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Autora: Profa. Paula Regina Knox de Souza Colaboradores: Prof. Juliano Rodrigo Guerreiro Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano Mecanismo de Agressão e Defesa Professora conteudista: Paula Regina Knox de Souza Professora titular na Universidade Paulista (UNIP), leciona disciplinas nos cursos de Biomedicina, Ciências Biológicas, Enfermagem, Farmácia e Nutrição, em São Paulo, desde 2005. Graduou-se como bacharel em Farmácia pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), em 1999. É mestre em Farmácia desde 2002 e doutora em Ciências desde 2015, ambos os títulos obtidos na FCF-USP. É responsável pela elaboração do conteúdo on-line, pelo plano de ensino e roteiros de práticas ligadas à disciplina de Mecanismo de Agressão e Defesa do curso de Farmácia. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S726m Souza, Paula Regina Knox de. Mecanismo de Agressão e Defesa. / Paula Regina Knox de Souza. - São Paulo: Editora Sol, 2020. 188 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Alterações do sistema. 2. Imunidade. 3. Patogenicidade. I. Título. CDU 576.8.097 U505.85 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Ingrid Lourenço Talita Lo Ré Sumário Mecanismo de Agressão e Defesa APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 ASPECTOS MORFOLÓGICOS, BIOLÓGICOS E PATOGÊNICOS DOS DIFERENTES MICRORGANISMOS ........................................................................................................ 11 1.1 Caracterização de microrganismos ............................................................................................... 12 1.2 Caracterização estrutural, metabólica e da reprodução dos vírus e príons ................. 13 1.2.1 Ciclo lítico .................................................................................................................................................. 15 1.2.2 Ciclo lisogênico ........................................................................................................................................ 17 1.3 Caracterização estrutural, metabólica e da reprodução dos fungos ............................. 18 1.3.1 Leveduras ................................................................................................................................................... 19 1.3.2 Fungos filamentosos .............................................................................................................................. 19 1.4 Caracterização estrutural, metabólica e da reprodução das bactérias ......................... 20 1.4.1 Metabolismo bacteriano ...................................................................................................................... 20 1.4.2 Estrutura bacteriana .............................................................................................................................. 21 1.5 Crescimento bacteriano in vitro e fatores interferentes ..................................................... 27 2 RELAÇÃO HOSPEDEIRO-MICRORGANISMO ......................................................................................... 32 2.1 Microbiota .............................................................................................................................................. 33 2.2 Mecanismos bacterianos de variabilidade genética .............................................................. 35 2.2.1 Transformação bacteriana ................................................................................................................... 36 2.2.2 Conjugação bacteriana ......................................................................................................................... 37 2.2.3 Transdução bacteriana .......................................................................................................................... 38 3 MECANISMOS DE PATOGENICIDADE ..................................................................................................... 40 3.1 Fatores de virulência ........................................................................................................................... 40 3.2 Resistência a agentes antimicrobianos ....................................................................................... 44 3.2.1 Mecanismos de resistência a antimicrobianos ........................................................................... 45 4 PRINCIPAIS PATÓGENOS RELACIONADOS A INFECÇÕES EM SERES HUMANOS ................... 47 4.1 Bactérias ................................................................................................................................................. 47 4.1.1 Cocos Gram-positivos ........................................................................................................................... 47 4.1.2 Bacilos Gram-positivos formadores de esporos ......................................................................... 49 4.1.3 Cocos Gram-negativos aeróbicos ................................................................................................... 49 4.1.4 Bacilos Gram-negativos anaeróbios facultativos ...................................................................... 50 4.1.5 Bacilos Gram-negativos aeróbios .................................................................................................... 51 4.1.6 Bacilos Gram-positivos aeróbios não formadores de esporo ............................................... 51 4.1.7 Bacilos álcool-ácido resistentes ...................................................................................................... 51 4.1.8 Vibriões Gram-negativos ..................................................................................................................... 52 4.1.9 Cocobacilos Gram-negativos ............................................................................................................. 52 4.1.10 Espiroquetas Gram-negativas ........................................................................................................ 52 4.2 Fungos ..................................................................................................................................................... 53 4.2.1 Micoses supeficiais ................................................................................................................................. 53 4.2.2 Micoses cutâneas .................................................................................................................................... 53 4.2.3 Micoses subcutâneas ...........................................................................................................................54 4.2.4 Micoses sistêmicas ................................................................................................................................. 54 4.2.5 Micoses oportunistas ............................................................................................................................ 55 4.3 Vírus .......................................................................................................................................................... 56 4.3.1 Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV – Human Immunodeficiency Virus) ............. 56 4.3.2 Vírus causadores de hepatites .......................................................................................................... 57 4.3.3 Arbovírus .................................................................................................................................................... 59 4.3.4 Vírus da herpes simples (VHS) ........................................................................................................... 60 4.3.5 Papilomavírus Humano (HPV – Human Papiloma Virus) ........................................................ 60 4.3.6 Vírus relacionados a infecções clássicas infantis ....................................................................... 61 4.3.7 Vírus da gripe ou influenza vírus ..................................................................................................... 62 4.3.8 Coronavírus ............................................................................................................................................... 62 Unidade II 5 IMUNIDADE NAS RESPOSTAS AOS MECANISMOS DE AGRESSÃO .............................................. 68 5.1 Imunidade inata .................................................................................................................................... 69 5.2 Barreiras naturais ................................................................................................................................. 69 5.2.1 Barreiras físicas ........................................................................................................................................ 69 5.2.2 Barreiras químicas .................................................................................................................................. 69 5.2.3 Barreiras biológicas ................................................................................................................................ 70 5.3 Fagócitos .................................................................................................................................................. 70 5.3.1 Macrófagos e mastócitos .................................................................................................................... 72 5.3.2 Granulócitos .............................................................................................................................................. 73 5.3.3 Células NK .................................................................................................................................................. 74 5.4 Mediadores inflamatórios ................................................................................................................. 74 5.5 Sistema complemento ....................................................................................................................... 75 5.6 Processo inflamatório ......................................................................................................................... 78 5.7 Imunógenos, antígenos, epítopos e haptenos .......................................................................... 80 5.7.1 Imunogenicidade .................................................................................................................................... 81 5.7.2 Antigenicidade ......................................................................................................................................... 83 5.8 Moléculas de MHC e apresentação antigênica ........................................................................ 84 5.8.1 Apresentação por moléculas de MHC de classe I ..................................................................... 85 5.8.2 Apresentação por moléculas de MHC de classe II ..................................................................... 87 6 IMUNIDADE ADAPTATIVA............................................................................................................................. 89 6.1 Células ....................................................................................................................................................... 89 6.1.1 Linfócitos B ................................................................................................................................................ 89 6.1.2 Linfócitos T ................................................................................................................................................ 90 6.2 Tecidos e órgãos linfoides ................................................................................................................. 91 6.2.1 Órgãos linfoides primários .................................................................................................................. 92 6.2.2 Órgãos linfoides secundários ............................................................................................................. 94 6.3 Imunidade celular ................................................................................................................................ 97 6.3.1 Ativação de linfócitos Th ..................................................................................................................... 97 6.3.2 Ativação de linfócitos CTL .................................................................................................................100 6.3.3 Ativação de linfócitos T reg ..............................................................................................................100 6.4 Imunidade humoral ...........................................................................................................................101 6.4.1 Imunoglobulinas ou anticorpos ......................................................................................................103 6.5 Resposta imune a infecções ..........................................................................................................107 Unidade III 7 IMUNIDADE, DIAGNÓSTICO E ALTERAÇÕES DA RESPOSTA IMUNE ..........................................114 7.1 Imunidade e diagnóstico .................................................................................................................114 7.2 Imunidade ativa ..................................................................................................................................114 7.2.1 Imunoprofilaxia ..................................................................................................................................... 116 7.3 Imunidade passiva .............................................................................................................................122 7.3.1 Imunidade passiva natural ............................................................................................................... 122 7.3.2 Imunidade passiva artificial ............................................................................................................. 124 7.4 Diagnóstico imunológico ................................................................................................................125 8 ALTERAÇÕES DO SISTEMA IMUNE ..........................................................................................................127 8.1 Autoimunidade....................................................................................................................................127 8.1.1 Artrite reumatoide(AR) ......................................................................................................................131 8.1.2 Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) ............................................................................................... 132 8.1.3 Diabetes mellitus tipo I ...................................................................................................................... 134 8.1.4 Miastenia gravis ................................................................................................................................... 136 8.1.5 Doenças Autoimunes Tireoidianas (DAIT) .................................................................................. 137 8.2 Imunodeficiências ..............................................................................................................................139 8.2.1 Imunodeficiências primárias .......................................................................................................... 140 8.2.2 Imunodeficiências secundárias (IDS) ............................................................................................141 8.3 Reações de hipersensibilidade ......................................................................................................142 8.3.1 Reações de hipersensibilidade tipo I ........................................................................................... 142 8.3.2 Reações de hipersensibilidade tipo II ........................................................................................... 144 8.3.3 Reações de hipersensibilidade tipo III ......................................................................................... 146 8.3.4 Reações de hipersensibilidade tipo IV ........................................................................................ 146 8.4 Imunidade contra transplantes ....................................................................................................148 8.4.1 Compatibilidade de grupos sanguíneos .................................................................................... 150 8.4.2 Resposta imune a aloenxertos ...................................................................................................... 153 8.4.3 Imunossupressores .............................................................................................................................. 157 8.5 Imunidade contra tumores .............................................................................................................158 8.5.1 Antígenos tumorais............................................................................................................................. 159 8.5.2 Resposta imune a tumores ...............................................................................................................161 8.5.3 Mecanismos tumorais de evasão ................................................................................................. 162 9 APRESENTAÇÃO Esta disciplina pretende apresentar os fundamentos relacionados à compreensão dos mecanismos de agressão e defesa, com vistas à formação de uma base conceitual para as demais disciplinas da área farmacêutica. Para tanto, pretende-se capacitar o aluno a aplicar os conhecimentos adquiridos aos problemas e situações da área de atuação farmacêutica. Assim, esta disciplina tem como objetivos gerais: possibilitar ao aluno a compreensão das interações dos agentes infecciosos com o organismo humano ao abordar mecanismos de patogenicidade e virulência, assim como imunofisiologia e os mecanismos de defesa do hospedeiro associados às doenças infecciosas; e despertar no futuro profissional da área o raciocínio imunológico e microbiológico para que ele possa relacionar os conhecimentos adquiridos com a sua área de atuação profissional. Ao final dos estudos desta disciplina, o aluno deverá ser capaz de conhecer aspectos morfológicos, biológicos e patogênicos dos principais tipos de microrganismos (bactérias, vírus e fungos); compreender a atuação da imunidade inata e da imunidade adaptativa em processos infecciosos e em distúrbios imunológicos; e a relação entre os aspectos biológicos dos principais grupos de bactérias, vírus e fungos e os aspectos patogênicos e epidemiológicos das doenças por eles causadas. INTRODUÇÃO Na rotina diária de qualquer profissional ligado à saúde, os mecanismos de agressão e defesa se fazem presentes toda vez que seres humanos ou animais são infectados por microrganismos, como bactérias, fungos ou vírus, e desenvolvem algum tipo doença infecciosa, que deve ser tratada com medicamentos capazes de eliminar esses agentes infecciosos. Assim, vemo-nos diante da necessidade de identificar esses microrganismos a fim de impedir sua propagação, o que pode acontecer pela ingestão de produtos alimentícios e água contaminados, por contato com ser humano ou animal infectado ou por contato com amostras biológicas contaminadas (sangue, urina, fezes, secreções e tecidos). Independentemente de qual seja o microrganismo, sua identificação sempre dependerá de suas características morfológicas e fisiológicas, tornando imprescindível seu conhecimento. Além disso, é essencial compreender o funcionamento do sistema de defesa do organismo frente a estes agentes infecciosos, assim como as possíveis alterações de funcionamento que podem acontecer. Este livro-texto tem como objetivo fazer uma breve apresentação de todo conteúdo que consideramos importante para que o aluno possa ter um bom desempenho nas demais disciplinas do curso, tais como: microbiologia e micologia clínicas e imunologia clínica e tantas outras que têm como pré-requisito o conhecimento de imunologia, bacteriologia, virologia e micologia. Inicialmente, serão discutidos os aspectos morfológicos, biológicos e patogênicos dos diferentes tipos de microrganismos que podem causar doenças em seres humanos. Logo depois, será estudado o papel da imunidade inata e da imunidade adaptativa nas respostas aos mecanismos de agressão. Após a compreensão dos mecanismos de agressão e defesa, serão abordados os distúrbios imunológicos e os mecanismos de resposta aos aloantígenos. 11 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA Unidade I 1 ASPECTOS MORFOLÓGICOS, BIOLÓGICOS E PATOGÊNICOS DOS DIFERENTES MICRORGANISMOS Pode-se dizer que a microbiologia – ciência que estuda os diversos microrganismos existentes – começou a existir graças ao desenvolvimento de microscópios – equipamentos que permitem a visualização desses microrganismos – e ao desenvolvimento de métodos que possibilitaram o cultivo desses microrganismos. Podemos considerar que a descoberta do mundo microscópico começou após a invenção do primeiro microscópio, por Hans e Zacharias Janssen, e continuou quando, no século XVII, Antonie van Leeuwenhoek desenvolveu um microscópio rudimentar e começou a observar pequenos organismos presentes na água, em vinhos, cervejas e outros líquidos, que ele denominou como animálculos. No mesmo período, Robert Hooke desenvolveu jogos de lentes capazes de ampliar em até 500x, permitindo a observação da estrutura celular de várias formas de vida. No século XVIII, Lazzaro Spallanzani descobriu que processos de fervura eliminavam todos os microrganismos presentes em caldos e que a exposição destes caldos ao ar permitia a sua contaminação por novos microrganismos. No século XIX, Louis Pasteur complementou esses experimentos, usando frascos com filtros ou com tubos curvos que impediam o contato de partículas presentes no ar com caldos previamente fervidos nos quais houve crescimento de microrganismos, provando que eles não eram gerados espontaneamente nos caldos, mas sim que estavam presentes no ar. Antes disso, se acreditava que uma força vital permitia o surgimento espontâneo de microrganismos em caldos e vinhos. Assim, os experimentos realizados por Pasteur derrubaram a teoria da geração espontânea vigente à época. Por outro lado, Ferdinand Julius Cohn, em1849, após observação microscópica usando corantes vegetais, desenvolveu o sistema de classificação bacteriano de acordo com seu formato, utilizado até hoje, e demostrou que algumas bactérias, em condições desfavoráveis, podem produzir esporos, que são formas de resistência. Além disso, Robert Koch demonstrou a relação existente entre microrganismos e o desenvolvimento de doenças específicas ao injetar o sangue de um animal infectado em um animal saudável, que posteriormente desenvolveu a mesma doença presente no animal infectado. Também demonstrou que bactérias cultivadas em caldo nutriente causavam doenças ao serem injetadas em animais saudáveis e conseguiu provar a presença dessa bactéria nos animais infectados, ao corar as amostras secas fixadas em lâminas de microscopia com azul de metileno. Essas descobertas foram resumidas nos Postulados de Koch, utilizado até hoje para determinar a etiologia de doenças infeciosas. Em 1887, Julius Petri fez modificações no procedimento de cultura bacteriana ao usar placas de vidro com tampas que permitiam que as amostras fossem incubadas de cabeça para baixo, eliminando a condensação de água e, consequentemente, a contaminação das amostras. 12 Unidade I Nesse mesmo período, alguns cientistas começaram a testar substâncias que são capazes de corar os microrganismos, a fim de permitir sua visualização e, consequentemente, sua identificação. Assim, o químico alemão Paul Ehrlich desenvolveu uma técnica de coloração de amostras para evidenciar a presença dos bacilos estudados por Koch, usando violeta de metila ou fucsina alcoólica como corantes e ácido como agente descolorante. Essa coloração foi modificada por Franz Ziehl e Friedrich Neelsen, originando a coloração Ziehl-Neelsen utilizada atualmente para demonstrar a presença de micobactérias, bacilos álcool-ácido resistentes. Enquanto isto, o patologista dinamarquês Hans Christian Gram desenvolveu uma coloração capaz não apenas de evidenciar a presença de bactérias, mas também de caracterizá-las como Gram-positivas, quando estas retêm o corante violeta; ou Gram-negativas, se não retiverem o corante. Essa diferenciação é devida a diferenças morfológicas e, até hoje, é usada para classificação bacteriana. No mesmo período, outros se dedicaram a pesquisar substâncias que inibiriam o crescimento de bactérias patogênicas in vivo, ou seja, quando elas estivessem causando doenças aos seres humanos ou animais. Entre estes, Paul Ehrlich testou compostos utilizados como corantes a fim de avaliar sua eficácia como quimioterápicos, ou seja, substâncias químicas eficazes no tratamento de infecções. Posteriormente, o conceito de quimioterapia atingiu o ápice com o desenvolvimento das primeiras drogas sintéticas, as sulfonamidas, que começaram a ser amplamente utilizadas para o tratamento de várias infecções bacterianas. Em 1928, o médico britânico Alexander Fleming observou que uma de suas placas de cultura bacteriana havia, acidentalmente, sido contaminada com um fungo produtor de uma substância antibacteriana ativa, capaz de eliminar as bactérias presentes na placa. A descoberta acidental da penicilina por Fleming foi a base de vários estudos para o desenvolvimento de outras substâncias com ação antimicrobiana. Assim, a microbiologia tem se desenvolvido graças à contribuição de vários cientistas ao longo dos últimos quatro séculos. Saiba mais Para saber mais sobre a história da microbiologia, assista aos episódios da série inglesa indicada a seguir, dividida em seis episódios: OS MICRÓBIOS e o homem. Inglaterra: BBC, 1974. 55 min. (6 episódios). 1.1 Caracterização de microrganismos Os microrganismos que estudaremos podem ser divididos, segundo sua estrutura e suas características, em acelulares, procariontes e eucariontes. Os fungos são eucariontes e, por isso, apresentam uma estrutura complexa com membrana nuclear e organelas, enquanto as bactérias são procariontes e apresentam uma estrutura mais simples, sem 13 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA membrana nuclear e apenas com ribossomos – responsáveis pela produção de proteínas – e, finalmente, os vírus são acelulares porque são incapazes de se reproduzirem fora de uma célula hospedeira. Começaremos com os vírus que, além de microscópicos e acelulares, são classificados como parasitas intracelulares obrigatórios devido à ausência de enzimas que possibilitem sua reprodução autônoma. 1.2 Caracterização estrutural, metabólica e da reprodução dos vírus e príons As características e o tamanho reduzido fizeram com que os vírus só começassem a ser estudados em meados do século XX, quando inovações tecnológicas, como o desenvolvimento dos microscópios eletrônicos, permitiram sua demonstração. Por sua vez, os príons ou partículas infecciosas proteináceas, descritos em 1982 por Stanley Prusiner, geram alteração em glicoproteínas do hospedeiro, que normalmente regulam a morte celular, gerando seu acúmulo no sistema nervoso e a formação das placas características da doença. Já foram descritas cinco doenças neurológicas causadas por príons em humanos, denominadas encefalopatias espongiformes: “mal da vaca louca”, síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker, kuru, doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) e insônia familiar fatal. Hoje, os microscópios comuns ou ópticos são capazes de ampliar imagens de 100 até 1.000 vezes e tem o micrômetro (μm) como unidade de medida, enquanto os microscópios eletrônicos ampliam de 5 mil a 500 mil vezes e têm o nanômetro (ηm) e o ångström (Å) como unidades de medida. Para se ter uma ideia, a figura a seguir apresenta uma comparação do tamanho de estruturas, partículas, células e organismos em escala logarítmica. Átomo Lipídios Proteína Vírus da gripe Mitocôndria Bactéria Célula animal Célula vegetal Óvulo Ovo de sapo Ovo de galinha Ovo de avestruz Mulher adulta Tamanhos relativos em escala logarítmica 0,1 nm 1 nm 10 nm 100 nm 1 μm 10 μm 100 μm 1 mm 10 mm 100 mm 1 m A olho nu Microscópio óptico Microscópio eletrônico Figura 1 – Representação esquemática dos tamanhos relativos de microrganismos em uma escala logarítmica 14 Unidade I Lembrete Para medir estruturas microscópicas, usamos as seguintes unidades: Micrômetro (μm) é a milésima parte do milímetro. Nanômetro (nm) é a milésima parte do micrômetro. Ångström (Å) é a décima parte do nanômetro. A partícula viral, também conhecida como vírion, é bem simples, sendo composta apenas por um ácido nucleico, que pode ser ácido desoxirribonucleico (DNA) ou ácido ribonucleico (RNA) de fita simples ou dupla, e por um revestimento proteico denominado cápsula proteica ou capsídeo viral, que determina seu formato característico, permitindo sua identificação por meio de microscopia eletrônica. Quando o vírus apresenta essa estrutura, ele é denominado não envelopado. Capsídeo DNA Figura 2 – Representação esquemática de uma partícula viral de um vírus não envelopado Alguns vírus podem apresentar um envelope composto por lipídios, carboidratos e proteínas exclusivamente codificados pelo ácido nucleico viral ou derivados da célula hospedeira. Esses vírus são denominados envelopados e podem apresentar hemaglutininas, ou seja, complexos proteína-carboidrato que permitem sua aderência às células hospedeiras e facilitam sua identificação. Além disso, podemos diferenciar esses vírus de acordo com a estrutura do capsídeo, identificada por microscopia eletrônica, em vírus helicoidais, poliédricos e complexos, como os vírus bacteriófagos, que apresentam uma estrutura diferenciada composta por cabeça e cauda. Filamento de RNA Organização estrutural do vírus do mosaico do tabaco. A cápsula segue a estrutura helicoidal do RNA Cabeça com o DNA A estrutura do bacteriófago O adenovírus com forma icosaédrica Cauda Figura 3 – Representação esquemática da morfologia viral apresentado as estruturas do vírus do mosaico, de um bacteriófago e de um vírus icosaédrico 15 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA Osvírus são parasitas intracelulares obrigatórios e, portanto, sempre devem infectar células animais ou vegetais, bactérias ou fungos. Sendo assim, seu estudo apenas é possível infectando organismos vivos ou realizando culturas de células, o que dificulta o estudo de várias espécies que infectam animais e seres humanos, mas permite que sejam bem conhecidos os mecanismos de reprodução dos vírus bacteriófagos, que infectam exclusivamente bactérias, devido à facilidade de realizar cultura bacteriana e, consequentemente, de cultivá-los. Assim, bacteriófagos T pares são líticos e sempre geram citólise, enquanto bacteriófagos lambda são lisogênicos que se mantêm em forma de prófago no genoma da célula hospedeira, se replicando toda vez que a célula hospedeira o fizer. 1.2.1 Ciclo lítico O ciclo lítico apresenta fases bem definidas e sempre leva à citólise, como pode ser visto na figura a seguir, que representa a infecção de uma bactéria por um vírus bacteriófago lítico. 1. Bacteriófagos ficam em torno das bactérias 7. Formam-se vírus completos 8. A bactéria rompe-se liberando novos vírus 2. Um vírus prende-se à célula 6. A cápsula proteica do vírus é sintetizada 3. O DNA do vírus é injetado na célula 5. Novas moléculas de DNA do vírus são sintetizadas 4. O envoltório proteico permanece fora Figura 4 – Representação esquemática do ciclo lítico viral Inicialmente, durante a fase de adsorção, o bacteriófago se fixa à bactéria por meio da ligação da cauda a estruturas específicas presentes na membrana bacteriana. 16 Unidade I A seguir, começa a fase de penetração, na qual o capsídeo se contrai e injeta o DNA viral no citoplasma bacteriano, iniciando a fase de biossíntese, na qual a bactéria produz todos os componentes do vírion utilizando suas enzimas, ribossomos e aminoácidos, apesar de não haver partículas virais montadas no citoplasma bacteriano, determinando o período de eclipse. Apenas durante a fase de maturação ocorre a organização dos componentes produzidos pela bactéria para a formação de vírions completos, que produzem enzimas citolíticas, permitindo que os vírions recém-produzidos infectem novas bactérias, determinando a fase de liberação. Ao que parece, o ciclo lisogênico é uma estratégia reprodutiva adaptativa que permite que o vírus sobreviva dentro da célula hospedeira em condições fisiológicas não favoráveis para realização de ciclos líticos. Sendo assim, alguns vírus conseguem realizar os dois tipos de ciclo reprodutivo, dependendo das condições ambientais. Assim, no ciclo lisogênico, após as fases de adsorção e de penetração, o DNA viral recombina-se com o DNA bacteriano, gerando um prófago, que reprime a produção de novos vírions capazes de fazer citólise e se replica toda vez que a bactéria se reproduzir. Além disso, essa recombinação gera uma alteração no genótipo bacteriano, que passa a apresentar um fenótipo diferente da bactéria original e permite a transferência de alterações genotípicas para outras bactérias pelo mecanismo bacteriano de transdução. Os vírus que infectam células animais apresentam diferenças significativas em relação ao ciclo lítico de bacteriófagos que acabamos de descrever e, também, em relação ao material genético presente, que pode ser DNA ou RNA. Assim, durante a fase de penetração de um ciclo lítico, os vírus não envelopados sofrerão endocitose após sua ligação a proteínas e glicoproteínas específicas presentes na membrana da célula hospedeira, enquanto os vírus envelopados se fundirão à membrana da célula hospedeira, liberando o capsídeo em seu interior. Em ambos os casos, o desnudamento ou a liberação do material genético só acontecerá após a desintegração do capsídeo por enzimas citoplasmáticas. A fase de biossíntese varia de acordo com o material genético apresentado. Assim, o DNA será liberado no núcleo, onde sofrerá replicação e transcrição, gerando RNAs mensageiros, que produzirão as proteínas da capsídeo viral no citoplasma da célula hospedeira. A seguir, ocorrerá a maturação e a formação de vírions completos que serão liberados, conforme a figura a seguir. Esse processo acontece, por exemplo, no adenovírus responsável pelo resfriado comum e nos herpes-vírus causadores de diversas patologias, que vão desde herpes labial, catapora e herpes-zóster até mesmo mononucleose infecciosa. Cápsula Fixação na célula Penetração Eliminação Cápsula Montagem Saída Envelope DNA DNA RNA Envelope Liberação Transcrição Replicação Tradução Figura 5 – Representação esquemática da replicação de um vírus de DNA 17 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA Em vírus de RNA, o processo acontece inteiramente no citoplasma, desde a replicação até a produção das proteínas do capsídeo, para posterior montagem e liberação do vírion completo. Essa replicação acontece de formas diferentes de acordo com o mecanismo de produção do RNA viral e do mRNA, podendo acontecer por meio de uma RNA-polimerase produzida pela célula hospedeira, que leva à produção de outra fita de RNA, complementar ao RNA viral original, como o que acontece, por exemplo, na replicação do vírus da raiva. No caso dos retrovírus, ela pode ocorrer por meio de uma transcriptase reversa, que produz, a partir do RNA viral, um DNA de fita dupla que se liga ao DNA da célula hospedeira, formando um provírus que pode se expressar, produzindo vírions que infectarão novas células. Cápsula Cápsula Envelope RNA RNA cDNA DNA hospedeiro RNA Envelope Absorção Penetração Transcriptase reversa LiberaçãoT ra ns cr iç ão Tr an sc riç ão re ve rs a Montagem Tradução Integração Figura 6 – Representação esquemática da replicação de retrovírus Após a produção e a maturação dos vírions, independentemente do material genético apresentado, na fase de liberação, os vírus envelopados sofrem brotamento e carregam parte da membrana da célula hospedeira, que pode sobreviver ao processo; enquanto os vírus não envelopados destroem as células hospedeiras por citólise. 1.2.2 Ciclo lisogênico Alguns vírus de DNA que infectam animais também são capazes de apresentar infecções similares à infecção lisogênica causada pelos vírus bacteriófagos, ou seja, de se inserirem no DNA da célula hospedeira, gerando carcinogênese (alterações que tornam a célula cancerígena). Como exemplo, podemos citar alguns tipos de papilomavírus humano (HPV), causadores de câncer de colo uterino, uma infecção persistente, de evolução lenta. Esse tipo de carcinogênese também pode ser causado por alguns retrovírus, como o vírus da leucemia de células T humanas, conhecido como HTLV. Alguns herpes-vírus podem causar infecções latentes, que se manifestam toda vez que houver diminuição da resposta imunológica protetora. Os exemplos mais conhecidos desse tipo de infecção são o herpes labial recorrente e o herpes-zóster, que acontece em pacientes que já tiveram varicela (catapora). 18 Unidade I 1.3 Caracterização estrutural, metabólica e da reprodução dos fungos Os fungos são eucariontes e, portanto, possuem uma organização celular complexa. Apresentam núcleo, no qual o DNA está envolvido por histonas, mitocôndrias, retículo endoplasmático, complexo de Golgi, ribossomos e membrana celular envolta por uma parede celular que protege e mantém a estrutura fúngica. A constituição da parede celular fúngica varia de acordo com a espécie, mas geralmente apresenta os seguintes componentes: glicoproteína, matriz amorfa, glicanos, polissacarídeos estruturais, quitosana e membrana celular, conforme figura a seguir. A quitina está presente em forma de polímeros e consiste principalmente em cadeias não ramificadas de β-(1,4)-ligada-N-Acetilglucosamina ou de poli-(1,4)-ligada-N-Acetilglucosamina (quitosana). A quitina e a quitosana são sintetizadas e extrudadas na membrana plasmática. Por outro lado, os glicanos são polímeros de glicose que amarram os polímeros de quitina ou quitosana, tornando a parede celular rígida, enquanto a maioria das proteínas estruturais encontradasna parede celular é glicosilada e contém manose; portanto, essas proteínas são chamadas de manoproteínas. Revestimento de superfície Matriz amorfa Polissacarídeos estruturais Membrana celular Glicoproteínas Glicano Quitosana Figura 7 – Representação esquemática da composição da parede celular fúngica em que são identificadas as seguintes estruturas: glicoproteína, matriz amorfa, glicanos, polissacarídeos estruturais, quitosana e membrana celular Os fungos são microrganismos quimio-heterótrofos, ou seja, incapazes de sintetizar sua própria fonte de energia; dessa forma, necessitam de componentes orgânicos como fontes de energia e carbono. Isso faz com que eles sejam saprófitos, ou seja, decompositores de matéria orgânica morta; ou parasitas que infectam animais ou vegetais. Além de serem relacionados a vários tipos de infecções, os fungos são muito estudados devido à sua importância para a indústria alimentícia, em que são utilizados para consumo direto, como os cogumelos, e na fermentação de pães, queijos e bebidas alcoólicas. Na indústria farmacêutica, são empregados na produção de substâncias usadas como antimicrobianos, como a penicilina. A estrutura fúngica varia muito: eles podem ser macroscópicos ou microscópicos. Os fungos microscópicos podem ser unicelulares, multicelulares ou dimórficos. 19 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA 1.3.1 Leveduras As leveduras são fungos não filamentosos, unicelulares e, em sua maioria, anaeróbios facultativos, o que permite sua sobrevivência em diferentes condições de pressão de oxigênio. A presença de oxigênio permite que façam respiração aeróbica, produzindo energia a partir de carboidratos; já a ausência de oxigênio leva à fermentação de carboidratos, com a produção de álcool e gás. Isso faz com que as leveduras sejam usadas na produção de bebidas alcoólicas, pães e bolos. Sua reprodução pode acontecer por brotamento ou fissão. No caso do brotamento, realizado por leveduras do gênero Saccharomyces, ocorre a formação de um broto na superfície da célula-mãe e, após a divisão nuclear, a separação completa do broto e da célula-mãe (como na figura a seguir). Outras leveduras, como Candida albicans, não conseguem separar os brotos produzidos, formando pseudo-hifas. Figura 8 – Representação esquemática da reprodução por brotamento do gênero Saccharomyces Jáno caso da fissão, a células-mães duplicam o DNA e as suas organelas se dividem, gerando duas leveduras iguais. 1.3.2 Fungos filamentosos Os fungos filamentosos ou bolores, geralmente, são aeróbios e fazem respiração celular para obter energia a partir de carboidratos, inclusive de carboidratos complexos, como celulose e lignina, presentes em plantas e madeira, respectivamente. Eles são multicelulares e formados por cadeias celulares denominadas hifas, que, em condições favoráveis, crescem e se agrupam, formando um micélio. As hifas podem ser classificadas de acordo com sua estrutura e sua função. De acordo com a estrutura, as hifas podem ser septadas, formadas por pequenas estruturas unicelulares, ou não septadas, formadas por estruturas multinucleadas longas. Por outro lado, de acordo com a função, podem ser vegetativas, responsáveis pelo metabolismo, ou reprodutivas, responsáveis pela reprodução fúngica. 20 Unidade I A reprodução fúngica assexuada gera descendentes geneticamente idênticos ao original, pela fragmentação das hifas ou pela produção de esporos pelas hifas através da mitose. Nesse caso, dependendo da espécie, são produzidos esporos simples denominados conídios ou conidiósporos, ou esporos produzidos dentro de esporângios denominados esporangiósporo. A reprodução sexuada, por sua vez, sempre acontece por meio de esporos produzidos a partir de dois fungos geneticamente diferentes da mesma espécie, os quais, portanto, apresentarão características de ambos. Alguns fungos podem mudar sua estrutura de acordo com variações nas condições ambientais, tanto na concentração de gás carbônico quanto na temperatura. Neste último caso, podemos citar fungos patogênicos, que podem se apresentar como leveduras a 37 °C ou como fungos filamentosos a 25 °C. 1.4 Caracterização estrutural, metabólica e da reprodução das bactérias As bactérias são microrganismos adaptados para sobreviver em diversos ambientes, até mesmo com condições ambientais desfavoráveis, isoladamente ou agrupados em colônias. 1.4.1 Metabolismo bacteriano Podemos considerar metabolismo como uma sequência de reações enzimáticas divididas em reações que liberam energia e reações anabólicas que necessitam de energia para acontecer. As reações catabólicas liberam energia em forma de trifosfato de adenosina (ATP) ao degradarem compostos orgânicos complexos (ou macromoléculas), como moléculas de glicose; enquanto as reações anabólicas consomem energia (ou ATP) para a produção de macromoléculas, como pode ser visto na figura apresentada a seguir. O catabolismo libera energia pela oxidação das moléculas Energia é liberada por hidrólise do ATP Energia é armazenada em moléculas de ATP CO2 + H2OGlicose ADP+ P i ATP Energia Energia AminoácidosProteínas O anabolismo utiliza energia para sintetizar as macromoléculas que compôem a célula Figura 9 – Representação esquemática do papel do ATP na integração do catabolismo com o anabolismo. A degradação de moléculas complexas libera ATP, que pode ser usado como fonte de energia na biossíntese de macromoléculas De acordo com seu metabolismo, as bactérias podem ser classificadas em autotróficas e heterotróficas. As bactérias autotróficas são capazes de utilizar material inorgânico para sintetizar material orgânico, 21 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA podendo ser fotoautotróficas se realizarem fotossíntese – ou seja, se usarem a luz como fonte de energia –, ou quimioautotróficas se realizarem quimiossíntese – ou seja, oxidação de substâncias químicas inorgânicas –, como as bactérias fixadoras de nitrogênio, que vivem em mutualismo com plantas leguminosas. Por serem capazes de produzir energia de forma autônoma, as bactérias autotróficas não são patogênicas nem decompositoras de matéria orgânica morta. Ao contrário do que acontece com as bactérias heterotróficas, que não são capazes de produzir diretamente suas moléculas orgânicas e devem obtê-las a partir de outros seres vivos. As heterotróficas podem ser fotoheterotróficas se utilizarem energia da luz solar, mas requerem compostos orgânicos presentes no ambiente, como heliobactérias, bactérias verdes não sulfurosas e bactérias roxas não sulfurosas. A maioria das bactérias quimioheterotróficas cataboliza carboidratos extraídos de material orgânico ou de hospedeiros, principalmente glicose, para a produção de ATP por fermentação ou por respiração celular. 1.4.2 Estrutura bacteriana Assim como outros procariontes, as bactérias apresentam uma estrutura mais simples, com a ausência de núcleo delimitado por uma carioteca e outros componentes diferenciados que podem ser vistos na figura a seguir. Flagelo Citoplasma Membrana plasmática Parede celular Pili Cápsula Fímbrias Figura 10 – Representação esquemática da estrutura bacteriana 22 Unidade I Na maioria das bactérias, o nucleoide é composto por apenas uma molécula contínua de DNA circular condensado, que codifica todas as características bacterianas e se encontra disperso no citoplasma. Os ribossomos bacterianos são responsáveis pela síntese proteica bacteriana que acontece no citoplasma. Os flagelos são apêndices longos com função locomotora, constituídos de flagelina, que permitem à bactéria tanto a invasão tecidual quanto a evasão da resposta imunológica. Na estrutura bacteriana, os flagelos podem ser distribuídos de três formas diferentes: flagelo único em uma extremidade celular (monotríquia); vários flagelos na mesma extremidade celular (lofotríquia); e flagelos presentes em toda a superfície celular (peritríquia), conforme pode ser visto na figura a seguir. MonotríquiasLofotríquias Anfitríquias Anfitríquias Peritríquias Figura 11 – Representação esquemática da distribuição dos flagelos na estrutura bacteriana Enquanto as fímbrias ou pili são apêndices curtos, presentes em toda a superfície celular, constituídos de pilina. Eles podem ser divididos em pili comuns, que permitem adesão a superfícies e locomoção por contração; e pili sexuais, que permitem a troca de DNA entre bactérias no mecanismo de conjugação bacteriana. A membrana citoplasmática bacteriana é lipoproteica, não tem esteróis em sua composição e apresenta funções importantes como delimitação e seletividade no transporte de substâncias; respiração celular para produção de energia por fosforilação oxidativa; excreção de proteínas ou de enzimas para digestão de macromoléculas utilizadas como nutrientes; ativação celular após a ligação de substâncias específicas a seus receptores; e produção de substâncias utilizadas para a produção da parede celular. Algumas espécies bacterianas apresentam uma estrutura extracelular composta por uma camada polissacarídica, denominada cápsula, que permite aderência a células hospedeiras e dificulta o reconhecimento pelos fagócitos, impedindo sua fagocitose. Por outro lado, a parede celular é uma estrutura externa à membrana celular, responsável pela manutenção do formato bacteriano, pois impede que ocorra lise osmótica devido à entrada de água na bactéria, em condições isotônicas, uma vez que há uma elevada concentração de solutos dissolvidos no citoplasma bacteriano, gerando alta pressão osmótica. 23 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA Além disso, a parede celular é importante para o sucesso da reprodução bacteriana que acontece por fissão e contribui com sua própria biossíntese. A composição química e a estrutura podem variar, permitindo a classificação bacteriana de acordo com sua coloração pelo método de Gram, que avalia a capacidade de a bactéria reter o cristal violeta e o lugol, após aplicação de álcool ácido. Legenda Cristal violeta Iodo Álcool Safranina Gram-positiva Gram-negatica Aplicação de safranina (contracorante) Lavagem com álcool (descoloração) Aplicação de iodo (mordente) Aplicação de cristal vileta (corante púrpura) 1 2 3 4 Figura 12 – Representação esquemática do procedimento da coloração de Gram demonstrando cocos Gram-positivos (em púrpura) e bacilos Gram-positivos (em cor-de-rosa) Na coloração de Gram, o corante primário é o cristal violeta, que, ao ser aplicado, penetra no citoplasma bacteriano, tornando-o azul. A seguir, é aplicado um mordente, o lugol, que forma cristais com o corante primário, permanecendo no citoplasma. Até essa etapa, bactérias Gram-positivas e Gram-negativas se comportam da mesma forma, permanecendo azuis. Saiba mais Para saber mais detalhes sobre o procedimento realizado na coloração de Gram, acesse o site a seguir: BRASIL. Ministério da Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Técnica de coloração de Gram. 1997. (Série Telelab). Disponível em: https://telelab.aids.gov.br/moodle/pluginfile.php/22130/mod_resource/ content/2/Tecnicas%20de%20Coloracao%20de%20Gram.pdf. Acesso em: 11 fev. 2020. As bactérias Gram-positivas, que apresentam uma parede celular espessa, após a aplicação do álcool, permanecem azuis, devido à desidratação do peptideoglicano, o que impede a saída dos cristais presentes no citoplasma. 24 Unidade I O componente estrutural mais importante de uma parede celular Gram-positiva é o peptideoglicano, também conhecido como mureína, um polímero presente em várias camadas, ligadas por ácido teicoico de parede e ácido lipoteicoico de membrana, que gera uma malha resistente, porém maleável e seletiva. Proteína associada à parede Ácido teicoico Membrana citoplasmática Peptideoglicano Ácido lipoteicoico Figura 13 – Representação esquemática da estrutura da parede celular de bactérias Gram-positivas Por sua vez, as bactérias Gram-negativas, após aplicação do álcool ácido, são descoradas porque o álcool danifica sua membrana externa, gerando poros que permitem a saída dos cristais. Por esse motivo, para serem visualizadas, elas devem ser contracoradas com safranina ou fucsina, ficando vermelhas ou rosas, respectivamente. Isso acontece porque sua parede é composta por duas camadas distintas: a mais interna é uma fina camada de peptideoglicano, enquanto a membrana externa é composta por lipoproteínas, fosfolipídios e lipopolissacarídeos (LPS). Além disso, entre a parede e a membrana celular, existe um espaço periplasmático, que contém enzimas e proteínas transportadoras utilizadas para permitir a utilização de nutrientes e para a inativação de alguns tipos de agentes antimicrobianos. A presença das moléculas de LPS estabiliza a membrana externa, tornando-a seletiva para moléculas hidrofóbicas; entretanto, ela permite a passagem de substâncias hidrofílicas de baixo peso molecular, como açúcares e aminoácidos, por canais compostos por porina. Enquanto isso, as lipoproteínas ancoram a membrana externa à camada de peptideoglicano, estabilizando a parede celular. 25 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA Parede celular Membrana externa Polissacarídeo O-específico Polissacarídeo Lipídio A Periplasma Peptideoglicano Membrana citoplasmática Figura 14 – Representação esquemática da estrutura da parede celular de bactérias Gram-negativas Algumas bactérias apresentam parede celular diferenciada, basicamente composta por peptideoglicano e uma bicamada lipídica assimétrica, com ácido micólico ligado a arabinogalactano na parte interna e a lipídios na parte externa; tornando-as altamente hidrofóbicas. Isso impede que, durante a coloração de Gram, o corante violeta seja removido pelo álcool-ácido, que não consegue ultrapassar a parede celular resistente à descoloração, fazendo com que estas bactérias sejam denominadas álcool-ácido resistentes como, por exemplo, as bactérias do gênero Mycobacterium. Além da coloração de Gram, utilizamos características morfológicas como formato, tamanho e arranjos para classificar e identificar as bactérias. Assim, elas podem ser classificadas em monomórficas – ou seja, que sempre apresentam a mesma forma – ou em pleomórficas – ou seja, que alteram o formato em condições adversas –, o que prejudica sua identificação morfológica. As bactérias podem ser arredondadas (cocos), ter formato de bastão (bacilos) ou de espiral (vibriões, espirilos e espiroquetas) ou, até mesmo, ser retangulares ou ter formato de estrela. Dependendo do formato e da espécie, após a divisão celular algumas bactérias podem permanecer conectadas, gerando arranjos, que facilitam a identificação. Assim, os cocos podem ser encontrados como diplococos, estreptococos, tétradres, sarcinas e como estafilococos, conforme imagem a seguir. 26 Unidade I Sarcinas Tétrades Estafilococos EstreptococosDiplococos Figura 15 – Representação esquemática da morfologia dos cocos Por outro lado, os bacilos podem ser encontrados isolados, como diplobacilos ou estreptobacilos, sendo que alguns são ovais e, por isso, são denominados cocobacilos, como pode ser visto na figura a seguir. DiplobacilosBacilo Estreptobacilos Cocobacilos Figura 16 – Representação esquemática da morfologia dos bacilos As bactérias em espiral: as que apresentam estrutura rígida são os espirilos, enquanto as espiroquetas são flexíveis. Alguns destes formatos são apresentados na figura a seguir. EspiriloVibrião Espiroqueta Figura 17 – Representação esquemática da morfologia das bactérias espiraladas 27 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA 1.5 Crescimento bacteriano in vitro e fatores interferentes A reprodução bacteriana, também chamada de crescimento bacteriano, acontece por divisão celular, fissão binária ou bipartição. Após a replicação do DNA e a separação das células por um septo transversal, uma bactéria dará origem a duas bactérias-filhas. Parede celular Formação do septo Replicação do DNA Figura 18 – Representação esquemática da reproduçãobacteriana Assim, o crescimento bacteriano ocorre devido ao aumento do número de bactérias de uma colônia. Isso pode acontecer tanto in vivo – ou seja, quando a bactéria está presente em outros seres vivos – quanto in vitro – ou seja, quando ela é cultivada em laboratório em meios de cultura. O crescimento de uma cultura bacteriana é representado pela Curva de crescimento bacteriano in vitro, que apresenta quatro fases bem determinadas: Fase Lag, Fase Log, Fase estacionária e Fase de morte, como pode ser visto na figura a seguir. (3) Fase Estacionária (2) Fase Log (crescimento exponencial) (1) Fase Lag Tempo (horas) 0 0 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 42 5 73 6 8 Total de células na população Poucas células Células vivas Células mortas Lo ga rít m ic o (1 0n ) d e cé lu la s v iá ve is (4) Fase de Declínio Algumas células permanecem viáveis Figura 19 – Representação esquemática da curva de crescimento bacteriano in vitro 28 Unidade I Durante a Fase Lag, as bactérias estão se adaptando às condições de cultivo in vitro e, portanto, não se reproduzem, apesar de apresentarem alta atividade metabólica. Nesse momento, as bactérias começam a sintetizar enzimas para biossíntese de metabólitos ausentes no meio, preparando-se para o início da reprodução, que acontece na Fase Log. Na Fase Log ou de crescimento exponencial, as bactérias se reproduzem intensamente em um curto período, de forma logarítmica, e o número de bactérias aumenta rapidamente. A taxa de crescimento exponencial pode variar de acordo com as condições de cultivo, como, por exemplo, temperatura, composição do meio de cultura, atmosfera; assim como é influenciada por características metabólicas do próprio organismo. Já na fase estacionária, devido ao acúmulo de dejetos tóxicos, à escassez de nutrientes na placa e mudanças de pH, começa a acontecer a morte bacteriana, ao mesmo tempo que ocorre diminuição na velocidade de reprodução, fazendo com que o número de mortes seja igual ao número de bactérias novas, estabilizando a cultura. A Fase de morte ou de declínio, por sua vez, é caracterizada por morte celular acelerada, praticamente sem que haja reprodução in vitro, fazendo com que o número de bactérias diminua constantemente, até que não sobrem bactérias no meio de cultura. Para que o crescimento bacteriano in vitro ocorra, são necessárias condições ambientais e nutricionais favoráveis. Observação O pH define a característica do meio. Assim, meios neutros apresentam pH próximo de 7,0; meios ácidos, abaixo de 7,0; e meios básicos, acima de 7,0. A maioria das bactérias está adaptada a crescer em pH entre 6,5 e 7,5, ou seja, próximo da neutralidade. Poucas conseguem crescer em pH extremos, como, por exemplo, a Helicobacter pylori, que vive em ambiente ácido estomacal. Assim, praticamente todas as bactérias patogênicas crescem em meio neutro. Já a pressão osmótica é determinada pela concentração de soluto presente em uma determinada solução quando comparada a uma determinada célula, sendo que em soluções hipertônicas – com alta concentração de soluto e pressão osmótica elevada –, a célula perde água e sofre plasmólise; enquanto, em soluções hipotônicas – com baixa concentração de soluto e baixa pressão osmótica –, a célula recebe água e sofre citólise. Por esse motivo, a adição de altas concentrações de sal ou de açúcar em alimentos, como no bacalhau, por exemplo, pode conservá-los, porque isso impede o crescimento bacteriano ao matar a bactéria por desidratação. Apesar disso, as bactérias halófilas extremas conseguem sobreviver em ambientes hipertônicos e podem ser classificadas em halófitas obrigatórias, que só crescem em presença de altas concentrações 29 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA de sal; e em halófilas facultativas, que conseguem crescer em meios com até 15% de sal, como pode ser visto na figura a seguir. Exemplo: Escherichia coli Não halófilos NaCI (%) Ta xa d e cr es ci m en to 20151050 Exemplo: Halobacterium salinarum Halófilo extremo Exemplo: Aliivibrio fischeri Halófilo Exemplo: Staphylococcus aureus Halotolerante Figura 20 – Representação esquemática do crescimento bacteriano em resposta à variação de concentração de NaCl Quando consideramos a temperatura de crescimento, devemos nos lembrar de que existem faixas de temperatura que permitem o crescimento bacteriano, determinadas por uma temperatura mínima e uma máxima, e que dentro dessas faixas existe uma temperatura que estimula ao máximo a reprodução bacteriana, denominada a temperatura máxima de crescimento. Assim, considerando essas faixas, podemos classificar as bactérias de acordo com a figura a seguir. Temperatura (ºC) Ve lo ci da de d e cr es ci m en to 1101009080706050403020100-10 Psicrófilos Psicrotróficos Mesófilos Termófilos Hipertermófilos Figura 21 – Representação esquemática do crescimento bacteriano em resposta à variação de temperatura 30 Unidade I Assim, podemos perceber que as bactérias patogênicas para seres humanos e mamíferos são mesófilas, enquanto as bactérias capazes de deteriorar alimentos armazenados em geladeira são psicrotróficas. Já os principais fatores químicos capazes de influenciar o crescimento bacteriano são: concentração de carbono, nitrogênio, enxofre, fósforo, vitaminas e oxigênio. As bactérias autotróficas obtêm carbono a partir do dióxido de carbono, enquanto as quimioheterotróficas obtêm carbono, principalmente, de compostos orgânicos como proteínas, carboidratos e lipídios. Além do carbono, as bactérias precisam de nitrogênio, enxofre e fósforo para produção de componentes da estrutura celular e para seu metabolismo. Sendo assim, estes devem estar presentes nos meios utilizados para cultura bacteriana in vitro. As vitaminas são cofatores essenciais para o funcionamento de algumas enzimas essenciais para o crescimento bacteriano. Quanto à necessidade de oxigênio para crescimento, as bactérias podem ser classificadas em aeróbias estritas ou obrigatórias, anaeróbias facultativas, anaeróbias obrigatórias ou estritas, anaeróbias aerotolerantes e microaerófilas, cujo padrão de crescimento em tubo é apresentado na figura a seguir. Zona óxica (a) (b) (c) (d) (e) Zona anóxica Figura 22 – Representação esquemática do crescimento bacteriano em resposta à variação de concentração de oxigênio. Sendo (a) aeróbias obrigatórias, (b) anaeróbias obrigatórias, (c) anaeróbias facultativas, (d) microaerófilas e (e) anaeróbias aerotolerantes Bactérias aeróbias obrigatórias ou estritas precisam de altas concentrações de oxigênio para a produção de energia a partir de material orgânico, por isso crescem apenas na superfície do tubo, ou seja, na zona óxica. Apesar da alta toxicidade apresentada por alguns intermediários do oxigênio, que são produzidos durante o processo de respiração celular, isso é possível porque estas bactérias apresentam duas enzimas, a catalase e o superóxido dismutase (SOD), que consomem estes intermediários tóxicos. 31 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA As anaeróbias obrigatórias ou estritas não produzem catalase e SOD, o que torna a presença do oxigênio extremamente tóxica, causando a morte da bactéria. Por esse motivo, elas não utilizam oxigênio e crescem apenas no fundo do tubo (zona anóxica), onde realizam fermentação. Já as anaeróbias facultativas conseguem se desenvolver em presença de altas concentrações de oxigênio ou em sua ausência; sendo assim, elas são capazes de crescer em todo o tubo, ou seja, tanto na zona óxica quanto na zona anóxica. Isso acontece porque, em presença de oxigênio, elas fazem respiração aeróbica, e na ausência de oxigênio, fazem respiração anaeróbica ou fermentação, o que é possível porque elas também apresentam catalase e SOD. Já as anaeróbias estritas não produzem catalase e SOD, o que torna a presença do oxigênio extremamente tóxica, causando a morte da bactéria. Por esse motivo, elas não utilizam oxigênio e realizam fermentação. Por outrolado, as microaerófilas precisam de oxigênio para realizar respiração aeróbia, porém quando ele está presente em concentração atmosférica, os intermediários tóxicos que são produzidos tornam-se letais, por isso crescem no início da zona anóxica do tubo, ou seja, na região onde existe baixa concentração de oxigênio. As anaeróbias aerotolerantes, por sua vez, não utilizam o oxigênio porque fazem fermentação, mas toleram sua presença, uma vez que apresentam SOD, que consome parte dos intermediários tóxicos do oxigênio e, por esse motivo, conseguem crescer em todo o tubo, ou seja, crescem tanto na zona óxica quanto na zona anóxica. Agora que conhecemos os fatores que interferem no crescimento bacteriano in vitro, vamos falar um pouco do cultivo bacteriano em laboratório, que é realizado a fim de isolar e identificar bactérias. Esse cultivo acontece em meios de cultura, ou seja, em preparações químicas que contenham pH adequado e quantidade de nutrientes e de água suficientes para estimular o crescimento bacteriano. Eles podem ser líquidos, em que os nutrientes se encontram dissolvidos em uma solução, ou sólidos, em que é utilizado ágar como agente solidificante, permitindo a inoculação das bactérias na sua superfície para isolamento. Estes meios de cultura podem ser classificados de acordo com sua composição em quimicamente definidos, quando todos seus ingredientes estarão presentes sempre na mesma quantidade, e em complexos, quando são adicionados nutrientes, como extratos de leveduras ou produtos de digestão de proteínas, que variam de quantidade de acordo com a preparação do meio. Também podem ser classificados de acordo com sua função. Assim, um meio de enriquecimento, normalmente, é líquido, e estimula o crescimento bacteriano. Como exemplos temos o caldo Brain Heart Infusion (BHI) e o caldo tetrationato. Um meio de transporte não possui nutrientes, e sim um agente redutor, que previne desidratação e oxidação enzimática das bactérias presentes na amostra, a fim de preservá-las até que elas possam ser cultivas no laboratório, como o caldo tioglicolato. 32 Unidade I Já um meio seletivo contém antimicrobianos ou substâncias que impedem o crescimento de algumas bactérias, a fim de permitir a seleção e, consequentemente, o isolamento de determinadas espécies, utilizados para selecionar as espécies que serão isoladas e impedir o crescimento de germes, como o ágar manitol salgado e o ágar SS. Por outro lado, um meio diferencial permite a distinção de vários gêneros e espécies de microrganismos, ao promover uma mudança na coloração das colônias, como o ágar Eosin Methilene Blue (EMB) e o ágar entérico de Hektoen. Um meio indicador, por sua vez, permite a análise das propriedades bioquímicas bacterianas, através da mudança de coloração quando a bactéria for capaz de consumir algum componente presente, facilitando a identificação bacteriana, como o ágar Triple Sugar Iron (TSI) e o ágar citrato de Simmons. Exemplo de aplicação A identificação de uma bactéria patogênica presente em uma amostra biológica, como uma amostra de urina, é essencial para realizar o tratamento do paciente corretamente. Reflita a respeito da importância do cultivo bacteriano e da coloração de Gram para a identificação de bactérias patogênicas. 2 RELAÇÃO HOSPEDEIRO-MICRORGANISMO Para abordarmos as consequências da interação dos microrganismos que acabamos de estudar com hospedeiros humanos, inicialmente, precisamos discutir quando e como essa interação começa, assim como quais fatores podem alterá-la. Segundo o paradigma do útero estéril, durante a gestação, em condições fisiológicas, o ambiente fetal é estéril, fazendo com que nosso primeiro contato com microrganismos ocorra somente após o nascimento, tornando o tipo de parto realizado um fator importante. Assim, o parto normal faz com que este primeiro contato seja com microrganismos presentes na microbiota vaginal e anal da mãe, enquanto a cesariana faz com que ele seja com microrganismos presentes na pele da mãe e de indivíduos da equipe hospitalar ou no ambiente hospitalar. Em contraste, estudos recentes propuseram que este primeiro contato aconteceria ainda no útero. Alguns desses estudos identificaram a presença de bactérias comensais em amostras de mecônio de neonatos sadios que nasceram por parto normal ou por cesariana, sugerindo que fetos não são completamente estéreis e que pode ocorrer transferência materno-fetal de bactérias comensais, mediada por placenta. De qualquer forma, esse contato permite o estabelecimento de microrganismos no hospedeiro, que podem apenas colonizar os tecidos transitoriamente, colonizar permanente como componentes da microbiota ou causar infecções. 33 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA 2.1 Microbiota Microbiota é um agregado de microrganismos, mutualistas ou comensais, composto por bactérias, fungos e parasitas, que colonizam superfícies expostas do organismo do hospedeiro, como pele e mucosas. Os microrganismos mutualistas são aqueles que vivem em equilíbrio com o hospedeiro, realizando atividades metabólicas, protegendo contra infecções e promovendo o equilíbrio do sistema imunológico. Já os microrganismos comensais são aqueles que mantêm associações neutras com o hospedeiro, ou seja, sem benefícios ou malefícios detectáveis. Em determinadas condições, esses microrganismos não patogênicos podem se tornar patogênicos e causar infecções oportunistas. Isso acontece, por exemplo, quando, devido ao comprometimento imunológico do hospedeiro, componentes na microbiota passam a causar infecções. Por outro lado, na disbiose ocorre uma modificação abrupta dos componentes da microbiota, causada pelo aumento repentino de algumas espécies de microrganismos oportunistas, que geralmente estão presentes em pequena quantidade, perturbando a relação simbiótica entre o hospedeiro e os microrganismos e, consequentemente, podendo gerar doenças. Assim, a disbiose intestinal pode levar ao desenvolvimento de doença inflamatória intestinal, enquanto a disbiose vaginal está associada a aumento da incidência de infecção intra-amniótica, a alta incidência de parto prematuro e aborto espontâneo e a capacidade reduzida de conceber. Logo após o nascimento, os indivíduos começam a ser colonizados por microrganismos da microbiota materna, de outros indivíduos contatantes e presentes no ambiente. Isso faz com que, inicialmente, todos os tecidos apresentem microbiotas semelhantes. Apesar disso, durante a infância cada tecido desenvolve uma microbiota específica, que se estabiliza durante a idade adulta, gerando comunidades microbianas específicas e diversificadas cuja composição é determinada por vários fatores. A microbiota local pode apresentar diversificação devido à recombinação gênica gerada por mecanismos de variabilidade genética que são estimulados quando diferentes microrganismos passam a compartilhar o mesmo tecido colonizado. Outro fator importante é a seleção ambiental, que permite apenas o estabelecimento e o crescimento dos microrganismos mais adaptados às condições locais. Assim, a microbiota é constituída por microrganismos permanentes e por microrganismos transitórios. Microrganismos permanentes ou autóctones são aqueles que conseguiram se adaptar às exigências ambientais, se estabeleceram e estarão presentes durante toda a vida do hospedeiro. Enquanto microrganismos transitórios ou alóctones são aqueles encontrados nos tecidos em determinadas condições, mas que não conseguem se estabelecer porque não apresentam as características necessárias para uma colonização permanente. Os principais microrganismos que compõem a microbiota humana são apresentados na figura a seguir, de acordo com sua localização no organismo. 34 Unidade I Pele Staphylococcus Micrococcus Propionibacterium Corynebacterium Streptococcus Malassezia Pityrosporum Trato respiratório Staphylococcus Corynebacterium Streptococcus Hemophilus Neisseria Branhamella Ouvido Staphylococcus CorynebacteriumOlhos Staphylococcus Streptococus Neisseria Trato digestivo Bacteroides Lactobacillus Enterococcus Escherichia coli Proteus Klebsiella Enterobacter Bifidobacterium Citrobacter Fusobacterium spirochetes Cavidade oral Lactobacillus Neisseria Streptococcus Fusobacterium Actinomyces Treponema Bacteroides Trato urogenital Streptococcus Bacteroides Mycobacterium Neisseria Enterobacter Clostridium Lactobacillus Candida Trichomonas Boca Nariz Pele Pulmões Estômago Cólon Reto Intestino delgado Trato Urogenital Figura 23 – Principais espécies que compõem a microbiota humana A microbiota desempenha papel essencial na resposta a infecções, devido aos seus mecanismos de resistência à colonização, que impedem a expansão de oportunistas e a invasão por bactérias patogênicas. Incialmente, a microbiota atua diretamente competindo por sítios de colonização, diminuindo os estoques locais de nutrientes e produzindo moléculas inibitórias. No tecido, a microbiota, as bactérias patogênicas e as oportunistas competem diretamente por fontes limitadas de nutrientes e por espaço físico, fazendo com que a microbiota desenvolva mecanismos para matar seus rivais. Esses mecanismos envolvem a produção de fatores antimicrobianos com ação bactericidas, como, por exemplo, as bacteriocinas, polipeptídeos geralmente ativos contra bactérias relacionadas. Subprodutos metabólicos de bactérias abundantes na microbiota também podem apresentar efeito antimicrobiano contra patógenos, suprimindo seus fatores de virulência e diminuindo as concentrações de oxigênio para tornar o ambiente menos favorável a seu crescimento. Por outro lado, a competição da microbiota com os patógenos por nutrientes usados no metabolismo bacteriano é fator importante para o sucesso da resistência à colonização. Assim, o alto consumo de nutrientes, como açúcares e ferro, pelos componentes da microbiota diminui a chance de colonização tecidual por patógenos. Além disso, também ocorre a competição física por locais de adesão. Sendo assim, a ocupação maciça do tecido pela microbiota abundante dificulta a adesão dos patógenos ao tecido e, consequentemente, sua colonização. 35 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA Além da competição direta, também pode ocorrer competição indireta, em que a microbiota estimula a resposta imunológica do hospedeiro, a fim de promover a resistência à colonização. A microbiota presente em mucosas apesenta contato íntimo, contínuo e simultâneo com as células da resposta imune inata e da resposta adaptativa, promovendo o desenvolvimento e a maturação do sistema imune da mucosa. Enquanto componentes da microbiota podem produzir padrões moleculares associados a patógenos, ou seja, substâncias que desencadeiam uma resposta imune imediata para eliminar os patógenos presentes no tecido e podem modular a resposta imune adaptativa. Consequentemente, as interações entre o sistema imune e a microbiota podem determinar tanto resistência ou suscetibilidade a infecções quanto à patogênese da doença. 2.2 Mecanismos bacterianos de variabilidade genética Para serem patogênicos, ou seja, capazes de causar doenças, os microrganismos devem expressar vantagens adaptativas que favoreçam a adesão e a invasão tecidual, causem alterações teciduais e dificultem resposta imunológica. Denominadas fatores de virulência, essas vantagens são determinadas geneticamente e podem ser transferidas entre os microrganismos por meio dos mecanismos bacterianos de variabilidade genética, que também permitem que os microrganismos desenvolvam resistência a antimicrobianos. A variabilidade genética é causada por modificações no DNA bacteriano que podem gerar vantagens adaptativas, como, por exemplo, resistência a antimicrobianos ou capacidade de desenvolver biofilmes, assim como podem ser letais, causando a morte da bactéria cujo DNA foi alterado. Essas modificações podem ser geradas por mutações capazes de modificar a sequência de bases do DNA, promovendo o surgimento de novos genes e alterando a expressão de características codificadas. As mutações no DNA bacteriano podem ocorrer espontaneamente ou podem ser induzidas por agentes mutagênicos físicos ou químicos. Outro mecanismo que pode gerar essas modificações, é a recombinação gênica, causada pela transferência de genes entre duas moléculas diferentes de DNA, o que gera alteração no DNA bacteriano. Essa transferência pode ser vertical, quando a bactéria modificada, ao se reproduzir, passa os genes alterados para seus descendentes; assim como pode ser horizontal, quando uma bactéria doadora transfere fragmentos de DNA para bactérias receptoras. Após a captação, os fragmentos de DNA podem sofrer degradação por enzimas de restrição e se recombinar com o DNA original da bactéria receptora, gerando bactérias modificadas ou recombinantes; ou, ainda, podem começar a se replicar no citoplasma bacteriano, caso sejam transferidos plasmídeos. Na maioria dos casos, os genes presentes nesses fragmentos de DNA codificam enzimas e proteínas, que normalmente não seriam produzidas pelas bactérias não recombinantes. Além disso, pode ocorrer a 36 Unidade I transferência de genes que codificam fatores de virulência e fazem com que as bactérias recombinantes se tornem patogênicas. Atualmente, a transferência horizontal vem sendo utilizada em processos biotecnológicos de engenharia genética, para a produção de medicamentos e outras substâncias, como acontece com a produção de insulina recombinante. Esse tipo de transferência pode acontecer por três mecanismos diferentes, denominados: Transformação, Tradução e Conjugação. 2.2.1 Transformação bacteriana A transformação bacteriana ocorre quando uma bactéria receptora competente, que apresenta permeabilidade a moléculas de DNA, capta moléculas de DNA bacteriano e as incorpora ao seu próprio DNA por recombinação, gerando uma bactéria recombinante. Durante a transformação, podem ser captados fragmentos lineares de DNA, provenientes de bactérias lisadas, e plasmídeos que estejam livres no meio. Apenas alguns gêneros bacterianos são naturalmente capazes de realizar transformação; entre eles, podemos citar Streptococcus, Bacillus, Haemophilus e Neisseria. Para que a captação aconteça, o DNA exógeno deve se ligar à membrana bacteriana por meio de uma proteína de ligação ao DNA, que é codificada por sequências específicas, restringindo a transferência de genes a uma espécie bacteriana. Caso esse fragmento seja de dupla fita, ele pode ser captado íntegro ou pode ter uma das fitas degradada, no momento da captação. Caso o DNA captado fique livre no citoplasma bacteriano, ele será degradado por nucleases e usado como fonte de nutrientes pela bactéria hospedeira. Para evitar essa degradação, o DNA captado deve permanecer ligado a uma proteína de competência, que impeça a ação das nucleases, até que ele se integre ao DNA da bactéria receptora por recombinação. A recombinação ocorre graças a uma proteína denominada RecA, que substitui regiões homólogas do cromossomo bacteriano pelo fragmento de DNA, gerando uma bactéria transformada. 1. Ligação de DNA 3. Recombinação homóloga Célula transformada Proteína de ligação ao DNA Nuclease Nucleotídeos livres Célula receptora Cromossomo bacteriano (a) Proteína de ligação ao DNA de fita simples, específica da competência Proteína RecA(b) 2. Captação do DNA de fita simples DNA transformante (c) (d) Figura 24 – Representação esquemática do mecanismo de transformação bacteriana Gram-positiva. (a) Ligação do DNA de dupla fita por uma proteína de ligação ao DNA associada à membrana. (b) Passagem de uma das duas fitas para o interior da célula, enquanto a atividade de nuclease degrada a outra fita. (c) Ao penetrar na célula, a fita simples liga-se a outras proteínas específicas, sendo a recombinação com regiões homólogas do cromossomo bacteriano mediada pela proteína RecA. (d) Célula transformada 37 MECANISMO DE AGRESSÃO E DEFESA 2.2.2 Conjugação bacteriana
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