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A INAPETÊNCIA

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17
A INAPETÊNCIA de Rafael Spregelburd
Tradução: Hugo Villavicenzio
Personagens:
SRA. PERROTTA
MARIDO
FUNCIONÁRIO
SARA
VIRGÍLIO
CIGANO
MAGALI
ROMITA
LEILA
CENA 1
A Senhora Perrotta e seu MARIDO estão sentados à mesa. Comeram pouco ou estão acabando de comer. Um televisor ligado aumenta as pausas com sua ladainha de ozônio.
SRA. PERROTTA: Contei o que aconteceu ontem?
MARIDO: Acho que contou.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Pensei que não tivesse contado.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Cheguei exausta. 
Pausa
SRA. PERROTTA: Saí ontem à noite. É por isso que queria saber se já tinha contado. Nunca pensou em adoção? 
MARIDO: Pensei.
SRA. PERROTTA: A gente poderia ter um filho. Ter um filho sem confusões. Ultimamente fico pensando em adoção.
MARIDO: Se você quiser.
SRA. PERROTTA: É lógico. Todo pai sempre prefere ter um filho, um filho de verdade.
MARIDO: Por mim, tanto faz.
SRA. PERROTTA: Você quer falar disso? Além do mais, acho que sendo a mãe tenho o direito de falar alguma coisa.
MARIDO: Não estou ligando pra o jeito de tê-lo. Pode até ser adotado.
Pausa.
MARIDO: Bom, fala o que você queria falar.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Isso já vai passar. Eu fiquei animada feito uma boba. Mas, foi só por um momento. A ideia da adoção, a burocracia, tudo isso. Veja bem, quando a gente faz uma adoção pode escolher o sexo do menino. Podemos adotar uma menina, o que seria uma benção. Achei que poderíamos falar disso.
MARIDO: Tudo bem.
SRA. PERROTTA: Não, deixa pra lá. Estou morrendo de fome!
MARIDO: Não, se a gente discorda de algo temos que encara-lo. Pelo menos uma vez na vida. É uma coisa sobre a qual eu penso que sim e você pensa que não, só isso. Não estou a fim de adiar nada.
SRA. PERROTTA: Nossa, que exótico. Não quero acabar divorciada.
MARIDO: Não é para tanto. Não seja exagerada. Todo casal é obrigado a discutir certos assuntos. Isso é normal. Mesmo sendo doloroso, acho. Ao final de contas, estamos falando da adoção de um filho, e não da guerra na Bósnia. Certo?
SRA. PERROTTA: Você falou, tanto faz.
MARIDO: Não. Falei que estava tudo bem. Inclusive, cheguei a admitir várias vezes que tivesse pensado em adotar.
SRA. PERROTTA: Então? Do que você está falando?
Pausa.
MARIDO: Bom, achei que era uma discussão possível.
SRA. PERROTTA: É.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Na Bósnia ou na Sérvia?
Pausa.
SRA. PERROTTA: Desculpa. Então, a gente concorda, podemos adotar.
MARIDO: Podemos.
Pausa.
MARIDO: Não ficou com fome? Você falou o que?
SRA. PERROTTA: Que comeria uma criançinha de Deus.
MARIDO: Posso preparar um espaguete. Ou, mais omelete.
SRA. PERROTTA: Não, pode deixar. Comi demais.
MARIDO: Eu também.
SRA. PERROTTA: Aquele lugar é a Iugoslávia, não é? 
Pausa.
SRA. PERROTTA: Tem laranjas.
MARIDO: Mmm, ótimo. É a ex Iugoslávia.
SRA. PERROTTA: Vai querer?
MARIDO: Não, obrigado, tudo bem. Depois compro um chocolate.
SRA. PERROTA: Tem.
MARIDO: Mmm.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Quando foi que pensou em adotar?
MARIDO: Sempre estou pensando em um monte de coisas.
SRA. PERROTTA: Quando foi?
MARIDO: E no meio disso, um dia imaginei esta casa tomada por um ou dois garotos pequenos. Miúdos, mesmo. Depois eles iam para escola, se formavam, tomavam conta da gente quando ficarmos velhos. Ficavam nos alimentando.
SRA. PERROTTA: Eu ainda estou jovem.
MARIDO: É verdade. Pensei em outras coisas também.
SRA. PERROTTA: Você deveria praticar algum esporte. Tênis, ou qualquer outra coisa. Por isso fica pensando besteiras. Porque você não faz nada que preste.
Pausa.
MARIDO: Você vai sair?
A SRA. PERROTTA olha surpresa e fica em silêncio. Depois de um tempo.
SRA. PERROTTA: Vou sair sim. Estou saindo. Muito bem. Fui.
CENA 2
A SRA. PERROTTA está num escritório.
FUNCIONÁRIO: Não quer sentar?
SRA. PERROTTA: Dá na mesma.
FUNCIONÁRIO: A senhora queria falar comigo?
SRA. PERROTTA: É. Olhe essa fatura. É de vocês.
FUNCIONÁRIO: É sim.
SRA. PERROTA: Então, é por isso.
FUNCIONÁRIO: Não estou entendendo.
SRA. PERROTA: Entende perfeitamente bem.
FUNCIONÁRIO: (Fechando a porta.) Fiquei sabendo que provocou um escândalo no guichê. Apesar da fatura estar correta.
SRA. PERROTTA: Eu sabia que estava correta. Devolva pra mim, por favor, não quero perde-la. (Guarda a fatura na sua bolsa.)
Pausa.
FUNCIONÁRIO: Então?
SRA. PERROTTA: Então, eu estou aqui.
FUNCIONÁRIO: Não teve nenhum sobrepreço, o endereço está certo, o nome confere. Você é a senhora Perrota.
SRA. PERROTTA: Meu nome não tem importância. Neste caso prefiro o anonimato. 
FUNCIONÁRIO: Neste caso?
SRA. PERROTA: Não complique as coisas, tá? Eu já sei quem são vocês, então, você já deveria saber o que eu quero.
FUNCIONÁRIO: Quem somos nós?
SRA. PERROTTA: Não falo mais nada. Se estivesse errada já teria sido jogada na rua. Eu quero experimentar. Estou sabendo que estão aceitando novos membros.
FUNCIONÁRIO: Por que não fala direito o que você quer?
SRA. PERROTTA: Não, não falo mais nada. Tenho vergonha. Ficarei esperando você falar o que devo fazer. Suponho que o lugar não é aqui, no próprio escritório.
FUNCIONÁRIO: Aceita um cafezinho?
SRA. PERROTTA: Aceito.
FUNCIONÁRIO: (Chamando pelo interfone.) Sara. (Senta-se, tem os braços cruzados sobre a escrivaninha e a cabeça apoiada nos braços.)
Pausa.
SARA: Olá.
SRA. PERROTTA: Olá.
SARA: Eu sou Sara.
SRA. PERROTTA: Um prazer.
Pausa.
SARA: Bom, então?
FUNCIONÁRIO: Sei lá. Ela...
SRA. PERROTTA: Não é nada fácil pra nenhum de nós três, falar disso. O que me deixa um pouco aliviada. Cheguei bastante apavorada. Eu sou uma mulher normal. Suponho que tão normal quanto vocês. Moro com meu marido. Com minha família. Algumas vezes escapo de casa. Tenho minhas amigas. Elas também são normais. Todas nós somos pudicas. Minhas amigas também são casadas, mas às vezes traem os seus maridos. Nunca fizemos sexo em grupo. O meu marido é um tanto quanto quadrado. Desculpem, mas alguém tinha que começar a falar disso.
SARA: Não se preocupe, continue, por favor.
SRA. PERROTTA: No entanto, somos muito independentes. Educamos nossos filhos com total independência, para eles conseguirem escolher entre o bem e o mal. Além do mais, quando o assunto é o desejo...
SARA: Quando o assunto é sexo, pode falar, não tem problema.
SRA. PERROTTA: É isso aí. A gente não pode falar: isso está certo, aquilo está errado.
FUNCIONÁRIO: Tem quantos filhos?
SRA. PERROTTA: É, tem dados que é melhor não... No caso de... Vocês compreendem, não é? Se eu quiser, também posso pegar minha bolsa neste momento e sair por aquela porta do mesmo jeito que entrei. E a gente nunca se conheceu. Eu mal sei o nome de vocês. 
SARA: Sou Sara.
SRA. PERROTTA: Isso é o que você fala. Posso chama-la de você
FUNCIONÁRIO: O seu nome consta na fatura Sra. Perro...
SRA. PERROTTA: Não fale meu nome, por favor. Não estrague tudo. Um sobrenome é sempre um sobrenome. Se bem que alguns sobrenomes nem são verdadeiros. São sobrenomes de casada, nomes de outros.
SARA: Haja paciência. O que a senhora está querendo dizer?
SRA. PERROTTA: Eu sei que aqui são organizadas sessões de...
SARA: Sadomasoquismo?
Pausa.
SRA. PERROTTA: Minhas amigas transaram entre elas e também com desconhecidos, com homens e mulheres. Temos discutido muito o assunto. Quando nos juntamos para bater papo. E tudo bem.
SARA: E elas falaram para vir aqui?
SRA. PERROTTA: Eu preferia ter vindo com meu marido. Más ele não topou. Provavelmente por vergonha. Ele fica envergonhado se eu estou presente. Já faz um bom tempo que não temos relaciones normais. Mas, alguém olhando de fora pode até achar que somos um casal muito feliz. Hoje no almoço tivemos uma discussão horrível. Falamos de assuntos dolorosos, de coisas muito antigas. Chegou a insinuar que eu estava envelhecendo muito mais rápido do que ele. O que é verdade. Ele pratica esportes, chego a acreditar que ele tem uma vida sexual muito ativa, extraconjugal é claro. Eu, por minha vez, não faço nada. Só as reuniões com minhas amigas.
SARA: Não trabalha?
SRA. PERROTTA: Eu trabalhava. Mas, fiquei grávida do primeiro filho, tive que largar, depois veio o segundo muito mais de pressa do que eu esperava, então, vocês podem imaginar. Então fui ficandoem casa, as reuniões com minhas amigas foram a salvação. Magali, Romita. Quero experimentar uma transa forte, quero ser amarrada na mesa e que mordam meu sexo. Quero vestir-me toda de couro e empunhar o chicote. Quero dominar homens e mulheres, com dor ou sem dor. Tenho muitas fantasias sobre isso.
SARA: Faz quanto tempo? 
SRA. PERROTA: Olha, essa é uma boa pergunta.
FUNCIONÁRIO: Quer um copo de água?
SRA. PERROTTA: Quero sim, por favor.
FUNCIONÁRIO: (Para o interfone.) Virgílio.
SRA. PERROTTA: E você? Você tem família?
SARA: Tenho, moramos fora do centro, perto do aeroporto.
SRA. PERROTTA: Que bom. Minha casa não é grande coisa, mas de qualquer jeito, é o suficiente por enquanto. 
Entra VIRGÍLIO.
FUNCIONÁRIO: Ah, Virgílio, entre, por favor.
SRA. PERROTA: Olá. 
FUNCIONÁRIO: Bom, melhor nós os deixamos sós. Qualquer coisa que precisar é só chamar. Nós vamos ficar aqui ao lado.
SARA: Tchau, até logo.
SRA. PERROTTA: Tchau Sara, até logo mais.
FUNCIONÁRIO: A gente se vê daqui a pouco.
SARA e o FUNCIONÁRIO saem. VIRGÍLIO fica em pé na frente da SRA. PERROTTA, quem continua sentada numa cadeira.
SRA. PERROTTA: Então, você é o Virgílio! Falaram muito bem de você. Talvez já conheça o meu marido. É um senhor muito amável, têm uns quarenta e cinco anos. Usa óculos. Tem um metro e setenta. Veste-se muito elegantemente. Justo hoje de manhã, ele falou: “Se você vê o Virgílio ou se são apresentados, pode dar meus cumprimentos e fale para ele que arrumei aquilo do outro dia”. Nada disso, “que aquilo do outro dia ficou na casa de Horácio”. Horácio é o amigo dele, aquele que tem uma quinta perto de casa. Ele vai muito lá por causa da quadra de tênis. Bom, acredito que você já sabe quem é o Horacio, acho que vocês todos já se conhecem bastante. E muito bem! Não sei se eu conseguiria passar uma semana lá... Não sei, não. Sendo a primeira vez, talvez seja melhor ficar num feriado prolongado. Agora em junho, tem dois feriados prolongados. Falo por causa da falta de tempo. Acontece que durante a semana trabalho em várias escolas. É só para experimentar, não é? Vai ver que acabo não gostando de nada. Você conhece o meu filho mais velho? Deve ter aparecido alguma vez acompanhando o meu marido. Faz um bom tempo que não falo com ele. Bobagens. Quer dizer, acabamos nos afastando. Como qualquer mãe, acho que fiz um julgamento errado dele. Enfiei a minha colher em coisas que não me diziam respeito. Bom, você sabe como é aquela mania dos pais de querer dar lição de moral nos filhos. Como se todos não fossemos pessoas independentes, não é? Porém com os filhos é bem mais difícil. Eu tenho dois meninos. Acho que o caçula você não conhece. Jamais. Tomara que nunca os tivesse tido. Você não tem filhos, não é Virgílio? Você foi vasectomizado? Desculpe a pergunta, ela não tem nada a ver, mas acabei de pensar que de certa forma essa pergunta está relacionada com outras que sim tem a ver com o assunto, e que seria muita falta de educação ir perguntando logo de entrada por coisas muito mais atrevidas ou pelos detalhes de tudo isso. Bom, de qualquer jeito, se algum dia quer ter um filho e não consegue, acho que sempre existe outra opção. (Longa pausa.) Sempre existe outra opção, Virgílio. (Black out.) 
CENA 3
A SRA. PERROTTA está numa praça. Um CIGANO.
CIGANO: Olá.
SRA. PERROTTA: Olá.
CIGANO: Me da sua mão.
SRA. PERROTA: Dou garoto, dou.
CIGANO: Tem um futuro brilhante, cheio de caminhos que vão e voltam, tem desejos e fantasias, vejo um porco, um porco orelhudo e muito querido numa encruzilhada da sua vida e também uma tomada de decisão madura e inteligente. Vai viver cem anos, mil anos, todos os anos que quiser sempre e quando não fique gulosa. Você é uma mulher intensa. Qual é seu signo?
SRA. PERROTTA: Isso não tem importância. Venha, sente-se aqui e continue falando, isso faz um bem enorme para mim.
CIGANO: Vou avisando logo que são mentiras.
SRA. PERROTTA: Sei disso. Mas vou pagar mesmo assim.
CIGANO: Muito bem. O que você quer ouvir?
SRA. PERROTTA: Fale se vou ser feliz com minha filha Leila.
CIGANO: É aquela lá?
SRA. PERROTTA: Aquela no balanço. Não é linda? Ás vezes duvido se vou ser feliz com ela. Olho para ela e não a reconheço.
CIGANO: Sim, ela é lindíssima. Leila vai ser protestante. Abrirá uma agencia de turismo. Vão ser muito felizes juntas.
SRA. PERROTTA: Protestante?
CIGANO: Só pelo fato de ser sua filha, hoje ela balança feliz feita um pêndulo acreditando que um único Deus a mantém unida aos seus pais. No ginásio, numa terça feira 20, daqui a uns poucos anos, uma professora com sobrenome espanhol falará sobre Martinho Lutero. Leila vai pesquisar compulsivamente no seu livro de história. Encontrará dados soltos, incompletos, um resumo estudantil sobre a reforma protestante. Um resumo fraco. Porém, a febre começa nessa terça. Ela é arrastada por um impulso por conhecê-lo tudo à procura de maiores informações. Estuda alemão com uma bolsa de estudo arrumada por você e seu marido.
SRA. PERROTTA: Pelo meu marido?
CIGANO: É. Ela lê direto na fonte. E acaba convertendo-se. Mas, isso não a transforma num monstro, de jeito nenhum. Suas atividades, seus afetos, seu gosto musical, não ficam afetados em nada. Porém, abraça fortemente a causa, encontrando a felicidade nisso.
SRA. PERROTA: (Com os olhos cheios d’água.) Obrigado.
CIGANO: Passou mal?
SRA. PERROTTA: Já sabia que era mentira, mas o que eu não sabia era que ia acabar percebendo tão rápido assim. Pode levar a Leila de presente.
CIGANO: A menininha? 
SRA. ERROTTA: Pode levar. Não gosto mais dela.
CIGANO: É verdade?
SRA. PERROTA: É aquela, que está no balanço. Pode cria-la do seu jeito, do jeito como os ciganos criam seus filhos. Eu não posso fazer tudo. Pegue antes de ela perceber que estou indo embora e queira voltar comigo para casa como um cachorrinho. Vai pegue ela. Só não mude o nome dela, por favor. Ela se chama Leila. Se quiser, pode dar-lhe seu sobrenome. Teria acontecido do mesmo jeito se ela casa-se, coitadinha. Mas, não deixe de chama-la de Leila. A única coisa que ela tem é seu nome. Ela não é boba não, ela já responde pelo seu nome quando é chamada. Adeus.
CENA 4
A SRA. PERROTTA está na casa de ROMITA. MAGALI as acompanha, as três estão sentadas a mesa em volta de alguns folhados de creme.
MAGALI: Perceberam que ela concorda toda vez que sabe que o assunto não tem importância para ele? Desse jeito, o deixa permanentemente irritado. Quando é importante para ele, ela discorda. Pior ainda, ela não bate de frente. Ela diz: “sei lá, não sei”. Vira a cabeça ou olha para outro lado. Finge que está pensando em outra coisa. Não fala nada. Ele fica na mão dela. Ela está certa. Se ela deixar, ele faria a mesma coisa com ela.
SRA. PERROTTA: O que está fazendo?
MAGALI: Está fazendo aquilo.
SRA. PERROTTA: Bom, ele merece. Olha o folheado, parece bem gostoso!
MAGALI: É bem gostoso.
ROMITA: Foi Magali que trouxe.
MAGALI: É de lá embaixo. 
ROMITA: Lá embaixo tem coisas bem gostosas.
SRA. PERROTTA: Sim, bem gostosas.
Pausa. Ninguém come nada.
ROMITA: Conheceu o Virgílio?
SRA. PERROTTA: Sim conheci.
ROMITA: Não liga para ele.
MAGALI: Fala por falar.
ROMITA: O que você falou?
MAGALI: Eu é que sei.
ROMITA: Bom, você deve saber.
MAGALI: Tem que desconsiderar o que ele fala. Você tem que encara-lo do jeito que ele é.
ROMITA: Que é...?
MAGALI: Aquilo.
ROMITA: É.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Não estava pensando nisso.
Pausa.
MAGALI: Uma pica. Virgílio.
SRA. PERROTTA: Estava numa praça, veio uma garota e pediu para que eu desse uma olhada na sua filha que estava no balanço.
ROMITA: É sempre a mesma coisa.
SRA. PERROTTA: Apareceu um cigano e entreguei a criança.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Hoje tivemos uma briga terrível. As crianças escutaram tudo. Isso foi o pior.
ROMITA: Sim, sempre a mesma coisa.
SRA. PERROTTA: Então, saí batendo a porta. Ele reclamava que eu não sei criar meus filhos, que fico o dia todo em casa sem dar a mínima para eles. Eu não quero invadir a vida deles, isso é diferente. Parece que somos estranhos, não é? Na minha própria casa.
Pausa.
ROMITA: Estava caminhandopela rua quando vi um troço bem esquisito. Vou contar para vocês. Era um paraplégico. Faltava-lhe uma perna. Juro que era impossível olhar para os olhos dele. Porém, eu não podia deixar de tentar fazê-lo. A falta da perna em si não era o mais impressionante, a perna ausente não era feia; agora, o lugar onde começava a ausência da perna... Dá para entender? Não era a falta da perna, era o lugar, era a fronteira. A beirada.
MAGALI: O cotoco. 
ROMITA: Isso mesmo. Estava todo torto. Não era uma ausência sem punição. Era desonesta, até. Tem outras perdas que são mais elegantes. Não querem comer? Tem muitas coisas faltando, tem crianças com fome e tudo mais, eu não estou negando isso. Mas, o que é feio mesmo é o cotoco.
Pausa. 
MAGALI: Cada coisa que vocês pensam, hein? Eu fico toda atordoada.
ROMITA começa a rir, a SRA. PERROTTA ri, a seguir MAGALI ri. Depois ficam em silêncio.
CENA 5
A SRA. PERROTTA está em casa. LEILA, uma garota de uns vinte anos, está frente a ela.
SRA. PERROTTA: Leila, pelo menos espera que chegue teu pai.
LEILA: Para que?
SRA. PERROTTA: Para falar com ele.
LEILA: Dá na mesma.
SRA. PERROTTA: Tive um dia de cão, não complica mais as coisas. Tudo está prestes a ir por água abaixo.
LEILA: Um dia de cão.
SRA. PERROTTA: Comeu alguma coisa?
LEILA: Comi.
SRA. PERROTA: Certeza?
Pausa.
SRA. PERROTTA: Escuta aqui, Leila. Eu vou sentar e ficar esperando teu pai chegar. 
LEILA: Faça do jeito que você quiser. Eu acabo de arrumar minhas coisas e me mando.
SRA. PERROTTA: Tudo bem. Você está cansada de saber que eu nunca me meti na tua vida. Nem na dos teus irmãos. Eu os eduquei do jeito que deu. Quando você quis fazer a tatuagem, que foi o que eu falei? Não dei um pio. É isso aí. Fez a tatuagem. Quanto tempo demorou em se arrepender?
LEILA: Você poderia ter avisado que ia me arrepender.
SRA. PERROTTA: Eu poderia sim criatura, mas e o poder da moda? O poder da moda sobre os jovens os deixam deslumbrados, os jovens querem experimentar tudo.
LEILA: Você poderia ter salvado meu peito, o que acabei tendo que tirar.
SRA. PERROTTA: Você tem toda razão de reclamar, toda. Pode reclamar.
LEILA: Não, se é para você ficar feliz, não vou reclamar.
SRA. PERROTTA: Você é ruim. Foi você quem quis a tatuagem. Depois, quis adiantar as matérias da faculdade, quis enfiar tudo de uma vez na sua cabeça, não queria poupar-se de nada. E no final de contas, como se saiu?
LEILA: Não sei.
SRA. PERROTTA: É lógico que não sabe. Porque fez o curso em dois anos.
LEILA: E daí?
SRA. PERROTTA: Dai! Os estudantes normais se formam técnicos em cinco, seis anos, isso se tiverem sorte. Por que Iugoslávia?
LEILA: Estão convocando voluntários. 
SRA. PERROTA: Mas, você é uma criança, porra. Uma criança meiga e delicada. 
LEILA: É, mas tem a guerra. As guerras arrasam os campos onde crescem milhares de rosas meigas e delicadas.
SRA. PERROTTA: Sim, mas isso é lá. Na Bósnia. Aqui é diferente. Aqui você tem o parque Lezama[footnoteRef:1]. Tem a casa da tia Olga. [1: Parque Gregório Lezama, no sul do bairro de San Telmo em Buenos Aires.] 
LEILA: Estou cheia disso. 
SRA. PERROTTA: Pelo menos espera pelo teu pai.
LEILA: Ok. (Pausa.) Tia Olga cheira mal. Suas festas cheiram mal.
LEILA senta-se. A SRA. PERROTTA manuseia uma mexerica, o faz com muita dificuldade. Descasca cuidadosamente, porém de maneira torpe. Ela sofre um pouco com isso, suja-se e deixa a fruta de lado. Black out rápido.
Quando volta a luz, o MARIDO também está sentado ao lado delas. LEILA está afundada no sofá. A SRA. PERROTTA tem aparência exaurida.
MARIDO: Peço que desculpem a minha falta de tato, mas não esperava encontrar semelhante situação familiar. O que aconteceu comigo hoje foi forte. Acredito que é bom vocês saberem. Fiz uma palestra sobre a remoção de grãos e os riscos nas apólices de seguro que me deixou esgotado. Fizeram-me perguntas que eu não conseguia responder. E vocês sabem muito bem que sou especialista na matéria.
Pausa.
MARIDO: Já comeram? Podemos pedir umas pizzas.
Pausa.
MARIDO: Queria relaxar. Fui ao circo Gustavo Rodó. Estavam desmontando a carpa, tinha três sujeitos quando cheguei. Pedi para eles me sodomizarem. Eu sei Leila, que isso acaba com um monte de expectativas que você poderia ter feito sobre nós, sobre integrar conosco uma família, uma família padrão.
SRA. PERROTTA: Família padrão são duas pessoas com dois filhos. Um homem e uma mulher. Um casal com dois filhos.
MARIDO: É isso. Um deles era o administrador. A temporada não tinha sido muito boa para eles. Estavam indo para Baradero.[footnoteRef:2] Depois fomos tomar um café. Como o café me provoca acidez, eu só fiquei olhando e ouvindo. Contavam histórias fascinantes, números com porcos amestrados. Falamos do futuro. Não sei. Talvez viaje com eles. Depois voltamos para o circo e continuou a função. [2: Cidade ao nordeste da província de Buenos Aires.] 
SRA. PERROTTA: Olha! A Leila vai como voluntária para Bósnia.
MARIDO: Para Bósnia?
SRA. PERROTTA: Pedi para ela ficar, pelo menos, para falar contigo.
MARIDO: Mas, aquilo não é a ex Iugoslávia?
LEILA: Se achamos que já acabou, é a ex. Se, pelo contrário, conseguimos juntar a energia de milhares de jovens e nos empenharmos em semear os campos de rosas que foram destruídos pelos tanques, aquilo continuará sendo a grande Iugoslávia, a grande pátria, o jardim onde eu quero que brinquem meus filhos.
SRA. PERROTTA: Você é uma ingrata. Nem poderia amamenta-los direito. Você é muito teimosa.
LEILA: Não é “ex” Iugoslávia. Vocês são a minha ex-pátria, eu quero me expatriar, cuspo nos pratos de comida que recebi aqui, apanho as minhas coisas e vou embora.
LEILA sai de cena. Depois, atravessa o palco algumas vezes, recolhendo objetos cenográficos que pretende levar.
SRA. PERROTTA: Vai ficar aí olhando o mundo desabar sem fazer nada?
MARIDO: Cala essa boca, está bom?
SRA. PERROTTA: Fiquei com fome, Vou ligar para a pizzaria.
MARIDO: Liga.
SRA. PERROTTA: (Disca um número no telefone.) Alô? Sim. Quero pedir algo para comer. Isso, uma grande. (Para o MARIDO.) Posso pedir napolitana? (O MARIDO concorda.) Sim, isso mesmo. Uma napolitana grande. (Para o MARIDO.) Você quer fainâ?[footnoteRef:3] Estou perguntando para você. [3: Fainâ, acompanhamento feito com farinha de grão de bico.] 
MARIDO: Sim, eu falei que sim. Quantas vezes você quer que eu repita?
SRA. PERROTTA: Não escutei, está bom. Não, não é com você. É aqui, na minha casa. São dois fainâs, sim. Para a família Klein, Klein com “E”. Dá na mesma. Quanto vai demorar? Bom, que seja o mais rápido possível, por favor. (Para o MARIDO.) Peço para eles cortarem? (O MARIDO faz um claro gesto de infelicidade, parece querer falar, mas finalmente acaba cruzando os braços, está aborrecido.) Ótimo, obrigado. (Desliga o telefone. Pausa.) Tenho uma fome enorme. Olha que comi alguma coisa à tarde na casa de Romita. Ela fez panquecas com doce de leite. Comimos feito formigas. A Magali beijou a minha boca. Eu estava toda lambuzada de doce de leite nos lábios, então ela beijou a minha boca.
MARIDO: Você pediu cortada?
SRA. PERROTTA: Eu achei que...
MARIDO: Pediu ou não pediu?
SRA. PERROTTA: Bom, eles sempre mandam cortada.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Bem que você poderia tirar a bunda da cadeira e procurar uma faca.
MARIDO: Acabaram de me arrombar o cú. Você é besta ou idiota?
SRA. PERROTTA: Olha, estou ficando de saco cheio.
MARIDO: Foram três. Um deles era o administrador do circo.
SRA. PERROTTA: Tudo bem, tudo bem, já entendi.
LEILA: (Entrando.) Bom...
SRA. PERROTTA: A que hora parte o avião?
LEILA: Não é hoje, é daqui a uma semana. Mas, eu queria deixar tudo pronto.
SRA. PERROTTA: Promete que você vai escrever para a gente.
LEILA: Claro que vou.
SRA. PERROTTA: Pedi uma pizza. Por que você não fica, senta e a gente come junto.
LEILA: Vai dar para nós três? 
SRA. PERROTTA: Claro que sim, vem cortada em oito pedaços.
MARIDO: Pediu para trazerem cortada?
LEILA: Será que vai dar? Eu não quero atrapalhar vocês. 
MARIDO: (Aborrecido.) Cala a boca, se tua mãe diz que dá, então dá.
LEILA senta-se. Pausa.
SRA. PERROTTA:Alem do mais, pedi dois fainâs.
LEILA: Mmm! Gostoso.
SRA. PERROTTA: É gostoso, não é?
LEILA: Papai está sangrando.
O MARIDO passa a mão no almofadão onde está sentado. Realmente, pode ter um pouco de sangre. 
SRA. PERROTTA: A fainâ é do que? De grão de bico, não é? De farinha de grão de bico. Gostoso.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Ah, tava esquecendo, hoje fui pagar aquela bendita fatura. Arme um barraco. Fiquei esperando por duas horas. Depois fui atendida por uma Sara de tal. Você é obrigado a falar diretamente com ela.
Toca a campainha.
SRA. PERROTTA: Deve ser a pizza.
Ninguém se mexe.
SRA. PERROTTA: Quem vai abrir?
Silêncio. A campainha volta a tocar.
SRA. PERROTTA: Ah, sim, podemos usar guardanapos, assim ninguém precisa levantar para pegar os pratos. Uma napolitana falei, aquela que acompanha tomate natural em pedaços, aí o sujeito repete, “uma napo”, “uma napo”. Eu peço uma napolitana e ele repete, “uma napo, uma napo e dois fainâs”. Onde já se viu, dá para você explicar? “Uma napo, uma napo”. Eu vou falar um negocio, esse cara é um cretino. Você vai sozinha? Quando, é segunda que vêm, terça, ou algo parecido? Sai por Ezeiza?[footnoteRef:4] [4: Ezeiza é o aeroporto mais importante de Buenos Aires.] 
LEILA: Não faço ideia, mamãe, não faço ideia. Agora chega!
SRA. PERROTTA: Bom, é para a gente ficar sabendo. Já estou imaginando, eu lendo tuas cartas da Sérvia. As cartas que eu vou guardar, com muito amor e carinho, na mesma caixa onde guardo teu seio tatuado. As cartas, teu pequeno seio, os cartões postais da Iugoslávia, os campos de rosas devastados. Todas as noites releu cada frase e fico emocionada como só uma mãe pode ficar. Como uma mãe que o está perdendo tudo. Adormeço com teu seio e tuas cartas debaixo do meu travesseiro, então já não me sinto mais só. Sabendo que no dia seguinte esperarei por noticias suas, saberei que você está viva, e aquelas coisas que só uma mãe compreende. Porque eu sou uma mãe. (A campainha toca por última vez.) Tudo bem. Tenho uma fome enorme. (Pausa.) Quem vai abrir?
Black out. 
Novembro de 1996

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