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U N O PA R A N TRO PO LO G IA FILO SÓ FIC A E SO C IO LÓ G IC A Antropologia Filosófi ca e Sociológica José Adir Lins Machado Wilson Sanches Edson Elias de Morais Maria Eliza Correa Pacheco Antropologia filosófica e sociológica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A636 Antropologia filosófica e sociológica / José Adir Lins ISBN 978-85-8482-171-6 1. Antropologia. 2. Antropologia filosófica. 3. Antropologia sociológica. I. Machado, José Adir Lins. II. Título CDD 306 Machado ... [et al.]. – Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S. A., 2015. 186 p. © 2015 por Editora e Distribuidora Educacional S.A Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Editora e Distribuidora Educacional S.A. Presidente: Rodrigo Galindo Vice-Presidente Acadêmico de Graduação: Rui Fava Diretor de Produção e Disponibilização de Material Didático: Mario Jungbeck Gerente de Produção: Emanuel Santana Gerente de Revisão: Cristiane Lisandra Danna Gerente de Disponibilização: Nilton R. dos Santos Machado Editoração e Diagramação: eGTB Editora 2015 Editora e Distribuidora Educacional S. A. Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza CEP: 86041 -100 — Londrina — PR e-mail: editora.educacional@kroton.com.br Homepage: http://www.kroton.com.br/ Unidade 1 | O surgimento da antropologia filosófica Seção 1 - Surgimento e evolução do homem 1.1 | A origem das instituições Seção 2 - Antropologia antiga e medieval 2.1 | Sócrates e a psique, o logos 2.2 | Platão: o homem, corpo e alma acidental 2.3 | Aristóteles, o homem é unidade 2.4 | O homem segundo a visão cristã 2.5 | A contribuição de Agostinho de Hipona Seção 3 - Antropologia moderna e contemporânea 3.1 | Subjetividade e existencialismo 3.2 | Kierkegaard e o homem angustiado 3.3 | Nietzsche e o Übermensch 3.4 | Martin Heidegger: o homem é um ser para a morte 3.5 | Sartre: a existência precede a essência 3.6 | Max Scheler e o homem que se projeta Unidade 2 | O surgimento da antroplogia sociológica Seção 1 - Especificidade da ciência antropológica 1.1 | O que é isto que chamamos de Antropologia? Seção 2 - Antropologia física 2.1 | Antropologia e biologia para compreensão do homem Seção 3 - Antropologia cultural e social 3.1 | Relação entre antropologia cultural e antropologia social 3.2 | Evolucionismo cultural 3.3 | Difusionismo cultural 3.4 | Funcionalismo 3.5 | Estruturalismo 3.6 | Antropologia da prática e a visão de Marshal Sahlins 3.7 | Desafios de uma antropologia histórica Seção 4 - Antropologia brasileira 4.1 | Algumas contribuições teóricas da antropologia brasileira: Gilberto Freyre e a contribuição luso-brasileira à humanidade 4.2 | Algumas contribuições teóricas da antropologia brasileira: Darcy Ribeiro e o povo brasileiro Sumário 7 11 14 19 20 22 25 26 28 31 31 33 36 38 40 41 53 57 57 65 65 71 71 72 75 76 78 80 80 85 85 88 Unidade 3 | Os principais problemas antropológicos Seção 1 - O desenvolvimento da pesquisa de campo como condição e método antropológico 1.1 | O problema do método antropológico Seção 2 - A Antropologia e seus problemas 2.1 | Diversidade cultural 2.2 | Natureza versus cultura 2.3 | Cultura, ação e estrutura 99 103 103 113 113 122 129 Unidade 4 | O ser humano e suas manifestações Seção 1 - O ser humano e suas manifestações significativas 1.1 | Processos e manifestações culturais Seção 2 - Antropologia: pós-colonialismo e pósmodernidade 2.1 | Antropologia contemporânea Seção 3 - Manifestações culturais contemporêneas – etnicidade 3.1 | Etnicidade 145 149 149 161 161 173 173 Apresentação Olá pessoal! No livro “Antropologia Filosófica e Sociológica”, nós estudaremos, na Unidade I, os aspectos da Antropologia Filosófica. Neste sentido teremos como objeto de estudo a origem, a natureza e o destino do homem, bem como o seu lugar no universo. O desafio está em se tentar descobrir qual é a essência humana, sob a ótica filosófica. Quando falamos de essência humana, estamos nos referindo à natureza de cada coisa. A interrogação sobre o que é o homem é algo que se questiona desde os primórdios da cultura ocidental. Foi Sócrates um dos primeiros filósofos a estudar o homem. Para ele o homem é alguém que pode responder com racionalidade a uma indagação racional. Nesta perspectiva perpassaremos pelas questões como o surgimento e evolução do homem; a Antropologia antiga e medieval, ou seja, estudaremos o modo como os primeiros filósofos, sobretudo Sócrates, Platão e Aristóteles, refletiram sobre o homem, seus problemas, seus valores e como definiram e entenderam o ser humano e sua essência. Contemplaremos pensadores que vão de Descartes à Heidegger e Sartre, e as contribuições de Kierkegaard e Nietzsche e finalizando, a compreensão antropológica contemporânea de acordo com Max Scheler. Na Unidade II estudaremos a Especificidade da Ciência Antropológica, a Antropologia Física; a Antropologia Social e Cultural, cuja discussão contemplará as diversas correntes teóricas da antropologia dentro desta área. Finalizando esta unidade perpassaremos pela Antropologia Brasileira em que veremos os principais pressupostos da antropologia e seu caminho teórico percorrido no Brasil. Na Unidade III perpassaremos pelos principais problemas antropológicos. Tendo a Antropologia como uma chave para a compreensão do homem e consequentemente, considere-se este como um emaranhado de problemas que interessam a muitos campos de estudos, passaremos assim, a referir-se à natureza e aos questionamentos sobre sua própria essência. Na Unidade IV, a proposta do livro de antropologia é iniciá-lo na jornada das principais tendências de análise do pensamento sobre as diversidades culturais e também, propiciar um breve panorama das reflexões e pesquisas da antropologia contemporânea. Desejamos um excelente estudo aos nossos estudantes e leitores desta obra cujos autores do livro alvitram a ampliação dos conhecimentos dentro da Filosofia Antropológica e Sociológica. Prof. Sergio de Goes Barboza Unidade 1 O SURGIMENTO DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA Contextualizaremos, dentro das descobertas apresentadas pelos estudos da evolução humana, o aparecimento do homem de acordo com uma perspectiva racional, biológica e evolutiva visando compreender a formação psicológica, afetiva e cognitiva da nossa espécie, bem como os seus avanços e retrocessos no processo evolutivo e na configuração atual do mundo e da vida dos seres humanos. Apresentaremos o modo como os primeiros filósofos, sobretudo Sócrates, Platão e Aristóteles, refletiram sobre o homem, seus problemas, seus valores e como definiram e entenderam o ser humano e sua essência. Também apresentaremos a compreensão cristã acerca do homem e sua realidade e as contribuições mais relevantes, sobretudo ao que concerne à Seção 1 | Surgimento e evolução do homem Seção 2 | Antropologia antiga e medieval Objetivos de aprendizagem: Nesta unidade pretendemos apresentar as noções gerais acerca da antropologia, o seu surgimento e a pertinência da reflexão sobre esse tema desde a Grécia antiga até os dias atuais e também os principais problemas tratados por essa esfera, bem como as contribuições mais relevantes dos grandes filósofos ligados ao assunto, ao longo da história e do desenvolvimento dessa disciplina. Estaremos, portanto, tratando do homem, sua evolução, os desdobramentos e os impactos da cultura e a relevância do contexto sobre a vida humana. José Adir Lins Machado O surgimento da antropologia filosófica U1 8 Abordaremos o panorama da antropologia contemporânea com ênfase às questões existenciais, passando pelo subjetivismo e existencialismo, de Descartes a Heidegger e Sartre – e ascontribuições de Kierkegaard e Nietzsche – e encerraremos com a abordagem acerca da compreensão antropológica contemporânea de acordo com o pensamento de Max Scheler. Seção 3 | Antropologia moderna e contemporânea valorização da subjetividade, com o intuito de percebermos uma crescente na concepção de homem e, posteriormente, do conceito de pessoa humana. O surgimento da antropologia filosófica U1 9 Introdução à unidade A palavra homem em língua grega se diz anthropos (άνθρωπος); e a palavra razão se diz logos (λόγος). O vocábulo logos também tem o sentido de estudo, descrição, narrativa e palavra. Portanto, a palavra antropologia é, etimologicamente, o estudo do homem. Diante disso, buscaremos abordar esta área, mesmo que superficialmente, desde o surgimento do fenômeno humano até a reflexão mais elaborada sobre a existência humana e os principais problemas a ela pertinentes. “Homem, conhece-te a ti mesmo” era o lema socrático e mote de suas indagações e reflexões filosóficas. Essa sentença encontrava-se no pórtico do templo de Delfos e foi adotada por Sócrates (470-399 a. C.) como guia de suas buscas pelo conhecimento verdadeiro. Tal recomendação tem sentido de ser, pois segundo Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicoterapeuta suíço, 95% das pessoas passa 95% de suas vidas de modo inconsciente. Além disso, podemos perceber que em situações extremas não temos clareza de nossos atos ou de nossas reações. Em determinadas situações, é comum ouvirmos as pessoas alegarem que não entendem porque agiram como agiram. Um exemplo clássico pode ser as pessoas que reagem aos assaltos, mesmo tendo sempre sustentado que não se deve reagir. Ou seja, o homem foi, é e talvez sempre seja um mistério; e a primeira demonstração disso é que, apesar de tanta evolução, ainda não conseguimos entender e explicar de onde viemos, quando viemos e porque viemos; até quando ficaremos aqui e para onde iremos, se é que iremos para algum lugar. Alguns filósofos procuraram definir o homem e vejam o que conseguiram: Protágoras de Abdera (480-410 a. C.) dizia que “o homem é a medida de todas as coisas”; Platão (428-347 a. C.) nos deu uma definição bastante estranha “o homem é um bípede implume”; Ludwig Feuerbach (1804-1872) nos lembra que “o homem é aquilo que come”; José Ortega y Gasset (1883-1955) sustentava que “o homem é ele e suas circunstâncias; Para Martin Heidegger (1889-1976) “o homem é um ser para a morte”. Fugindo um pouco à linha dos pensadores temos também um grande poeta que se refere ao ser humano alegando que “somos feito da mesma matéria de nossos sonhos”, estamos nos referindo a William Shakespeare (1564-1616), o qual, possivelmente sinaliza que a nossa essência não se reduz ao aspecto material, mas vai além e se encontra naquilo que temos de mais genuíno, a nossa personalidade, nossos pensamentos, sentimentos, sonhos e projetos. O surgimento da antropologia filosófica U1 10 Porém, a definição clássica nos foi legada por Aristóteles (364-322 a. C.): “o homem é um animal racional”. Além dessa definição, o Estagirita (apelido de Aristóteles) também afirmou que o homem é um animal político, zoon politikon (Πολιτική ζώων). Diante de tudo isso não seria exagero afirmar que o homem é à medida que pensa; ou seja, o homem é aquilo que tem em sua mente. O surgimento da antropologia filosófica U1 11 Seção 1 Surgimento e evolução do homem Prezado(a) leitor(a)! Nessa seção vamos buscar apresentar como o homem chegou onde chegou; as fases pelas quais passou, como a evolução foi acontecendo ao longo de séculos e até milênios e como foi se formando a nossa cultura e o nosso modo de compreender o mundo, bem como as cidades e instituições e os maiores legados e conquistas humanas. Inicialmente é bom lembramos que até chegar ao ponto de definir a si próprio, o homem teve uma longa caminhada desde o seu surgimento. Entende-se que o homem surgiu como tantos outros animais, mas aos poucos e muito lentamente foi evoluindo até chegar ao que hoje conhecemos. O homem é um dos animais mais frágeis – se não o mais frágil – da natureza, no sentido de que não foi dotado de garras e presas, ou força física descomunal para enfrentar os outros animais. Além disso, é muito mais dependente de seus progenitores do que qualquer outro animal. Nossos filhos não sobrevivem por si como os filhotes de tantos outros animais. Porém, paradoxalmente, nós somos os animais que conseguem a maior assimilação de informações e conhecimentos e com isso alcançamos alturas inimagináveis aos outros animais. Vamos tentar entender o ser humano desde a sua origem. Gráfico 1.1 | Do surgimento da terra aos nossos dias Fonte: Arquivo do autor. O surgimento da antropologia filosófica U1 12 É bastante curioso saber que a terra ficou 90% de sua existência sem nenhuma forma de vida sobre ela, nem mesmo a vida unicelular; e que o nosso planeta tem 4,5 bilhões de anos; e a vida unicelular (no fundo do mar) surgiu há 450 milhões de anos. Do surgimento da terra ao desaparecimento dos primeiros répteis, a terra passou por 94,61% do seu tempo. Dos primeiros primatas (Era Mesozoica) aos primeiros prossímios (Paleoceno) 98,57%. Primeiros macacos 99,03%; primeiros símios 99,30%; primeiros hominídeos 99,70%; Homo Sapiens 99,80%. De acordo com a teoria evolucionista, o primeiro ancestral do homem teria surgido por volta de sete milhões de anos atrás, mas somente próximo de cinco milhões de anos começa a surgir uma espécie mais parecida com a nossa. Ainda não era chamado de Homo, mas de Australopithecus (essa palavra significa homem- macaco do sul). Seria, aparentemente, muito parecido com o macaco, porém já era bípede ou ereto. Desde esse tempo até dois milhões de anos atrás, aproximadamente, teria havido uma proliferação de espécies bípedes, a qual ficou conhecida como irradiação adaptativa. Próximo de dois milhões de anos surgiu uma espécie com desenvolvimento cerebral maior, a qual recebeu o nome de Homo Erectus. Várias raças surgiram e desapareceram e apenas uma delas sobreviveu até os dias atuais, a nossa raça, o Homo Sapiens. Segundo estudiosos, nós surgimos muito recentemente se comparados com as demais raças. O Homo Sapiens deve ter surgido entre cem e cento e cinquenta mil anos atrás. Contudo, o Homo sapiens é considerado o ápice da evolução das espécies. Apenas há trinta e cinco mil anos o homem aprendeu a falar e há oito mil anos parou de andar pelo planeta e se tornou sedentário originando as tribos, preferencialmente próximo do mar ou de lagos, onde além da pesca havia também o clima mais ameno. Muito embora o senso comum afirme que descendemos dos macacos, a afirmação mais correta é que temos com o macaco um ancestral comum. Temos diferenças morfológicas e comportamentais muito acentuadas, podendo-se destacar entre elas: (1) O fato de andarmos sobre as duas pernas, devido a modificações em nossa coluna vertebral, pelve, pernas e pés; (2) O cérebro consideravelmente aumentado, com face e mandíbulas mais curtas; (3) Modificações nos dentes e na forma parabólica da arcada dentária; (4) Diferenças estruturais nos braços e nas mãos; e (5) Capacidade de linguagem e de outros comportamentos mais bem elaborados (SOUZA, s/d, p. 14). Para podermos compreender melhor o desenvolvimento humano sob o prisma da aparência, ou da morfologia, consideremos que o cérebro de uma Australopithecus tinha 400 cm³, enquanto o do Homo Habilis tinha de 600 a 700 cm³ e o do Homo Erectus tinha 900 cm³. O nosso cérebro tem 1.350 cm³. E para melhor ilustrar a nossa capacidade cerebral vamos lembrar que nascemos com cerca de 100 bilhões de neurônios, sendo que cada neurônio consegue estabelecer em média 10 mil ligações com os outros neurônios. Cinco meses antes de nascermos já temos praticamente todos os nossos neurônios já formados. O surgimento da antropologia filosófica U1 13 Gráfico 1.2 | Do surgimento da vida (450 milhões de anos) ao surgimento do homem (5,2milhões de anos) Fonte: Arquivo do autor. Curiosamente lugares áridos do continente africano já foram leitos de rios caudalosos. Lagos imensos de outrora, hoje não existem mais, mas deixaram marcas perceptíveis, sobretudo, via satélite. Isso deve ter acontecido ocasionado pela elevação da cordilheira do Himalaia, a qual provocou bloqueio de correntes de ar e muita seca na África. Com as modificações geográficas, as árvores – principal fonte de alimento para nossos ancestrais – diminuíram seu número, as matas foram ficando mais ralas e os hominídeos foram obrigados a descer das árvores e correr de uma mata à outra atrás de alimentos. Entende-se, portanto, que, muito provavelmente, o que levou o homem a desenvolver o hábito de andar sobre as duas pernas foi essa necessidade de deslocamento rápido. Rogério F. de Souza (s/d, p. 15) afirma que: Durante muitas décadas, várias foram as propostas formuladas para tentar explicar a evolução desse modo de locomoção em nossa linguagem ancestral. Uma das mais aceitas era a de que a retração das florestas e o surgimento das savanas, ocorrida devido a mudanças climáticas no leste africano, favoreceu o surgimento dessa forma de locomoção. Por exemplo, Lovejoy em 1981, propôs que o bipedalismo teria permitido que os machos sustentassem as fêmeas nesse ambiente com maior carência de recursos. E, fêmeas bem alimentadas teriam uma prole com maior chance de sobrevivência. Isso implicaria na formação de casais estáveis, sem haver disputa entre os machos para terem acesso às fêmeas. O surgimento da antropologia filosófica U1 14 O autor do texto, Rogério F. de Souza, se refere a Claude Owen Lovejoy (1943), um antropólogo americano bastante conhecido por seus trabalhos sobre o evolucionismo humano, de modo especial às questões relacionadas à locomoção do Australopithecus e as origens do bipedalismo. O artigo referido é A origem do homem, publicado em 1981, na Revista Science. 1.1 A origem das instituições Como tantas outras espécies de animais, também nós, logo que surgimos nos ligamos profundamente à coletividade, ou seja, preferimos (Preferência talvez não seja o termo mais apropriado, pois muitos estudiosos sustentam a vivência em coletividade é uma necessidade; é parte intrínseca da nossa natureza) viver em grupos, pois assim nos tornamos mais fortes, nos sentimos mais seguros, nos alimentamos mais e melhor e conseguimos dar continuidade à nossa espécie através do acasalamento e da procriação. Porém, como todo bando normalmente tem um líder, conosco não foi diferente. Talvez o primeiro critério de liderança tenha sido a força física e assim os homens passaram a ser vistos como os chefes, possivelmente de uma família e depois, com a junção de várias famílias, veio também a liderança de um grupo ou bando. O passo Figura 1.1 | Jericó, considerada a cidade mais antiga do mundo ainda habitada, fundada há 11 mil anos Fonte: Disponível em:<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f6/Jericho.jpg/800px-Jericho.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 15 Os antropólogos entendem que o fato de os homens saírem para a caça acabou por condicionar-lhes a ter uma visão de profundidade mais aguçada, ou seja, o homem procura enxergar mais longe, mais distante; e acabou também por forçar-lhe a ser mais calado, pois um caçador tagarela não teria muito êxito na empreitada. Por outro lado, as mulheres têm visão lateral melhor do que os homens e conversam mais, pois a princípio o barulho servia, inclusive, para afugentar animais que pudessem rondar a habitação. Ao falarmos de datas na escala de milhões de anos, é possível que não tenhamos muita clareza dessa abrangência. Por esse motivo, apresentamos a seguir uma tabela para ajudá-los a ter uma melhor compreensão. Se pudéssemos reduzir toda a idade do nosso universo em um ano, veja como ficaria. Note principalmente quando surge a terra, a vida na terra e o Homo Sapiens. seguinte pode ter sido de modo espontâneo, a divisão das tarefas. Sabe-se que há aproximadamente dez mil anos o homem, ao fixar-se em um determinado território, passou a explorar a agricultura, tarefa delegada às mulheres, pois ficavam em casa, enquanto os homens se dedicavam à caça, um serviço mais perigoso e pesado. Com a possibilidade de boas colheitas, abundância de alimentos e estocagem, surgiu a necessidade de se vigiar os alimentos para que outras tribos não furtassem ou saqueassem; e assim surgiu a classe dos guardiães, ou guerreiros. Ao lado do surgimento dessa classe veio a classe sacerdotal responsável de oferecer culto às divindades pelas farturas recebidas. Resumidamente temos já o surgimento da Política (organizar a vida comunitária e garantir segurança militar) e da Religião (apresentar as oferendas aos deuses e cultuá-los). O passo seguinte à organização social será a elaboração de leis e decretos de modo a evitar conflitos violentos. Claude Lévi-Strauss (1908-2009), filósofo e antropólogo estruturalista francês, ao referir-se ao ser humano, disse: “esse homem que está nesse planeta há dois minutos, não ficará mais dois”. Se reduzirmos a idade do universo em um ano, a nossa raça surgiu há apenas dois minutos. Esses dois minutos representam 100 mil anos, aproximadamente. Quanto tempo você acha que ainda ficaremos nesse planeta? E como estaremos daqui a milhares de anos? O surgimento da antropologia filosófica U1 16 Quadro 1.1 | Compressão da história do universo em um ano terrestre DIA E HORA FATO 1 jan. (0h) Criação do universo 8 maio Via Láctea 1 out. Terra 29 out. Vida 21 dez. Peixes 24 dez. Anfíbios 26 dez. Répteis 28 dez. (8h) Mamíferos 28 dez. (18h) Aves 31 dez. (17h27min) Ramapithecus 31 dez. (22h7min) Australopithecus afarensis 31 dez. (22h41min) Australopithecus africanus 31 dez. (23h7min) Homo habilis 31 dez. (23h27min) Homo erectus 31 dez. (23h55min) Homo sapiens neanderthalensis 31 dez. (23h58min) Homo sapiens sapiens 31 dez. (23h59min e 13 segundos) Homem na América 31 dez. (23h59min e 54 segundos) Abraão 31 dez. (23h59min e 56,9 segundos) Jesus Cristo 31 dez. (23h59min e 58,9 segundos) Francisco de Assis 31 dez. (23h59min e 59,2 segundos) Descobrimento do Brasil 31 dez. (23h59min e 59,69 segundos) Revolução Francesa 31 dez. (23h59min e 59,74 segundos) Independência do Brasil 31 dez. (23h59min e 59,80 segundos) Darwin e a “Origem das espécies” 31 dez. (23h59min e 59,85 segundos) Proclamação da República no Brasil 31 dez. (23h59min e 59,92 segundos) Revolução Russa 31 dez. (23h59min e 59,96 segundos) Brasília 31 dez. (24h) Hoje TEMPO REAL TEMPO COMPRIMIDO 20 bilhões/anos 1 ano 1,67 bilhão/anos 1 mês 1 bilhão/anos 18 dias e 6 horas 55,55 milhões/anos 1 dia 2,31 milhões/anos 1 hora 1 milhão/anos 26 minutos 17segundos 38580 anos 1 minuto O surgimento da antropologia filosófica U1 17 Fonte: FREIRE-MAIA, Newton. Criação e evolução. Deus, o acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1986. 1000 anos 1 segundo 58 centésimos 643 anos 1 segundo 100 anos 106 centésimos de segundo Esse quadro se encontra no livro Criação e Evolução (Veja mais informações nas referências). Esclarecemos que o autor toma por base que o Big Bang, a origem do universo, tenha ocorrido há 20 bilhões de anos, mas uma das datas mais comumente aceita é de 13,7 bilhões de anos. Prezado estudante! A nossa pretensão, com essa breve reflexão acerca do surgimento da nossa espécie, foi apenas a de situar o ser humano dentro de um contexto racional e evolutivo, bem como nos apercebermos como mais uma espécie dentro de tantas que a natureza propiciou. Deste modo, talvez fique mais claro o quanto o homem é fruto de construções sociais e visões de mundo construídas com bases em situações contextualizadas de modo histórico, social, cultural, econômico, religioso etc. Muitas foram as espécies humanas que passaram por este planeta, mas apenas a nossa subsiste. O biólogo e paleontólogo americano StephenJay Gould (1941-2002) afirmou que 99% das espécies que passaram por esse planeta foram extintas. Ou seja, todas as mais diversas formas de vida que temos hoje em dia representam apenas 1% de tudo o que já existiu. 1. Costuma-se admitir que o continente africano é o berço da raça humana, mas por questões adversas o homem se viu obrigado a abandonar aquele continente. Entre essas condições, podemos citar: a) Grandes inundações com devastação total das plantações. b) Pestes advindas da convivência com animais venenosos. c) Mudanças climáticas e diminuição de árvores, matas e florestas. d) A violência provocada pelos conflitos entre as tribos rivais. 2. Entende-se que homens e mulheres começaram a dividir suas tarefas desde há muito tempo e que essa divisão teria sido elementar na formação dos traços característicos que distinguirão a personalidade masculina da personalidade feminina. O surgimento da antropologia filosófica U1 18 Considere: I – Por ter de afugentar as feras que rondavam as casas, as mulheres se tornaram mais violentas. II – Por ter de primar pela acuidade visual ao sair para caçar o homem desenvolveu maior visão de profundidade. III – Por não poder afugentar a caça o homem tornou-se mais recolhido e calado. IV – Por ter de cuidar dos arredores da casa a mulher adquiriu mulher visão lateral. Estão corretas apenas as alternativas: a) I, II e III. b) II, III e IV. c) I, II e IV. d) I, III e IV. O surgimento da antropologia filosófica U1 19 Seção 2 Antropologia antiga e medieval Comumente se entende que o conhecimento do modo como se encontra estruturado atualmente, deve ter tido o seu início na Grécia antiga com os filósofos pré-socráticos, os Jônicos, ou Milésios: Tales de Mileto (625-558 a. C.), Anaximandro de Mileto (610-547 a. C.) e Anaxímenes de Mileto (585-528 a.C.). Eles também ficaram conhecidos como físicos, fisicistas ou naturalistas, em virtude de sua busca por um possível elemento natural (arquê, ou arché) que teria dado origem a tudo o que existe. Apenas após cento e vinte anos, aproximadamente, do início da reflexão sobre o mundo, foi que um grupo chamado de sofistas, começou a se preocupar com a temática relacionada ao ser humano. Justiça seja feita! Muito embora, os sofistas não sejam bem vistos pela grande maioria dos filósofos, ainda assim devemos reconhecer que a antropologia tem seu início com eles. Na visão dos sofistas fazia mais sentido refletir sobre o homem, sua existência, seus desafios e, sobretudo, a possibilidade de se alcançar ou não a felicidade, do que refletir sobre a origem do mundo. Para os sofistas a felicidade humana ocorreria caso o homem conseguisse desfrutar dos prazeres ao máximo, ter muita riqueza e poder sobre os demais. Sócrates iniciou os seus estudos com os sofistas, porém acabou discordando desta afirmação, pois segundo ele havia pessoas que tinham, ou desfrutavam, de prazer, poder e riqueza e mesmo assim não eram felizes. Portanto, segundo Sócrates, a felicidade não seria necessariamente garantida pela aquisição dos bens propostos pelos sofistas. Podemos até admitir que seja mais fácil ser feliz tendo prazer, poder e riqueza; contudo, é possível ter tudo isso e não ser feliz. Por vezes, parece que a felicidade está mais vinculada às questões internas do que às questões externas. Tente refletir profunda e criticamente sobre o que lhe faz feliz e analise o motivo. Antes, porém, saiba que felicidade não é o mesmo que alegria. Felicidade pode ser entendida como viver bem e gostar de viver, mesmo que não estejamos alegres em alguns momentos. Uma pessoa triste pode ser feliz e uma pessoa alegre pode ser infeliz, pois alegria e tristeza são momentâneas. O surgimento da antropologia filosófica U1 20 A partir de então Sócrates rompe com os sofistas e passa a estudar com outro filósofo chamado Anaxágoras de Clazômena (500-428 a.C.). A ruptura não significou distanciamento e frequentemente Sócrates e os sofistas acabaram conversando e discordando sobre alguns pontos. A discordância foi tanta que os sofistas entraram pejorativamente para a história, chegando até mesmo a serem conhecidos como pseudofilósofos, ou, falsos filósofos. Vale lembrar que a palavra sofista se origina da palavra sophos (σοφός), que em grego significa sábio e que os próprios sofistas se autodenominavam sábios, numa atitude, possivelmente de arrogância. Daí talvez o fato de terem angariados muitos adversários, com destaque para Sócrates e, principalmente, Platão. Uma das frases mais conhecidas dos sofistas, pronunciada por Protágoras de Abdera, conforme já assinalamos, é “o homem é a medida de todas as coisas”. Porém, Sócrates entendia que as coisas tinham a sua essência, a sua razão de ser, e que nem tudo era definido conforme determinações humanas; pois se o homem fosse a medida de todas as coisas, então nada seria medida para o homem e aqui surgiriam problemas relacionados à ética, às leis e à verdade. Essa é a postura conhecida como relativismo, ou seja, tudo é relativo ao homem. Via de regra, os filósofos são contra o relativismo. 2.1 SÓCRATES E A PSIQUE, O LOGOS Segundo Sócrates, tudo o que existe tem a sua razão de ser, de existir, ou seja, tem a sua essência (a palavra “essência” vem de essere, que em língua latina significa ser), e a essência do homem é a sua alma, que em grego se diz psique (ψυχή). E a alma, para ele é a razão (a consciência), que em grego se diz logos (λόγος). A busca do bem, do belo e do verdadeiro, segundo Sócrates, seria a essência da alma, ou a razão de ser, o motivo de sermos possuidores de pensamento, de consciência. O motivo pelo qual estamos nesse mundo, a razão de vivermos, para Sócrates, era para vivermos bem (sermos felizes), desfrutando das coisas boas, belas e verdadeiras. Sócrates acreditava e afirmava que quem conhece o bem, pratica-o e que só age mal, quem ignora o bem. Essa tese é conhecida como racionalismo ético, ou intelectualismo moral. O homem que conhece o bem pratica o bem, busca a virtude. A virtude é a excelência e a excelência é a concretização daquilo que algo, ou alguém, é essencialmente (para conhecermos a essência de alguma coisa, devemos perguntar: “por que isso existe?”). Uma borracha, por exemplo, tem a virtude se excelentemente apaga, ou apaga bem; um ventilador se ventila bem; um avião se voa bem. Portanto, ser excelente é desempenhar bem a própria essência, a razão de ser. E o ser humano, quando é virtuoso, quando tem a excelência? Quando supera a A essência (razão de ser) do homem é... ... a psique (alma: logos, razão, consciência). A essência (razão de ser) da alma é... ... a busca do bem, do belo e do verdadeiro. O surgimento da antropologia filosófica U1 21 ignorância, tem autodomínio, autonomia e é feliz, através do uso da razão. Segundo Sócrates, “não é das riquezas que nascem as virtudes, mas das virtudes nasce a riqueza”. (PESSANHA, 1999, p. 57). As virtudes da alma se manifestam na força, no autocontrole, ou autodomínio, “no domínio de si mesmo nos estados de prazer, dor e cansaço, no urgir das paixões e dos impulsos” (REALE, 1990, p. 91). A saúde da psique, da alma, é a sua ordem. O ignorante é injusto, o injusto é malvado e o malvado é infeliz. Trata-se de fazer a racionalidade prevalecer sobre a animalidade, tornar a alma senhora do corpo. Somente quando age desta maneira o homem estaria, segundo Sócrates, sendo verdadeiramente livre e feliz. Sócrates foi acusado por Meleto, Ânito e Lícon, de corromper a juventude e não cultuar os deuses da cidade, ou seja, o crime político-social da impiedade. Depois de condenado, Sócrates ficou um mês na prisão esperando a morte e numa madrugada foi acordado por Críton, um discípulo rico que, após subornar os guardas, o incitava a fugir. Mesmo tendo sido injustamente condenado ele se recusou a fugir, alegando que não conseguiria conviver com a consciência de ter agido mal. A execução da pena foi tomar, pelas próprias mãos, um veneno chamadocicuta, extraído da raiz de uma planta nativa da bacia mediterrânica, que vai paralisando o corpo das extremidades ao coração. Tomou o copo de cicuta (a condenação ao autoenvenenamento era para ampliar o sofrimento psicológico da pena) na presença de grande parte de seus discípulos e, com a mesma lucidez com que tinha vivido, morreu. Antes de morrer, porém, deixou para os seus discípulos um consolo e para os acusadores uma dúvida, conforme relata Platão: "E agora chegou a hora de nós irmos, eu para morte e vocês para vida, quem de nós fica com a melhor parte ninguém sabe, exceto o Deus". Figura 1.2 | A morte de Sócrates, quadro de 1787 Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9b/Socrates-1-.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 22 Há pessoas, inclusive, que buscam traçar um paralelo entre Sócrates e Jesus Cristo, lembrando que ambos sofreram morte injusta, ambos não deixaram nada por escrito e nos últimos momentos de vida dos dois aparece a figura de um animal, o galo. Quando Pedro disse que seguiria Jesus por onde ele fosse, Jesus respondeu “antes que o galo cante, você já terá me negado três vezes”. E quando Sócrates se preparava para tomar o veneno fez um pedido: “Críton, antes que eu me esqueça, devo um galo no Templo de Asclépio, por favor, pague essa promessa, pois não quero morrer em dívida com os deuses”. 2.2 Platão: o homem, corpo e alma acidental Uma das características mais marcantes do pensamento platônico é o dualismo e dentro dessa perspectiva a sua concepção de homem também aparece de modo dual. Para ele o homem não seria uma unidade, mas uma dualidade psicossomática (psique, alma; soma [σώμα], corpo). Corpo e alma não precisariam necessariamente estar juntos. Tanto não precisavam que não estavam antes do nosso nascimento. Para Platão a alma vivia livre no Hiperurânio (ou mundo das ideias), e momentos antes do nascimento, por intermédio do Demiurgo (o deus que plasma a humanidade) a junção é feita. A alma desce do Hiperurânio, passa pelo Rio Lethes (em grego λήθη significa - esquecimento) toma a água desse rio e se une ao corpo depois de ter esquecido tudo o que contemplou no mundo das ideias. A união do corpo com a alma é acidental, ou seja, por acaso, pois a alma não necessita do corpo; sobrevive sem ele. A alma é a essência do homem; é ela que dá movimento ao homem (movimento, em linguagem filosófica significa movimento interno, ou seja, crescimento, mudança, transformação). O corpo é apenas o receptáculo da alma e a ela devedor de sua vida, da sua animosidade; ele é a sua tumba, o cárcere da alma, o lugar onde ela cumpre suas penas. Figura 1.3 | Busto de Platão Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/ZfuLt7>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 23 Platão trata da questão da alma em diversas obras, mas entre elas se destacam o Timeu, onde se aborda a criação do mundo e o Fédon, em que ele expõe a sua teoria sobre a imortalidade da alma. Inicialmente apenas a alma existia, no mundo das ideias, no Hiperurânio. E, então, Demiurgo delegou aos deuses menores a criação do corpo, dizendo: “Filhos dos deuses de quem sou o autor [...] escutai o que minhas palavras ensinar-vos-ão [...] aplicai-vos, conforme a vossa natureza, a fabricar seres vivos [...] adicionando a esta parte imortal uma parte mortal, fabricai viventes, fazei-os nascer, dai-lhes sustento, fazei-os crescer, e quanto perecerem recebei-os de novo junto a vós”. E mais adiante o Demiurgo ordenou: “que as almas sejam pela ação da necessidade, implantadas nos corpos”. (MACHADO, 2013, p. 12). Platão afirma que o verdadeiro filósofo trabalha durante toda a sua vida, na preparação da sua morte, pois fundamentalmente somos a nossa alma, porém ela está presa ao corpo, assim que o corpo morre a alma se liberta. “O corpo é raiz de todo mal, fonte de amores insensatos, de paixões, inimizades, discórdias, ignorância e loucura. E tudo isso representa precisamente fatores de morte para a alma”. (REALE, 1990, p. 154). As características do corpo são materialidade, mutabilidade, corruptibilidade e mortalidade (corrupção, ou corruptibilidade, tem o sentido de envelhecer, degenerar); enquanto as características da alma são espiritualidade, imutabilidade, incorruptibilidade e imortalidade. Na alma reside a racionalidade e por isso ela deseja as realidades divinas enquanto o corpo é a sede dos desejos, instintos e paixões. “Contudo, a alma poderá, segundo a doutrina pitagórica assumida por Platão, tanto esquecer-se de sua origem divina e apegar-se aos bens corporais, quanto desprezar o corpo e sujeitar-se às purificações ascéticas”. (MACHADO, 2013, p. 12). Por entender a alma como a causa do movimento (aquilo que nos leva a fazer algo), Platão acaba por defender que o homem possui três almas. E ele vai além, diz onde cada uma dessas almas se encontra em nossos corpos. Na cabeça se encontra a alma racional, cuja tarefa (usamos o termo tarefa para que a linguagem fique mais próxima da usual, mas Platão usa o termo virtude) é levar-nos a agir pela razão, ou como dizemos hoje em dia, não nos deixar fazer loucuras, fazer apenas aquilo que é correto e permitido. Em nosso tórax se encontra a alma irascível, ou colérica (aquela que sente cólera ou ira), cuja tarefa é nos dar coragem (coragem mais no sentido de determinação, firmeza de propósito, dominar o impulso). E no abdômen fica a alma concupiscível ou, desejante cuja tarefa é nos permitir a temperança (não cometer excessos, dominar os desejos). O surgimento da antropologia filosófica U1 24 Um homem justo é aquele que tem as três almas em harmonia sob o comando da racional. A alma racional não pode se deixar dominar pelas outras duas, mas ao contrário, deve dominá-las. Além de cada alma ter a sua tarefa, cada uma delas também tem um metal próprio. O metal da alma racional é o ouro, da alma irascível é a prata e da alma concupiscível é o bronze. Nos homens sábios prevalece a alma de ouro; os guerreiros possuem a alma de prata de modo mais destacado, e nos trabalhadores prevalece a alma de bronze. Para Platão o comportamento humano se origina de três fontes: desejo, emoção e conhecimento. O desejo nasce do baixo-ventre, a emoção surge do coração e o conhecimento tem sua sede na cabeça. Enquanto certos homens não passam da personificação do desejo, existem outros que são templos de sentimento e coragem e, por último, uns poucos que se deliciam com a meditação e a compreensão, estes são os homens de sabedoria. Notem que até hoje pensamos como Platão nos ensinou. Em linhas gerais, as questões que julgamos mais importantes acerca da compreensão que Platão tinha do homem estão relatadas nestas breves ideias. Falando alegoricamente da alma, no Fedro Platão apresenta o mito da biga alada, na qual o cocheiro tenta controlar dois cavalos alados que a puxam. Um deles bom e o outro é mau, e este puxa a biga para baixo. O cocheiro é a alma racional (nous, logos), imortal, inteligente, de natureza divina. O cavalo bom é a alma irascível (Thymós), fonte das paixões nobres, mortal por ser inseparável do corpo e situa-se no tórax. O cavalo mau e a alma apetitiva (Epithymia), fonte de paixões pouco nobres, mortal também e situa-se no abdômen. A peleja entre os dois cavalos faz que algumas almas consigam contemplar o Ser e outras não. No auge da disputa, as asas dos cavalos se quebram e eles caem sobre a Terra. Nem todas as almas caem, algumas continuam a viver na presença dos deuses. (MACHADO, 2013, p. 13). Estudos indicam que Platão já havia percebido que o nosso cérebro tem dois hemisférios. Ele não se referia a hemisférios, apenas dizia que nós temos dois cérebros aos quais ele chamou de logistikon (racional) e nous (intuitivo). Estudiosos entendem que as pessoas que têm mais afinidade com disciplinas exatas utilizam o lado esquerdo do cérebro (o nous) e quem tem verve artísticautiliza o lado direito (o logistikon). O surgimento da antropologia filosófica U1 25 Como já assinalamos, Aristóteles nos fornece a definição de homem que acabou se tornando clássica: o homem é um animal racional. Contudo, é bom lembrar que ele também acabou por afirmar que o homem é um animal político, no sentido da dependência humana, bem como da mais plena realização do ser humano dentro de um espaço coletivo. O homem depende de seus pais para se alimentar, para andar, para aprender a falar e, enfim, para aprender praticamente tudo. Nós somos aquilo que a educação faz de cada um de nós. Para Aristóteles o homem não era união acidental de corpo e alma, mas união essencial, sendo o corpo a matéria e a alma a forma. Ao tratar da questão da alma, Aristóteles estabelece um vínculo entre a alma e o intelecto, ou seja, para ele a alma é a enteléquia, forma primordial de um corpo que possui vida em potência (pode possuir vida). A alma é a essência do corpo, enquanto o intelecto é algo divino que existe antes e depois do corpo, (ARISTÓTELES, 2001, p. 17). A alma é a sede do movimento. Em De anima ele diz: “na eventualidade de ser, por conseguinte, necessária uma definição geral a ser aplicada a toda a espécie de alma, podemos nós afirmar que é ela a enteléquia primeira de um corpo natural orgânico” (Ibidem, p. 52). 2.3 Aristóteles, o homem é unidade Figura 1.4 | Platão e Aristóteles em detalhe do quadro Escola de Atenas, de Rafael Sanzio, de 1509. Fonte: Disponível em: <http://www.scaruffi.com/museums/raphael/raph6.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. A enteléquia é, em outras palavras, a realização plena e completa dessa essência, potencialidade ou finalidade natural primeira, um processo transformativo em curso em qualquer um dos seres vivos do universo e que, no ser humano, eleva-se à condição volitiva, emocional, política, pensante, cognitiva ou racional, num exercício atual da própria racionalidade, isto é, a reflexão, a consciência do conhecimento. (MACHADO, 2013, p. 18). O surgimento da antropologia filosófica U1 26 Aristóteles é considerado o fundador da psicologia (MONDIN, 1982, p. 99) e, embora não encontremos nele os dois grandes problemas da psicologia da época: a liberdade do arbítrio e a imortalidade da alma, ele enfatiza, pela primeira vez, a força do hábito, sendo chamado de “segunda natureza”. “Ele distingue três níveis na alma, [...] a alma vegetativa (função de alimentação e reprodução), a alma animal (função de percepção e movimento) e a alma pensante ou intelectiva, da qual somente o homem participa” (HELFERICH, 2006, p. 48). Enfim, para Aristóteles, o princípio da vida é a alma, é ela que dá vida ao corpo. Após a morte de Aristóteles em 322 a.C., a filosofia se difundiu pelo mundo chegando até ao Império Romano. Contudo, o que ela ganhou em extensão perdeu em profundidade e limitou-se a tratar, quase que exclusivamente, da questão da felicidade. Estamos falando do período que ficou conhecido como Helenismo. É nesse contexto que surge uma nova maneira de compreender o mundo, o Cristianismo. Embora o Cristianismo não seja apenas uma filosofia, ele é também uma filosofia e como tal carrega muito das visões de mundo com as quais se defrontou. Entre elas estão, sobretudo, o Estoicismo e o Neoplatonismo. O grande responsável pela síntese entre religião cristã e filosofia foi Agostinho de Hipona (354-430). Embora muita gente entenda que, desde a morte de Cristo, o cristianismo tenha se difundido pelo mundo, essa visão não é bem verdadeira. Inicialmente os cristãos foram perseguidos e somente no ano 313 tiveram liberdade de culto. No ano 325 foi feito o primeiro concílio e começou- se a elaborar o credo; e no ano 390, o Imperador Teodósio, com o Edito de Tessalônica, tornou o cristianismo religião oficial do Império. Portanto, poderíamos dizer que a Igreja Católica foi soberana na Europa desde o ano 400 até ao 1.400, aproximadamente; pois a partir daí começaram as fragmentações política, religiosa 2.4 O homem segundo a visão cristã Figura 1.5 | Pietá de Michelangelo Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/thumb/8/8a/Michelangelo%27s_Pieta_5450_cropncleaned. jpg/640px-Michelangelo%27s_Pieta_5450_cropncleaned.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 27 e científica. A visão antiga de homem era essencialmente cosmocêntrica, pois via o homem dentro de um universo mais abrangente, como uma peça de uma engrenagem maior. Já a visão cristã, ou medieval, vê o homem dentro de uma perspectiva teocêntrica, ou seja, o homem é compreendido e definido a partir da sua essência: ser filho de Deus. Essa visão também é chamada de essencialista. A visão cristã é influenciada pelo platonismo e, por isso, também apresenta o homem como constituído de corpo e alma, sendo que a alma sobrevive à morte do corpo. Ou seja, o cristianismo defende a imortalidade da alma. Mais do que isso, por influência do judaísmo (para o judaísmo o homem era uma unidade, corpo e alma; não se concebia o homem separado do corpo), o cristianismo vai além da imortalidade da alma e prega a ressurreição do corpo, ou ressurreição da carne. Embora não seja o corpo como conhecemos, mas um corpo transformado, como nos relata a primeira carta aos Coríntios (15, 42ss) onde Paulo de Tarso afirma que: Ao nos apresentar esse texto a Bíblia de Jerusalém (1985, p. 2170) traz uma nota de rodapé onde busca esclarecer que: O mesmo acontece com a ressurreição dos mortos: o corpo é semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível; é semeado desprezível, mas ressuscita glorioso; semeado na fraqueza, mas ressuscita cheio de força; é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. [...] Eu lhes digo, irmãos, que a carne e o sangue não podem receber em herança o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Vou dar a conhecer a vocês um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final. Sim, a trombeta tocará e os mortos ressurgirão incorruptíveis; e nós seremos transformados. De fato, é necessário que este ser corruptível seja revestido da incorruptibilidade, e que este ser mortal seja revestido da imortalidade. Para Paulo, como para a tradição bíblica, a psyché é o princípio vital que anima o corpo humano. É a “vida” do corpo, a alma viva do corpo. A mesma palavra pode designar o homem inteiro. A psyché, porém, fica sendo um princípio de vida natural que deve apagar-se diante do pneuma, para que o homem encontre de novo a vida divina. Esta substituição, que se inicia já durante a vida O surgimento da antropologia filosófica U1 28 mortal pelo dom do Espírito, atinge a sua plenitude após a morte. Ao passo que a filosofia grega só professava a sobrevivência imortal da alma superior (nous), liberta do corpo, o cristianismo concebe a imortalidade estritamente como restauração integral do homem, ou seja, como ressurreição dos corpos pelo Espírito (grifo nosso), princípio divino que Deus retirou do homem em consequência do pecado e que lhe devolve pela união ao Cristo ressuscitado, homem celeste e Espírito vivificante. De “psíquico” o corpo se tornará então “pneumático”, incorruptível, imortal glorioso, liberto das leis da matéria terrestre e das suas aparências. Em sentido mais amplo, a psyché pode designar, por oposição ao corpo, a sede da vida moral e dos sentimentos, e até mesmo a alma espiritual e imortal. É claro que aqui estamos num universo linguístico que pressupõe uma análise mais apurada dos termos, supõe uma hermenêutica teológica. A linguagem bíblica possui uma chave de interpretação própria e, por que não dizer, complexa. Um dos primeiros intérpretes dessa linguagem foi Agostinho de Hipona, filósofo antigo que foi maniqueísta e, posteriormente, neoplatônico, tendo se tornado adepto do cristianismo e grande estudioso de suas ideias adaptando-asà filosofia grega. No livro Confissões, possivelmente a sua obra mais conhecida, Agostinho diz que o ser humano é um “grande abismo” e um “grande problema” a se descobrir, um “grande mistério” (Confissões, IV, 14). Na tentativa de resolver essa questão, ele se vale muito de toda a sua formação intelectual e aproveita elementos das Figura 1.6 | Santo Agostinho em óleo na madeira, no Museu do Louvre Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/thumb/5/59/Giusto_di_Gand_%28Joos_van_ Wassenhove%29%2C_sant%27agostino.jpg/640px-Giusto_di_ Gand_%28Joos_van_Wassenhove%29%2C_sant%27agostino. jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. 2.5 A contribuição de Agostinho de Hipona O surgimento da antropologia filosófica U1 29 mais diversas correntes filosóficas que conheceu. Agostinho percebe que o homem é um mistério, pois não se conhece a si próprio. Uma frase bem representativa dessa mentalidade pode ser encontrada no livro A verdadeira Religião (§ 39), onde ele afirma: “Não saia fora, entra dentro de ti; a verdade mora no interior do homem”. Platão havia estabelecido na obra Alcebíades: “O homem é uma alma que se serve de um corpo”. Mas é preciso lembrar que o homem cristão não podia compartilhar da visão dualista de Platão e assim a visão de homem também deveria ser purificada de qualquer dualismo, pois para o cristianismo o homem é uma unidade. E essa foi a tarefa que Agostinho assumiu pra si. O argumento usado por Agostinho vai partir da ideia de Verdade Eterna. Diz ele (Solilóquios, II, C13): Agostinho morreu sem ter contato com as obras de Aristóteles e talvez por isso seja um platônico. O que não significa dizer que o simples contato com as obras de Aristóteles fosse suficiente para ele se tornasse aristotélico, pois ele poderia não concordar com o Estagirita. As obras de Aristóteles, exceto uma delas chamada Organon (ou Analíticos, em latim), não eram conhecidas na Europa até aproximadamente o ano de 1200, pois tais obras eram posse dos árabes. Ao ocuparem a Europa, os árabes também trouxeram os livros de Aristóteles e um dos maiores nomes da Universidade de Paris, Tomás de Aquino (1225-1274), ao conhecê-las fez com elas o mesmo que Agostinho havia feito com Platão, cristianizou-as. Dentro da reflexão antropológica, e mais especificamente na questão de corpo e alma; vida, morte e ressurreição, Tomás de Aquino vai tomar por base a ideia de que o homem possui um desejo natural de sobrevivência (ressurreição) e de não morrer jamais (imortalidade da alma). Diz ele que o homem naturalmente anseia por perdurar perpetuamente e que é impossível que uma tendência natural seja vã (Summa Contra Gentiles, II, C79). Em suma, para a antropologia medieval o homem é, por essência, um filho de Deus; e a sua existência tem por finalidade cumprir com tal essência. O homem é um A alma, no conhecimento intelectivo, atinge a verdade. Ora, enquanto sede da verdade, a alma é imortal, da mesma forma que aquela. Com efeito, se o que se encontra num sujeito é eternamente duradouro, é necessário que o próprio sujeito seja eternamente duradouro. Mas, visto que cada ciência reside sempre num sujeito, é preciso que a alma dure para sempre. Dado que a ciência é verdade, e a verdade dura para sempre a alma também dura para sempre, nem se poderá nunca dizer que ela morre (HIPONA, s/d, 103). O surgimento da antropologia filosófica U1 30 composto de corpo e alma e, além da imortalidade da alma, surge também a ideia de ressurreição do corpo. O homem que vive segundo as leis divinas ressuscita no céu, quem se distancia destas leis, perecerá no inferno. 1. Sócrates foi tão importante para a filosofia que acabou por receber o título de pai da filosofia; além disso, também dividiu a filosofia da sua época e aqueles que o antecederam passaram a ser conhecidos como pré-socráticos. A respeito de Sócrates é correto afirmar que: a) Foi condenado à morte por não cultuar os deuses da cidade e corromper a juventude. b) Afirmava que as virtudes nascem das riquezas, mas as riquezas não nascem das virtudes. c) Concordava com os sofistas quanto à afirmação de que o homem é a medida de todas as coisas. d) Combatia o racionalismo ético, pois dizia que para praticar o bem, não era suficiente que o homem o conhecesse. 2. A reflexão antropológica existe desde a antiguidade, porém em alguns momentos ela esteve mais presente e em outros ela esteve mais ausente. Além disso, nem sempre houve concordância acerca da essência do ser humano. Considere: I – Max Scheler aponta a essência humana mais vinculada ao aspecto espiritual do que ao orgânico. II – Platão e Aristóteles tinham a mesma visão de homem, ou seja, o homem tinha natureza dual, corpo e alma, unidos acidentalmente. III – Para os existencialistas o que mais importa é a vida humana com os seus desafios. IV – Para o cristianismo o homem já nasce com a sua essência definida; o homem é um filho de Deus. Estão corretas apenas as alternativas: a) I, II e III. b) II, III e IV. c) I, II e IV. d) I, III e IV. O surgimento da antropologia filosófica U1 31 Seção 3 Antropologia moderna e contemporânea Nesta sessão buscaremos deixar claro que o pensamento antigo passou por uma revolução substancial no tocante ao modo como o homem e a sociedade eram vistos até então. Na antiguidade, se dava muita importância à coletividade, à polis; e na modernidade, o sujeito começa a ser valorizado por si, independentemente de sua pertença ou não a uma comunidade. Na modernidade, portanto, surge, com muita ênfase a valorização da subjetividade, ou seja, leva-se em conta o indivíduo com suas conquistas, alegrias, tristezas, projetos etc. Na filosofia moderna o problema antropológico não é necessariamente o assunto que mais aparece na pauta das discussões; o problema filosófico mais pertinente à filosofia moderna é a questão do conhecimento. Logicamente, que mesmo assim existem compreensões antropológicas subjacentes a estas visões de mundo. Para os antigos o valor do ser humano estava atrelado ao seu pertencimento a uma comunidade, a uma polis. O homem, em si, isolado, não tinha tanto valor; quem tinha valor era o cidadão, principalmente, o cidadão virtuoso, ou seja, aquele que conhecia o seu papel dentro da polis e o desempenhava com excelência. Na Idade Média, o homem tinha o Figura 1.7 | Retrato de Descartes Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/thumb/7/73/Frans_Hals_-_Portret_van_ Ren%C3%A9_Descartes.jpg/640px-Frans_Hals_-_Portret_van_ Ren%C3%A9_Descartes.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2015. 3.1 Subjetividade e existencialismo O surgimento da antropologia filosófica U1 32 seu valor por ser um filho de Deus e pertencer a uma comunidade específica, a Igreja. Na Idade Moderna, como o papel da Igreja passa a ser questionado, principalmente por defender ideias incompatíveis com a ciência nascente (ciência experimental), o valor do homem também não é mais atribuído de acordo com o seu pertencimento à Igreja, mas pelo simples fato de ter nascido. Ideia conhecida como jusnaturalismo: nascer com direitos. Essa contribuição nos foi legada principalmente pelos filósofos políticos Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Estava aberto o caminho para a subjetividade e para a valorização do indivíduo. Mas, certamente, uma das contribuições mais significativas e originais dada à antropologia, foi a de Descartes (1596-1650) o qual, na esteira do humanismo renascentista, deu uma guinada no paradigma da racionalidade indo da visão teocêntrica à visão antropocêntrica de um modo bastante perspicaz (talvez para não arranjar encrencas com as autoridades eclesiásticas), pois colocou o “eu pensante” como primeira certeza indubitável, o seu famoso cogito ergo sum (penso, logo existo).Deus, para Descartes, passa a ser a segunda verdade, res infinita. Estava sendo dado o pontapé inicial para o enfoque na subjetividade,no sujeito pensante. Embora Descartes colocasse Deus como segunda verdade, ele foi muito cauteloso e, aparentemente, manteve-se crente em Deus. É difícil dizer se isso ocorreu por convicção ou por medo, haja vista que ele teve conhecimento das retaliações que a Igreja impôs a Galileu Galilei. Certamente Descartes também não queria que seus livros entrassem no index, pois isso poderia significar limitações à divulgação do seu pensamento. Outra figura marcadamente relevante nessa área, e de mente prodigiosa, será Blaise Pascal (1623- 1662). De saúde frágil e vida breve, deixou bem claro que a grandeza do homem está no seu pensamento. Diz Figura 1.8 | Estátua de Blaise Fonte: Disponível em:<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/thumb/1/1d/Pascal_Pajou_Louvre_RF2981. jpg/640px-Pascal_Pajou_Louvre_RF2981.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 33 ele que o homem é um caniço, mas um caniço pensante. Por mais insignificante e frágil que o homem seja, se comparado à imensidão do universo, o homem é maior do que qualquer astro cósmico, pois é o único que tem consciência da sua existência. Só o homem conhece e sabe o que está acontecendo com ele, enquanto o universo todo não tem consciência de si. Esses dois grandes pensadores darão início a uma nova visão de homem que será levada adiante por tantos outros pensadores. Dentre tais pensadores, iremos fazer um recorte do pensamento de Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), um dos precursores da corrente existencialista, o qual passará a dar ênfase à vida concreta do homem, suas alegrias e tristezas, dores e prazeres, angústias e sonhos, etc. Cremos ser interessante conhecer um pouco do pensamento de Kierkegaard para melhor entendermos os pensadores que virão na sequência e a ênfase que passa a ser dada à questão antropológica. No final de 1842, Kierkegaard escreveu Ou isso ou aquilo: um fragmento de vida, onde afirmou que o homem se define por sua existência: existir é adotar uma atitude fundamental em relação a si mesmo, a seu ser e aos outros. Nesta obra ele dividiu a existência humana em três estágios: ético, estético e religioso. Segundo ele, o homem tem de escolher entre os dois primeiros estilos, ou escolhe isso: o ético, ou escolhe aquilo: o estético, daí o título da referida obra. Quem escolhe a forma estética de viver, vive para si mesmo, busca o próprio prazer, não tem o controle da sua existência, vive o momento, podendo ter uma vida contraditória, instável e incerta; se apoia no mundo externo, em coisas que estão fora do controle de sua vontade (como poder, posses e até mesmo a amizade); é contingente, dependente do “acidental” e não há nada de “necessário” nele. Sobre sua existência faltam certeza e significado e esta percepção normalmente leva ao desespero, sendo que este 3.2 Kierkegaard e o homem angustiado Figura 1.9 | Estátua de Kierkegaard em Copenhague, Dinamarca Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/f/ff/S%C3%B8ren-Kirkegaard- Statue.jpeg>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 34 desespero pode ser ignorado ou reprimido. (Esse era o modo como Kierkegaard vivera na juventude, portanto, escreve a partir da própria experiência). Kierkegaard havia percebido que não somos responsáveis por nossas vidas e sim meros joguetes nas mãos do destino, vivemos de possibilidades as quais podem realizar-se ou não, tanto elas podem trazer sucesso e felicidade quanto fracasso, insucesso e até a morte. Dizia ele “No possível tudo é possível”, (ABBAGNANO, 2003, p. 60), ou seja, tanto a possibilidade favorável como a mais desastrosa e horrível, podem realizar-se. Ao ter consciência desta realidade o homem tem pela frente duas opções: a fé ou o suicídio. A saída da situação estética é assumir a posse integral da própria existência e aceitar toda a responsabilidade por ela. A melhor maneira de se fazer isto, segundo Kierkegaard encontra-se no cristianismo. A autocriação por opção consciente seria a única alternativa ao desespero e, segundo Kierkegaard, a maneira de escapar do abismo é “querer profunda e sinceramente”. “Esta contribuição seria de grande importância para o século seguinte, onde o indivíduo perde sua fé em Deus, vendo a própria existência sendo ameaçada pela psicologia determinista, afogado na cultura de massas e negado pelo totalitarismo ou perdido nas complexidades da ciência”. (STRATHERN, 1999, p. 36). É isto que conduz para a alternativa da vida estética – a vida ética. Aqui a subjetividade é “o absoluto” e a principal tarefa é “fazer a opção” (Ibidem, 37). Na vida ética o indivíduo opta por criar a si mesmo e esta autocriação passa a ser o objetivo da sua existência. A pessoa ética busca conhecer e mudar a si mesmo por escolha própria, guiado pelo autoconhecimento e pela vontade, quando descobre algo que pode ser melhorado empenha-se neste sentido. Preocupa-se mais com o mundo interior e busca, a partir do melhor conhecimento de si mesmo, tornar-se algo melhor. Quem age desta maneira expressa o universal na sua vida. A maior diferença entre estas duas escolhas é que o indivíduo estético é essencialmente voltado para o externo, contingente, inconsistente e autodissipante; enquanto o ético prioriza o interior, o necessário, consistente e autocriativo. A escolha de um aspecto não elimina por completo que se tenha um pouco do outro aspecto. Ainda na escolha da vida ética encontra-se certa insatisfação, o que conduz ao terceiro ponto: a religião. Esta seria uma síntese entre o ponto de vista estético e o ético e foi mais profundamente tratado em “Temor e Tremor”, de 1843. Nesta obra, Kierkegaard examina a noção de fé e a define como o ato subjetivo último, um salto para além de toda justificação possível, é uma “irracionalidade superior”. Alcançar o estágio religioso requer uma suspensão teleológica do ético. Kierkegaard conclui que a existência é um “irracional” (como o pi na matemática): “é o que resta depois que tudo é analisado, comparado a uma rã que se descobre no fundo da caneca de cerveja depois que se termina de beber a cerveja” (STRATHERN, 1999, p. 43). Contudo viver é mais do que “estar aí”, pois a vida deve ser vivida e transformada através do pensamento subjetivo, a subjetividade é a verdade (o equivalente à sinceridade acrescida de um apaixonado compromisso interior). As verdades subjetivas são mais O surgimento da antropologia filosófica U1 35 importantes que as objetivas (ligadas ao mundo exterior, como a história e as ciências). É a verdade subjetiva que fundamenta nossos valores, pois nenhuma moralidade deve derivar de um fato objetivo. Cada indivíduo, deve ser, de certa forma, o criador do seu próprio mundo, em função dos valores que tem. Para Kierkegaard, o indivíduo vê o mundo que quer ver (Wittgenstein irá dizer: “O mundo do homem feliz é diferente do mundo do infeliz”), cuidando para não cair em solipsismo (ponto de vista de que só eu existo e o mundo está aqui para mim; os outros são ideias minhas). A existência é um grande risco e nunca podemos saber se a escolha que fizemos foi a mais adequada e quem conseguir conscientizar-se deste risco inevitavelmente se angustiará. A existência torna-se arriscada quando percebemos que podemos morrer a qualquer instante, bem como da completa liberdade que temos a cada momento e que isto pode transformar completamente nossas vidas. No “Conceito de Angústia”, Kierkegaard distingue dois tipos de medo: um proveniente de ameaça externa e outro vindo da experiência interior e que nasce de nossa própria liberdade. Poderíamos dizer que o indivíduo não existe em absoluto como “ser”, mas existe apenas num estado de constante “vir-a-ser” e a percepção disto pode mergulhar a pessoa na loucura. Em 1848, Kierkegaard teve uma experiência religiosa e concluiu que só Deus poderia protegê-lo de uma preocupação excessiva consigo mesmo e em sua opinião “toda aexistência humana opõe-se a Deus”. Afirma que é impossível entender a existência intelectualmente e que o homem se desespera quando se identifica com algo exterior a ele, ficando à mercê do destino. Por não alcançar o seu eu ambicioso, nasce um vazio interior, acompanhado de uma vontade inconsciente de morrer. Só se escapa deste desespero caso se opte pelo seu próprio eu. As ideias de Kierkegaard foram desenvolvidas por Edmund Husserl (1859-1938) e levadas adiante por Martin Heidegger (1889-1976), originando o existencialismo que atingiu seu ponto alto com Jean Paul Sartre (1905-1980). O termo existencialismo não foi muito bem aceito entre os filósofos e foi Sartre quem, desprovido de escrúpulo, primeiro aceitou ser chamado de existencialista, no começo de 1940. Pode-se entender que o acento dado por Kierkegaard ao ser humano e seus problemas, ou seja, à subjetividade, faz parte de um movimento chamado de enantiodromia (etimologicamente enantio, oposto; e dromia ou dromos, pista de corrida) o qual poderia ser comparado ao movimento pendular. O pêndulo vai do alto do seu local até ao máximo possível na direção oposta, porém a cada movimento se enfraquece e tende ao ponto de repouso. Transferindo isso para o campo das ideias, e mais propriamente para a filosofia de Kierkegaard, ele estaria se contrapondo ao filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que havia acentuado demais a objetividade em detrimento da subjetividade. Como reação a isso Kierkegaard faz um resgate e dá uma ênfase ao ser humano e seu cotidiano. O surgimento da antropologia filosófica U1 36 O tema da angústia também foi pertinente ao desenvolvimento da psicologia freudiana. Porém, enquanto Kierkegaard era elemento ativo na questão, Freud tratou do problema de fora. Kierkegaard sentia a necessidade de aprofundar a questão da angústia, por tratar-se de uma realidade na qual estava imerso, era uma questão existencial e, a partir daí vai surgindo aquilo que viria a ser a filosofia existencialista. Freud, por sua vez, faz uma reflexão sobre a angústia sob o ponto de vista terapeuta, estudando suas raízes, seu desenvolvimento e suas consequências, sem, contudo, encontrar-se dentro desta realidade. Portanto, o primeiro terá uma elaboração com maior tendência ao subjetivismo, enquanto o último tenderá a uma maior objetividade no trato da questão. Figura 1.10 | Retrato de Nietzsche de 1882 Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/thumb/2/23/Nietzsche1882. jpg/640px-Nietzsche1882.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. Quer nos parecer que com a sua expressão “filosofar com o martelo”, Friedrich Nietzsche (1844-1900) nos fornece um bom resumo de sua postura filosófica. Nietzsche pode, perfeitamente, ser considerado o filósofo da contramão, ou da demolição de conceitos, por isso a imagem do martelo. Há que se quebrar tudo e reconstruir em novas bases. Poderíamos também nos valer de outra imagem para complementar a compreensão da filosofia nietzscheana: o embate entre o apolíneo e o dionisíaco. Apolo, o deus sol, é emblema da razão, da moralidade e do comedimento. Dionísio, o deus do vinho (é o mesmo Baco para os romanos, daí o termo bacanal), é o deus da alegria, das festas e da embriaguez. Em linguagem atual, talvez pudesse ser o deus da balada. Ao longo da história, Apolo tem sido o grande vencedor desse confronto, pois a razão se sobrepôs ao impulso; mas para que o homem possa realmente ser feliz, Dionísio tem de vencer, pois a felicidade humana se alcança no gozo do prazer, no acúmulo de riquezas e na posse e desfrute do poder. 3.3 Nietzsche e o Übermensch O surgimento da antropologia filosófica U1 37 Tal como já afirmavam os sofistas. Para Nietzsche os sofistas estavam corretos, mas Sócrates, Platão, o cristianismo e toda a gama de filósofos que compartilharam de suas ideias e valores, desvirtuaram o pensamento dos sofistas ao privilegiarem o uso da razão em detrimento dos impulsos e dos desejos. Entende Nietzsche que a verdadeira natureza humana, não está no conter-se, no dominar-se a si mesmo (virtude), mas no extravasar e fazer tudo aquilo que se tem vontade. Mas como fazer isso numa sociedade repressora? Agora se entende o filosofar com o martelo. Há de se demolir tudo o que está assentado na razão e reconstruir com base no impulso, na vontade. Pode parecer loucura enfatizar o impulso, mas segundo Nietzsche, o impulso é a essência do homem e só por intermédio da sua realização o homem conseguirá alcançar a felicidade. Assim como Kierkegaard discordava de Hegel, Nietzsche também o fará, pois enquanto para Hegel a natureza do homem se encontra na razão, Nietzsche é levado a aproximar-se do pensamento de Arthur Schopenhauer (1788-1860) para quem a essência do homem e do mundo está na vontade. Contudo, Nietzsche não concorda plenamente com Schopenhauer, pois enquanto para esse o homem deve buscar o aniquilamento da sua vontade, o esvaziamento, a ascese; para Nietzsche o homem deve buscar a afirmação da vontade contra todo e qualquer obstáculo, deve fazer a sua vontade prevalecer, ser forte e viver as suas potencialidades intensamente. A base do pensamento de Nietzsche é o conceito de que a realidade consiste numa explosão de forças desordenadas. Diante desta estrepitosa explosão de potência, que não pode ser refreada por nenhuma lei da razão, pode-se assumir uma dupla atitude: a de fraqueza (a dos rebanhos) e a de força e poder (do super- homem). Os rebanhos diante da potência desregrada da natureza inventam a religião. A ética do super-homem é o triunfo da própria personalidade, além do bem e do mal, desde que se afirme sobre os outros. (MONDIN, 1981, p. 232). Quase fazendo um joguete de palavras em língua alemã, Nietzsche afirmava Gott ist tot! (Deus está morto) e complementava: “Quem o matou fomos nós!” e “Não colocamos nada em seu lugar”. Tais afirmações, obviamente, não se referem à morte de Jesus e nem tampouco ao ateísmo nietzscheano, elas parecem indicar a constatação feita por Nietzsche de que na sociedade e na cultura da época, o fundamento da realidade, ou o sentido da vida, já não estava mais sendo, ou não devia mais ser, buscado em algo transcendente, e sim na afirmação de si, na confiança nas próprias capacidades e potencialidades humanas, superando a si mesmo, por isso a ideia de super-homem (Übermensch, em alemão): superar-se. O surgimento da antropologia filosófica U1 38 Talvez o grande mérito de Nietzsche tenha sido o de questionar, como ninguém, as estruturas da sociedade e o modo de vida de seus contemporâneos, sobretudo a ética do comodismo e da resignação. Segundo ele, é preciso “filosofar com o martelo”, ou seja, ir quebrando, estilhaçando, conceitos mal formulados, ou formulados de antemão, o que ele chama de “pré-conceito”, ou “pré-juízo”. E isso ele fez com um estilo literário único, algo meio próximo de tons proféticos, denunciando o modo de vida vigente. Para ele, tanto Sócrates, quanto Platão e o cristianismo nos fizeram muito mal ao nos ensinar que é preciso sofrer com paciência. Ele defende o contrário: é preciso viver intensamente, vibrar com a vida e desfrutar tudo o que ela tem a nos oferecer, dando vazão à vontade de potência. (MACHADO, 2013, p. 60). Alasdair MacIntyre (2001, p. 431) dirá que “o homem nietzscheano, o Übermensch, o homem que transcende, até hoje não encontrou seu bem em lugar nenhum do mundo social, mas somente naquilo que dentro de si mesmo, dita sua própria nova lei e sua própria nova tabela das virtudes”. Para compreendermos bem o pensamento de qualquer filósofo é preciso levar em conta o seu ambiente, o seu contexto; e para a compreensão da filosofia de Heidegger isso é imprescindível. Heidegger se encontra em uma Alemanha envolta em guerra, morte, medo, enfim, a questão era: como compreender o ser diante de Nietzsche parece ser um dos filósofos que mais encanta a juventude, sobretudo a juventude que busca afirmar-see construir os seus próprios caminhos. Poderíamos nos perguntar se esse encantamento é proveniente de uma identificação de pensamento, pois Nietzsche questiona com muito rigor a sociedade estabelecida de sua época tentando mostrar que os valores escolhidos são apenas alguns entre tantas alternativas que se descortina ao ser humano, principalmente ao homem que busca autonomia reflexiva; ou se essa identificação é por conta da rebeldia própria dessa fase da vida e, por vezes, até mesmo infundada. 3.4 Martin Heidegger: o homem é um ser para a morte O surgimento da antropologia filosófica U1 39 tanta estupidez e brutalidade? Segundo Heidegger, o conceito de ser é universal e, talvez em função disso, é também vazio de sentido e muito difícil de ser definido. Está presente em tudo e ao mesmo tempo se esconde e assim a única maneira de abordá- lo seria recorrer ao ser de algum ente particular. Desse modo, Heidegger desenvolveu uma filosofia voltada para os problemas concretos da vida e para a angústia humana diante da existência, ou seja, ele buscou aplicar o método fenomenológico ao estudo do ser, à medida que o seu estudo “parte do homem de fato, deixa que ele se manifeste tal qual é e procura compreender a sua manifestação”. (MONDIN, 1983, p. 188). Projetou a sua principal obra, Ser e tempo, para ser desenvolvida em três partes, mas ficou apenas na primeira, talvez pela dificuldade histórica, ou filosófica, de prosseguir. Ele afirma que o ser foi, ao longo da história da Filosofia, estudado de modo abstrato, ideal, sem relação com o mundo, mas o ser só se realiza historicamente, em um determinado tempo. Ele se realiza em um mundo que não escolheu, ao contrário quando se deu por si já estava aí, por isso pode dizer que o ser é um Dasein (ser aí, ou estar aí, em alemão). Distingue ser (aquilo que tem essência), de ente (aquilo que tem existência). Entre os seres existentes, o homem tem primazia, pois é o único com possibilidades de compreender o ser e também o único capaz de determinação, haja vista que não está totalmente preso em sua situação, mas é capaz de se tornar algo novo, algo diferente através dos seus ideais, planos e possibilidades. O homem tem a possibilidade de ser ou não ser ele mesmo e assim a essência do homem consiste na sua existência. Além disso, o homem é único ser que pode projetar o futuro, tendo consciência do seu passado e vivendo o presente, portanto, o elemento temporalidade associa essência com a existência humana. Sendo o homem um ser no mundo com possibilidades de se projetar (existência), abre-se diante dele a opção de levar uma vida autêntica ou inautêntica, banal. Na vida autêntica, o homem assume a própria vida e a conduz por si. Na vida inautêntica, o Figura 1.11 | Foto de Heidegger em 1960 Fonte: Disponível em:<ttp://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/2/2c/Heidegger_4_%281960%29_ cropped.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. O surgimento da antropologia filosófica U1 40 Figura 1.12 | Foto de Sartre em 1950 Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/d/d1/Jean-Paul_Sartre_FP.JPG>. Acesso em: 20 mar. 2015. homem se deixa levar pela situação e é conduzido pela massa; não é senhor de si. Quem leva vida autêntica e se projeta no futuro, sabe que a última possibilidade será a morte, a qual também deve ser levada em consideração, pois representa o término desta existência. A morte é presença constante para o ser humano e se faz presente desde que se inicia a existência, mas ao adquirir consciência da morte o homem cai na angústia. Jean-Paul Sartre, nascido em Paris, no dia 21 de junho de 1905 e falecido na mesma cidade, em 15 de abril de 1980, é considerado o expoente máximo do existencialismo. Perdeu o pai aos 15 anos e foi criado por sua mãe e seu avô. Estudou Filosofia na École Normale Supérieure de Paris. Em 1929 conheceu, na Universidade de Sorbonne, Simone de Beauvoir e com ela conviveu até a sua morte. Em 1931, tornou-se professor de Filosofia na Universidade de Le Havre. Além de filósofo, foi também escritor e ganhou (mas recusou) o Prêmio Nobel de Literatura em 1964. Entre suas principais obras temos O ser e o nada, A náusea, Crítica da razão dialética e O idiota da família. 3.5 Sartre: a existência precede a essência Quando jovem, Sartre rejeitou os valores “burgueses” de sua criação, e a busca por um modo de vida livremente escolhido e autêntico – não determinado pela autoridade, religião ou tradição – tornou-se um de seus temas dominantes. [...] Sartre traçou uma distinção radical entre matéria física e consciência, a última caracterizada por sua liberdade. Seja qual for nossa situação, somos livres para “negá-la” – para imaginar as coisas de outro modo e nos empenharmos para mudá-las. (LAW, 2008, p. 336). Para os filósofos antigos, tudo no mundo tem uma finalidade, um propósito; ou seja, tudo tem uma essência, uma razão de ser, pois a natureza não faz nada em vão. Isso significa que o homem também tem uma essência e que ela já existe mesmo O surgimento da antropologia filosófica U1 41 antes de o homem em particular existir. Porém, Sartre não concorda com essa ideia e diz que o homem é totalmente livre e deve assumir a responsabilidade pelo que faz e pelo que se torna e, desse modo, segundo Sartre, no caso do homem, a existência precede a essência. Temos de criar um propósito (essência) para nós mesmos. Diz ele que o homem primeiro surge no mundo, existe, se descobre ou se percebe e só depois define o que vai ser, não importando tanto o que os homens são, mas mais o que eles podem se tornar. Ao abordar a questão do ser – denominado por Sartre ser em si, para distingui-lo da consciência, ser para si – ele afirma que Não há nada, portanto, que defina a existência humana, estando o homem condenado a ser livre e com base nesta liberdade construir a si mesmo. Max Scheler (1874-1928) não é um pensador muito conhecido. Alguém poderia se perguntar “porque abordá-lo dentro da temática antropológica?” E a resposta poderia ser “justamente por tratar-se de antropologia filosófica”, pois Scheler, em sua obra A situação do homem no cosmos, e mais especificamente ao abordar a questão intitulada Diferença essencial entre o homem e o animal traça as linhas fundamentais da antropologia filosófica. Notem que até agora falamos de homem, mas não falamos de pessoa. Com Scheler o conceito de pessoa começa a sua característica particular é o absurdo: no absurdo está a chave da existência de cada coisa. O homem diferencia-se dos outros seres porque tem a consciência de que é o oposto do ser. Para viver, a consciência necessita nulificar o ser, na medida em que, por sua natureza, é o não ser, o vazio, o nada. [...] Mas o que é o dado constitutivo essencial do homem não é a consciência, mas a liberdade, sem limites e não vinculada a nenhuma lei moral. (MONDIN, 1981, p. 237). Figura 1.13 | Foto de Max Scheler Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia. org/wikipedia/commons/a/af/Scheler_max. jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. 3.6 Max Scheler e o homem que se projeta O surgimento da antropologia filosófica U1 42 ser levado em conta. Ele constrói urna antropologia com ênfase no conceito personalista, de onde nasce um sujeito como ser espiritual e como pessoa. Ser espiritual, porque capaz de se desvincular do poder e da ligação com a vida, ou seja, capaz de projetar-se e de sonhar. E pessoa, porque é centro de atos intencionais. Essa linha pascalina, à qual Mourão se refere, é um resgate da contribuição de Blaise Pascal, autor da famosa frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, daí a expressão raisons du coeur, razões do coração. Scheler afirmava que, em virtude da participação humana no impulso vital biopsíquico, o homem se encontra imerso em um mundo de forças psíquicas que indo desde as plantas e animais, chega até ao homem, animal superior. Porém, a A ideia de simpatia, expressa
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