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TRABALHO E SOCIABILIDADE CAPÍTULO 1 - FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO TRABALHO E SUA CENTRALIDADE NA SOCIABILIDADE HUMANA Juliene Tenório e Marina Gondim Introdução Nesta unidade, vamos iniciar o aprendizado sobre os fundamentos do trabalho e da sociabilidade, conteúdo fundamental para a formação de Serviço Social, por contribuir para a compreensão de como funciona a sociedade capitalista em que vivemos, como ela faz uso do trabalho humano e para visualizarmos uma noção de trabalho que contribua para a liberdade e emancipação humana. Para começarmos essa trajetória, pense o que você sabe sobre trabalho. Que compreensão tem sobre ele? Que coisas boas e ruins ele traz? Que experiências de trabalho você viveu? E se dissermos que ele é fundamental para nós, humanos? E se ele for a manifestação da nossa capacidade de criação? Você já pensou sobre isso? Pois, nesta unidade, você terá a oportunidade de conhecer os fundamentos ontológicos do trabalho, ou seja, aquilo que é fundante, que faz parte de nossa natureza humana, que está na base e na forma como nos relacionamos como sociedade. Para isso, você aprenderá sobre conceitos como trabalho, sociabilidade e ser social. Esses termos parecem complexos e difíceis de entender, mas fique tranquilo, porque apesar da aparência, eles dizem respeito a coisas que vivemos no cotidiano e que serão utilizados como base de sua prática profissional. Além disso, você entenderá quais são os fundamentos ontológicos do trabalho a partir do que é ontologia e das categorias teleologia e práxis, identificando como esses fundamentos integram o trabalho, a nossa vida e trajetória humana, já que somos seres históricos e sociais, e percebendo como nossas ações influenciam e são influenciadas pela sociedade. Destacamos que essa forma de compreensão sobre o trabalho e a sociabilidade humana tem como referência a Economia Política, desenvolvida por Karl Marx, que buscou compreender a história real de indivíduo s em sociedade, a partir das condições materiais nas quais eles vivem. Vamos começar? Acompanhe! 1.1 O trabalho e sua centralidade na constituição da sociabilidade humana O termo “trabalho” faz parte do cotidiano e da vida de muitas pessoas, especialmente as que fazem parte da classe trabalhadora. São as pessoas que vivem e obtêm os meios necessários para sua sobrevivência através do trabalho, seja ele no mercado formal, informal, temporário, no empreendedorismo, ou mesmo no trabalho voluntário. Entretanto, mais do que sua importância na vida das pessoas que vivem do trabalho, ele é central para a constituição da sociabilidade humana, ou seja, o trabalho é fundamental, é a base para a forma como nos organizamos e nos relacionamos enquanto sociedade, ainda que, no decorrer da História, tenhamos criado muitas formas de trabalho, de modo de produzi-lo e de organização da sociedade. Antes de começarmos nossos estudos, vamos assistir a uma videoaula? Acompanhe a seguir. Neste item, você aprenderá sobre trabalho, sociabilidade e ser social, conhecendo essas categorias, apresentadas por Karl Marx, e a relação que existe entre elas. 1.1.1 Trabalho No senso comum, o termo trabalho é confundido com emprego. É como se quem não tem emprego formal não trabalhasse. Pense, por exemplo, como o que uma dona de casa realiza não é considerado, por muita gente, como sendo trabalho. No entanto, pense ou observe uma dona de casa realizando as tarefas necessárias: ao fazer a arrumação, ela tem uma finalidade? Ela utiliza instrumentos para isso? Ela faz todos os dias do mesmo jeito ou ela produz formas diferentes, a partir do que ela vai identificando que deu certo? Ela faz igual a todas as outras donas de casa ou criou um processo de trabalho próprio? A partir desse exemplo, vejamos o que é trabalho na definição de Marx. “Trabalho é, antes de tudo, um processo entre homem [mulher] e a natureza”, afirma Marx (2013, p. 255). O que isso quer dizer? Diante e sobre a natureza, homens e mulheres agem, intervêm, regulam, controlam as transformações, mas também sofrem a interferência dessa relação, por isso é um processo metabólico, natural. Porque, ao se apropriar de uma matéria natural que seja útil para sua vida, homens e mulheres colocam em movimento as forças naturais que fazem parte do seu corpo - braços, pernas, cabeça, tronco, mãos - para agir e modificar a natureza externa, mas modificando, ao mesmo tempo, sua natureza interna. E como ocorre a modificação da natureza interna? Vejamos um exemplo clássico. Homens e mulheres descobriram e produziram o fogo, ao bater uma pedra na outra. Interviram sobre a natureza externa - a pedra, o galho, as folhas - produzindo fogo. Ao produzi-lo alteraram também a natureza interna, com o aprendizado de como fazer o fogo, as melhores técnicas e ferramentas que deveriam ser utilizadas, alteraram sua rotina e descobriram novas formas de utilização desse fogo na iluminação, alimentação, guerras, dentre outras. A capacidade de agir sobre a natureza, modificá-la, ao mesmo tempo que se modifica, construir instrumentos, aprimorar a prática a partir da experiência e repassar o conhecimento através da história, assim como agir de diferentes formas e motivados por necessidades diversas, transformando a natureza para obter os meios necessários para sua vida material, são próprias dos seres humanos. Figura 1 - A produção do fogo é um exemplo de intervenção sobre a natureza Fonte: StockPhotosLV, Shutterstock, 2020. Por isso, não é correto limitar a definição do trabalho a emprego formal. Porque se você voltar a observar o exemplo da dona de casa com esses elementos, será possível perceber que ela parte de um objetivo (deixar a casa arrumada), utiliza-se de instrumentos (vassoura, pano de chão, rodo, produtos de limpeza), aprende com a experiência, desenvolve técnicas que aprimoram a arrumação e que tornam a sua forma particular de desempenhar a mesma tarefa que outras mulheres também realizam. Ela, assim como outros trabalhadores, possui a força de trabalho, ou seja, a capacidade de trabalhar. 1.1.2 Trabalho e sociabilidade Se buscarmos a origem da palavra “sociabilidade” no latim, veremos que ela deriva do termo “socabile, sociavelo”, que indica que a vida em grupo é uma exigência dos seres humanos, que precisamos de semelhantes para viver. Isso significa que sociabilidade é a nossa capacidade natural para viver em sociedade, mas que apresenta diferenças no decorrer da História. Seres humanos na época pré-histórica não se relacionavam da mesma forma que nós nos relacionamos hoje. Então, um ponto importante da sociabilidade diz respeito às relações sociais e a relação com o trabalho. Desde as mais antigas relações sociais, constituídas pela humanidade, sempre tiveram no trabalho a base, por ser ele o fundamento da própria reprodução da vida e eixo fundamental da sociabilidade humana (NETTO; BRAZ, 2011). Então, perceba que o trabalho é mais do que uma relação entre indivíduo/sociedade e natureza na busca por satisfazer necessidades materiais, ele implica e promove uma interação na sociedade, ela é essencialmente uma atividade coletiva ao definir seus sujeitos, suas formas de se relacionar, de se organizar, mas também construindo e impondo normas, regras, valores, processos de socialização, dentre outros. Voltemos ao exemplo da dona de casa, que citamos anteriormente. A atividade desenvolvida por ela, apesar de ter todos os elementos de um trabalho, não é considerado como tal neste contexto em que vivemos. Por quê? Quem define o que é ou não trabalho? Por que ele é considerado um trabalho VOCÊ QUER VER? O filme A Guerra do Fogo (1981), dirigido por Jean-Jacques Annaud, apresenta o contexto da pré-história, período em que a tribo Ulam se comunica por gestos e grunhidos e acreditam que o fogo é sobrenatural. Em um dia, a partir de um ataque, o fogo é apagado e três dos guerreiros da tribo saem numa jornada em busca de outra chama. Ao conhecer a tribo Ivaka, eles aprendem hábitos avançados, comunicação mais complexas e a produção do fogo. improdutivo e menosimportante? Por que ele é considerado como uma atividade eminentemente feminina? Tais definições não foram determinadas biologicamente nem por forças da natureza. Pelo contrário, são construções humanas, resultado de uma sociabilidade, de construção de hierarquias e valorização de diferentes formas de trabalho, da definição de o que é trabalho produtivo e improdutivo, da forma como as pessoas se enxergam realizando esse trabalho e se relacionam a partir dele. Figura 2 - Uma das etapas para a realização do trabalho doméstico é a escolha dos instrumentos Fonte: Diego Cervo, Shutterstock, 2020. VOCÊ QUER LER? O livro “Economia Política: uma introdução crítica” (2011), de José Paulo Netto e Marcelo Braz, aborda a Economia Política de forma didática, contribuindo para a compreensão de estudantes e profissionais da área social sobre o mundo contemporâneo, o trabalho e as complexas bases econômicas. Vale a pena ler! Então, se existe a compreensão de que a atividade de uma dona de casa não é trabalho ou é um trabalho menos importante, ele não será valorizado nesta sociedade, neste momento histórico. Por isso que é importante entender que as relações sociais entre indivíduos são diretamente ligadas com o tipo de sociabilidade em que vivemos. 1.1.3 Trabalho, sociabilidade e ser social Vimos, anteriormente, que o trabalho é um processo entre homens/mulheres e natureza, como também a importância que ele tem para a própria constituição da humanidade, das formas de organização e de relação que estabelece. Mas, se homens, mulheres e outros gêneros são também natureza, por que eles se diferenciam dela? Para entender isso, é necessário falarmos sobre ser social. Integrando a natureza, a espécie humana se desenvolve como um novo tipo de ser, o ser social. Por que se fala que o ser humano é um ser social e se diferencia do ser natural? Primeiro, porque é a partir do trabalho que ocorre não apenas a relação entre sociedade e natureza, mas, também, provoca a interação entre os sujeitos dessa sociedade e sua organização. Aqui se encaixam as regras sociais, a moralidade, a ética, a justiça, o direito, a forma de produzir e de distribuir a riqueza socialmente produzida, dentre outros aspectos. Segundo, porque não se pode separar a sociedade de seus membros. Não existem sujeitos singulares isolados, sem relação com a sociedade. Ou seja, a sociedade não é um amontoado de pessoas, mas os modos de existir do ser social (NETTO; BRAZ, 2011). Terceiro, porque só o ser social é capaz de realizar atividade teleologicamente orientadas, ou seja, projetar seu trabalho antes mesmo de realizar, objetivando-se materialmente e idealmente. Vamos retornar ao exemplo da mulher que trabalha como dona de casa. Ela projeta o resultado do seu trabalho, isso significa que antes mesmo de começar a arrumar a casa, ela tinha o objetivo de deixá-la limpa, organizada. Idealmente, ela visualiza o resultado de seu trabalho. Quarto, o ser social é capaz de comunicar-se e expressar-se pela linguagem articulada. Imagine que a mulher dona de casa é capaz de exteriorizar o pensamento, trocar informações e conhecimentos que recebeu anteriormente, seja de sua mãe, de seu pai, de alguém de sua família, construídos na sociedade como “melhor modo de fazer”, mas também ela tem a capacidade de construir novos conhecimentos e repassá-los. Figura 3 - Ser social = múltiplas sociedades (humanidade) Fonte: Andrey_Popov, Shutterstock, 2020. Quinto, somente o ser social trata suas atividades e a si mesmo de modo reflexivo e consciente, desempenhando suas atividades de trabalho ao mesmo tempo que reflete sobre ela. Tal processo, além de ter a capacidade de alterar a lógica e a forma como as coisas são feitas, altera também os sujeitos que a desempenham, pois “[…] o ser social toma a sua atividade e se toma a si mesmo como objeto de reflexão; através dela, o ser social conhece a natureza e conhece a si mesmo” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 53-54). Sexto, o ser social consegue escolher entre alternativas concretas, ou seja, a mulher, ao organizar a casa, tem a capacidade de escolher o que ela considera como a melhor forma, o instrumento mais eficaz, construída a partir da experiência repassada ou mesmo vivenciada por ela. Sendo essa possibilidade de escolha um exercício de liberdade. Sétimo, a capacidade do ser social de se universalizar que diz respeito às capacidades já mencionadas de pensar, conhecer, projetar, objetivar-se e escolher entre as alternativas. Nesse aspecto, o sujeito se desprende de sua individualidade, haja vista que são características compartilhadas com outros seres humanos. E, enfim, a sociabilização que torna os sujeitos seres sociais, em que o processo de apropriação do conhecimento, das normas, da cultura já existentes, assim como o desenvolvimento de novas por parte da sociedade e no interior da sociedade, através da interação social, especialmente a partir dos processos educativos, sejam vividos na escola ou fora dela. Figura 4 - Pensamento, reflexão, projeção e trocas são capacidades do ser social Fonte: SIphotography, iStock, 2020. Então, diante dessas características mencionadas, você consegue se perceber como um ser social? Viu como ao decidir fazer a simples leitura deste e-book, você já possuía um objetivo, seja aprender algo novo ou concluir a disciplina? Ao fazer a leitura, você tornou concreta sua intenção, recebeu um conteúdo e tem agora a capacidade de entender, expressar-se e comunicar-se sobre esse conteúdo. Além disso, você pode refletir sobre seus aprendizados anteriores e relacionar com os novos, pode pensar sobre sua vida e as relações que vem estabelecendo enquanto ser social. Pode também escolher sobre as formas de leitura do texto - se deitado, sentado ou em pé, se no computador ou celular, bem como dialogar sobre esse conhecimento a partir do seu entendimento, visão de mundo, experiências adquiridas, formas diferentes de explicar esse conhecimento e capacidade de construir novos saberes. Por isso, você é um ser social. Figura 5 - A educação é uma das formas de socialização do ser social Fonte: ESB Professional, Shutterstock, 2020. Assim, Iamamoto (2012) nos ajuda a compreender a relação entre trabalho, sociabilidade e ser social quando afirma que o trabalho é considerado em seu processo de realização como atividade do sujeito vivo, suas condições, meios, formas materiais e sociais assumidas. Para a autora, o “[…] trabalho que, sendo o selo distintivo de humanidade dos indivíduos sociais na construção de respostas às necessidades humanas, é portador de projetos a realizar, transformando simultaneamente o sujeito e a realidade” (IAMAMOTO, 2012, p.17). Ainda conforme Iamamoto (2012), podemos compreender que a dimensão do ser social é dada pelo trabalho, que só é possível como atividade coletiva entendendo que o próprio ato individual do trabalho é essencialmente histórico e social. Isso porque o trabalho vivo só se realiza mediante o consumo de instrumentos, materiais e conhecimentos legados por gerações anteriores. São resultados que trazem em si experiências do trabalho de outros já realizado anteriormente. Este expressa-se essencialmente no fato de que o homem só pode realizá-lo através da relação com outros homens e é nesse sentido que nos tornamos um “produto” social e histórico. VOCÊ SABIA? O trabalho, conforme Marx, constitui não apenas o fundamento ontológico do ser social, mas também o fundamento da liberdade. Nessa perspectiva, a liberdade ocorre quando o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e utilidade, e passa a ser desempenhado pela “[…] capacidade consciente de optar e escolher por finalidade e caminhos” (MONTANO; DURIGUETTO, 2011, p. 80). 1.2 Fundamentos ontológicos do trabalho No tópico anterior, você aprendeu o que é trabalho e a importância que ele tem, historicamente, na constituição dos seres humanos como seres sociais e na organização da sociabilidade humana. A partir de agora, vamos apresentar os fundamentos ontológicos do trabalho, na perspectiva de que você compreendaa centralidade ontológica que o trabalho tem na vida humana. Partimos da explicação de que, conforme dicionário, o termo “fundamento” significa princípios, alicerces, base, o principal apoio, o que sustenta (DICIO, 2020). Sendo assim, aprender sobre os fundamentos ontológicos do trabalho quer dizer que você terá acesso ao que é a base, ao que sustenta o trabalho. Para entender melhor sobre isso, acompanhe os tópicos que seguem. 1.2.1 O que é ontologia? Você já ouviu falar em ontologia? O que essa palavra significa? Que relação ela tem com o trabalho? Vimos que o termo fundamento significa, no dicionário geral, o principal apoio, o que sustenta. Mas o que quer dizer “fundamentos ontológicos”? Derivada do grego ontos "ente" e logoi "ciência do ser", a ontologia é a parte da metafísica (uma das áreas da Filosofia) que trata da natureza, realidade e existência dos entes. Ela trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres-objeto de seu estudo. Ou seja, de forma simples, ontologia é o estudo do ser. E, neste caso, o estudo do ser, da natureza do trabalho, ela trata das considerações gerais sobre a existência, a realidade (MEDEIROS, 2012). Integrando o campo da Filosofia, a ontologia foi discutida por muitos autores e sob diversas perspectivas teóricas. Aqui, no entanto, vamos nos deter na perspectiva de ontologia trabalhada por Karl Marx (2013) e explicada por Gyorgy Lukács (2010) no âmbito da teoria marxista. Karl Marx, ao buscar entender a sociedade capitalista, seu funcionamento, suas estruturas, como se organiza, como foi criada, voltou-se para o estudo da gênese, consolidação, desenvolvimento e condições de crise da sociedade burguesa, fundada no modo de produção capitalista (NETTO; BRAZ, 2011). Neste processo de pesquisa, Marx (2013) partiu da necessidade de compreender as diferenças entre o ser natural e o ser social, o processo de evolução das sociedades em diferentes momentos históricos, bem como o estudo do que era fundante do ser social, ou seja, o trabalho. Neste sentido, afirma Lukács (2013, p. 4), que somente o trabalho “[...] tem, como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele é, essencialmente, uma inter-relação entre o homem (a sociedade) e natureza, tanto inorgânica (utensílios, matérias-primas, objeto de trabalho etc.), como orgânica”. O trabalho, portanto, tem uma função ontológica de mediação entre as esferas do ser social, quais sejam: homens/mulheres e sociedade; natureza orgânica e natureza inorgânica. Ele compreende a totalidade do ser social ao mesmo tempo que consiste em um ato singular, porque ao desempenharmos Figura 6 - A análise e busca de conhecimento da realidade é feita por meio da pesquisa Fonte: Rawpixel.com, Shutterstock, 2020. qualquer trabalho, ainda que seja de forma individual, ele é importante e se amplia para o conjunto da sociedade. Diante da compreensão do que seja ontologia e da função ontológica, ou seja, essencial, que o trabalho desempenha no ser social, você percebe como o trabalho que você realiza, por menor que possa parecer, tem uma função extremamente importante para o conjunto da sociedade? Para entender melhor os fundamentos ontológicos do trabalho, vamos abordar a seguir duas importantes categorias marxistas, a teleologia e práxis. 1.2.2 O trabalho e a teleologia Partindo do princípio de que o trabalho que você desenvolve, para além de lhe dar as condições materiais de existência, pagar suas contas, sustentar sua família, tem reflexos e contribui para a sociedade, pense nas vezes em que você, antes mesmo de chegar ao local de trabalho, planejou suas atividades, idealizou estratégias e o resultado a que chegaria ao final do dia. Esta capacidade humana se chama teleologia. VOCÊ O CONHECE? O alemão Karl Heinrich Marx (1818-1883) foi um filósofo, economista, jornalista que se tornou um dos principais intelectuais e revolucionários de seu tempo. Articulando militância com produção teórica, produziu importantes obras, das quais se destacam “O Manifesto do Partido Comunista” e “O Capital”, leituras essenciais para a compreensão do trabalho e da sociabilidade na sociedade capitalista, inclusive na contemporaneidade. Um dos principais fundamentos é a capacidade que seres humanos têm de projetar, ou seja, antes mesmo de realizarmos uma atividade somos capazes de visualizar o resultado do nosso trabalho, de planejar, de refletir sobre os instrumentos e as formas de realizar, bem como de nos orientarmos por um objetivo bem definido. E é uma característica própria do ser social, a que Marx denominou como teleologia. Teleologia, portanto, consiste no planejamento e na elaboração de projetos individuais e coletivos, preexistindo a capacidade humana de produzir os próprios meios de subsistência, as condições materiais de sobrevivência. Essa capacidade é um elemento fundamental da socialização e condição fundante do trabalho. Figura 7 - Teleologia é a capacidade humana de planejar Fonte: Pedrosek, Shutterstock, 2020. CASO Marilda Iamamoto (2012), no livro “Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista”, afirma que o trabalho se constitui como atividade orientada para um fim, a produção de valores de uso, a assimilação de matérias naturais para a satisfação das necessidades humanas, envolvendo a apropriação da natureza pelo ser humano a fim de satisfazer suas necessidades. Para ela, existem duas características do trabalho humano fundamentais: Vamos usar o exemplo de uma assistente social que precisa realizar uma visita para atendimento de abandono de uma mulher idosa. Podemos afirmar, então, que: A possibilidade de criação de outros meios de trabalho pode se dar na medida em que a assistente social, a partir do conhecimento e da experiência, reflete e cria outros instrumentais que possam atender com maior agilidade e resultado ao que ela tinha idealizado antecipadamente. a dimensão teleológica, capacidade do ser humano projetar antecipadamente, na sua imaginação, o resultado a ser alcançado pelo trabalho; o uso e a criação de meios de trabalho, que se interpõem entre o indivíduo e o objeto e servem de veículo da ação conforme objetivos antecipados. • • dimensão teleológica: a assistente social tem como meta/objetivo/ideal em sua mente resolver a situação de abandono da mulher idosa; uso e criação de meios de trabalho: a assistente social se utiliza de instrumentais teórico-operativos que podem ser: a própria visita domiciliar, a entrevista, a elaboração de parecer social, a produção de um relatório social, bem como realizar encaminhamento para entidades de atendimento ao idoso, dentre outras opções. • • É essa capacidade teleológica que nos distingue dos animais. Os animais repetem suas atividades e são direcionados por determinações biológicas, ao contrário do ser humano. Marx (1980, p. 255-256), por exemplo, consegue colocar essa ideia na distinção que faz entre o trabalho humano e a atividade instintiva do animal: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isso é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicaçãodas suas próprias forças físicas e espirituais. Se você observar a citação anterior e a imagem abaixo, perceberá que é pelo trabalho que homens e mulheres, na condição de transformadores da natureza, atingem seu mais elevado ideal de realização, com consciência e liberdade. Quando agem, criam e empreendem, produzindo objetos e saberes, bens materiais e simbólicos, seres sociais atuam não somente no campo do fazer, isto é, no âmbito do trabalho, mas também no campo do saber e do poder, ou seja, no campo da cultura e da política. Figura 8 - O arquiteto como representação do trabalho humano Fonte: Franck Boston, Shutterstock, 2020. 1.2.3 Trabalho e práxis Você aprendeu que teleologia se refere à capacidade humana de planejar, construir idealmente o que executará por meio do trabalho. Agora, vejamos o que é práxis. Você já ouviu falar sobre ela? Muitas pessoas confundem o termo com “prática”, mas é muito mais do que isso. Práxis é uma expressão que se refere, geralmente, à ação, à atividade, como uma prática. No entanto, no sentido que Marx lhe atribui, ela consiste em uma atividade livre, universal, criativa e autocriativa, através da qual o ser social faz, produz, transforma e conforma seu mundo humano e histórico e a si mesmo. E, assim como a teleologia, é uma atividade específica do ser social, que o torna basicamente diferente de todos os outros seres e fazendo com que homens e mulheres sejam considerados como seres da práxis (BOTOMORE, 1988). Ao envolver o trabalho, a práxis vai além dele, incluindo todas as esferas criadas pelo ser social, como a ciência, a filosofia, a arte, dentre outras. Por isso, Netto e Braz (2011) ressaltam dois pontos importantes com relação à práxis. Primeiro, existe diferença entre a práxis voltada para o controle e a exploração da natureza quando comparada da práxis direcionada para intervir sobre o comportamento e a ação de homens e mulheres. Dessa forma, o objeto da práxis pode ser a natureza ou mesmo o próprio sujeito e outros seres humanos. Por exemplo, uma árvore pode ser transformada em móveis, a partir da intervenção de seres humanos sobre a natureza. Neste caso, a práxis foi voltada para o controle e a exploração da natureza, sendo a árvore o objeto da intervenção. Quando uma professora da Educação Infantil ensina às crianças a leitura, esta atividade também pode ser considerada uma práxis, à medida que as crianças vão aprendendo a ler. Neste segundo caso, a práxis é direcionada sobre o comportamento e conhecimento das crianças, sendo elas o objeto da intervenção. Temos, também, que a práxis pode produzir produto ou obra material e ideal, como resultado de sua intervenção. Pelo trabalho, o produto é algo material, “[…] mas há objetivações (por exemplo os valores éticos) que se realizam sem operar transformações em uma estrutura material qualquer” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 56). Figura 9 - No processo educativo, a práxis é direcionada sobre o comportamento e conhecimento das crianças, que são o objeto de intervenção Fonte: ESB Professional, Shutterstock, 2020. Voltando aos exemplos anteriores. A intervenção sobre a árvore pode gerar cadeira, guarda-roupa, estante, dentre outros objetos. O produto, portanto, é material, objetivo, palpável. No entanto, ao ensinar crianças a ler, o resultado é imaterial, subjetivo e se relaciona com a transmissão de conhecimentos produzidos por determinada sociedade. Chamamos atenção de que a práxis não é uma ação que se limita ao indivíduo. Ao buscar a transformação do ser social, as mudanças nas relações econômicas, políticas e sociais, a práxis recai não apenas sobre indivíduos isolados, mas também sobre grupos, classes sociais, a sociedade em geral. Nos dois casos descritos, o da produção de móveis e da alfabetização de crianças, as mudanças contribuem e impactam para além da pessoa que comprou o móvel ou da criança que aprendeu a ler. Enfim, a práxis, conforme Iamamoto (2012), é considerada um ato social, uma decisão entre alternativas efetuada pelo indivíduo singular, que faz suas escolhas acerca de propósitos futuros almejados. No entanto, não podemos esquecer que, em sociedade, não se faz escolhas independentes das pressões que as necessidades sociais exercem sobre os indivíduos singulares, interferindo nos rumos e nas orientações de nossas decisões. Conclusão Chegamos ao final desta unidade, que abordou o tema trabalho e sociabilidade. Agora você já sabe a relevância que a categoria trabalho tem na construção da sociabilidade humana e conhece a centralidade ontológica do trabalho na vida humana. Nesta unidade, você teve a oportunidade de: conhecer que trabalho é uma atividade essencialmente humana e que se distingue das atividades naturais realizadas pelos animais; aprender que o trabalho é base para as relações sociais; compreender que os seres humanos têm a capacidade natural de viver em sociedade, por isso, são seres sociais; saber que o ser social integra a relação entre sociedade e natureza, e provoca a interação entre sujeitos dessa sociedade e sua organização; entender que a ontologia é um ramo da filosofia que estuda o ser concebido como tendo uma natureza comum; conhecer que a Teleologia é uma capacidade inerente ao ser social de projetar e visualizar o trabalho idealmente antes mesmo de executá-lo; aprender que a Práxis consiste em uma atividade livre, universal, criativa e autocriativa, fazendo com que o ser social faça, produza e transforme a sociedade e a si mesmo. • • • • • • • Bibliografia A GUERRA do Fogo. Direção: Jean-Jacques Annaud. Roteiro: Gérard Brach. Produção: John Kemeny. França: Lume Filmes, 1981. 100 min., son., color. BOTTOMORE, T. (org.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. FUNDAMENTO. In: Dicio, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/fundamento/ (https://www.dicio.com.br/fundamento/). Acesso em: 12 jan. 2020. IAMAMOTO, M. V. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista. 5. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2012. LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. v. I. LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. v. II. MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. l. I, v. 1. MARX, K. Manuscrits de 1857-1858 (“Grundrisse” Tomo I e II). Paris: Editions Sociales, 1980. MEDEIROS, J. M. Se Marx tivesse escrito uma ontologia da sociedade, quais seriam seus elementos fundamentais? (http://outubrorevista.com.br/se-marx-tivesse-escrito-uma-ontologia-da-sociedade-quais- seriam-seus-elementos-fundamentais/) Revista Outubro, [s. l.], n. 26, 2016. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2016/07/08_Joao-Leonardo.pdf (http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2016/07/08_Joao-Leonardo.pdf). Acesso em: 6 jan. 2020. MONTAÑO, C.; DURIGUETTO, M. L. Estado, classe e movimento social. 3 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. NETTO J. P.; BRAZ, M. Economia Política: uma introdução crítica. 8. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. https://www.dicio.com.br/fundamento/ http://outubrorevista.com.br/se-marx-tivesse-escrito-uma-ontologia-da-sociedade-quais-seriam-seus-elementos-fundamentais/ http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2016/07/08_Joao-Leonardo.pdf
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