Esse mal não é desprovido de fascínio. Conforme Bemheimer ilustra com deta
lhes, a selvageria do homem e da mulher selvagem se constitui quando se junta os
extremos da destruição e da cura.
Em 1632 a Inquisição alegou ter descoberto uma grande reunião de bruxas
negras no porto de Tolú, situado a uns sessenta quilômetros ao sul de Cartagena,
onde grassava uma epidemia, sem dúvida atiçada pelo processo inquisitorial (diga-
213
se de passagem que o padre Acosta, em sua apreciada Natural and moral history
o f the Indies [História natural e moral das índias], cuja primeira edição é de
1588, assinalava o bálsamo de Tolú devido a suas virtudes medicinais).20 Duas
das presumíveis líderes, ambas negras, foram condenadas á fogueira, mas uma
delas, Paula de Eguiliz, teve a permissão de sair da prisão e trabalhar como curan
deira, incluindo entre seus pacientes os inquisidores, bem como o bispo de Carta-
gena, em cuja casa passou vinte dias como convidada. Por ocasião dessas excursões
ela abandonava o sanbemto, roupa que simbolizava seu status diabólico, e apare
cia em público vestida com -um manto com barras de ouro, conduzida em uma
liteira. Graças a essa prática médica enquanto prisioneira da Inquisição, ela, se
gundo consta, ganhou muito dinheiro, parte do qual distribuiu entre as demais prisio
neiras. Decorridos seis anos, os quais incluíram a tortura, sua sentença foi comutada
para duzentas chicotadas e prisão perpétua.21
Em que se situa o poder de cura da selvageria? É verdade, confoime diz Witt-
kower, que os monstros das maravilhas do Oriente deram forma não apenas aos
devaneios de beleza e harmonia do homem ocidental, mas também criaram sím
bolos por meio dos quais o horror dos sonhos reais poderia se exprimir. E, no
entanto, não estamos aqui diante de uma questão que se estende além da função
modeladora dos símbolos e dos sonhos?
A selvageria também suscita o espectro da morte da própria função simbó
lica. É o espírito do desconhecido e a desordem, que corre solta na floresta que
rodeia a cidade e a terra semeada, rompendo com as convenções sobre as quais
repousam o significado e a função modeladora das imagens. A selvageria desafia a
unidade do símbolo, a totalização transcendente que liga a imagem àquilo que ela
representa. A selvageria rompe com a unidade e, em seu lugar, cria um desloca
mento e uma articulação entre significante e significado. A selvageria faz dessas
conexões espaços de escuridão e luz, nos quais os objetos espiam em sua variegada
nudez, enquanto os significantes flutuam ao redor. A selvageria é o espaço da
morte da significação.
Bemheimer lembra-nos que a selvageria, na Idade Média, “implicava qual
quer coisa que escapasse às normas cristãs e á estrutura estabelecida da socie
dade cristã, referindo-se àquilo que era incomum, ingovernável, rude, imprevisível,
exótico, inculto".22 Que lista! Com toda certeza teremos de perguntar a cura e
não apenas a magia perversa do homem selvagem não se acha desligada desta
imprevisibilidade rude e supressora das estruturas?
No entanto a selvageria é incessantemente recrutada pelas necessidades da
ordem (e, com efeito, esta é uma das tarefas e contribuições mais duradouras da
antropologia à ordem social). Permanece porém o fato de que ao tentar domá-la
através desse meio, de tal modo que ela possa servir à ordem como uma contra-
imagem, essa selvageria talvez deva reter necessariamente sua diferença. Se não
se reconhece o mérito da selvageria per se, com sua própria força, realidade e
214
autonomia, então ela não poderá funcionar como uma serva da ordem As impli
cações desse paradoxo estão submersas em um ato violento de domesticação. É o
que testemunha a colocação profética de Paul Ricoeur, usada na introdução de
um estudo antropológico recente sobre o exorcismo: “Se o mal é co-extensivo
com a origem das coisas, enquanto caos primitivo e disputa teogônica, então a
eliminação do mal e do perverso deve pertencer à arte criativa enquanto tal”.23
Deixando de lado as suposições, é essa equação insípida do mal como caos pri
mitivo e sua eliminação por meio da criatividade que é contestada pela selvage-
ria dos homens e mulheres selvagens.
A selvageria de que aqui se trata irrompe através das fatigadas dicotomias
do bem e do mal, da ordem e do caos, da santidade da ordem etc. Ela não medeia
tais oposições. Em vez disso, ela toma o partido do caos, e sua criatividade cura-
dora é inseparável do fato de ela se alinhar com um determinado paitido. De
tacape na mão, castigadas pelo granizo e pela tempestade, enquanto os relâmpa
gos rasgam o céu, anunciando o retomo dos mortos, essas criaturas do mundo
selvagem não apenas carregam o fardo do anti-e« da sociedade, mas também
absorvem com sua pelagem molhada e felpuda aquilo que de melhor a oposição
binária pode oferecer: a ordem e o caos, o civilizado e o bárbaro, o cristão e o
pagão. Ela emerge do lado do grotesco e do destrutivo. “Seu aspectodestrutivo é
mais forte do que seu aspecto salutar", escreve Bemheimer no que diz respeito
ao homem selvagem da Idade Média, “e, ao que parece, quaisquer benefícios que
sua aparência possa conter para a comunidade humana derivam basicamente de suas
características macabras".24
215
12
Gordura índia
(^Xieio percotrer o mundo selvagem e suas mediações, juntamente com as topo
grafias de zonas mágicas, seguindo os fios daquilo que verifiquei ser mais geral e
inter-relacionado com a história de vida de Rosário e José Gaicía, isto é, a atri
buição de selvageria e poder de curas mágicas, feita pelo colonizador em relação
ao índio, e o modo como essa atribuição realizou a magia, a partir das encostas
orientais e das florestas tropicais que se estendem dos primeiros contrafortes dos
Andes até a imensidade da bacia amazônica. É com os aucas, chunchos e outras
criaturas fabulosas da floresta que me preocupo basicamente, mas também me
intriga essa atribuição de selvageria àquilo que alguém denominaria as espécies
colonizáveis. A selvageria é imputada ao outro, objetificada e, em seguida, rece
bida de volta como uma substância mágica, conforme, ao que se propala, fizeram
com a gordura das corpos dos índios das regiões montanhosas do Peru.
Há muito me surpreendia o fato de que em seus lugares de residência, bem
como em suas jornadas em busca de remédios e de pacientes, os curadores Sibun-
doy apartavam as regiões montanhosas das florestas, vendo nelas signos icônicos
de civilização e selvageria. Ao refletir nessa mediação como fonte do mágico,
minha atenção se dirigiu para aqueles outros curadores índios reputados, dos
altiplanos da Bolívia. Refiro-me aos Collahuaya. Pareciam-me, de modo até certo
ponto importante e formal, idênticos a seus colegas menos conhecidos do vale do
Sibundoy, estabelecidos muito ao norte, na Colômbia. À semelhança deles, os
itinerantes Collahuaya são apartados do resto da sociedade, e muitas pessoas,
às vezes dogmaticamente, às vezes com dúvidas, lhes abribuem consideráveis co
nhecimentos sobre assuntos ocultos, na grande luta pela vida. O mais significa
tivo de tudo é que eles são ligados à selvageria concentrada nas florestas úmidas,
existentes abaixo de suas casas nas montanhas. Até que ponto os Collahuaya são
realmente ligados a isso é uma questão controvertida, mas, a exemplo do que
sucede com a maior parte das coisas na esfera do mito e da magia, para não falar
da política da raça e da conquista nas quais o mito e a magia se fazem presentes,
216
é a aparência que freqüentemente se toma um fetor decisiva “Nos os encontramos
em todos os lugares”, escreveu Adolph Bandelier, arqueólogo dos Estados Unidos,
por volta de 1900, enquanto se entregava a escavações nas ilhas do Titicaca e
Koati.1 “Entre Puno e Sillustani vimos essas singulares criaturas caminhando em
fila indiana, seguindo silenciosamente seu caminho de uma aldeia indígena a
outra, de uma habitação isolada a outra, tolerados em todos os lugares e em todos
eles recebidos com reservada hospitalidade.” Eram os famosos curadores Colla-
huaya, explicou ele, empreendendo viagens que duravam anos e os levavam a
lugares distantes, como Buenos Aires, ou ainda mais longe, até o Brasil e além
dele. “Na ilha", escreveu Bandelier em seu posto de observação, no grande lago
Titicaca, lá no alto, no maciço dos Andes, entre a Bolívia e o Peru, “de vez em
quando os chamam de Chuncho, mas eles nada têm em comum com esses índios
da floresta, a não ser quando afirmam (e provavelmente é verdade) que algumas
de suas ervas medicinais são colhidas na montaria ou nas florestas, onde as tribos
selvagens (que, com freqüência, recebem a denominação coletiva de Chuncho)
habitam e perambulam."
Ele adquiriu alguns dos produtos dos curadores: contra a melancolia, yerba
de amante-, contra o resfriado reumático, uturuncu, para se esfregar, contra a dor
de cabeça, yerba de Castilla (como em Castela, aquela glória do mosaico que era
a poderosa Espanha); e outro remédio, só que estrangeiro, o pó estemutatório de
heléboro. Porém o principal tesouro dos curadores itinerantes Collahuaya era, ao
que parecia, estatuetas de minério que, segundo se dizia, abundava cm Chara-
sani, região natal dos Collahuaya. Eram de alabastro branco e tinham a forma de
um punho cerrado, a fim de propiciar riqueza. Havia também, embora Bandelier
jamais tivesse recebido a permissão para vê-las, estatuetas com forma humana,
negras, destinadas á feitiçaria.2
A fim de levar adiante suas escavações arqueológicas, os trabalhadores ín
dios empregados por Bandelier tiveram de realizar ritos para aplacar os espíritos
dos cumes das montanhas, para os “avós” daqueles grandes picos, os achachilas,
bem como para a própria terra. Tais ritos compreendiam, entre muitos preparos e
substâncias mágicas oferecidas aos espíritos, lascas raspadas com uma faca de
estatuetas que, nesse caso, diz Bandelier, representavam um touro ou uma vaca.
As estatuetas mágicas (ou suas lascas), fornecidas pelo curador Collahuaya, fa
ziam parte dos sacrifícios oferecidos aos picos e à terra. Eram ofertas á masculi
nidade e â feminilidade do espaço produtivo da vida, que deveriam ser comidas
pelos deuses como parte dos ritos associados á colheita, aos rebanhos e às pes
soas, como um todo e individualmente, em seus tormentos e em suas esperanças.
É, portanto, com alguma insistência que se levanta a questão dos porquês que levam
o poder a ser associado a esses curadores índios itinerantes, cujas estatuetas,
afirmou Bandelier, “são vendidas não somente aos índios (e talvez menos a
estes), mas a mestiços e, de vez em quando, até mesmo a brancos, pois a fé nas
curas e nos dons sobrenaturais dos Collahuaya é muito comum e profundamente
217
enraizada em todas as classes da sociedade, embora raramente confessada
(grifo meu)".3 Isto se deu por volta de 1900.
“De vez em quando os chamam de chunchos", escreveu Bandelier, “mas eles
nada têm em comum com esses índios da floresta, a não ser quando presumem (e
provavelmente é verdade) (grifo meu) que algumas de suas ervas medicinais são
colhidas na montaria ou nas florestas, onde as tribos selvagens (que, com fre
qüência, recebem a denominação coletiva de chuncho) habitam e perambulam"
É este sofisma que enfatizei e ele é direcionado para uma zona de realidade na
qual a presunção e a possibilidade se combinam a fim de criar, através da poética
da incerteza, uma zona de poder “profundamente enraizada em todas as classes
da sociedade, embora raramente confessada", na qual a identificação e a disso
ciação com a selvageria da floresta e de sua gente vai ao encontro, por meio do
ritual, dos desejos e infortúnios da vida cotidiana civilizada, fazendo em seguida
o caminho de volta.
Sete anos após a publicação do livro de Bandelier, outro estrangeiro, G. M.
Wrigley, publicou em The Geographical Review, em 1917, um artigo intitulado
“Os doutores viajantes dos Andes, os Collahuaya da Bolívia”. Nele as ligações
entre os doutores itinerantes e a selva que se estende ao leste dos Andes ficaram
mais explicitadas ou, pelo menos, mais sensuais e, portanto, mais resistentes ao
ceticismo do que ocorreu com Bandelier. Era possível sentir o cheiro da selva
dos chunchos, nas regiões montanhosas, á medida que os curadores itinerantes se
aproximavam. Faziam parte de suas maletas de drogas, escreveu Wrigley, gomas
aromáticas, resinas, cascas e ervas da floresta tropical.4 Assinalando que o territó
rio Collahuaya se estende até a montaria dos Andes orientais, Wrigley afiimou, sem
recorrer a sofismas, que era a montana que fornecia as valiosas plantas medici
nais, acrescentando esta nota: “É atribuído aos habitantes índios um amplo co
nhecimento empírico de suas propriedades. Wiener refere-se aos Piro do vale do
Urubamba, que sobem anualmente até Hillipani a fim de trocar cestaria,cerâmica,
pássaros vivos e certas plantas medicinais, das quais esses chunchos têm mais
conhecimento do que os índios Quechua do altiplano”.5
Antes de iniciarem suas prolongadas viagens, os curadores, assevera Wri
gley, iam “até a montana a fim de ter com que encher suas carteiras. Como essa
jornada os conduz a uma região quente, eles usam muito pouca roupa, circuns
tância que levou alguns viajantes a supor que a floresta era seu verdadeiro lar".6
Se isto não era verdade, então eles tinham um outro lar mais próximo de um
espaço da morte magicamente produtivo, do qual, fortalecidos com remédios
chuncho, eles ressuscitariam, revestidos de novo poder, a fim de viajar de volta
para o planalto e atravessar a república. Ao explorar a “floresta dourada" de
Caravaya, ao leste dos Andes e abaixo do território Collahuaya, em 1860, o ex
plorador inglês Clements Markham, encarregado de fazer um levantamento das
florestas de cinchona — antimalárico que contém muito quinino —, tarefa que
lhe confiou o govemo de sua majestade, preparou seus carregadores para com
218
eles entrar “naquela floresta densa e emaranhada, na qual europeu algum estivera
antes”. Meia dúzia de homens pálidos saíram da ma ta. “Tinham aparência doentia
e cadavérica”, observou ele, “como homens que houvessem ressuscitado do mundo
dos mortos, esgotados pela prolongada vigilância e pelo cansaço.”7
Na verdade não eram habitantes da floresta, mas gente das montanhas, Col-
lahuaya “coletores de drogas e de incenso", disse ele, “que penetravam fundo na
floresta a fim de obter o que procuravam e que dela safam como os vimos,
pálidos e abatidos”. Era muito esquisita essa raça, pensou ele, pois atravessava as
florestas ao leste dos Andes e em seguida ia praticar as artes de cura em toda a
América. “Vão em linha reta de aldeia em aldeia", escreveu Markham, “exercendo
sua profissão, e nisso vão longe, até Quito e Bogotá em uma direção e nos limites
extremos da República da Argentina, no outro.”* São denominados Chirihuano
no litoral do Peru, acrescentou, e Wrigley, citando um livro publicado em 1860,
fez a mesma afirmação.
Vinte anos antes que Markham viesse fazer um levantamento da cinchona,
o viajante alemão Johann Jakob von Tschudi notou que havia muito comércio
entre o altiplano andino e as florestas que se estendiam para o leste, sobretudo no
que se referia ao precioso vermífugo da casca de cinchona, droga lendária desde
que curou a esposa do vice-rei, a condessa de Chinchon, sendo promovida com
fervor pelos jesuítas na Europa, no século XVII. Antes das guerras sul-america
nas da independência, afirmou Tschudi, os coletores indígenas daquele valioso
remédio o haviam fornecido a todos os boticários da Europa. Resinas e plantas
aromáticas das florestas orientais também se faziam presentes nas igrejas das
montanhas e das cidades. Os padres as adquiriam, usando-as como incenso.
Existem índios, observou Tschudi (cometendo exatamente aquele tipo de erro em
relação ao qual Wrigley nos colocou de sobreaviso, mais tarde, quando ele con
fundiu os Collahuaya com os índios da floresta), que vivem nas profundezas das
selvas do Sul do Peru e da Bolívia e que se dedicam quase que exclusivamente a
coletar bálsamos medicinais e resinas aromáticas. Coletavam também remédios
mágicos, tais como a garra do tapir, a fim de curar “epilepsia”, e o dente de serpen
tes muito temidas, usado para a cura da cegueira e da dor de cabeça. Levam isso até
os mercados das montanhas, disse Von Tschudi, e alguns deles chegam até mesmo a
percorrer duzentas ou trezentas léguas, a partir de suas florestas natais, atraves
sando a maior parte do Peru e até mesmo visitando Lima. Carregam grandes caba
ças repletas de bálsamos. Surpreendido, Von Tschudi notou como essas “tribos"
errantes procuravam contatos freqüentes com outras nações. “Não são receosos e
reservados, mas, ao contrario, aborrecidamente comunicativos."9
Ele se enganou, ao confundir os curadores itinerantes com os índios que
viviam bem dentro da selva. Seu engano, porém, foi pré-ordenado. Tratava-se de
uma convenção social que reproduzia um mito, o qual entrelaçava os índios sel
vagens e a medicina mágica em um império de exotismo arborizado. Era uma
mitologia que se comprazia em estabelecer uma distinção entre o cristão e o chuncho.
219
Disso é que cia retirava sua força. Os índios que coletam e distribuem os remé
dios da selva, enfatizou Von Tschudi, professam ser cristãos. Como tal devem ser
diferenciados dos pagãos das florestas dos contrafortes orientais dos Andes, a
exemplo dos chunchos, muito perigosos e “uma das raças mais formidáveis de
índios selvagens". Não há gente mais indisposta contra os cristãos. Os remanes
centes abandonados de haciendas e missões ao longo dos contrafortes das mon
tanhas são testemunhos de uma longa história de desconfiança. São canibais que
assassinam cruelmente todos os índios cristãos com que sc deparam É impossí
vel qualquer espécie de intercâmbio amistoso com eles. Em suas pilhagens se
apresentam praticamente nus, e seus cabelos, rosto e peito são pintados de ver
melho, com achiote. Suas armas são o arco da palmeira chonta e a macana,
grande espada de madeira. Quando uma cruz foi levantada na floresta, os chun
chos amarraram nela, decorridos alguns dias, uma macana e duas flechas como
“símbolo de sua irreconciliável inimizade pelos cristãos". Segundo se afirma, a
grande rebelião messiânica de 1741, liderada pelo profeta que adotou o nome de
Juan Santos Atahuallpa (um índio dos Andes que foi para a Espanha e, ao regres
sar ao Peru, criou sua base de apoio entre os índios das florestas orientais), en
volveu chunchos, bem como índios Campa. As igrejas dos primeiros contrafortes
dos Andes foram pilhadas, as imagens sagradas e os padres foram amarrados
juntos e jogados nos redemoinhos dos rios, aldeias foram queimadas, campos
cultivados foram destruídos, e essa história, lamentou-se Tschudi, é a de toda a
montaria.10
Nas descrições da história dos Incas, esses chunchos compareciam como uma
gente arquetipicamente selvagem Garcilaso de La Vega, o aristocrata Inca, sempre
disposto a promover a causa cristã por meio da imagem do “bom índio" em um
mundo colonizado, relata em sua famosa obra The royal comeníaires o f the Inca
[Os comentários reais do Inca] (a primeira parte foi publicada em 1609) que,
quando o bom soberano Inca Yupanqui tomou posse do império, ele resolveu
visitar seus domínios. Nisso levou três anos, no fim dos quais decidiu conquistar
os chunchos que viviam nas selvas ao leste da sagrada capital de Cuzco, com o
objetivo de os expuigar de seus costumes bárbaros e desumanos. A expedição des
ceu o grande e até então pouco conhecido rio da Cobra. Era impossível prosse
guir por terra, devido às montanhas escarpadas e aos numerosos lagos, pântanos
e atoleiros, abundantes naquelas paragens. Dez mil soldados Inca desceram em
balsas, as quais se levou dois anos para preparar. Após sangrentas escaramuças,
eles subjugaram os chunchos, que então serviram ao Inca, quando ele empreen
deu a conquista de outros índios selvagens. Quero enfatizar este aspecto, pois é a
dominação do selvagem, com o objetivo de usá-lo para propósitos civilizatórios,
que está no âmago da imputação de magia e na apropriação do poder selvagem.
Essa cruzada pelo rio da Cobra, a fim de se apoderar da selvageria de um
povo, é narrada com pormenores pelos índios das montanhas, declarou Garci-
220
laso. Eles se gabam das proezas de seus ancestrais durante aquelas batalhas tra
vadas ao longo das margens dos rios da selva. “Mas", prosseguiu Garcilaso, “como
alguns desses feitos a mim pareciam pouco críveis... como os espanhóis até hoje
jamais possuíram a área conquistada pelos Incas nos An tis (terras dos chunchos) e
como não se pode apontar com o dedo para ela conforme é possível fazer em
relaçãoao restante da região que já mencionamos, julguei que não deveria mistu
rar um assunto que pertencia ao domínio da fábula, ou que parecia ser, com
histórias verdadeiras.”11
Quatro anos após sua expedição aos chunchos, o soberano Inca Yupanqui
organizou uma expedição malograda contra os Chirihuano nas florestas da planí
cie (ao leste de Charcas, onde atualmente é a Bolívia). Os espiões de Yupanqui
informaram (e cito Garcilaso) “que lá a terra era extremamente ruim e consistia
de florestas densas, pântanos, lagos e lamaçais, sendo que muito pouco era de
utilidade para o cultivo. Os nativos daquela região eram completamente selva
gens e piores do que feras, pois não tinham religião e não cultuavam o que quer
que fosse. Viviam sem leis ou bons costumes, como animais, nos contrafortes
dos morros, não tinham aldeias ou casas". Eram canibais, comiam seus inimigos,
bem como sua própria gente, quando ela estava morrendo. Andavam nus e dor
miam com suas irmãs, filhas e mães. Ao ouvir esse relato, o soberano Inca reuniu
seu povo e anunciou: “Nossa obrigação de conquistar os Chirihuanos agora é
maior e mais premente, pois precisamos livra-los do estado bestial e vil em que
se encontram, levando-os a viver como homens, pois foi com este propósito que
nosso pai, o Sol, nos enviou para cá”. Dez mil guerreiros foram aprestados, mas
após dois anos tiveram de reconhecer o quanto sua missão era impossível. Hoje
os Chirihuanos não são tão selvagens quanto antes, diz Garcilaso, no entanto
persiste seu modo bestial de viver. Na verdade seria um grande prodígio conse
guir livrá-los disso.12
Em um relato do final do século XVI, A história natural e moral das índias,
o sacerdote jesuíta Acosta deixa Claro que os Chirihuanos são, com efeito, um
paradigma de selvageria. O padre Acosta tomou parte na malograda campanha
do vice-rei Toledo contra eles e os situa na mesma categoria de selvageria e
resistência aos espanhóis a que pertencem os chunchos. Que diremos dos chun
chos e dos Chirihuanos?, indaga ele. “Toda a flor do Peru não esteve lá, levando
consigo uma provisão tão grande de homens e armas, conforme vimos? Certa
mente voltaram muito contentes por terem salvo suas vidas, perdendo sua baga
gem e quase todos seus cavalos.”13 E não apenas os chunchos e Chirihuanos são
um epítome da selvageria, como são igualmente o epítome dos primeiros homens
do Novo Mundo, sugere Acosta, não levando em conta os relatos dos índios
sobre suas origens, pois tais relatos “mais se assemelham a sonhos do que a
histórias verdadeiras".
221
Mas dificilmente era uma questão de história verdadeira versus sonhos. Os
sonhos não eram desprovidos de história, nem a história deixava de ter sua fanta
sia. A selvageria era uma fantasia, na qual pagãos e cristãos se encontravam na
montaria. Cruzando-a nos dois sentidos, os curadores desmontavam a ordem e a
desordem, levando o selvagem ao civilizado e, assim, praticando a magia a partir
de uma topografia moralizada. A montaria a tomava real, a montaria a tomava
natural.
A geógrafa Wrigley a esta altura nos é de grande valia. Referindo-se aos cura
dores Collahuaya, notou que as preciosas plantas medicinais vêm da montaria e
comentou que “um povo" (referindo-se aos Collahuaya), “com acesso relativa
mente fácil às fontes de suprimento naturalmente seria selecionado para agir como
fornecedor das plantas medicinais da montaria.'’ (grifo meu).14 Com efeito, ao
recrutar a magia da imagem dos curadores Collahuaya para a causa do materia
lismo em geral e do detemdnismo geográfico em particular, ao invocar uma agên
cia mística, a exemplo do que ocorre no trecho “naturalmente seria selecionado ”
(por quem? devido a quê?), e ao propiciar um protótipo simples, porém elegante,
a um determinismo ecológico posterior, de “arquipélagos verticais”, Wrigley, no
fim de seu escrito, deixa-nos intrigados devido a uma memória que, ao que se
presume, está no fundo de todos nós. “Ele nos faz lembrar”, escreve ela, refe-
rindo-se àqueles curadores e feiticeiros índios errantes, “do vigor dos antigos
controles geográficos que imperam nos Andes centrais.”15
Claro que é esse vigor, esses controles e esse império que aquelas figuras
selvagens e míticas da floresta úmida irão contestar. É seu fardo e tirarão disso o
melhor partido que puderem.
É como se tivéssemos de nos defrontar com uma imagem alucinatória na
arte legendária do xamã, a arte da magia, na qual a mímese e o poder de transfor
mar caminham paralelos. Só que a imagem em questão, a topografia moralizada
dos Andes, não é obra de um artista individual, mas da própria cultura popular,
criando, a partir do espaço e de suas distinções, uma grande diferença que separa
a selvageria da civilização, atravessada por curadores peripatéticos antes que eles
percorressem os infortúnios de uma nação. É nesse momento que os primeiros
estudos sociológicos sobre a oposição binária (tais como o de Robert Hertz sobre
a preeminência da mão direita (publicado em 1909), a meio caminho entre o
ensaio de Emile Durkheim e Mareei Mauss sobre a classificação primitiva e a
obra clássica de Durkheim, The elementary forms o f religious life [As formas
elementares da vida religiosa]) nos vêm à mente, a exemplo do que se lê nesse
dramático trecho de Hertz:
Todas as o posições apresentadas pela natureza exibem este dualismo fundamental. A
luz e as trevas, o dia e a noite, o Leste e o Sul em oposição ao O cs té e ao Norte, repre
sentam no imaginário e localizam no espaço as duas classes contrárias de poderes sobrena
turais. De um lado a vida reluz, avança e se ergue; de outro desce e se extingue. O mesmo
se dá com o contraste entre o alto e o baixo, o céu e a terra. No alto, a sagrada residência
222
dos deuses e das estrelas, que desconhecem a morte; aqui embaixo, a região profana dos
mortais a quem a terra traga; e, ainda mais embaixo, os lugares sombrios oode se escondem
serpentes e multidões de demônios.16
d a to que este atordoante contraste entre o alto e o baixo, esta alegoria das
alturas é que dizem respeito ao poder dos Andes, de realizar o mito e a magia.
Eles concernem á floresta tropical e à floresta brumosa de onde provêm esse mito,
essa magia. No entanto, esse kantismo sociológico não estará por demais consu
mido por sua própria mitologia, relativa às categorias fundamentais? Não poderia
aquela ordem tão apreciada do “dualismo fundamentar ser nutrida, quando não
depender da alegoria das alturas, onde a ordem reina suprema? Onde a morte e a
blasfêmia, a sórdida materialidade daquilo que está abaixo, o objeto em si, pode
rão ganhar uma cunha epistemológica, nesse elevado organum de sublime co
nhecimento? Talvez a própria magia dos xamãs ou, pelo menos, a magia a eles
atribuída, seja gerada por essa questão e, nas fraturas e rupturas com a experiên
cia, ela encontre sua cunha. De qualquer modo, na selvageria que se atribui ao
“embaixo” encontra-se a oportunidade de situá-lo fora do alcance do fato de ele
não ser nada além do que o outro das alturas. Na mímese da arte mágica impu
tada pela sociedade à floresta das terras baixas e seus exóticos poderes, essa
oportunidade reluz. É o que Georges Bataille, uns vinte anos após Hertz e na
mesma cidade, denominaria “a velha marca de nascença” da revolução marxista
contra a águia imperialista da idéia, pairando majestosa, em sagrada aliança com
o sol, castrando tudo aquilo que entra em conflito com ele.17
A Estrela da Neve
Em seu estudo sobre o grande festival andino da Estrela da Neve, o Collur
Riti, publicado em 1982, Robert Randall especifica as imagens transmitidas por
aquilo que se situa no alto e por aquilo que se situa abaixo, a leste de Cuzco, a
antiga capital do império Inca, onde as montanhas se encontram com a floresta.
Ele descreve esse festival anual como sendo “provavelmente o espetáculo mais co
movente e deslumbrantedos Andes”, durante o qual, nos anos que se situam em
tomo de 1980, cerca de 10 mil peregrinos sobem as montanhas, por ocasião do
Corpus Christi, a fim de chegar a um vale sagrado situado nos picos. Citarei suas
frases iniciais que descrevem a paisagem.
Emergindo da selva, as montanhas Cotquepunku, do pico nevado, são maciços alvos
e resplandecentes que pairam na floresta tropical enevoada. O interior dessa cadeia de mon
tanhas abriga um vale isolado que, durante a maior parte do ano, acolhe apenas rebanhos de
lhama e alpaca que pastam a 4 500 metros de altitude, abaixo dessas reluzentes geleiras. No
entanto, durante a semana que precede o Corpus Christi, mais de 10 mil pessoas, em sua
maior parte índios e campesinos, fazem uma peregrinação ao vale de Sinakara. A música ecoa
223
para além dos muros que encenam o vale, e dançarinos, em trajes emplumados, andam
empertigados em meio à fumaça de pequeninas fogueiras, onde a comida está sendo prepa
rada.1*
Mais adiante, quando eu escrever sobre os índios que carregavam em suas
costas brancos que vinham da selva e atravessavam as montanhas da Colômbia,
teremos motivos para retomar a essas imagens e ás maravilhosas metáforas refe
rentes aos maciços, alvos e reluzentes, que emergem da selva e pairam na flo
resta tropical enevoada. Ágora quero entregar-me ao ímpeto do trecho citado, ao
contraste que opõe a selva à geleira, aos chunchos, os dançarinos emplumados e
a sua dança dramática, quando o sol desponta. Esse rito é interpretado por Ran-
dall como algo que possui vários significados, tais como “uma grande comemo
ração do processo civilizatório, de transição do ou do mundo para este, da regeneração
e ressurreição de Pachamama (a terra), da cura dos doentes e do início de outro
ano (marcado pelo retomo das Plêiades)".19 Apoiando-se em estudos recentes no
campo da etnoastronomia, sobretudo os de T. Zuidema, Randall sugere que essa
peregrinação anual não só marca o desaparecimento e reaparecimento das Plêia
des no céu (um lapso de cerca de 37 noites), como também aquilo que ele deno
mina “a transição da desordem para a ordem (do caos para o cosmos)".20 É uma
interpretação que se harmoniza com a observação de Zuidema, segundo a qual,
para os Incas, egse período de 37 noites correspondia, de acordo com o calendá
rio, àquilo que ele denomina o caos. Randall é cuidadoso ao enfatizar que a
desordem dos peregrinos dançarinos termina com a dança final, ao nascer do sol.
Segundo o autor, ela é perfeitamente ordenada e sincronizada. Devido a sua in
cessante preocupação com a ordem e com a análise formal daquilo que eles
denominam a “mente andina", há pouco interesse, por parte dessa escola de es
pecialistas em estudos andinos, em qualquer outro “caos" que não seja aquele
que permita estabelecer o modo pelo qual esse mesmo caos é convocado para a
celebração da ordem É com equanimidade que esse festival é retratado como
“uma grande comemoração do processo civilizatório", alimentado, quando não
criado, pela dança ensandecida dos chunchos, homens selvagens da floresta. Isto
é encarado como um rito de transição estelar, quando não cósmica, de renovação
social e de cura individual. Tudo isso é resultado da transição da desordem para a
ordem
Quanto aos chunchos, Randall cita relatos dos campesinos das encostas das
montanhas, segundo os quais aqueles eram seus ancestrais. Um desses relatos
narra como os antigos, os naupa machu, ocupavam as montanhas em uma época
anterior a essa, quando não havia outro sol e outra luz que não a da lua. Esses
antepassados eram seres poderosos, capazes de achatar montanhas e mover gran
des rochas. O principal espírito dos picos locais perguntou a eles se gostariam de
ter parte do poder daquelas montanhas mágicas, mas, orgulhosos de sua força, os
naupa machu desprezaram essa oferta, levando o chefe do pico a criar o sol que,
erguendo-se acima da selva, transformou os ancestrais em pedra, com exceção
224
“Um incidente no Putumayo: índia condenada a morrer de fome, no Alto Putumayo
(os peruanos declaram que isto foi obra de bandidos colombianos).” In Walter E.
Hardenburg, The Putumayo: The Devil's Paradise, 1912.
O castigo do tronco, aplicado em Laguna. In Edouard André,
América Equinocial, 1884.
Muchachos, 1908. Cortesia da Whiffen Collection, Museu de Arqueologia
e Antropologia da Universidade de Cambridge.
i »k r i i f i m \ n \ y u a *o x k m ;i«>.\: k i v t k i :c \ y \ l i .
“índios da Amazônia peruana: rio Ucayali.” In Walter Hardenburg,
The Putumayo: The Devil’s Paradise, 1912.
“Espírito da floresta” preparando remédio.
Don Pedro e o autor no jardim das delícias do curador.
“Ele sentou-se com a meninazinha.”
o v a m o s rodeados por férteis campos agrocomerciais.
_‘.r- Y to ú m M r.
r j J i w w irivrtp í?« o^
IX TltF. I*K0V1!«<*T. o r POHAYAX X- CAKCCr.KOS OR CARMIKK5.* W1I0 TKAVF.L ÍT
/W/mW U a ttM ISTJ U J .+ n M *rr*+ Lr+ Jc*
“Ilustração da passagem de Quindio na província de Popayon e cargueros (ou carre
gadores) que atravessaram-na.” In John Potter Hamilton, Traves trough the Interior
Provinces of Colombia, 1827.
Descida íngreme da cordilheira dos Andes na província e Choco. In Charles Stuart
Cochrane, Journal of a residence cmd Travels in Colombia during the Years o f 1823
and 1824, 1825.
O curtão postal enviado pelo soldado à mãe com o seu retrato anexado ao alto.
recebendo fio após fio de sua chaquira.
“Curar ... o que é isto ?”
daqueles poucos que fugiram pata o escuto caos das florestas abaixo. Por meio
dessa criação dos chunchos na escuridão que reinava abaixo, a ordem Inca foi
criada acima, nas montanhas iluminadas pelo sol.
Épocas inteiras de tempo também estão sepultadas lá embaixo. A exemplo
da fuga dos antigos para as selvas, ao que se diz, grandes ciclos da história estão
sepultados naquele mesmo lugar a partir do qual, através de um “florescimento”
(o termo se deve aos informantes de Randall) no presente, eles podem exercer
uma influência poderosa sobre a vida contemporânea. Tal florescimento, por meio
do qual uma época anterior exerce sua influência, habitualmente perniciosa, sobre o
presente, ocorre por ocasião da lua cheia ou da lua nova, na alvorada ou no
crepúsculo. Teremos motivos para nos lembrar desse florescimento de um tempo
subterrâneo quando, posteriormente, abordarmos os modos pelos quais a própria
história age como uma feiticeira na criação de la mala hora, a hora má, no vale
do Sibundoy, na Colômbia. Lá também são feitas ligações com aquilo que parece
ser uma “outra” época subterrânea da conquista pré-hispânica. Enquanto essa
época sepultada floresce sob forma quase satânica, a fim de enfeitiçar o presente
e até mesmo matar, pode-se recorrer a esse mesmo testemunho da história, tendo
em vista a cura.
No que diz respeito ao tempo mítico, o mesmo ocorre em relação aos chun
chos do Leste de Cuzco: inferiores, selvagens, hostis, ainda assim são curadores
e concessores de fertilidade. Em relação àquilo que parece ser uma contradição
significativa à sua tese de que a ordenação é curativa, Randall cita testemunhos
para afirmar que os habitantes das encostas daquelas montanhas enviavam seus
xamãs, responsáveis pela cura dos doentes e pelos cuidados com a fertilidade dos
campos, lá para a selva, onde aprendiam durante um ano, “a fim de trazerem essa
fertilidade lá para cima, na sierra". A própria selvageria da floresta (e, presumi
velmente, de seus habitantes) é curadora e fertilizadora.
Poderemos querer qualificar esse conceito e insistir em uma espécie de coli
gação “dialética” entre o alto e o baixo, a montanha e a floresta das terras baixas,
a ordem e a desordem etc., mas não acredito que isto deprecie substancialmente
o caráter unidirecional da atribuição de poder mágico que aqueles que se encontram em posição elevada exercem em relação aos que se situam abaixo deles.
Isto também não deprecia a caracterização da classe situada abaixo como uma
força, cuja capacidade de prodigalizar a saúde e a fertilidade, não menos do que
o perigo que essa força encerra, nasce de sua selvageria. Ouçamos a evocação de
Randall em relação à floresta, uma evocação que presumivelmente ecoa as opi
niões do próprio povo da montanha:
A selva é também um lugar de escuridão, caos e desordem, onde, escondidas do sol,
as plantas crescem desenfreadamente, entrelaçando-se com desalinho e confusão. Nisto ela repre
senta, como a mitologia Inca, as tribos incultas, díspares e incivilizadas da época que precedeu
a conquista ensolarada dos Incas civilizados, que trouxeram a ordem ao mundo.
237
RandaU assinala que as grandes taças Incas, de boca larga e de madeira pintada,
geralmente representam todos os inimigos dos Incas como selvagens da floresta
(chunchos) (o que nos traz à mente o emprego da palavra auca, no Norte do que
é hoje o Equador e também ao longo da fronteira do Putumayo com a Colômbia).
Ele observa que nos dias de hoje, durante o Festival da Estrela da Neve, a figura
selvagem e emplumada do chuncho assume a função de representar o indianismo
per se; não se trata apenas de seres míticos ao leste dos Andes, mas de todos os
“índios”. Por outro lado, os integrantes do grupo Colla, considerados comercian
tes ricos e procedentes dos altiplanos, hoje são representados não por índios, mas por
mestiços (gente de ancestralidade índia e branca, mas, nesse contexto, considerada
“branca”). No Festival da Estrela da Neve os chunchos derrotam os Colla, em
combate simulado.
Aselvageria, a fertilidade, a cura mágica, suprimidas, reprimidas, são conti
das embaixo, na sombria selva emaranhada, esse subterrâneo agreste da história
que pode irromper através de rebeliões, de tom messiânico, que curam e fertili
zam não simplesmente esta ou aquela pessoa, não só este ou aquele campo, mas
toda uma sociedade erroneamente revestida de uma outra época. É a interpreta
ção a que se pode chegar dos repetidos ataques aos espanhóis durante a época
colonial, por parte dos moradores da floresta, que culminaram no romance, 110
vigor e no esplendor de um mito objetificado no movimento liderado por Juan
Santos Atahuallpa em 1741. Randall detecta manifestações modernas dessa cons
telação de mito e ruptura social na geografia político-moral da rebelião associada
a Hugo Blanco, nos anos 60. Em ambas as instâncias, os líderes das montanhas
ou “profetas” desciam de suas terras para as terras baixas, cobertas por florestas,
situadas ao leste, com as serpentes e os demônios, não para encontrar meramente
uma base social de apoio, mas para reafirmar uma base mítico-histórica. As for
ças rudes da selvageria e da história foram recrutadas, numa tentativa de destruir
a antiga ordem, porém fracassaram. Entretanto, a mitologia continua vivendo. O
próprio Randall convoca a nostalgia do fracasso político para inspirar uma pun
gente identificação com os demônios da história e da renovação social, enquanto
consolidam com segurança o triunfo da vontade de proceder a uma ordenação.
No entanto, sem os chunchos e a selva — “lugar de escuridão, caos e desordem,
onde, escondidas do sol, as plantas crescem desenfreadamente, entrelaçando-se com
desalinho e confusão" — não haveria uma base para a própria ordem. Com
efeito, é a partir dessa dependência que a magia e a fertilidade “florescem”.
Nesta obra de arte coletiva, que tanto se dirige à natureza quanto dela de
riva, já foi dito que a floresta da planície figura em relação às zonas elevadas não
apenas como o lugar da desordem, mas como uma fêmea. É o que ocorre em Los
ríos profundos, romance cripto-autobiográfico de José Maria Arguedas, que se
passa na cidade de Abancay, nos Andes peruanos, há uns cinqüenta anos. Em
relação à usurpação dos valores de uso pelo sistema de mercado, são as mulheres
238
que desafiam as injustiças do sistema comercial e do Estado. Ao agirem dessa
forma, elas criam não apenas a “desordem”, sob a forma da rebelião (e aqui proce
deríamos bem em fazer uma pausa e perguntar a nós mesmos por que sempre a
rebelião é qualificada como desordem e não o sistema contra o qual ela se in
surge). As mulheres também provocam a animação da paisagem e de outras coi
sas mudas. Fundamental para este processo de dar voz às coisas, no calor de uma
desordem inspirada pela mulher, que se volta contra a desordem criada pelo sis
tema de mercado das coisas, o qual triunfa sobre as pessoas, é a descida da
mulher às florestas orientais e á zona feminina, onde habitam os chunchos.
Devido ao açambarcamento praticado pelos comerciantes há uma séria falta
de sal. As chicheras locais (mulheres que preparam e vendem a chicha, bebida
feita com milho fermentado) lideram uma rebelião que objetiva garantir o forne
cimento do sal e a sua distribuição, gratuitamente, às mulheres da cidadezinha e
aos servos índios das fazendas do arredores. 0 Exército intervém para abafar a
insurreição, e a líder da revolta, Dona Felipa, foge para o rio e de lá, segundo se
comenta, desce para a selva, de onde promete voltar com os chunchos e atear
fogo nas haciendas. As autoridades receiam que, se isso acontecer, os servos
fugirão e se aliarão às chicheras. Os chunchos, ao que se diz, são capazes de se
zangar terrivelmente. Os meninos do colégio especulam que o rio Pachachaca
pode tomar o partido dos chunchos e de Dona Felipa e reverter ser curso, tra
zendo lá para cima as canoas dos chunchos, que queimarão o vale e os canaviais
dos proprietários das haciendas, matando todos os cristãos e seus animais tam
bém. Na igreja de Abancay o diretor do colégio, que também é padre, anuncia
que um destacamento de guardias civiles, constituído por policiais bem treinados
para manter a ordem, será instalado permanentemente no quartel, e prossegue com
o seguinte sermão (em espanhol, em vez de quechua):
"A ralé está invocando um fantasma a fim dc assustar os cristãos. É uma farsa ridí
cula. Os servos dc todas as haciendas têm almas inocentes, são melhores cristãos do que
nós; c os chunchos são selvagens que jamais saem dos limites da selva. Se, por obra do
demónio, eles vierem, suas flechas sc revelarão dc pouca serventia diante dos canhões.
Devemos nos lembrar de Cajamarca...!", ele explicou e, voltando seus olhos para a Virgem,
com sua voz metálica implorou perdão para os fugitivos, para aqueles que seguiram o mau
caminho. "Tu, querida c amada Mãe, saberás como expulsar o demônio dc seus oorpos”,
disse cie.22
Por esta forma acionadas, vemos como as ambigüidades politizadas da “de
sordem", imputadas e transmitidas através da polaridade das mulheres, diabóli
cas e virginais, dão vida a distinções binárias, sob outros aspectos estáticas, firmes e
intelectualizadas, unificadas pela montanha e pelas terras baixas. Podemos sentir
como a progressiva trajetória dos acontecimentos, desencadeados pelas contradi
ções do sistema de mercado das trocas não apenas faz irromper distinções laten
tes, mas poderosas, como também o decorrer dos acontecimentos muito deve ao
acaso e à inesperada confluência de oposições. É uma espécie de jogo semiótico,
239
no qual os signos abdicam de sua precisão em favor da ressonância política que
agora anima a paisagem, conspirando com a selvageria da redentora importância
de uso das mulheres.
“Lembrem-se de Cajamarca...!”, troveja o padre, e seus olhos se movem em
direção à Virgem. Cajamarca é a planície onde o soberano Inca Atahuallpa e seu
poderoso exército foram derrotados por um punhado de espanhóis, marcando
assim o final de um império, o surgimento de outro e, mais adiante, uma dupla
identidade, agudamente colonizada. É esse primeiro plano e esse antecedente de
identidade que Frank Salomon retratou recentemente.Trata-se de uma vasta his
tória colonial, escrita nas danças e nos assassinatos dos yumbo, nos subúrbios da
cidade de Quito, nas montanhas do Equador. Yumbo pode muito bem significar
auca, o equivalente andino e nortista de chuncho. Ali, a exemplo do que ocorre
com o Festival da Estrela da Neve, para o qual Robcrt Randall chama nossa
atenção de modo tão notável, o ritual anual dos yumbo, durante o qual se dança e
se mata, está associado com o Corpus Christi.23 Para aquele homem que cuida
dos equipamentos que guiam os aviões para dentro e para fora de Quito e que
guia Salomon através do mundo do yumbo (na medida em que esse mundo é
criado na imaginação dos moradores das montanhas), a dança suscita as polari
dades de um índio versus uma América branca. Com o Corpus Christi o “com
passo da existência” (uma imagem que o guia aprecia) gira 180 graus, e aquilo
que Salomon denomina “o esforço de se tomar algo" desvia-se da cidade da hierar
quia e da brancura, “retomando não ao mundo ancestral, que se perdeu irreme
diavelmente, mas ao alter contrário, à selva na qual os poderes da América perseguida
se recolheram”. Em seu guia, prossegue Salomon, “um senso de distinção étnica,
desprovido de seu fundamento original, sobrevive como uma tensão elétrica entre
dois eus potenciais, igualmente irrealizáveis”.24
Aqueles que assumem o papel dos dançarinos yumbo se tomam explicita
mente auca — não são batizados, não são socializados, são vizinhos dos animais
e dos espíritos das montanhas e das nascentes, afirma Salomon. Enquanto tal,
não podem entrar em uma igreja e, ao contrário de suas contrapartidas cristãs,
nessa versão do Corpus Christi elaborada no Novo Mundo, sua refeição, embora
formalmente semelhante à santa mesa, parodia a substância desta. Não são as
traves, mas as lanças, que formam essa mesa; não é o pão fresco, mas migalhas
roubadas ou mendigadas, além do crânio de um porco, esgravatado e limpo, além
de um saco de batatas fritas derramadas sobre a “mesa” improvisada, enquanto
se ridiculariza a oração a Deus. “Vocês vão ter de pagar!", grita o macaco para os
yumbos. Então os homens formam fila e se dispõem a pagar as contas. Essas
contas são classificadas segundo sua denominação e enfurnadas debaixo do couro
do tambor. Em seguida recomeça a música yumbo. O dinheiro, conforme Salo
mon assinala, não é mencionado e não se toca nele em uma verdadeira mesa
(cristã). Como se se tratasse de um espetáculo burlesco, rabelaisiano, injetado
240
com humor brechtiano c feroz, com os pés na terra, os yumbo-aucas zombam da
ordem hierárquica e serena dos oficiantes cristãos e, além disso, do Estado cristão
Esses dançarinos da floresta lá embaixo vivem no colo de seus pais e mães
das montanhas. “Vim até aqui visitar o apu para curar. Dou boa sorte”, eles
poderão dizei; e com apu se referem não simplesmente à montanha ou a um senhor,
mas também aos oficiantes cristãos do Coipus Christi. As montanhas amam essa
gente das terras baixas. Quando, no monte Guamani, ouve-se o barulho do tro
vão, ao entardecer, diz-se que o Guamani está chorando porque seus xamãs Quijo
do sopé das montanhas passam por ele, na estrada que leva à cidade de Quito.
Eles dançam para as residências cristãs e cantam: “Eu vim, cheguei com minha
Mãe Montanha. O que você quer? Quer uma cura ou quer matar?”. E quando
partem, daí a alguns dias, dizem: “Agora precisamos ir para nossa casa. Agora
nossa montanha está nos chamando, nossa montanha está brincando. Quando nossa
montanha brinca, vamos embora, nossa montanha não deixa a gente ficar”.
É a brincadeira das montanhas? É o relâmpago que risca o céu, surgindo
junto às encostas distantes das montanhas, o lado que dá para as florestas da
planície, visível em Quito como um fulgor pálido (segundo as palavras de Salo-
mon), alumiando, ao fundo, os perfis escuros das cristas. Esse tremeluzir por
detrás das cristas que rodeiam a cidade é um sinal do poder dos yumbos. Agem
como xamãs do Pacífico e das florestas tropicais do Leste, a domam-se com pás
saros de plumagem reluzente. São xamãs que vieram até a cidade da montanha a
fim de vender animais da selva e praticar a medicina mágica. É verdade que se
diz dos yumbos que eles dependem dessas montanhas que os amam e choram por
eles, dessas montanhas que são suas mães, seus apus ou senhores, cujo senhorio
maternal se dilata para denotar os oficiantes cristãos, a quem os yumbos, que
agora representam não apenas o povo da selva, mas sua quintessência mágica e
selvagem no ofício xamânico, complementam em ponto e contraponto, por oca
sião do Corpus Christi. Trata-se, porém, de uma dependência profundamente am
bivalente. Os xamãs vêm da selva e oferecem a seus chefes aquilo que sua
superioridade lhes nega, isto é, o poder mágico da selvageria, o poder mágico de
matar e de curar e, diante daqueles oficiantes cristãos, eles exercem selvageria
sobre eles mesmos, matando um dos seus e em seguida, por meio da arte xamâ-
nica, trazendo a vítima do espaço da morte para a vida, para algo que é, talvez,
maior do que a vida, uma diferença estruturada, co-dependente, da floresta e da
montanha, “índia” e cristã, encenada nestas alturas, nos subúrbios da cidade.
Caçando e abatendo sua vítima em uma floresta tropical simbolizada, por meio
do poder divinatório de seus alucinógenos, no dia que se segue a Corpus Christi,
o xamã que matou saúda seus companheiros selvagens (passo a citar Salomon):
“E que notícias me traz, irmão? Não viu alguém vir por aqui com os pés e dedos
virados para trás, com o cu e os bagos cheios de pulgas e talvez com uma corda
curta amarrada no pescoço? Não viu alguém assim passar por você?”. O matador
quer comer o fugitivo, mas é persuadido a ressuscitá-lo, caso receba dinheiro.
241
“Irmão, de onde você veio?”, perguntam ao homem que é trazido de volta à vida.
“O que foi que você viu?” Em tom de voz bem baixo, para que os curiosos não
ouçam, ele conta: “Irmãos, percorri o mundo inteiro. Vi todos os animais, vi
todos os meus irmãos e agora trouxe as sementes doces. Fui para outro mundo e
trouxe o que ali havia: laranjas, colación e todas as frutas”. E assim os irmãos
yumbos, xamãs, todos eles selvagens, cantam, despedindo-se das montanhas, dos
cristãos, seus anfitriões:
De um ano para outro aparecemos aqui
Como o pássaro veranero.
Ah, agora voces vêem. Ah, agora vocês vêem
A morte vocês vêem, a vida vocês vêem agora
Ai, não, sim! É assim, é assim!25
Há um tremeluzir de luzes nas sombras da morte: “A morte vocês vêem, a
vida vocês vêem agora. Ai, não, sim!”. Há um tremeluzir de luzes além dos
cumes sombrios que rodeiam a cidade das montanhas, um antigo jogo de diferen
ças que se manifesta tanto no comércio quanto nas trocas ideológicas, que talvez
agora tenha ficado mais aguçado devido à rapidez com que a circulação de mer
cadorias criou “o moderno” e “o tradicional”. As danças yumbo florescem mais,
informa-nos Salomon, “onde a desenfreada expansão de Quito, rica devida ao
petróleo, ocasionou uma súbita e dramática invasão de comunidades antigamente
' n 26rurais .
Isto levanta algumas questões abordadas por Benjamin e que dizem respeito
ao efeito cultural do salto em direção àquela Paris de Baudelaire, onde as merca
dorias passam a adquirir grande importância. Em primeiro lugar, ocorre o con
fronto da disciplina da cidade com sua selvageria (“James Ensor gostava de
introduzir grupos militares em suas multidões carnavalescas, e ambos se davam
esplendidamente, como um piotótipo daqueles estados totalitários, nos quais a
polícia toma o partido dos saqueadores”, observou Benjamin);27 em segundo lugar,
é preciso observar como o salto quantitativo para a tecnologia e a oscilação do
mercado inscreveu nas mercadorias um pathos de promessas negadas, estimu
lando através delas visões de utopia, extraídas de fantasias do passado primitivo,tais como a selva e seus fabulosos yumbos, aucas e chunchos.
Em relação às cidades do Primeiro Mundo, a própria cidade do Terceiro
Mundo se aproxima do status do auca. Examinemos o anúncio de página inteira
publicado no New York Times (21 de outubro de 1984), centrado em uma foto
colorida de uma índia das montanhas carregando nas costas um bebê adorme
cido. Usa um manto de um vermelho vivo e um chapéu panamá com uma faixa
multicor. Em tomo do pescoço há contas de ouro e prata e de suas orelhas pen
dem brincos dourados. Atrás dela vemos cestos de vime; seus espaçosos inte
riores, escuros e convidativos, são cavidades sexualizadas, à espera de mercadorias
242
para comprar e vender. Ela tem os olhos baixos e ligeiramente afastados da má
quina fotográfica, como se estivesse absorta em outro mundo que não o do fotó
grafo ou o nosso. É um anúncio da revista Gourmet (“o padrão de vida") que,
conforme é declarado, tem 2,5 milhões de leitores.
Mas os pássaros tropicais lá dos contrafortes das montanhas, que os xamãs
yumbo trouxeram até Quito, morreram durante a viagem. No entanto as cores
persistem, e é com elas que os xamãs são ajudados na criação e transmissão de
suas fantásticas visões.
Quanto à antigüidade dessa enorme distinção que articula a demoníaca magia
das florestas das planícies com a majestosa ordem das terras altas — é claro que
do ponto de vista destas últimas —, pode-se apresentar uma justificativa para o
fato de ela se reportar a épocas muito remotas. Hemy Wassén resume muitos
indícios relativos a esse tema na monografia que editou sobre o conteúdo do
túmulo de um curador Collahuaya. O teste com carbono permitiu situar tal con
teúdo em tomo de 350 d.C.M Salomon cita estudos que sugerem datas mais re
cuadas (cerca de setecentos anos), no que se refere ao comércio da planície com
as terras altas. Ele mesmo chega a ponto de dizer que, pelo menos para o século
XVI, há indícios que sugerem fortemente “algum grau de influência ideológica
da planície sobre os habitantes das terras altas".29 Entretanto, tal “influência” tem
todas as probabilidades de ser tanto auto-induzida quanto induzida de fora. Trata-
se de uma fantasia institucionalizada das terras altas em relação às florestas do
Leste, cujo romantismo, selvageria, beleza e mistério não podem deixar de consi
derar o ideológico como algo natural e o ficcional como realmente real. E quem
permanece imune?
À cientificidade da arqueologia e á antigüidade da datação por caibono acres
centamos a paixão heróica dos habitantes da planície, liderados pelos xamãs,
contra os espanhóis e, antes disso, ao que se diz, contra as incursões do império
Inca. Mais uma observação: os habitantes das terras altas, ricos e pobres, brancos
e índios, urbanos e não tão urbanos, descem para as planícies á procura dos
xamãs e de seu poder mágico. Nós também, não menos dependentes das impal
páveis distinções foijadas pelo mito, por meio de acontecimentos históricos ocorri
dos em paisagens interiores e exteriores, seguimos esses habitantes, observando,
nos afastando, mas, finalmente, a exemplo daqueles que descem, imaginando o
mundo ritualisticamente, não menos tributários da magia das matas e do primi
tivo, do selvagem, como se o mito se reproduzisse inevitavelmente através de ri
tuais que, para alguns, são curativos e, para outros, necessitam de uma explicação.
Para encerrar, Salomon nos deixa com esta vigorosa imagem: onda após
onda de estrangeiros conquistaram e santificaram a cidade de Quito, na mon
tanha. Os poderes ab-originais são projetados para fora, em direção á periferia,
passam por cima da borda das montanhas e alcançam o refúgio das florestas
distantes. “Assim”, escreve ele, “a floresta se toma — e está se tomando sempre
243
— o refúgio do antigo, do aborígine, do autóctone. É um reservatório para aquele
tipo de conhecimento que os poderes do centro desejam unicamente expelir e
substituir".30
Mas qual é o grau de autonomia desse conhecimento que o centro projeta
para fora? Será que a alteridade que marca aquilo que é projetado também não o
marca como algo que é desejado e necessário ao centro? A magia da zona selvagem
não será criada tanto pelo centro quanto pelos xamãs, que são feitos para agir
como aqueles que amortecem os choques da história?
Isso se encontra ativamente inscrito no corpo. Examinemos a história dos
ferimentos dos espanhóis e da gordura do corpo dos índios.
Bemal Díaz lutou com Cortês e ganhou um império para a Espanha. Seu
campo de batalha foi o México, e ele escreveu aquilo que é, com toda certeza, o
relato mais universalmente lido daquela conquista. Ao descrever o primeiro con
fronto com os Tlascalan, ele registrou que o corpo de um índio bem nutrido foi
aberto para que dele se retirasse a gordura que curaria os ferimentos dos partici
pantes da batalha. Não havia óleo, disse ele, mas havia filhotes de cachorros dos
índios que proporcionaram uma refeição satisfatória. Presumivelmente não eram
desprovidos daquela gordura que teria aliviado os ferimentos. No próximo em
bate a gordura dos índios voltou a ser aplicada com a finalidade de curar quinze
espanhóis feridos, bem como seus quatro cavalos. Naquela noite houve galinhas
e filhotes de cachorro para comer. Era curioso, escreveu Bemal Díaz, como os
índios, nessa batalha e em todas as demais, levavam embora seus feridos, e os
espanhóis jamais viram os índios mortos.31
O grande cavaleiro Hemando de Soto, ao que se diz, também usou a gor
dura dos índios mortos em combate, quando da expedição contra um dos capitães
Inca, que resistia na Sieira de Vilcaza, nos Andes peruanos.32 Não posso dizer o
quão mágico era tal emprego, mas com toda certeza os princípios enunciados por
Frazer referentes à magia complacente e contagiosa ficam claros: com a gordura
daqueles que me feriram eu curarei minha ferida. Sabe-se lá o que está sendo
dito aqui a respeito da gordura enquanto excesso beneficente de vitalidade, de
corpos vivos e saudáveis, daquele que é mais gordo, em oposição ao infeliz
magro etc.! Mas se é vã qualquer especulação relativa às opiniões dos espanhóis
sobre as virtudes mágicas da gordura indígena, ela não é tão vã assim quando
abordamos as opiniões do índio em tomo desse tema. É o mesmo que dizer — e,
como sempre, é algo que deve ser dito, em se tratando deste jogo de espelhos —
que não se trata tanto das opiniões dos índios quanto das opiniões dos espanhóis
em relação ás opiniões que os índios manifestavam em relação às opiniões dos
espanhóis. Neste caso tratava-se do untu do índio ou da gordura do corpo.
Quando estava para terminar seu pequeno livro sobre os ritos e fábulas Inca,
uns quarenta anos depois que os soldados de de Soto curaram seus ferimentos
com a gordura de índios mortos, o sacerdote católico Cristobál de Molina julgou
244
apropriado estender-se longamente sobre a santidade das montanhas, a extração
da gordura dos corpos dos índios, a revolta da Doença da Dança contra os espa
nhóis e os ritos de cura que floresceram durante e após essa insurreição, sem
dúvida a maior de todas as rebeliões índias ocorridas durante os primeiros duzen
tos anos de dominação colonial. Dez anos antes desse livro, uma revolta que os
índios denominaram o Taqui Onqoy ou Doença da Dança irrompeu na diocese de
Cuzco, anteriormente capital Inca, e propagou-se rapidamente. Segundo o padre
Molina escreveu, espalhou-se a notícia que os espanhóis ordenaram que a gor
dura dos índios fosse recolhida, após o que seria exportada para a Espanha, tendo
em vista a cura de determinadas doenças. Embora ninguém pudesse afirmar com
certeza, provavelmente os feiticeiros do Inca, escondidos nas misteriosas para
gens de Vilcabamba, onde os Andes se encontravam com as florestas amazôni
cas, é que foram os responsáveis por esse relato, destinado a semear a inimizade
entre os índiose os espanhóis. A partir de então os índios relutaram em servir os
espanhóis, pois temiam ser mortos e ter a gordura de seus corpos extraída como
remédio para o povo da Espanha.35
Quase quatrocentos anos após a revolta da Doença da Dança, o peruano
Efraín Morotc Best publicou em Cuzco um artigo sobre o Nakaq, um fantasma
das montanhas meridionais do Peru que, ao que se diz, ataca indivíduos na escu
ridão, em lugares públicos, para extrair a gordura de seus corpos, que, ou é ven
dida nas farmácias, onde é usada no preparo de certos remédios, ou para certas
pessoas, que a empregam para lubrificar máquinas, fundir sinos de igreja ou polir
os rostos das imagens de santos.34 Raramente se dizia que o Nakaq era um índio.
Quase sempre comentava-se que era branco ou mestiço. Em algumas versões a
vítima desaparecia imediatamente. Em outras as vítimas eram colocadas para
dormir ou então entravam em um estado semelhante ao transe por meio de pós
mágicos. Depois que sua gordura era extraída elas acordavam, sem lembrar-se do
que tinha acontecido. Não havia qualquer sinal de ferimento. Continuavam a
viver sua vida de todos os dias e morriam lentamente. Algumas não morriam,
mas ficavam doentes para sempre, de tristeza. Ao acordar, algumas pessoas se
lembravam de tudo, como se fosse um sonho.
Em seu ensaio sobre o mesmo fantasma, Anthony Oliver-Smith sugeriu que
ele serve para confirmar, de maneira grotesca, as experiências cotidianas do índio
em relação à opressão de classe e de raça. Em comentário á parte, notou que os
mestiços com quem falou em Ancash, no Peru, em 1966, contaram-lhe com
grande hilaridade que matavam um cachorro ou um porco e espalhavam suas
tripas com roupas enxarcadas de sangue para levar os índios a pensar que o fan
tasma que extraía gordura andava por perto e os mataria, caso não trabalhassem
com mais afinco ou não se comportassem.35 No entanto esse simulacro da reali
dade, na qual os mestiços zombam daquilo que acham que os índios pensam que
os mestiços estão pensando sobre os índios, vai além de uma simples piada.
Em seu trabalho de campo na província andina de Ayacucho, no início e em
245
meados da década de SO, o etnólogo e romancista peruano José Maria Átguedas
conheceu um homem, um misti, como os índios o chamavam (querendo dizer,
com isso que se tratava de alguém que não era índio, um membro da classe
“senoriar), que, com grande encanto, embelezava o fato, certamente bem co
nhecido, de que os mestiços (bem como os brancos) dessas classes sociais podem
recorrer a adivinhos e curadores índios quando se vêem em apuros, atribuindo-
lhes assim o poder de desviar o curso do destino, como se existisse um pacto
implícito entre a indianidade e a redenção. Aiguedas fez perguntas aos morado
res da cidadezinha andina de Puquio em relação aos wamanis, espíritos das mon
tanhas que rodeavam a localidade e cujos sacerdotes recebem o nome de pongos,
dado aos criados e servos cm boa parte dos Andes. Seu conhecido misti contou-
lhe o que aconteceu, quando atuou como autoridade em um distrito no interior da
província.30
Havia uma grande comoção, pois os moradores da capital do distrito, bem
como das regiões vizinhas, tinham ouvido falar que, em uma cavema na mon
tanha, havia um pongo capaz de realizar curas milagrosas e de adivinhar o futuro.
Devido à confusão geral, pois as pessoas, tumultuadas, iam correndo consultar o
pongo, o governador decidiu colocar um fim naquilo que ele denominava a farsa
do índio. Enviou quatro homens para prender o pongo. Trouxeram-no amarrado
para a cidade, onde o governador o tratou muito mal, fazendo-o dormir na prisão
e sem o desamarrar. Entretanto, pessoas de todas as classes sociais, ignorantes e
letrados, solicitaram ao governador que o libertasse. Ele decidiu fazer o pongo
passar por uma prova. O pongo pediu certos ingredientes e armou sua mesa ou
altar, a fim de invocar os wamanis, os espíritos da montanha. Ele e o governador
aguardaram sozinhos, em um quarto escuro. Os wamanis chegaram voando, fa
zendo grande barulho e batendo as asas. O governador disse que conseguiu ver
um deles, pois tinha deixado uma janela aberta. Tinha a forma de uma águia
pequena, porém imponente. Também nos contou que os wamanis falavam com
fúria majestosa e chicoteavam o pongo. O mais furioso era o espírito da maior de
todas as montanhas, Quarwarasu. Os wamanis contaram ao governador o que lhe
aconteceria ao longo de sua vida, e lhe deram remédios para suas doenças. Só
assim ele ficou convencido do poder do pongo e comoveu-se, a ponto de iniciar
uma amizade íntima com ele, chegando mesmo a dizer-lhe certo dia que também
gostaria de ser um pongo. Isso, no entanto, estava fora de cogitação, disse-lhe o
pongo. Não era uma profissão que um misti pudesse seguir. Não conseguiriam
resistir âs punições e aos testes a que os wamanis submetiam seus pongos.
Assim, o governador desistiu de sua ambição, mas manteve relações afetuosas
com o pongo. Certo dia, em Nazca, uma localidade remota situada no litoral sul,
um amigo do governador, que já não ocupava mais o cargo, pediu-lhe que trou
xesse um pongo para curar certa doença de uma mulher, que nenhum médico
conseguia diagnosticar. O ex-governador convocou o pongo, que morava a uma
distância de três dias de Puquio e, de táxi, atravessaram uma extensa região, indo
246
até a costa, cm Nazca, onde, em um quarto escuro, o pongo preparou seu altar e
invocou os wamanis, os espíritos das distantes montanhas de Ayacucho. Como se
encontrava no litoral, invocou também os espíritos das montanhas vizinhas, so
bretudo os da Montanha Branca, mas foi um equívoco, pois a Montanha Branca,
situada em uma região onde havia poucos índios, falava espanhol, que o pongo
não conseguia entender. Os wamanis se encolerizaram
No dia seguinte o ex-governador perguntou à Montanha Branca se poderia
servir de intérprete. Ela concordou e os wamanis continuaram A Montanha
Branca acusou a doente de ser uma feiticeira. Disse que ela estava doente devido
à feitiçaria, pois uma de suas vítimas havia se vingado, mandando um feitiço
contra ela. O wamani principal ordenou a dois de seus menores espíritos da mon
tanha que fossem colher substâncias usadas para fazer feitiçaria e lhe trouxessem
aquilo que a mulher branca e doente empregara contra sua vítima, bem como
aquilo que sua vítima usara contra ela. Em um abrir e fechar de olhos as aves
derrubaram objetos pestilentos sobre o altar. Eram dois embrulhos com feitiçaria,
que imediatamente foram jogados no fogo. O pongo e o ex-governador voltaram
para as montanhas e a paciente começou a melhorar.
O ex-governador disse a Arguedas que os espíritos das montanhas interes
sam-se pelos índios e que os segredos desses espíritos só podem ser aprendidos
no interior das montanhas. Contava-se que o amigo do ex-govemador, o pongo
índio, permaneceu durante seis meses dentro de uma dessas montanhas e que,
decorrido esse tempo, ele voltou a aparecer, adormecido no campo. Ele ainda
vive, disseram a Arguedas.
Entre as posições inferiores, o pongo ocupa a mais baixa de todas e é o
criado de todo mundo. Ele voltou a aparecer, dormindo, disse o mis ti a Arguedas.
Ele é também o criado dos sonhos e da arqueologia do mito racista que se des
loca para o presente, vindo do interior escondido da terra montanhosa, emergindo
adormecido como se estivesse em um tempo de sonhos, a fim de redimir a classe
senoríal de sua feitiçaria auto-induzida. Assim como esse pongo voltou a apare
cer adormecido, outros pongos desapareceram dormindo, violados pelos mistis e
brancos sob a forma de nakaqs, que vendem suas gorduras como remédio, como
lubrificante para máquinas ou para polir os rostos dos santos.
Em meio às técnicas que constituem esses ritos, existe uma figura que pro
picia a substancialidade necessária para ligar a febre efêmera das atribuiçõese
contra-atribuições a uma força redentora. É uma figura imaginária, constituída
por aquele campo fugaz da alteridade — as representações que os brancos fazem
das representações que os índios fazem das representações que os brancos fazem
dos índios. É a figura da mulher e do homem selvagens, figuras pagãs, a quem se
atribui a magia de matar e a magia de curar a doença e o infortúnio socialmente
causados por seus superiores, definidos como civilizados. São estes os grandes
artefatos: o anti-eu fetichizado, gerado por histórias civilizatórias, a figura selva-
247
gemente contraditória do primitivo, menos do que humana e mais do que hu
mana. É a figura da escrava negra em Cartagena, com seus filtros amorosos e
suas poções mágicas. É Paula de Eguiliz, condenada à morte na fogueira pela
Inquisição, acusada de comandar as bruxas negras que assediavam Cartagena.
Embora fosse objeto de acusação, era solicitada por seus acusadores, o bispo e o
principal inquisidor, a fim de curá-los. Despindo o sanbenito, traje de penitência
que a marcava como aliada do diabo, ela saía da prisão coberta por um manto
bordado de ouro, carregada em uma liteira, lembrando a Mulher Selvagem da
Floresta, La Montanerita Cimarrona. É o pongo em sua caverna na montanha
curando mis tis. É o chuncho nas paragens selvagens, abaixo das montanhas. É o
xamã exorcizando José Garcia, livrando-o daquele feitiço que outros brancos,
invejosos de sua boa sorte, lhe enviaram. São imagens de selvageria imputada a
esses escravos, ex-escravos e pongos e, em seguida, extraídas deles, embebidas
com aquela alteridade que essa imputação tanto intensifica, a exemplo do que
ocorre com a gordura extraída pelo nakaq. É um poder escorregadio e mágico,
que pode exorcizar, no eu colonizador, o mal de possuir mais.
Somos todos nakaqs.
248
13
O valor do excedente
1971 foi um ano de esperanças renovadas para muitas pessoas pobres que
trabalhavam no campo, na região da Colômbia onde eu morava. Desde a década
de 30 não houvera tamanha atividade política por parte dos camponeses que
lutavam com os latifundiários pelo controle da terra. Certo dia acompanhei dois
líderes sindicais camponeses até o alto das montanhas que ondulam para o Oeste,
a partir da extremidade sul do vale. Luis Carlos Mina e o falecido Alfredo Cortés,
meus amigos, eram camponeses dos arredores de Puerto Tejada e tinham experiên
cia pessoal com a deflagração de greves nos engenhos de açúcar. Queriam incor
porar os índios a seu novo sindicato, solicitando-lhes que contribuíssem com
madeira das montanhas para a construção da casa campesina a ser edificada na
cidadezinha onde havia o mercado principal. Isso proporcionaria às pessoas um
lugar onde passar a noite, na véspera do mercado, e assim elas não precisariam
dormir na rua. Era um espaço onde as pessoas se reuniriam, discutiriam suas
preocupações mútuas e se organizariam
Viajamos o dia inteiro, subindo a cordillera ocidental em pangarés esquelé
ticos, e localizamos a hacienda. Precisávamos da permissão do proprietário para
conversar com seus colonos. Em troca de um pequeno pedaço de terra, pouco
fértil, eles trabalhavam durante três dias na hacienda. Eram índios Páez da cor
dillera central. Tratava-se de quatro ou cinco famílias pequenas, que viviam em
choças espalhadas. Quando nos aproximávamos de suas casas eles trancavam
portas e janelas. Olhavam para o chão quando conseguíamos entabular um prin
cípio de diálogo, o que não acontecia com freqüência.
O proprietário não era menos esquelético do que nossos pangarés. Peludo,
rude, sua roupa era manchada de suor e de seu cinto pendia um facão, cuja bainha
era polida e reluzente, devido ao uso constante. Era um blanco, um branco, como
diziam naquelas paragens, e freqüentara o curso secundário durante alguns anos.
Vivia na fazenda, bastante só, e descia em média uma vez por semana para o
mercado, no vale. Era cortês e, embora não manifestasse grande entusiasmo por
249
aquilo que estávamos fazendo, provavelmente achou melhor não demonstrar ani
mosidade em relação ao novo e florescente sindicato. Permitiu-nos, portanto, que
fôssemos conversar com seus obreros.
Ao ouvir falar que eu trabalhava como médico, queixou-se de sua insônia e
de dores de estômago... Quando a situação piorava ele descia para o vale e to
mava um ônibus que o levaria ao Sul, quase na fronteira com o Equador. De vez
em quando se fazia acompanhar por seu filho, que servira como mecânico na
Marinha colombiana. Lá passava a noite e pegava outro ônibus, dessa vez em
direção ao Leste, descendo os Andes, até as florestas, à procura de um xamã
índio, um curaca. Lá ficava bebendo remédios especiais, contou-me, até se curar.
De vez em quando levava terra da fazenda para que ela também passasse por um
processo de cura, sobretudo quando a colheita ia mal ou o gado emagrecia.
Que estranho, pensei. Era a primeira vez que eu ouvia semelhante coisa e
não sabia quase nada a respeito dos curacas, yagé, da geografia a que ele se
referia e, para dizer a verdade, a respeito da feitiçaria ou malefício. Era o malefí
cio que fazia o gado emagrecer e as colheitas minguarem
Daí a algumas semanas, no dia em que funcionava o mercado, na cidade-
zinha, deparamo-nos com alguns de seus empregados. Estavam um pouco bêba
dos, cambaleavam, sorriam e se divertiam em meio à multidão de camponeses
reunidos na sede do novo sindicato.
“O patrão diz que sofre de malefício", afirmei, tentando puxar conversa com
eles. “Quem estaria fazendo isso?"
“Ora essa”, comentou aquele que estava mais próximo de mim, “los mis-
mos compadres!". Referia-se aos colonos índios de cujos filhos o dono da ha-
cienda era padrinho! Ele não parava de sorrir. Jamais saberemos se os colonos
enfeitiçaram de fato o proprietário e sua fazenda. Este, porém, sentia-se suficien
temente atingido para fazer uma longa viagem e adquirir proteção mágica de
outros índios, habitantes da floresta, cujo poder se igualava ou se sobrepunha
àquele a que o expunha o fato de ele explorar seus colonos índios da cordilheira.
Era a magia a serviço da luta de classes, a qual também acabou por envolver-me.
Cinco anos mais tarde fiquei conhecendo um atarracado morador das mon
tanhas, que morava nos Andes, perto da estrada que ligava as florestas orientais
da bacia amazônica á cidade andina de Pasto. Era um fazendeiro diligente e
próspero, um blanco, segundo os padrões locais e, durante três anos, tivera pouca
sorte. Era um monumento melancólico e sem graça ao conformismo social. Seus
olhos, que pareciam duas contas, naufragavam na inocência ovóide de seu rosto
gordo. Sua fazenda se estendia por pastos verdejantes e por plantações de batatas
lindamente cultivadas, mas saturadas de fungicidas e fertilizantes. Eles termina
vam nas margens de um lago azul e gelado, no qual somente os mais ousados se
aventuravam a nadar. Segundo se comentava, o lago era encantado. Em tomo er
guiam-se pequenas cabanas, pertencentes a camponeses diaristas, blancos como
ele. Era gente pobre, e ele empregava alguns deles em seus campos férteis, inva-
250
didos por pesticidas. Seus pais o trouxeram para lavrar aquelas paragens á mar
gem do lago quando ainda era uma criança. Chamava-se Sexto. Conheci-o em
uma elevação acima de sua fazenda, a alguns quilômetros do páramo do cimo das
montanhas, lá no vale do Sibundoy, certa noite em que ele tomava yagé com um
curador índio de nome Pedro, com quem eu costumava hospedar-me por ocasião
de minhas viagens à região das planícies.
Estávamos quase no final de 1976 e os padres promoviam grandes ativida
des, pois planejavam fazer com que sua igreja se transformasse em catedral. Um
dignatário da mais alta hierarquia, o arcebispo de Bogotá, com seu séquito de
bispos, vinha consagrar a nova catedral. Enquanto isso os missionários, muito
atarefados, percorriamdiligentemente o vale inteiro, em uma vã tentativa de inspi
rar fervor religioso.
A mãe de Pedro, o curador índio, tinha mais clareza do que eu em relação
ao significado de toda aquela movimentação. Contou-me que finalmente os ossos
de frei Bartolomé, escondidos na catedral, seriam exumados e que o papa iria
santificá-lo. Era o mesmo Bartolomé que, há sessenta anos, juntamente com o
frei Gaspar de Pinell, empreendera uma lendária excursão apostólica, descendo
as montanhas em direção ás densas florestas dos rios Putumayo e Caquetá, com
o objetivo de batizar os Huitoto e outras tribos novas e selvagens (conforme a
colocação dos textos publicados pela Igreja). Seu espírito é milagroso, e Pedro
carrega um retrato dele em sua carteira.
O vento, porém, deixava de enfunar as velas que impelem o mundo. A mulher
de Pedro participou de nossa conversa, quando falávamos a respeito dos ossos de
frei Bartolomé e de suas proezas com os selvagens, ambos soterrados na igreja,
em um subterrâneo que pertencia a um tempo de redenção. A perspicácia dela
deu lugar a um prolongado suspiro. Declarou que os grandes xamãs da planície
não existiam mais. O mesmo ocorria com frei Bartolomé, que morreu em 1966.
“Nos tempos antigos havia grandes curacas”, disse ela, pensativa, referindo-se
aos xamãs.
Eles eram capazes de se transformar em onças e papagaies. Conseguiam voar. Agora
acabaram. Cometam um ao outro. Brigaram entre eles. Foram consumidos pela inveja. Eles
se transformavam em onças para comer a família inteira de seus inimigos. Agora que Salva
dor morreu, não existe mais ninguém. Ele era como frei Bartolomé. Sabia curar. Era um
homem de qualidade. Não havia médico como ele e até hoje não existe ninguém. Frei
Bartolomé ajudava até mesmo as mulheres a dar à luz. E não cobrava nada por isso. Ia a
lugares distantes no campo, até mesmo quando chovia. É por isso que ele é um santo. Está
no céu. Foi o pai de todos nós. Fundou a catedral, o convento das Santas Irmãs e o dos
padres também. Foi o fundador de Sibundoy.
“Por que os capuchinhos foram embora do vale?”, perguntei.
“Porque o frei Bartolomé morreu. Recebeu uma carta do INCORA (o insti
tuto de reforma agraria do governo, que desapropriou a maior parte das terras
que os capuchinhos haviam tomado dos índios no início deste século). O frei
251
abriu a carta e teve um ataque cardíaco. Os capuchinhos venderam quase todas
suas fazendas ao INCORA. Agora o povo tem que pagar ao INCORA, mas isto
não é bom. Agora só se ouve falar de dinheiro, de conseguir empréstimo para
trabalhar a terra, comprar arame farpado, usar tratores. É melhor ser pobre e dormir
sem essas preocupações.” Nem ela nem Pedro tinham qualquer outra terra que
não um pedacinho de solo árido nas colinas acima da cidade, cuja parca produ
ção eles complementavam com a pouca renda que Pedro obtinha graças a suas
atividades de curador, adivinho e carpinteiro.
Aquela noite os missionários haviam escolhido a casa de Pedro como local
de encontro de uma das reuniões destinadas a consolidar a fé, antes da chegada
do arcebispo. Aconteceu, porém, que justamente naquela noite Pedro planejara
tomar yagé com seu grupo de pacientes. Imperturbável, disse a mim e aos outros
que aguardássemos sem fazer barulho, sem sermos vistos, no quarto de chão
batido, enquanto a reunião dos padres se realizava na sala da frente. Separados
unicamente pelas toscas pranchas de madeira da parede, ficamos sentados no
escuro. Nossos temores e expectativas em relação ao yagé que tomaríamos mais
tarde eram sublinhados por raios de luz e pelos sons que vinham da sala.
Cerca de trinta vizinhos, entre adultos e crianças, haviam comparecido à
reunião com um padre e uma freira. Todos, muito rígidos, estavam sentados em
bancos, à luz de uma lâmpada. O padre começou.
“Viemos aqui para discutir problemas. Vim até aqui com a Irmã e gostaria
que nos chamássemos por nossos nomes. Somos iguais perante Deus.”
Silêncio.
“Estamos aqui pata procurar a unidade, a base de tudo”, declarou o padre,
que em seguida percorreu a sala, perguntando o nome de cada pessoa. Muita
gente riu, contrafeita.
“Precisamos ser amigos”, afirmou a freira. “Temos de fazer amigos, pois a
maior parte de nossos problemas se deve à falta de comunicação.” Em seguida
ela fez um discurso criticando os protestantes. Pedro interveio com uma pilhéria
que aprendera com os padres, em sua cruzada contra o comunismo. Ele igualava
os comunistas aos protestantes, e sua pior característica era a desconsideração
pela Virgem, a mãe da terra. A freira censurou o grupo pelo fato de ele não ser
suficientemente amistoso entre si. Até então, com exceção de Pedro, ninguém
ousara dizer o que quer que fosse. A freira, sem dúvida, estava se empenhando.
“Vamos cantar um hino que fala da amizade”, ela sugeriu, mostrando a
todos uma partitura. “O quê! Vocês não sabem ler!" Girou a manivela de um toca-
discos. O padre estava de pé, e todos os demais, sentados. Ele começou a fazer
preleções, fazendo todo tipo de perguntas relacionadas a conflitos entre casais.
“O que falta?", perguntou, dando a resposta em tom triunfal. “Compreen
são! Falta compreensão!” Invocou a fraternidade. “Todos nós procedemos de
Deus e a Ele retomaremos.”
252
A freira perguntou: “Vocês se sentem sozinhos ou acompanhados?”.
Pela primeira vez o grupo se manifestou: “Acompanhados!".
A freira leu seu hinário e tocou o disco. Obrigou uma mulher a ler um hino
em voz alta. Ela e o padre falaram a respeito da pobreza.
“Como nos livramos da pobreza?", perguntaram.
“Com dinheiro", alguém disse.
“Não! Não!", exclamou o padre. “Dinheiro todo mundo pode ganhar. Existe
algo mais importante do que o dinheiro. 0 que é?"
Fez-se um prolongado silêncio. “Com a palavra de Deus, conhecendo a
palavra de Deus!"
Alguns jovens, reunidos em frente da casa, gritaram: “Reunião e merda é a
mesma coisa!".
“É difícil os vizinhos se comunicarem", disse o padre, “realmente difícil.”
E assim, decorrida uma hora, a reunião chegou ao fim.
Pedro, empolgado, entrou no quarto onde nos encontrávamos, declarando:
“E agora vamos ao que interessa”. Acendeu-se uma pequena fogueira e sentamos
todos no chão em tomo dela. Oito dentre nós conversavam animadamente, en
quanto ele preparava a panela do yagé. Ele não nos exortou a dizermos nossos
nomes ou a sermos amigos, e embora naquela noite se tivesse falado muito a res
peito de pobreza e conflitos, isso não se resolveu por meio de um apelo à com
preensão, à comunicação ou á palavra de Deus.
Silêncio. Pedro começou a cantar para o yagé. Alguém repetiu algo que o
padre dissera: “Fraternidade". Uma sensação de suavidade invadiu o quarto. Pedro
cantava com mais vigor, e após bebermos o primeiro copo houve uma conversa
prolongada, porém interrompida com freqüência, sobre os preços e lucros obti
dos com as colheitas. Decorrida uma hora Pedro estava sentado com a cabeça
apoiada nas mãos, sofrendo. De repente olhou na direção de Sexto, o homem do
lago, e perguntou:
“Desconfia de alguém de lá que tivesse posto o sal?" Ao empregar a palavra
sal ele estava referindo-se à feitiçaria. Sexto disse que sim.
“Muito bem", disse Pedro. “Devemos continuar a pensar, a nos concentrar, a
examinar tudo.” Daí a pouco voltou-se para Julio, um negro de meia-idade que se
mudara para lá havia muitos anos, vindo do litoral do Pacífico, e disse-lhe que
sabia quem lhe havia feito o mal, quem era o homem que...
Decorrido um tempo, que pareceu ser quase uma hora, um índio da locali
dade aproximou-se de Pedro, que sofria e estivera vomitando. “Este remédio é
violento”, ele disse, entre uma golfada e outra.
O homem começou a desfiar o rosário de suas desgraças. “Minha mulher
me abandonou... meu filho está doente., o mal invadiu minha casa... não sei o
que fazer..."
“Que ruim!”, exclamou Pedro, com empatia e dor, voltandoa apoiar o rosto
nas mãos.
253
Isso durou a noite inteira. As pessoas se levantavam para defecar e vomitar.
Em seguida voltavam para perto da fogueira. Longe dela o frio era grande. Todos
falavam principalmente sobre a prevenção e cura da feitiçaria. Havia muita zom
baria, muitas piadas, e em meio às interrupções e retomadas, a arroios e grandes
ondas, as cores e configurações do yagé avançavam e recuavam; as ondas amare
las das flores em tomo do lago, copas rosadas e brancas, gelatinosas, ondulavam
lentamente como se fossem plantas aquáticas, mescladas com serpentes e porcos.
Uma sombra se mexeu, a fogueira crepitou, ouviu-se um som, uma emoção se
infiltrou no interstício da discussão lenta e dispersiva. Essas súbitas irrupções
esquadrinhavam e punham em estado de alerta nosso ser, moldando a consciên
cia, assemelhando-se ao jardim das delícias do curador, no quintal da casa. Ali,
em meio à maior desordem, cresciam várias plantas: cipós, arbustos e grandes flores
de estramônio com formato de sinos, brancas e laranjas, no maior alvoroço.
Quando o dia nasceu Pedro começou a exorcizar o mal dos doentes, um por
um, por meio de seu leque curador de folhas farfalhantes, acompanhando com
vigor o ritmo de seu canto. Graças a seu cristal de quartzo, sua “lente’’, ele enxer
gava o interior dos corpos. Mandava o doente respirar e expirar na lente e, de vez
em quando, pedia que olhasse nela e visse a forma vaga do mal. Passava o leque
de folhas pelo corpo do doente, ritmando sua ação com o canto. O leque farfa
lhava, se agitava, recolhia o mal que estava lá dentro. Ele sugava coisas ruins do
corpo do paciente e as cuspia em um canto do quarto, fazendo muito barulho.
Nisso levou muito tempo, cerca de duas horas e meia para atender quatro pessoas.
Todo mundo parecia estar descontraído e livre. A fogueira foi atiçada, ofe-
receu-se aguardiente, e a conversa girava em tomo dos acontecimentos da noite.
Comentava-se rapidamente, porém com freqüência, o tema da feitiçaria, algo que
interferia na história de vida de todos os presentes, enquanto que o tempo todo,
embora com interrupções constantes, Pedro entoava seus cânticos, marcando o
ritmo com seu leque de cura, sugando e cuspindo.
Normalmente taciturno e estóico, Sexto, o homem do lago, descreveu os sofri
mentos pelos quais havia passado nos três últimos anos. Fez uma pausa.
“Mal aires”, concluiu uma mulher, em tom confidencial
Havia uma chispa no olhar de Sexto, quando ele a encarou. “Não!... Feitiça
ria!”, exclamou.
“Puro sal, pura feitiçaria", concordou um rapaz, sentado em um canto, “com
toda certeza!”
Sexto tinha 57 anos. Quando veio para o lago com seus pais havia pouca
gente ali, mas agora o número de moradores aumentara muito. Poucos tinham
sítios maiores do que um hectare. O de Sexto media quase sessenta. Engordar o
gado e produzir batata agora exigia capital e empregados, os brancos pobres que
viviam em pequenas cabanas, nas redondezas dos campos.
Quando fui visitá-lo ficou claro que ele temia a inveja dessa gente e a feiti
254
çaria a que isso poderia levar. “As pessoas daqui são consumidas pela inveja”,
comentou, “e enfeitiçam a fazenda. Não dão duro como eu. Eles me vêem pros
perar e tentam me fazer mal, mas se a gente tomar yagé a cada seis meses se
garante contra o maleficio. Então nada poderá nos prejudicar. O que aconteceu
comigo é que eu me descuidei. Parei dè tomar yagé durante algum tempo.”
Ha três anos ele percorria as ruas de Pasto, tão contente quanto alguém
pode ficar devido às boas vendas no mercado, quando foi assaltado e esfaqueado.
Caiu com todo o peso do corpo sobre a pema direita e foi levado ao hospital. A
radiografia não acusou fratura alguma, segundo lhe disseram, e os médicos deram-
lhe alta após uma semana, porém ele mal conseguia andar. Durante um ano e
meio precisou de muleta e ainda mancava, o que diminuía sua capacidade de
executar tarefas mais árduas. Ainda assim ele não deixou de desempenhar várias
delas, conforme testemunhei durante aqueles dias passados junto ao lago. Como
se isso não bastasse, sua filha sofreu ataques de paralisia, para os quais não havia
um motivo óbvio. Foi obrigado a vender com grande prejuízo financeiro o pe
queno ônibus que servia a zona rural, de sua propriedade, pois o motorista que
contratara o estava roubando.
Movido pela curiosidade, tomou o yagé quando tinha 21 anos. Desde então
o tomara várias vezes e acabou conhecendo a maior parte dos xamãs do vale, nas
montanhas. No momento parecia estar feliz com Pedro e lhe levava pacientes da
região do lago, agindo como uma espécie de intermediário. Na verdade Sexto
nutria a silenciosa ambição de se tomar xamã.
Passamos pela cabana de um vizinho pobre. Somente as crianças se encon
travam em casa, e entre elas havia uma menina pequena que estava doente. Com
pompa e ares de mistério Sexto sentiu seu pulso e apalpou-a, dizendo que lhe
traria certas ervas. Em sua casa tinha um jardim de plantas medicinais, cuidado
samente cultivado. Era um pedacinho de terra que encerrava promessas mágicas.
Mais tarde, quando tremíamos devido ao ar noturno que varria o lago, tos
sindo devido à fumaça da fogueira na qual as batatas estavam sendo cozidas, ele
falou de seu sonho de adquirir cristais de quartzo, empregados na adivinhação, e
penas de xamã, vindas da região das matas. No entanto entoar cantigas era algo
que estava além de suas possibilidades. Até receber esse dom precisaria ter pa
ciência. “Quando a gente toma yagé", explicou, “adquirimos o poda do xamã. O
xamã nos dá este dom e é isto que cura as pessoas, o gado... tudo, incluindo a
feitiçaria da terra e das colheitas.” Ele fez uma pausa, reunindo em uma única
paisagem encantada todos aqueles atos mágicos. “Os xamãs das montanhas can
tam”, declarou, “e com isso invocam o espírito do xamã da floresta, que lhe ensinou
a ajudar os outros. Eles agem assim porque o xamã deu a eles esse dom”
Segundo entendo, a visão de Sexto é de que as regiões da floresta, ao leste,
são ligadas á região das montanhas por uma cadeia de um discurso espiritual que
se estende através do tempo, apreendido como uma imagem espacial. É uma
paisagem que interfere no presente, conforme vimos, aos nos referirmos aos chun-
255
chos ao leste de Cim», gente sepultada em um subterrâneo do tempo na região das
selvas, semente dotada de força mágica a fim de florescer no presente. O que
Sexto indicava era uma conexão temporal fixada em uma topografia moral, que
consistia em sucessivos fortalecimentos do poder através das trocas de dons, as
quais ocorrem entre os espíritos e o xamã, entre o xamã e o paciente, entre o
paciente e você, caro leitor.
O dom do passado ao presente, dos xamãs das selvas aos das montanhas,
foi apreendido por Sexto, o camponês rico, como algo que impediria a feitiçaria
que, segundo ele desconfiava, era praticada por seus empregados. O manto de
proteção mágica, propiciado pelos índios xamãs e pelo yagé, tomava-se para ele
um instrumento de controle da mão-de-obra, em uma economia camponesa na
qual o capital e o trabalhador assalariado estão se tomando características distin
tivas, algumas vezes superando e outras coexistindo com uma agricultura de
subsistência, diferente e mais antiga, na qual não se empregam pesticidas ou ferti
lizantes e na qual não intervém o capital ou o trabalho assalariado. Quanto a José
Garcia, o dom que um camponês empreendedor como Sexto adquiriu do yagé e
dos xamãs da região das florestas era algo que facilitava a difusão da economia
de mercado na agricultura de subsistência, na qual a desigualdade fertilizava a in
veja e esta gerava a feitiçaria.
Em tal situação cabe a um xamã das montanhas, como Pedro, agir como
médium não apenas dos espíritos de um passado primordial, soterrado nos sub
terrâneos do tempo, nos ermos da floresta. Ele também medeia aluta de classes,
conforme aquela que se trava entre Sexto e seus empregados. Deparamo-nos
também com outro conjunto de mediações: o fato de que Pedro intermedeia a
força cultural dominante da região, os mistérios e a autoridade da Igreja Católica
e a feitiçaria e a imponderabilidade do cotidiano. Quando perguntei-lhe como
haviam funcionado as reuniões do padre na sala da frente de sua casa, ele deu
uma risada. “Estou a meio caminho do céu”, declarou.
256
14
A magia da caça
Quando cheguei ao Putumayo, foi Pedro quem descreveu para mim um
mundo no qual ele invocava os espíritos da “primeira tribo" e os Huitoto das
cálidas florestas situadas mais abaixo. Era com eles que criava o poder necessá
rio á cura e à adivinhação. Recorria àquelas criaturas de fantasia, que vinham do
início dos tempos e que se situavam no limite do mundo civilizado, naquela região
onde figuras sagradas, como os freis Bartolomé e Gaspar haviam penetrado com
a cruz, várias décadas antes de nosso encontro. Era impossível deixar de sentir a
presença das florestas nesses xamãs das montanhas. Lá estava essa presença en
carando-nos, devido à dependência dos xamãs das montanhas em relação ao yagé, o
qual é encontrado unicamente nas florestas das regiões mais quentes das planí
cies. No entanto essa dependência não é tão radical quanto parece. Não se trata
de “um fato natural". Existem muitos xamãs e curadores em todo o mundo que
não recorrem a drogas alucinógenas. Além do mais, existem muitos alucinógenos
nas montanhas, a começar pela abundância de estramônios que florescem em todo
o vale do Sibundoy e a que os xamãs locais tanto recorrem Aos olhos dos habi
tantes das montanhas, segundo me parece, a importância e o poder mágico do
yagé é devido em grande parte ao fato de que ele é investido do podei mítico e
metafórico das florestas da planície e de seus habitantes. Trata-se de poderes de
primitivismo e de selvageria, especificados pela colonização e pela Igreja Cató
lica. Tomar o yagé significa tomar tudo isso, através de um gole alucinatório, que
provoca náuseas.
Também não se pode deixar de ver a imagem das planícies nos adornos
rituais dos xamãs, todos provenientes das florestas quentes: as penas e os cristais
de quartzo que Sexto tanto deseja, para não mencionar os cantos. Anseia que eles
cheguem igualmente dessa maneira. “Por que usa este colar com dentes de onça?”,
lembro-me de ter perguntado certa vez a um velho do vale do Sibundoy.
“Por quê? Porque ele tem o mesmo dono que o yagé. Vem do mesmo lugar,
do monte, e é o yagé a que chamamos tigre ahayuasca."
257
“E o cascabel?", indaguei, referindo-me aos colares feitos com sementes e
que, agitados, reproduziam o barulho de um guizo de cascavel.
“Eles são o som da floresta, de onde vem o yagé
“E como é que eles ajudam a curar?”
“Bem, eles mostram pra gente... tudo!"
E as penas? Elas provêm das aves das florestas da planície. Ajiidam a fazer
a pinta, a pintura que se cria ao se tomar o yagé.
No entanto, a despeito dessa dependência em relação á floresta, a filha dele
deixou bem claro para mim que os xamãs da montanha são melhores que os lá de
baixo; más inteligente, foi a frase empregada. “Deus nos fez com inteligências
diferentes”, disse ela, “e os xamãs do Sibundoy são estimados pelos xamãs da
planície”. Quanto aos índios que habitam na extremidade oeste do vale, em tomo
da cidade de Santiago, ela observou o seguinte: “Eles têm uma inteligência dife
rente da nossa. Gostam de perambular por aí, até Palmira, Pereira, Bogotá, Vene
zuela. Vendem bugigangas (cachorro) e aprendem um pouco de medicina nos
livros”.
“Somos preguiçosos demais para sair de nossa cidade, Sibundoy”, interveio
o pai dela.
Três anos mais tarde eu discutia essas coisas com meu amigo xamã Santiago,
montanha abaixo, na planície.
“Até agora os xamãs da planície têm mais sabedoria do que os lá de cima”,
ele comentou. “Até agora ninguém ouviu dizer que um xamã da montanha se
transformou em uma onça, em um pássaro e foi capaz de voar. Era o que Miguel
Piranga fazia. Era o que Casemixo fazia. Era o que Patrício, quando jovem, fazia.”
Conversamos sobre Patrício, com quem Santiago tomou yagé algumas vezes, em
sua juventude.
“Os outros pediam a ele sorte, para ganhar dinheiro. Eu, porém, pedi a ele
sorte na caça. Isso é que é bom. Quem pede sorte na caça acaba trazendo tudo.
Então um sujeito me perguntou: ‘Você está recusando a riqueza?’. E Patrício
explicou: ‘De modo algum. Caçar é melhor do que ter dinheiro. Isto é que é bom.
A sorte na caça acaba trazendo o resto. Outras pessoas vêm e pedem: quero
chontear [matar gente por meio de dardos mágicos, soprados por meio de uma
zarabatana] e matar brujos [feiticeiros, xamãs]. Mas aprender isso não presta’.
Foi esta a explicação de Patrício. A magia, tendo em vista a caça, é sabedoria e
inclui ganhar dinheiro. A magia da caça é mais poderosa do que aquela para se
ganhar dinheiro, pois ela proporciona tudo, em primeiro lugar animais e, mais
tarde, dinheiro. A magia do dinheiro é boa unicamente para o dinheiro. A outra
pinta permite que se aprenda como curar e como ter sorte para se ganhar di
nheiro.” Ele fez uma pausa. “Os sujeitos que vieram do vale do Sibundoy é que
pediam magia para se ganhar dinheiro. Eu, porém, pedi a visão, para aquelas
258
ocasiões cm que ia caçar. Então o xamã disse i sso é que é bom. Disso vem tudo
o mais’.”
“E como é que funciona essa magia para se ganhar dinheiro?”, indaguei
“Aqueles que bebem yagé com essa finalidade são os que sabem disso.
Tentam fazer mal às pessoas por pura inveja e acabam ficando com nada, a não
ser o mal. Está entendendo?”
Rosário me dissera quase o mesmo, em sua casa no sopé das montanhas. “0
povo das montanhas tem outro sistema", disse ela, “e isso dá a eles mais di
nheiro, não? Atravessam a nação e vão de um lugar para outro com suas amoras
c suas castanhas, quando na verdade estão trapaceando. O sistema deles é uma
mentira e um jeito de enriquecer através da sujeira!” Com sujeira ela queria se
I referir â feitiçaria.
O filho de Salvador demonstrava o mesmo desprezo em relação aos curado
res índios errantes das terras altas do vale do Sibundoy. “Eles não sabem nada de
plantas", disse-me naquela região quente onde se erguia sua casa, junto a um
tributário do Putumayo. “Gostam de vender ilusões. Percorrem todo o país com a
finalidade de ganhar dinheiro. Agora estão indo para a Venezuela. Alguns foram
presos lá, devido a seus truques.”
Mesmo assim existem alguns laços amistosos entre a gente da planície e a
da montanha. Como é que os últimos poderiam adquirir o yagé a que dão ta
manho valor? A mulher de Salvador contou-me, em 1975, que dois irmãos, cura
dores da cidade de Santiago, no vale do Sibundoy, costumavam vir a sua casa
todo ano, pouco antes do Carnaval. Vinham acompanhados de suas mulheres e
filhos da distante Venezuela, onde praticavam medicina mágica. Voavam de Bo
gotá até a selva e de lá subiam o rio de canoa. Segundo ela me disse, bebiam uma
grande quantidade de yagé lá na floresta, com Salvador. Declaravam que faziam
isso para obter sorte e ter a capacidade de curar. Traziam muitos presentes —
comida, roupas e utensílios de cozinha, como, por exemplo, baldes de plástico.
“Deram-nos muitas coisas”, ela prosseguiu, “pois diziam que ganhavam muito
dinheiro na Venezuela e deviam isso a Salvador, que é o taita ou pai deles." Então,
decorridas duas semanas ou pouco mais, subiam a montanha e iam para a casa de
Santiago, durante o Carnaval, levando um yagé muito espesso, que Salvador prepa
rava para que eles o transportassem para a Venezuela e que equivalia a uma
quantia de mil pesos.
Por outro lado, havia relacionamentos como o de Santiago e de Esteban, no
qual o curador da montanha toma-se o inimigo invejoso e implacável do xamã da
floresta. Poderá recorrernão apenas à arma que é o capacho, isto é, o embrulho
de feitiçaria, graças ao qual os xamãs da montanha são notórios, como também
tem acesso à magia, aquele poder maléfico que resulta do fato de se fazer um
pacto com o demônio, a partir de livros de magia. É o que disseram que aconte-
r
259
ceu com Santiago, quando clc se recusou a vender yagé para Esteban, um homem
da região das montanhas, que há muito era seu inimigo.
Parecia ser a situação na qual um homem que solicitara a magia da caça
estava sendo atacado por um homem que tinha o poder de praticar a magia a fim
de ganhar dinheiro. Até então o homem que solicitara a magia da caça conse
guira defender-se, embora houvesse uma época em que parecia que ele seria
derrotado. Mas o que era aquela magia e de que tratavam aqueles seus livros?
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15
O livro da magia
A exemplo de quase tudo — quando não tudo — aquilo que eu gostava de
imaginar como sendo conceitos fundamentais, ninguém se mostrava suficiente
mente esclarecido a respeito da magia. Florencio, um velho amigo índio, afir
mava que ela havia chegado com os brancos e unicamente com eles. “Usam-na
para tirar nossas terras”, declarou, acrescentando que onde quer que fosse cui
dava sempre de ter uma raiz de chondur em seu bolso, no caso o chõndur blanco,
pois precisava de uma magia muito forte para combater a magia dos blancos, as
Parecia haver um acordo geral no sentido de que a magia requeria um pacto
com o demônio e o uso de livros mágicos. Não ficou muito claro se um xamã
poderoso da planície que usasse o yagé poderia ser mais forte do que a magia.
Santiago fora salvo por Salvador, é verdade. Mas nem Salvador ou qualquer
outra pessoa, quando pressionados, esclareceu se a magia se encontrava ou não
presente. Uma confusão a mais estava no fato de que os brancos procuram os
xamãs índios para serem curados de feitiçaria feita por outros brancos, e embora
não denominem essa feitiçaria magia, parece que ela, no final, resulta no mesmo.
Quando Antonio, o irmão de José Garcia, foi atingido pela doença e se
revolvia em sua cama à noite, sem conseguir dormir, lutando contra Satã, embos
cado na floresta, o amigo de José Garcia, Luis Alegria, um migrante mulato que
viera para a região, lhe deu um conselho. “Ouça!", disse. “Magia c coisa muito
boa. Por exemplo, magia contém um segredo que envolve a flor do alhecho.
Com essa flor é possível curar tudo! Tudo! Pode-se curar qualquer pessoa, pro
porcionar boa sorte, tudo, enfim. Sim! É uma maravilha!" Foi o que José Garcia
me cantou, decorrido muito tempo.
Luis Alegria prosseguiu. “Compre o livro da magia", aconselhou José Gar
cia, “e na página tal procure o segredo. Com ele nós também poderemos usar um
segredo para enfeitiçar o feiticeiro com a magia que ele mesmo empregou!"
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Vários anos depois que José Garcia me contou essa história, uma velha
índia trouxe uma menina triste á presença de Santiago Mutumbajoy. De vez em
quando ele sentava-se com a garota e cantava com suavidade, passando em seu
corpo o leque de folhas, como se quisesse limpá-la. Os dois permaneciam em
profundo silêncio, sozinhos naquele espaço criado pelo murmúrio suave do rio, a
distância, que despencava em pequenas quedas d’água e que prosseguia, dei
xando para trás os redemoinhos, semelhante ao sussurro de um pensamento que
se toma consciente de si mesmo, no espaço existente entre as palavras. Alguém
contou-me que o pai da menina morrera recentemente e vivia chamando a mãe
dela, que então adoeceu e também morreu. Agora havia somente suas jovens
filhas, e o curador cantava para elas, lentamente, suavemente.
O pai fora pescar certa manhã, bem cedo, e viu uma pessoa estranha á
margem do rio. Ao voltar para casa começou a vomitar e sentiu-se febril. Morreu
daí a uma semana.
Muito depois Santiago Mutumbajoy contou-me que o pai estava estudando
magia nos livros, mas não era suficientemente forte para se relacionar com o
espírito mau a quem havia invocado por meio das orações e conjuros que apren
dera nos livros. É preciso ser muito corajoso e ter sangue forte para resistir,
observou Santiago, mas o pai era um homem fraco, começou a morrer. Veio tomar
yagé uma ou duas vezes, mas de nada adiantou. Ele não conseguia tolerar a
chuma, aquela abertura do mundo, invadido por sons estonteantes e fragmentos
de cores e odores. Só de tomar um pouco de yagé ele caía no chão, aos berros:
“Me dê o contrai".
Após morrer ele voltava sem cessar a sua casa e espantó a la mujer. A exemplo
do que acontece com as almas daqueles que morrem violentamente ou devido ao
abraço de Satã, creio que poderíamos dizer que aquele espírito sem paz vivia
voltando com a finalidade de levar sua mulher para a mesma sepultura intran-
qüila, e ela também acabou morrendo.
Tendo isso em mente, uma pessoa seria certamente temerária se acaso se
guisse o conselho de Luis Alegria, amigo de José Garcia: “Compre o livro da
magia e na página tal procure o segredo...".
Era como se a magia e, mais precisamente, o seu livro fosse uma prefigura
ção daquilo que se poderia denominar a mercantilização da magia, mas também
a magia da mercantilização. O que estamos ouvindo, nesses relatos de almas ator
mentadas e nessa aquisição de livros mágicos, é a inscrição irregular, no corpo
social, do sentido de se poder fazer aquisições em um mercado. A vivacidade de
tal significado é suscitada quando se toma mágica a mercadoria que está sendo
discutida. Por magia deve ficar bem claro que estamos nos referindo ao conheci
mento, âs palavras e à capacidade que elas têm de operar. Na verdade estamos
falando sobre a mercantilização de uma teoria do significado e da retórica, não
apenas do conhecimento, mas daquilo que, em um sentido profundamente signi-
262
ticativo, é o conhecimento do conhecimento, que precisa permanecer inacessível
para que esse conhecimento exista.
Em oposição a adquirir pinta de um curador de yagé como um meio (se
gundo se diz) de a pessoa também se tomar um curador, a aquisição da magia
através do ato de se comprar um livro é uma atitude essencialmente anônima e
individualista, uma transação de mercado, na qual o dinheiro é desembolsado
tendo em vista a obtenção de um conhecimento padronizado. Em contraste, o
conhecimento do yagé é adquirido através de uma imensa privação e é essencial
mente a acentuação ou extensão da substância do xamã, o doador. É sua pinta e
parte dele. Além do mais, é a antítese de um conhecimento padronizado e retira
seu poder do inefável, das sutilezas inerentes ao jogo de luzes e sombras, das
alusões e das súbitas transformações. É o poder em seu estilo, não em sua subs
tância ou, melhor dizendo, sua substância é seu estilo.
Ambos os poderes são perigosos para aqueles que os praticam, quer se trate
da aquisição ou da prática, mas, enquanto no caso do yagé o que se teme é a
inveja de outro xamã, em se tratando da magia o que se receia é a personificação
de uma abstração, do próprio mal no emblema de Satã, o que, aliás, está de
acordo com o poder abstrato das forças do mercado. A luta aqui se trava com o
eflúvio do mal, onisciente e onipresente, com a aura miasmática daquilo que oprime
e não com este ou aquele determinado xamã, devido a um temor concreto à inveja.
O que é fascinante, neste caso, e não apenas complexo, é o modo como essa
inscrição irregular, no corpo social, do sentido de se poder fazer aquisições em
um mercado, acarreta uma discussão a partir de várias perspectivas, a mais im
portante das quais é aquela imanente ao discurso colonial, com a visão dos bran
cos, por um lado, e a dos índios, por outro — se quiserem, o conselho de Luis
Alegria, contrapondo-se ao relato de Santiago Mutumbajoy. O que importa, neste
caso, não é apenas o modo como a magia é identificada pelos índios como algo
intrínseco à cultura colonial, mas também aquilo que seobtém efetivamente atra
vés da aquisição de livros de magia. Com efeito, a magia da palavra impressa
adquiriu esse poder através do exercício da dominação colonial, com o feti-
chismo daquilo que é impresso, tal como se dá com a Bíblia e com a lei. A
magia, segundo me parece, não só confere “magicidade" à imprensa coloniza-
dora, como também prolonga a magia inerente à sua racionalidade e à função
monológica presente na dominação.
Uma das primeiras coisas que os índios me contaram, nos dias que se segui
ram à tomada de Villa Garzón, cidadezinha do Putumayo, por misteriosos guerri
lheiros, na década de 70, foi o fato de que estes, a quem os índios denominavam
bandidos, queimaram toda a papelada existente na sala do juiz e na delegacia de
polícia. Alguns anos mais tarde fiquei sentado durante muito tempo, observando
um jovem índio que tentava provar a um padre, em Sibundqy, que ele era real
mente quem afirmava ser e que precisava de uma certidão de batismo. O padre,
263
no entanto, se recusou a atender sua solicitação, pois a carteira de identidade
expedida pelas autoridades do Estado não correspondia ao registro do livro da
igreja. Nele o sobrenome da avó do rapaz aparecia em último lugar e não o do
avô, conforme o costume. Além do mais a mãe não era casada. Surpreendente e,
no entanto, uma ocorrência de todos os dias: o rapaz não existia, mas os livros de
registro e os documentos, sim.
No livro de B. Traven, The rebellion ofthe hanged [A rebelião dos enforca
dos], que se passa em Chiapas, México, o professor da escola expõe suas idéias
revolucionárias:
Se quiserem que vençamos e permaneçamos vencedores, precisaremos queimar todos
os papéis. Muitas revoluções começaram e fracassaram simplesmente porque os papéis não
foram queimados, conforme deveria acontecer. A primeira coisa a ser feita é atacar o cartó
rio e queimar todos os documentos, todos os papéis que tenham selos e assinaturas —
atestados, títulos de dívida, certidões de nascimento, casamento e morte... Então ninguém
saberá quem é quem, como se chama, quem foi seu pai e o que ele teve. Seremos os
herdeiros, pois ninguém terá condições de provar o contrário. Para que precisamos de certi
dões de nascimento? Já li uma pilha de livros. Li tudo o que foi escrito sobre revoluções,
revoltas e motins. U tudo aquilo que os povos de outros países fizeram quando não agüen
tavam mais aqueles que os exploravam. No entanto, no que diz respeito à queima de papéis,
não li nada. Não está escrito em livro algum. Descobri isso na minha própria cabeça.
Em seu relato sobre a cosmologia dos Siona, idealizado de modo muito
típico, Jean Langdon descreve o que os índios do Putumayo lhe falaram sobre as
últimas camadas do Universo, onde um ser denominado diosu (comparar com o
termo espanhol Dios) se encontra sentado na companhia de alguns poucos
“seres vivos de Deus” ou anjos voando ao redor, enquanto ele consulta um livro
(a Bíblia) que contém todos os remédios. Acima dele, no mais alto céu, pombas
escrevem em um papel. Esta profusão de livro, escritos e papel, nas nuvens puras
que pairam sobre o Ente Supremo colonizado desse cosmos índio, exaure-se na
quela zona inferior onde a camada cósmica das pombas escritoras dá lugar ao
nada absoluto, com exceção do tronco de uma árvore, do qual pende um espírito
solitário.2
Na simbologia onírica dos índios Sibundoy, de acordo com o frei etnógrafo
Castellví, que passou quase metade de sua vida no vale, sonhar com papéis é
sinal de que se irá encontrar um homem branco e que algum infortúnio, tal como
um processo legal, irá ocorrer.3
No entanto os padres não estão menos sujeitos do que a lei a figurar na
magia onírica que cerca os livros. Quando estava morrendo e atravessava o es
paço da morte, conforme sua colocação, meu amigo Horencio, um índio Ingano,
viu os padres consultando seus livros sobre remédios. Falou-me de uma visão
provocada pelo yagé, na qual ele subia até o vale do Sibundoy e via os xamãs
índios vestidos com penas e espelhos e, em seguida, o Exército colombiano ves
tido de ouro, cantando e dançando. A pinta que surgiu em seguida foi a de três
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bispos em um aposento repleto de livros dourados, que expeliam ouro. Era uma
cascata de ouro, segundo ele.
A extremidade leste do desfiladeiro que leva às florestas formadas pelo vale
do Sibundoy é ocupada atualmente por uma cidadezinha chamada San Francisco.
Foi fundada pelos capuchinhos no início deste século. Na introdução ao livro que
o frei Jacinto Maria de Quito dedicou a sua história, publicado em 1952, encon
tramos as seguintes palavras do frei Damián de Odena, que constituem um teste
munho de magia reluzente das cartas:
Certamente todas as obras realizadas pelos arautos de Cristo permanecerão indelevel
mente gravadas com letras de ouro no livro da eternidade... resulta também para a glória do
Senhor registrar e exaltar as proezas de seus santos, as obras daqueles que anunciam "paz e
bem-estar'*, as conquistas realizadas por aqueles que procuravam as almas, conquistas estas
mais preciosas do que o ouro. Ao superior de uma congregação, que ofereceu ao papa Pio
XI uma grande coleção de livros e diários publicados por seus monges, disse o santíssimo
frei, após examiná-los: “Isto vale tanto quanto qualquer missão**.4
Ao interpretar literalmente esses sentimentos dourados, ao ver o aposento
dos bispos expelindo uma cascata de ouro, Florencio redime sua visão por meio
do poder da fantasia e da inocência, que a Igreja descarta. Sua visão informal
toma a oficial retórica. Ao agir assim, a magia é espremida do domínio do uni
verso oficial do mesmo modo que o suco o é de uma fruta madura.
O livro da Igreja, a natureza enquanto livro do Senhor, os livros da lei, a
escrita, a papelada oficial que vai se acumulando — tudo isto faz a magia vazar
para as mãos do povo que eles dominam O símbolo de tudo aquilo que é civili
zado, cristão, o próprio Estado, os escritos e os livros criam seu contraponto nos
livros de magia vendidos nos mercados por ervanários e curadores índios, que se
deslocam de um lugar para outro, vindos do Putumayo.
Don Benito falou-me sobre a trapalhada em que se meteu, devido a um
desses livros de magia. Disse que quando jovem deixara a cidade de Santiago, no
vale do Sibundoy, após curar-se de um maleficio com yagé. O curador era um
xamã da planície, perto de Mocoa. O pai de Benito tinha sido ervanário e o filho
encaminhou-se para aquele gênero de vida típico dos homens de sua cidade, isto
é, tomou-se curador e ervanário — agora fortificado, curado y cerrado, graças às
curas que operou na planície. Aprendeu algo mais quando trabalhou como por
teiro do hospital de San Juan de Dios, na cidade de Cali, mas viu-se obrigado a ir
embora, devido a uma ligação por demais íntima com o médico chefe, que era
gay. Benito acabou tomando conhecimento de um livro de magia, que decidiu
usar com proveito. Pesava quase quinze quilos e quase três quilos a mais por
ocasião da lua cheia. Na reclusão de um bosque de bambus, na fazenda San
Julián, próximo aos canaviais de Puerto Tejada, no Sul do vale do Cauca, ele
preparou um talismã, seguindo as instruções do livro. O preparo envolvia a morte
e o cozimento de um gato preto, mas o feitiço virou contra o feiticeiro, criando
terríveis problemas. Durante mais de um ano ele ficou doente, sem dinheiro,
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passou fome e não teve clientes. Voltou para o Putumayo, deixou para trás San
tiago, sua cidade natal, situada na montanha, prosseguiu descendo até a borda da
bacia do Amazonas onde, mais uma vez, submeteu-se a um tratamento com um
xamã e se curou.
O yagé tem um espírito. O yagé é o rei das plantas. É o dono das plantas,
disse-me, e declarou que ele também o empregava, exercendo um próspero ofí
cio, lá onde a planície do vale do Cauca, ocupada pela agricultura, se encontra
com os primeiroscontrafortes da montanha, ao sul. “O yagé abre o espírito de
uma pessoa", afirmava ele, “e dá força mental." No entanto, em seus tratamentos
corriqueiros Benito raramente empregava remédios fortes, e quando o fazia, a
exemplo do que ocorreu com uma mulher da cidade de Cali que era louca, recor
ria a um alucinógeno da montanha, ao qual chamava Tunga Negra. Usava eméti
cos e purgantes ao curar casos de feitiçaria, a exemplo do que sucedeu com um
velho que tinha uma lojinha ao lado de sua casa. Seu nome era Don Juan, um
branco encanecido de Popayán, capital da região. Don Juan era a encarnação de
um enigma típico: repleto de ódio pelos índios (e negros), no entanto, procurava
um índio para ser curado. Contou-me que era proprietário de uma próspera banca
no mercado de Popayán até ser atacado pela feitiçaria, após o que perdeu o di
nheiro, amigos, a esposa, a mercadoria e, finalmente, o próprio ponto no mer
cado. No entanto Don Benito, o índio, curou-o com yagé, contou-me Don Juan,
mostrando-me não apenas uma, mas três garrafas de culebritas, pequeninas co
bras que havia vomitado. Eram sinais irrefutáveis de feitiçaria.
Tratava-se de uma situação curiosa: um velho branco, mesquinho e arrui
nado, proprietário de uma banca no mercado, agora curado por um índio e que,
como um parasita, abriu uma lojinha junto ao portão da casa do curador, tirando
vantagem dos pacientes que apareciam diariamente. Era um lugar distante, perto
da estrada de ferro. Tinha apenas umas duas casas, uma ponte sobre o rio, e Don
Juan, com seu pomo-de-adão saliente e seus cotovelos ossudos, semelhante a
uma marionete, visível somente da cintura para cima, no balcão de sua loja. Ele
oscilava para a frente e para trás, pronto para dizer aos recém-chegados o que
deviam esperar e exibindo com orgulho suas culebritas. No fim da semana cente
nas de camponeses negros atravessavam a ponte, em uma caravana interminável,
composta de adultos e crianças, mulas, burricos, galinhas e instrumentos agríco
las. Enrolavam-se como uma serpentina em tomo da casa de Benito e da lojinha
de Don Juan. De vez em quando um ou dois se consultavam com Don Benito,
compadre dos consulentes. Regressavam no início da semana. Cascos e pés fa
ziam a ponte ressoar. Em seguida subiam e atravessavam a borda da cordillera
ocidental, em direção ás encostas recobertas de densas florestas, que desciam
para o Oceano Pacífico. Estavam colonizando aquelas paragens distantes, mas
ainda queriam viver nas comunidades onde haviam nascido e que agora não passa
vam, em sua maior parte, de casas desoladas, cujas paredes eram de aigila vermelha.
Talvez nem mesmo isso ainda existia. De vez em quando um pequeno grupo de
266
r
mulheres explorava um ribeirão com suas batéias, à procura de ouro. Era uma
recordação da escravidão que as trouxera pata aquelas encostas estéreis; havia al
guns séculos.
Um médico “direito" costumava ir à aldeia mais próxima, uma vez por se
mana, como parte de um trabalho oficial. Cobrava por uma consulta mais da
metade do que Benito pedia. A popularidade deste último de modo algum era
devida ao fato de ele ser mais barateiro do que o sistema médico oficial Ocu
pava-se de doenças que não constavam do catálogo oficial de sofrimento humano,
tais como a feitiçaria ou malefício, que afligia os adultos, e o mal de ojo ou
mau-olhado, que matava recém-nascidos e bebês. Muitas mães levavam seus bebe-
zinhos para que ele os curasse de mal de ojo. Repassando meu diário de pesquisa
relativo a setembro de 1975, encontro, por exemplo, este registro:
Uma mulher branca aparentando uns 25 anos chegou às 9h30 da manhã com uma
menina de cinco semanas, queixando-se de que o bebê tinha diarréia havia cinco dias.
Viajou durante três horas, a cavalo. Vive lá na loma (sopé da montanha), ao leste. Don
Benito trabalhou desde as 7 da manhã, preparando o terreno para plantar maii (milho).
Está cansado, sujo, não lava as mãos e começa a curar o bebê. Diagnóstico: põe a mão
esquerda na testa do bebê durante 20 segundos. Tira a mão, coloca-a em cima da mesa, com
a palma voltada para cima e a estuda atentamente durante um minuto. Pergunta ou, melhor
dizendo, declara: “A diarréia é como água?“. “Sim", responde a mãe. Faz outra pergunta
que não consigo registrar. Em seguida pede à mãe que dispa o bebê. Coloca-o em seu colo,
dá leves pancadas em sua cabeça com ambas as mãos e massageia sua barriga. O bebê
começa a soltar gases ruidosos. Benito continua a massageá-lo durante uns dois minutos,
com GRANDE CONCENTRAÇÃO e finalmente se pronuncia: “O bebê esti ojeadoV. A
mãe inclina a cabeça, em sinal de aprovação, mas não diz nada, olhando atentamente o
tempo lodo. Aproxima-se para reconfortar o bebê. Benito diz a ela que se abstenha disso.
Devolve-lhe o bebê daí a um minuto e, conforme sempre faz, começa a escrever uma com
prida e minuciosa lista de instruções relativas ao tratamento em sua caderneta. Rasga a
página, lê em voz alta para a mãe (álcool etc. etc.), vai até o quarto dos fundos c volta com uma
garrafa de aguardente com um remédio amarelo (algo que contém bismuto), entrega-a à mulher
c cobra 50 pesos (em tomo de um salário diário nas plantações do vale. Àquela época).
Pouco depois surge outra mulher com um bebê e faz a mesma queixa. Ele passa a
mão na testa do bebê, diz que está com mal de ojo, mas que não tem mais remedioi Só
voltará a recebê-lo na quarta-feira. Hoje é segunda. A mãe lhe adianta vinte pesos, mas ele
devolve, dizendo que esperará até o remédio chegar de Cali. Ela, porém, pede-lhe que fique
com o dinheiro, pois isto o ajudará a adquirir o remedio.
O que sempre me surpreendeu em Benito foi a informalidade e a continui
dade, o que incluía em grande parte a cura, constantemente entremeada à ativi
dade doméstica. Todo tipo de gente sentava-se em tomo do paciente e de Benito,
na sala da frente, ouvindo e contribuindo com seus comentários, sobretudo um
velho que fugira de uma casa de repouso para pessoas idosas, instalada pelo
governo nas proximidades de Cali. Costumava divagar em voz alta sobre seu
passado, animado pela discussão que se estabelecia entre o curador e os doentes.
Nunca lhe disseram para se calar. Era um velho branco, um refugiado sem um
tostão, refestelado na sala de tratamento de um curador índio, que esmiuçava o
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passado enquanto as crianças entravam e saíam ou bisbilhotavam, afastando a
cortina, por detrás da qual as velas se consumiam em louvor á Virgem de Lajas e
ao Senhor dos Milagres de Buga. Acima de nós todos, descrevendo preguiçosas
elipses, balançava o crânio de um grande peixe da Venezuela, segundo Benito me
contou.
Com freqüência Benito parecia perdido em seus pensamentos, distante e
taciturno. Era sua mulher Carmen quem animava o ambiente. Lembrava-se de
todos e de tudo, sempre tinha um séquito em tomo dela, na cozinha, organizado
para desempenhar pequenas tarefas. Era uma mulata da cidade de Cali, onde
vivia da venda de frutos do mar para os restaurantes. Havia muitos anos ficara
muitíssimo doente. Foi um maleficio, obra de um concorrente invejoso. Ela ia de
um curador a outro, sem o menor resultado, até que, em desespero de causa, leva
ram-na para o Sul, ao vale do Sibundoy, e lá foi tratada por um índio. Agora estava
casada com Don Benito e o tempo todo tinha a seu lado o apoio de um índio.
Muitos jovens procuravam Benito. Seus corações haviam sido partidos por
um amor indiferente e eles enlouqueceram. Alguém colocara certas coisas em sua
bebida e somente um curador como Benito poderia fazê-los melhorar. Ele também se
dedicava a fazer talismãs e de vez em quando se envolvia com disputas trabalhistas
nos canaviais. Na verdade foi devido a isso que ouvi as primeiras referências a seu
nome, quando morava na cidade canavieira de Puerto Tejada, no início da década
de 70. Um amigo meu, negro, que trabalhava com um grupo que cavavafossos,
contou-me o seguinte.
Estavam sendo pagos por um pequeno empreiteiro que tinha um contrato
com um dos engenhos. O empreiteiro e o grupo tentaram subornar o administra- I
dor do engenho, para que ele registrasse um volume maior de trabalho do que
eles haviam realizado. No entanto o administrador se recusou, e o grupo decidiu
enviar meu amigo até os confins do vale do Cauca — um dia de viagem — a fim
de consultar Benito, para ver se não haveria um jeito de se livrarem do tal admi
nistrador. Benito disse a meu amigo que voltasse a procurá-lo e lhe trouxesse
pedaços de barro, nos quais estivessem impressas as marcas dos cascos do cavalo
do administrador. Era uma despesa e um incômodo consideráveis para pessoas
que raramente dispunham de dinheiro para pagar a passagem de um ônibus,
mesmo em se tratando de uma curta distância. Providenciaram o barro e aguarda
ram. No entanto, em vez do administrador, o empreiteiro é que foi prejudicado.
Perdeu o contrato e, com isso, lá se foram os empregos. “Talvez a gente tenha se
enganado com as marcas dos cascos", observou meu amigo.
Decorrido algum tempo Juana, sua irmã por parte de pai e mãe, teve uma
briga violenta com uma de suas meias-irmãs, alegando que ela estava recorrendo
à feitiçaria para tirar seu marido. Procurara Don Benito para conseguir o que
queria. x
Benito não era o único índio das terras altas do Putumayo que viajara para
longe e encontrara meios de realizar curas e resolver assuntos ligados á feitiçaria,
268
em cidades como Puerto Tejada, cuja economia se apoiava na atividade agrícola.
Eu via com freqüência dois ou três homens como esses, algumas vezes acompa
nhados de uma mulher, vendendo seus produtos espalhados na calçada, ao longo
do mercado, nos dias em que este funcionava, duas vezes por semana. A despeito
do calor os homens usavam muitas vezes uma característica ruana. Em geral as
bancas eram pequenas e os produtos eram simplesmente colocados no chão. No
entanto, por menor que fossem as bancas, sempre se dava grande destaque aos
livros de magia, expostos ao lado de raízes, cascas, pilhas de enxofre, limalha de
ferro e espelhos. Esses livros eram pequenos, porém caros. Custavam o equiva
lente a dois dias de trabalho. Tive a impressão de que raramente eram vendidos.
Um que eu via com freqüência era A Santa Cruz de Caravaca, com o seguinte
subtítulo:
Tesouro de Orações
de Enorme Virtude e Eficácia
para a Cura de todo Tipo de Dorcs,
tanto do Corpo quanto da Alma,
juntamente com Práticas Inumeráveis
para Libertar Uma Pessoa da Feitiçaria
e dos Encantos: com BcnçSos e Exorcismos
Etc.
Outra obra de grande aceitação era O livro de São Cipriano.
O Livro Completo da Verdadeira Magia
ou
Tesouro da Feitiçaria
Escrito em Hebraico Antigo, num Pergaminho
Entregue pelos Espíritos ao Monge Alemão
Jonas Sufurino
contém:
A Clavícula de Salomão, Pactos de Exorcismo,
O Dragão Vermelho e o Bode Infernal, a Galinha
Preta, Escola de Feitiçaria, O Grande Grimorio e o Pacto de Sangue, a Vela Mágica para a
Descoberta de Encantos, Compêndio de Magia Egípcia e Caldéia, Filtros,
Encantos e Conjuros Mágicos
Quando percorri a rua principal de Puerto Tejada, no último domingo de
novembro de 1976, e passei pelo mercado, lá estavam três homens identificáveis
como índios das terras altas do Putumayo. Sim!, declarou um deles, tinha um
pouco de yagé. Vendia-o a pessoas de Cali para que elas pudessem asegurar e
cerrar, isto é, que lhes permitisse se garantir e se fechar, livrando-se da feitiçaria
e das pessoas invejosas. Contou-me que estava para regressar ao Putumayo. Iria
até a região das florestas, a fim de conseguir mais remédio e então iria para a
269
Venezuela. Outro homem contou-me que havia sido ensinado por um cacique
(termo muito usado na Colômbia, com o significado de chefe, mas que não era
empregado no Putumayo) chamado Maurício, perto de Mocoa, na região tropi
cal. Do outro lado da rua estava um homem vestido como um índio das monta
nhas do Putumayo, mas com uma postura bastante diferente daqueles ervanários
tranquilamente confiantes, reservados e, de vez em quando, altivos. Estava ro
deado por uma pequena multidão em parte cínica, em parte aparvalhada. Gesti
culava e repreendia sua assistência. Uma galáxia de medalhinhas de santos católicos
pendia de seu peito e ele emitia sons semelhantes aos cânticos xamânicos do
Putumayo, intercalados com orações e hinos cristãos. Na calçada, diante dele,
havia dinheiro, sob a forma de notas. Ele ia “curar" aquelas notas para que pudes
sem reproduzir-se e, com essa finalidade, usaria sangue sagrado.
Na cidadezinha vizinha de Santander de Quilichao, mais ou menos na mesma
época, fiquei conhecendo uma jovem e um homem das terras altas do Putumayo,
Andréa e Luis Miguel, que vendiam ervas e remédios mágicos nos diferentes
mercados da província. Na segunda-feira iam a Popayán, na terça a Silvia, na
quarta a Santander etc. Tinham três filhos. Andrea carregava o tempo todo nas
costas um bebê de um ano. Os outros dois ficavam com uma babá em Popayán,
onde alugavam um quarto desconfortável. Passavam a noite que antecedia o mer
cado no chão do corredor de um quiosque que se alinhava ao longo da estrada de
rodagem. Levantaram-se às três da madrugada para pegar o ônibus que se dirigia
a Corinto, onde haveria mercado no dia seguinte.
Luis Miguel contou-me que fora ensinado por Don Daniel, um cacique que
morava perto do rio Putumayo, abaixo de Puerto Asís e com quem tomava yagé
uma vez por semana. “A gente vê cobras... e até mesmo onças!", declarou. “É a
salvação da vida”, afirmou Andrea, enquanto falava sobre os remédios com um
cliente em potencial. “Porque fui depurado com yagé", prosseguiu seu marido
Luis Miguel, “não preciso de injeções”. Fez uma pausa. “Estou muito bem!”
Eles voltavam para sua pequenina aldeia nas montanhas do Putumayo du
rante o Camaval, que era belo e muito especial. Lá faziam um estoque de remé
dios. Jovens e inexperientes, dificilmente se poderia considerá-los como
pertencentes ao grupo superior dos ervanários, mas em suas pequenas bolsas e
trouxas, espalhadas na calçada, havia pelo menos 65 remédios diferentes:
• Linaza — para a febre, conforme disseram.
• Yagé Zaragoza
• Yacuma Negra
• Misclillo (um caracol) e tatolia. Esses três eram empregados em con
junto para o tratamento do susto e espanto. Misturar com aguardiente,
assoprar e cuspir a mistura no paciente (com oraciones).
• Uma pata de coelho, para dar sorte.
• Gualanday — para os rins. Vem da região quente.
• Romero (alecrim) — para insônia e pesadelos. Faz-se incenso com ele.
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• Para diarréia: Japio, Granizo do páramo e Guavilla dopdramo.
• Quina — para a calvície. Provém do litoral do Pacífico.
• Barbasco — purgativo feito com aparas de madeira. Dizem que vem do
páramo do cume das montanhas, mas nas terras baixas do Putumayo
usa-se o barbasco como veneno para matar peixes e ele cresce nas mar
gens dos rios.
• Raiz de China — para os rins, proveniente do páramo.
• Pionía — para a vesícula biliar. Sementes muito pequenas e reluzentes,
vermelhas e pretas, originárias do litoral do Pacífico.
• Guacia — para a febre e o fígado. Parte do tronco de uma árvore. Se
gundo dizem, é originária do litoral do Pacífico.
• Paradero — para estimular a fertilidade. Provém do páramo. São pe
quenos nozinhos ligados como sinos a um cipó.
• Tuercemadre — para inibir a fertilidade. Provém das regiões quentes
das terras baixas. É uma noz retorcida, semelhante a uma rolha, com as
bordas em forma de pétalas.
• Para dores do útero: Tamarindo, da região quente; Balsamo Rosado, da
mesma região; Balsamo Espingo, do Equador.
• Cedrón Chocuana — para crises de nervosismo. É uma semente grande
e contém um caroço. Originária do litoral. É necessário raspá-la um
pouco.
• Spingo —para crises de nervosismo. Vem das regiões quentes do Equa
dor. É uma semente com formato de vieira.
• Gordura de urso — para reumatismo. Vendida em frascos pequenos que
continham soluções de antibióticos para serem injetadas. Originária do
Putumayo, “recomendada”.
• Bilimento Chocuano — sais odoríferos vendidos em garrafinhas, para
resfriado e dor de cabeça. Luis Miguel diz que é feito com sete plantas.
• Chondur de Castilla — originário das regiões quentes. Deve-se mascar
ou moê-lo e misturá-lo com aguardiente. Depois deve-se soprá-lo e
cuspi-lo sobre a pessoa doente, a fim de livrá-la do espanto ou susto
(essa raiz é indispensável para os xamãs das terras baixas que conheço.
Mascam-na quando estão adivinhando e curando).
• Altamisa, várias espécies. Empregada em aspersões para a “cura” de
uma casa salada, isto é, uma casa enfeitiçada.
• Pele de uma cobra (do tipo conhecido como cascabet), pele de coelho e
pata de uma onça. Servem para muitas coisas, possuem um segredo,
previnem roubos.
• Havia muito mais remédios feitos a partir de plantas e também:
• Argolas, apitos, lâminas de barbear, agulhas, algodão, grampos, contas,
pentes, pedaços de enxofre e limalha de ferro “de uma mina do Putu-
271
mayo. Todos esses itens são usados com outros remédios, a fim de com
por a boa sorte de uma pessoa".
Livrinhos de orações, muitas delas dirigidas ao espírito do famoso ci
rurgião venezuelano José Gregorio Hemández.
Retratos coloridos e emoldurados de vários santos e Virgens.
Doze livrinhos diferentes sobre magia — quem sabe originados a partir
do livro de Don Benito, que pesava quase quinze quilos (e ganhava
alguns quilos a mais na lua cheia).
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16
A sujeira e a magia do modemo
Devido à localização privilegiada de sua casa junto ao rio, no sopé das mon
tanhas, além dos canaviais e da vasta e plangente humanidade que os faz prospe
rar, Don Benito pode se permitir ser um pouco esnobe. “Não passam de chiqueiros!”,
afirma, referindo-se ás cidadezinhas da zona canavieira, todas elas cortiços ru
rais, criadas pelo novo sistema agrocomerciaL “Pura sujeira!”, exclama. Ao falar
em sujeita de está se referindo à feitiçaria.
No entanto poderia muito bem referir-se á sujeira no sentido literal, pois
esse vocábxilo resume muito bem aqueles lugarejos comprimidos, desprovidos de
esgoto, onde moram trabalhadores diaristas, que não dispõem de água pura para
beber, nem de comida necessária para alimentar seus filhos, com barriga d’água e
vermes, que montem de diarréia e bronquite. “No litoral comida não falta, porém
não há dinheiro”, lamentam as mulheres migrantes que fugiram de uma econo
mia de subsistência das florestas do litoral do Pacífico. “Aqui há dinheiro, mas
não comida.”
Existem muitos médicos e farmácias nessas cidades agtocomerciais. Em Puerto
Tejada, por exemplo, havia em 1982 cerca de 30 mil habitantes, cinco farmácias,
três das quais bastante grandes e aproximadamente uns doze médicos. O povo
procurava os curadores populares, mas isto não se devia à ausência ou falta de
médicos com seus diplomas devidamente registrados. Também não era doente
devido à escassez de tais médicos e de seus remédios. Os que procuravam esses
médicos recebiam vastas receitas, que compreendiam uma verdadeira comucópia
de pílulas, cápsulas e substâncias injetáveis. Retomavam, porém, àquela mesma
água poluída e à mesma feita de comida que criavam as pté-condições para pro
blemas de saúde Tais pré-condições constituíam um verdadeiro maná para as
multinacionais que fabricavam remédios, na verdade, abutres que se alimenta
vam de lixo e de tripas.
Um amigo meu que arranjou emprego como trabalhador braçal permanente
em um canavial e, portanto, tinha condições de gozar da assistência médica, ra-
273
chava lenha quando entrou uma lasca em seu dedo. Foi procurar um médico e eu
o vi quando voltava para casa. O dedo estava ligeiramente inchado, mas não era
nada de muito sério. Ele disse que o médico mal examinou seu dedo e receitou
comprimidos de esteróide (Fenylbutazona, vinte comprimidos), algo denominado
“narcótico 222”, e um creme muito caro, chamado Lasonil, que continha hepari-
nóide e hialuronidase, tudo isto para curar um simples machucado! Até mesmo o
mais incompetente dos curadores não seria pior do que esse tipo de tratamento
médico oficial. Para a maioria das pessoas, sobretudo no Terceiro Mundo, é o tipo
de tratamento que se deve esperar, quer se trate de uma lasca no dedo, do nasci
mento de uma criança ou de uma situação que implique perigo de vida.
Minha amiga Juana fora aconselhada a ter seu primeiro filho no hospital
local, ao contrário de sua mãe, por exemplo, cujo parto ocorrera no chão de terra
batida de uma choupana, nas florestas do Chocó. Ninguém recebeu a permissão
de entrar com Juana no hospital, na noite em que ela foi dar à luz em Puerto
Tejada, e um guarda vigiava para que ninguém pusesse os pés naquele recinto
sagrado. Bem mais tarde ela nos contou que, quando a criança nasceu, encontiava-
se absolutamente sozinha, apenas ela e aquela vida que emeigia, mais ninguém: sem
enfermeira, médico, amigos ou qualquer outra pessoa de sua família. O pessoal do
hospital encontrou-a de manhãzinha com o nenê que ela e a mãe natureza haviam
parido sozinhas. Como é romanesco o Terceiro Mundo!
No entanto todo mundo dispensava grande respeito aos médicos, e a fé —
na verdade uma fé mágica nas maravilhas médicas da ciência moderna — era res
tringida unicamente pelo fato de que poucas pessoas contavam com meios para
colher seus benefícios ou até mesmo um fragmento deles, a exemplo daquela
jovem criatura que não tinha condições financeiras para tomar anticoncepcional
durante o mês todo e, assim, encorajada pelo farmacêutico, comprava unica
mente uma pílula para a noite em questão. Em outros momentos não se tratava
apenas de recorrer a uma parte de todo — uma pílula em vez de 21 —, mas era
uma questão de fazer uma escolha cruel entre quem, naquele amontoado de gente
doente, deveria ser designado para ir ao médico. Minha amiga Rejina frisou esse
aspecto, com aquele seu modo de ser sincero.
Ela tirava o sustento vendendo mingau frio para os trabalhadores dos cana
viais, nos dias de pagamento. Morava com seus três filhos em um quarto de uma
casa de chão de terra batida, com três compartimentos, e que construíra na cidade
de Puerto Tejada com o dinheiro ganho com a metade de um bilhete de loteria
premiado, dado a ela por uma pessoa amiga. Não se dispunha de qualquer outra
privada que não um buraco raso no minúsculo quintal, e não havia água. Sua
situação representava o padrão do que ocorria naquela cidade. Ela alugava o
outro quarto a uma jovem chamada Maura, que trabalhava de vez em quando nos
canaviais e, em outras ocasiões, como empregada doméstica em Ca li. Maura
morava com seu filhinho de um ano e estava grávida. Ela e Rejina compartilha
vam o terceiro compartimento, onde cozinhavam em um fogão de lenha.
274
Passei lá algumas semanas após o nascimento do bebê de Maura. Ela e o
menino de um ano estavam doentes. Ela tossia sem parar e falava de tuberculose.
O meninozinho, apartado do seio, não comia nada. Encontrava-se em avançado
estágio de inanição, aparvalhado, como se estivesse em transe. Maura não dis
punha praticamente de dinheiro, apenas o suficiente para consultar-se na mais
barata clínica de saúde. O pai do novo nenê recusava-se a ajudar, alegando que a
criança não era sua. A mãe dela e suas irmãs, que moravam ali perto, eram
paupérrimas e não se preocupavam muito com sua sorte. Aquilo era um fato
bastante comum Rejina e Maura discutiam o que fazer.
“Se você for ao médico em vez do bebê", argumentava Rejina, “ele mor
rerá, mas você sobreviverá e o bebe zinho também Mas se o gaiotinho for ao mé
dico em vez de você, então você morrerá, o bebê também e provavelmenteo
mesmo vai acontecer com o garotinho. Portanto é melhor você ir ao médico e
ele não."
Juntamos algum dinheiro de tal modo que a mãe e o filho pudessem procu
rar o médico. Este era jovem, experiente e entusiasta. Pediu radiografias, porém
Maura não tinha condições de pagar. Receitou antibióticos e alimentos com pro
teínas para o garotinho, porém Maura não tinha como pagar. E se acaso ele
internasse o menino em um hospital durante uma ou duas semanas para que ele
se alimentasse por via intravenosa, o que aconteceria em seguida? A que condi
ções de vida ele iria se submeter, ao sair do hospital?
Estávamos rodeados por férteis plantações de ondulante cana-de-açúcar e
de sorgo cor de ferrugem, tendo como pano de fundo o azul das montanhas. A
soja amarelava a acariciava o solo quente. No entanto tudo aquilo estava plan
tado em um campo social que fazia com que crianças como os filhos de Maura
morressem de fome e que gente como Maura, que trabalhava naqueles campos,
não tivesse como adquirir comida em quantidade suficiente para poder viver.
Nenhum médico poderia curar aquilo, mesmo dispondo de todos os raios-X e
antibióticos do mundo. Tal situação não era enfrentada sequer pelos médicos
americanos da Fundação Rockefeller, na vizinha Faculdade de Medicina da Uni
versidade de Valle. Eles afirmavam que o problema era que mulheres como
Maura tinham filhos em quantidade excessiva.
No entanto, por mais absurdos e inacreditavelmente espantosos que sejam,
tais serviços, proporcionados pelo sistema médico oficial e por seus médicos
com boa formação universitária, apoiados por corporações multinacionais de
“ciência" — farmacêuticas e agrocomerciais —, são procurados por muita gente.
Essa procura, otimisticamente desesperada, é testemunha de uma atração mágica,
neste caso pelo mundo oficial e pela “ciência", que não é menor e provavelmente
muito maior do que aquela que se encontra na magia da assim denominada medi
cina mágica.
Subsistindo nas sombras do poderio econômico e científico dos Estados
Unidos, esse culto do moderno, encontrado no Terceiro Mundo, ilumina o poder
275
mágico inerente àquele poderio e necessário a ele. A exemplo do que ocorre na
relação entre a magia que brilha como ouro nos livros elaborados pelos arautos
de Cristo e nos livros de magia vendidos pelos ervanários do Putumayo, da mesma
forma, nessas modernas cidadezinhas agrocomerciais de trabalhadores sem-terra,
existe um curioso relacionamento de poder, profundamente mágico, entre os fun
damentos da classe dominante e entre as classes dominadas, que faz ressaltar a
magia implícita em semelhantes fundamentos, aquela que toma tais fundamentos
socialmente eficazes. Esse ressaltar da magia implícita no discuiro dos funda
mentos dominantes constitui uma arte. Mesmo quando ele se apresenta com a
cara mais séria do mundo pode conter o caricato.
Tome-se como exemplo o hospital do irmão Walter em Puerto Tejada, con
forme o conheci em 1981. Duas de suas auxiliares negras, originárias do litoral
do Pacífico, o mostraram para mim porque a mãe de uma amiga minha enlou
quecera e afirmara que queria ser tratada ali. Ela viera das florestas do litoral do
Pacífico havia bem uns 25 anos e agora vivia precariamente de jornadas ocasio
nais de trabalho nas grandes fazendas. Seu marido a abandonara há alguns anos.
Precisava cuidar dos dois filhos mais novos e, com freqüência, no meio de sua
infelicidade, enlouquecia, rasgava as roupas e perambulava pelas ruas, proferindo
pendejadas, tolices.
Não havia altar no estabelecimento do irmão Walter, nem as velas queima
vam em louvor dos milagrosos santos e Virgens. No entanto, naquilo a que deno
minavam quarto de tratamento, havia uma grande lâmpada azul fixada em um
elaborado painel de madeira, no nível dos olhos, na parede. Tratava-se de um
importante aparato terapêutico. Ao longo das paredes, belos e sensuais, corriam
tubos de plástico. Aqui e lá, colados nessas mesmas paredes, viam-se, em grande
profusão, anúncios multicores, absolutamente surpreendentes, cortados de revis
tas de medicina que os médicos costumam assinar. Retratos de radiografias do
tórax e de cortes transversais do corpo humano, cor de carne, brilhavam nas
paredes de adobe, gastas e rachadas, rebocadas com esterco de vaca. Um par de
luvas verdes de borracha segurava dois rins rosados e, de seus ureteres, espre
miam uma urina dourada. Era o anúncio de um diurético made in USA. “Não
olhe para a luz azul”, avisou nossa guia, “pode provocar câncer."
A tia de Rejina, Sebastiana, apresentou-me a outra forma de cura por meio
da magia da medicina moderna. Era cozinheira de um dos engenhos e tinha o
direito de consultar gratuitamente o médico da companhia. Teve um súbito mal-
estar na região lombar direita, com cólicas, febre e ardor na urina. Ele a tratou
com três injeções intravenosas e ampicilina oral, uma penicilina de espectro
amplo. Daí a dois dias ela melhorou e seu filho levou-a a um curador espírita na
cidade de Cali, o qual lhe disse que ela tinha um problema com o rim e com a
vesícula biliar. Prescreveu-lhe remédios no valor de 800 pesos, que poderiam ser
adquiridos em qualquer farmácia, isto em uma época em que o salário mais alto
27ó
no campo era de 50 pesos por dia. Disse-lhe que retomasse daí a três dias para
ser operada e já se sentia muito melhor quando regressou.
“Por que você precisava ser operada?”, perguntei.
“Quem sabe?”, ela respondeu. Durante a operação o curador espírita disse:
“Oh! A senhora está com pedras no rim!". Ela ignora o que ele fez, mas precisou
ficar na cama durante seis dins c seguir uma dieta especial. A sala de operação
tinha muitas velas acesas e um altar. O curador usava um casaco branco. Todos
os pacientes foram reunidos e oravam. Ela contou que o curador chamava e os
pacientes respondiam. Então o curador ficou possuído pelo espírito de José Gre-
gorio. Começou a sacudir-se, transpirar, e sua voz se modificou. Todo mundo rece
beu a ordem de se retirar e, em seguida, um por um foi chamado para sua operação.
Havia cerca de vinte pacientes, e a operação de Sebastiana durou uns vinte minu
tos. O lugar tinha o nome de “El Centro Hospitalario de José Gregorio”, em
homenagem ao famoso cirurgião venezuelano, cujo espírito é hoje invocado pelos
curadores espíritas na Colômbia inteira.
No Putumayo, José Garcia e Rosário estavam muito envolvidos com a irmã
Carmela, que também recebia o espírito do famoso cirurgião venezuelano. Foi
José Gregorio quem tomou a medicina venezuelana científica e moderna, se
gundo declaravam os recortes de jornais afixados nas paredes de seu centro espí
rita em Pasto. Foi ele quem introduziu na Venezuela o microscópio, que aumenta
o invisível, e no entanto a modernidade foi o motivo de sua morte. Morreu atro
pelado por um dos primeiros automóveis da Venezuela, em 1919, quando atra
vessava a rua correndo para ir em busca de remédios para um paciente pobre.
A magia da ciência e da indústria, que se expressa através do hospital do
irmão Walter e do culto do irmão José Gregorio, é uma magia que encena a
promessa de poder e riqueza, mas trata-se de uma promessa até agora negada
para a vasta maioria dos pacientes. Sem a mão-de-obra e o talento desses últi
mos, haveria pouca riqueza. Por outro lado, a magia de praticantes como Don
Benito e os ervanários do Putumayo reporta-se ao início dos tempos, ao próprio
primitivismo, tal como ele é concebido pela modernidade.
Em conjunto esses curadores tão diferentes compõem o espectro de extin
ção ritual do infortúnio que aflige cidades agrocomerciais como Puerto Tejada.
Trata-se de magias co-determinantes: uma delas aninha-se na esperança de um
futuro oferecido e simultaneamente negado pelo mundo moderno, a outra abriga-
se na mitologia onírica latente naquela esperança e que recorre ás origens jmagi-
nadas das coisas.
Emseu manuscrito inacabado sobre o fetichismo das mercadorias e a ci
dade européia moderna, Walter Benjamin escreveu que “no sonho em que cada
época vê, através de imagens, a época que a sucederá, esta aparece unida a
elementos da pré-história, isto é, de uma sociedade sem classes".1 Certamente
havia uma paixão pela ausência de classes entre um deteiminado setor de “ele-
277
mentos pré-históricos" na moderna cidade agrocomercial de Puerto Tejada, nesse
caso o grande grupo de migrantes negros procedentes das luxuriantes selvas do
litoral do Pacífico. Eram eles que executavam a maior parte do trabalho árduo e
servil, na qualidade de empregadas domésticas nas cidades ou como cortadores e
carregadores nos canaviais. Eram altivamente igualitários e decididamente mar
cados pelo primitivismo. Diante da civilização mostravam-se essencialmente
deslocados. Formavam uma espécie de classe intocável, assemelhavam-se a ma
cacos, segundo se dizia, eram contaminados pelo cheiro de peixe e não sabiam
falar corretamente. A esse retrato coletivo acrescentava-se a reputação de feitiçaria
e de curas mágicas. Mostravam-se atentos diante da menor infração ao ato de
compartilhar e à igualdade. A reciprocidade era seu código. “Aqui no litoral”,
rezava um ditado, “uma mão lava a outra." Temiam e dominavam a arma do
malefício, caso esse código fosse negado. Era uma sensibilidade litorânea, inten
sificada devido ao fato de eles terem migrado em busca de trabalho assalariado.
Dos rios do litoral trouxeram muitos segredos. Alguns desses segredos pro
vinham de uma velha igreja colonial, congelada no tempo, quando os brancos
partiram porque os negros se recusavam a trabalhar para eles, após a abolição da
escravidão, em 1951. Outros segredos eram devidos aos xamãs índios que mora
vam ao longo dos rios do litoral, os “cholos”, que usavam um alucinógeno seme
lhante ao yagé, denominado pildé. Segundo me contou meu amigo Otazio, um
feiticeiro negro dos rios litorâneos do Chocó, o pildé era empregado para traba
lhos “a longa distância". Os migrantes da costa eram famosos por seus venenos e
feitiços com sapos, suas inumeráveis oraciones, suas curas de picadas de cobra e
sua superlativa arte com malefícios, que faziam com que o estômago de suas
vítimas inchassem adquirindo uma circunferência enorme, expandindo-se e mur
chando com o movimento das marés, observado naqueles rios tão distantes. Sim,
era um grupo que chamava a atenção! As mulheres, na estrada que descia para
Villarica, não contavam que, em Cali, havia algumas empregadas que enfeitiça
vam suas patroas, que as empregadas procedentes do litoral do Pacífico não se
dedicavam a isso? Elas apareciam e iam embora quando bem entendiam. Algu
mas chegavam até mesmo a fazer feitiços contia suas patroas!
Corriam outras histórias sobre o modo como essa gente “primitiva" das flores
tas além. das montanhas e à beira-mar empregava a feitiçaria para atingir as clas
ses dominantes que se aproveitavam dela. Lembro-me de que o jovem filho da
mulher que enlouqueceu contava-me com freqüência como sua mãe reagiu ao ser
despejada com seus quatro filhos do barraco no qual moravam em Puerto Tejada.
O aluguel estava muito atrasado e o proprietário arrancou as telhas a fim de os
forçarem a desocupar o barraco. Aquela mulher frágil e perturbada do litoral
cavou então um buraco raso na frente do barraco, á vista de todo mundo, e nele
colocou substâncias empregadas na feitiçaria, tena e ossos do cemitério etc.
Então o barraco ficou salado, enfeitiçado, e a partir desse fato o proprietário não
conseguiu mais alugá-lo, confidenciou-me o rapaz, muito satisfeito.
278
No litoral os xamãs índios empregam bonecas de madeira em seus feitos
mágicos. Há cinqüenta anos alguns etnólogos suecos afirmaram ter encontrado
bonecas no litoral surpreendentemente semelhantes aos “fetiches" da África cen
tral. Seja como for, na Colômbia as bonecas são privativas do litoral e de sua arte
mágica. É certamente interessante notar que nas histórias sobre os trabalhadores
assalariados dos canaviais em tomo de Puerto Tejada que, segundo se comenta,
celebram um pacto com o diabo a fim de aumentar sua produtividade e, portanto,
seu salário, diz-se que tal ato se dá por meio da assistência de uma boneca de
madeira. A influência “primitiva" do litoral, ao que parece, é decisiva nessa es
tranha ritualização da magia, em uma produção capitalista em laiga escala. Gra
ças ao pacto com o diabo o trabalhador assalariado aumenta o salário sem
intensificar o esforço físico. No entanto o canavial acaba se tomando improdu
tivo, tal como o salário. Este serve unicamente para adquirir tudo aquilo que é
considerado um luxo e não bens féiteis, tais como a terra ou o gado. Jamais se
ouviu dizer que as mulheres ou os produtores, proprietários de sítios, tenham
feito semelhante pacto. Existe um motivo para tanto. Por que o sitiante ou a
sitiante haveriam de querer tomar sua teninha infértil, por mais que necessitas
sem de dinheiro? Por que as mulheres, as sitiantes e as sem-terra, haveriam de
querer salários tão pouco férteis quando é responsabilidade delas, segundo todos
dizem, sustentar seus filhos, criaturas que estão crescendo? Não! O demoníaco passa
a ter vida própria quando a rápida constituição de uma classe de trabalhadores
assalariados põe a nu e extrai a magia implícita no fetichismo das mercadorias da
cultura capitalista e o modo como ela organiza as pessoas enquanto coisas, atra
vés do mecanismo do mercado. E é aqui que o “primitivo" dá sua contribuição
estratégica, sob a forma dos trabalhadores negros, provenientes da economia de
subsistência do litoral, sempre sensíveis ás infrações relativas á igualdade e aos
belos cálculos de crescimento e esterilidade, embutidos na economia de recipro
cidade: aqui no litoral (mas não aqui no canavial) uma mão lava a outra. No
litoral existe comida, mas não há dinheiro, lamentam as mulheres. Aqui existe
dinheiro, mas não há comida; daí decorre a “sujeira" e a magia do moderna, que
os curadores índios como Don Benito temem e, ao mesmo tempo, apreciam.
279
Plantas revolucionárias
17
O s ervanários do Putumayo combinam e distribuem as plantas curativas da
Colômbia. Levam as florestas tropicais do litoral do Pacífico às florestas da bacia
do alto Amazonas; põem em contato os frios e pantanosos páramos do cimo das
montanhas com as terras quentes, bem como com as zonas temperadas que se
estendem entre ambas as regiões. Os ervanários do Putumayo personificam essa
ecologia. Perambulando de um lugar conturbado para outro, escrevem a língua
dos significantes mágicos na face da topografia tropical. Expostas em ruas em
poeiradas, maculadas pela lama respingada pelos caminhões e mulas de passa
gem, suas plantas se assemelham a assinaturas de uma mitologia vívida, quando
não inconsciente, relativa ao espaço e á raça. O poder mágico atribuído a esses
ervanários enquanto índios e, mais especificamente, ervanários índios do Putu
mayo, é uma imputação que enquadra e surrealiza o forasteiro que percorre uma
paisagem encantada. É um mosaico de significados ligados a lugares, desajeita
damente correlacionados através da raiz, da planta, do pedaço de casca, que pos
sui partes do corpo e doenças ligadas a essas partes: raiz da China para os rins,
procedente do páramo; Pionía, sementinhas reluzentes, vermelhas e pretas, das
florestas quentes do litoral do Pacífico, para a vesícula; raízes de chondur, com
gosto de menta, das terras baixas do Putumayo, empregadas para tratar das crian
ças com susto...
Esses ervanários podem também atuar como curadores, transmitindo, adqui
rindo, integrando, criando verdadeiras colchas de retalho com novas palavras,
novas pronúncias, novos conceitos, á medida que se deslocam de uma cidade
para outra, de um povoado para outro, de um litoral para outro, revestindo o novode indianismo. A exemplo dos condutores de luz, eles absorvem a inveja e a
feitiçaria que se abatem sobre as pequenas comunidades e bairros das grandes
cidades. Meu amigo, o curador mulato Chu Chu, foi salvo, segundo me contou,
por um desses curadores errantes do Putumayo.
280
Alguns permanecem em um único lugar, colhendo as plantas de uma vasta
região e levando-as para suas farmácias. Era o que fazia Antonio Benavides.
Duas vezes por semana era possível encontrá-lo no mercado de Puerto Tejada
cuidando de uma grande banca de remédios feitos com plantas medicinais. Era
um homem corpulento, de meia-idade, que viera das terras altas do Putumayo
havia vinte anos e agora morava em Cali. Ele era uma mescla espetacular de
bom senso e de impostura. Contava-me que costumava ir regularmente ao litoral
do Pacífico a fim de obter trezentos tipos diferentes de plantas, incluindo o aluci
nógeno pildé, semelhante ao yagé. “Em tomo do pildé existem muitas cobras",
ele me contou, “pois a planta tem muito poder." Graças a uma planta especial do
litoral ele conseguia curar a lepra e o câncer. Conforme dizia, mantinha aproxi
madamente 4 600 plantas diferentes e vendia de 200 a 250 variedades em Puerto
Tejada.
As plantas não são como os remédios que se compram nas farmácias. Elas
encerram um mistério e é preciso rezar e concentrar-se, antes de as colher e usar,
garantiu-me Antonio. Era um homem muito viajado, segundo seu relato. Vendera
plantas na Venezuela e no Panamá e também estudara os livros de magia. Seus
pais eram ervanários e sua tia, segundo ele me contou, era tão famosa que, de sua
aldeia de San Francisco, no vale do Sibundoy, levaram-na aos Estados Unidos
para verificar se era verdade que os índios conseguiam curar loucos.
“Minha tia mostrou-lhes que isso era possível", ele relatou, enquanto seu
filhinho enrolava algumas folhas para um camponês negro que necessitava de
algo para o reumatismo, “mas não lhes mostrou o segredo. Usou yagé para as
curas, bem como outras plantas. Eu costumava acompanhá-la até a floresta a fim
de colher plantas, mas na verdade ninguém, além de Deus, me ensinou o que
quer que fosse. É uma profissão hereditária. Minha mãe era parteira e minha tia
também. Meu tio consertava ossos quebrados e fazia massagens."
“Não”, respondeu ele a uma pergunta minha, “não estudei com um cacique
das terras baixas. Só fui conhecê-los quando era um naturalista profissional."
Antonio fez uma pausa para atender um cliente. “Antes de mais nada é preciso
ser atento, limpo e ter um coração compassivo para poder seguir aquilo que Deus
nos reservou. Esses caciques com certeza conhecem certas coisas, é verdade,
mas não tão bem quanto um naturalista. Um naturalista precisa ser muito atento.
Por quê? Porque no mundo em que vivemos existe muita inveja e cobiça. Como
é que alguém pode ser um bom médico quando os médicos da universidade
cagam na sua cabeça? Para ser um bom médico é preciso ser quase um santo.
Limpo. Eu costumava me apresentar com cobras nos mercados, durante muitos
anos. Sou um cacique de verdade.”
Conversamos sobre o yagé.
“Ele encerra noventa por cento do poder do reino das plantas!", declarou
Antonio, “mas é preciso ser um grande conhecedor para poder trabalhar com ele.
Eu não sou", confessou. “O yagé tem esse grande poder graças aos desígnios da
281
Providência Divina e transporta o espirito para qualquer lugar do espaço...” Sua
voz morreu e recuperou o vigor quando a conversa girou em tomo da cidade de
Cali, onde ele morava há anos e que fora tão boa para ele. Dera-lhe a possibili
dade de estudar la metafísica “e para isso não preciso de yagél”.
Creio que foi a cidade que propiciou-lhe ensinamentos sobre a astrologia. E
sobre o capitalismo também. Quando ele tentava dar mais explicações sobre o
yagé, referia-se ao modo como ele abria o corpo, despertava-o por meio da coor
denação das forças corporais com a das estrelas e dos minerais, de tal modo que
a pessoa se fundia com o globo, o Universo. No entanto, dizia ele, havia um pro
blema: o capitalismo está destruindo o globo, e os líderes do mundo o estão
contaminando. Essa gente, disse ele, empregando a palavra pueblo, está confusa
e nos arruina. Agora já não existem mais laços que nos liguem. “Tudo se deve ás
grandes potências, quando construíram as armas de guerra, as armas bélicas. Alega
vam que era para a defesa, mas na realidade era para destruir seus próprios ir
mãos e irmãs que, um dia, poderiam servir. E não foi só no Vietnã”, acrescentou,
“já está se aproximando daqui” (isto foi em 1976).
De repente chegou uma camponesa negra de Obando, a fim de comprar
algo que permitisse... ela hesitou... “asegurar la vida... como la vida hoy en dia
es muy complicada”. Os canaviais estão avançando rapidamente sobre as terras
dos camponeses, desorganizando as plantações mistas, compostas por aquilo que
eles colhem, mais os pés de cacau, os bananais e cafezais.
A reação de Antonio ao avanço das práticas agrocomerciais assemelhava-se
bastante ás daquele outro curador das terras altas do Putumayo, Don Benito, agora
estabelecido nas encostas das montanhas, nas bordas daquele vale tão rico e vasto.
“É bom para os ricos e mau para os pobres", disse Antonio. “A fumigação pro
voca um dano terrível para a cultura do café e do cacau, de tal modo que as
pessoas têm que vender seus sítios e se tomar escravas. Muitas vezes têm que ir
morar em outros lugares. As plantas produtivas estão sendo destruídas — a iúca,
os bananais... Estão se tomando estéreis."
Ao se referir a esse sistema de metafísica, inspirado pela cidade, a essa
assombrosa mistura de yagé, astrologia e organicismo medieval, ele prosseguiu:
“O ser humano tem que implorar às plantas do mundo para que elas produzam e
para que o façam para todo mundo. Se isto não acontecer, então todos nós estare
mos perdidos. Tudo ficará infestado, a começar pelas raízes. Com o fracasso da
esfera produtiva haverá o da esfera criativa".
Ele continuou, como se estivesse lendo meus pensamentos: “O problema
com essa gente da universidade é que eles estudam apenas dois aspectos, o eco
nômico e o material. Quanto ao corpo e ao espírito, nada! Estou ensinando”,
acrescentou, “venho ensinando ao povo a revolução através de meu trabalho com
as plantas”.
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