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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 CONTROLE PENAL VIA JUSTIÇA NEGOCIADA 1.1 Considerações iniciais 1.1.1 A influência neoliberal no mundo atual 1.1.2 Soluções antecipatórias da resolução do julgamento penal 1.1.3 A convivência entre a Civil Law e a Common Law 1.2 O nascimento do acordo criminal no Brasil 1.2.1 Inauguração do acordo criminal pela Lei nº 9.099/1995 1.2.2 A expansão do controle penal decorrente do acordo criminal 1.2.3 As novas modalidades de acordo criminal 1.3 A natureza de barganha do acordo criminal 1.3.1 Requisitos do plea bargaining 1.3.2 Modalidades do plea bargaining 1.4 Garantias constitucionais orientadoras do procedimento penal 1.4.1 O procedimento penal e o Estado Democrático de Direito 1.4.2 A garantia do procedimento 1.4.3 O devido processo penal 1.4.4 A presunção de inocência 1.4.5 O prazo razoável 1.5 Ponderações sobre a constitucionalidade do acordo de não persecução penal 1.5.1 Razões utilitaristas do acordo criminal 1.5.2 A constitucionalidade ou não do acordo criminal que exige confissão 1.5.3 Os interesses institucionais e suas subjetividades 2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL 2.1.1 A persecução penal 2.1.2 O equívoco legislativo 2.2 Perspectivas conceituais do acordo de não persecução penal 2.2.1 O oferecimento pelo Ministério Público, e não pelo querelante 2.2.2 A mitigação da obrigatoriedade e da indisponibilidade 2.2.3 Interesses contemporâneos que sedimentam tais paradigmas 2.2.4 Fotografia conceitual do acordo de não persecução penal 2.3 Como o acordo de não persecução penal pode ter caráter “despenalizador” se há preservação da pena? 2.3.1 O simplismo da afirmação de os acordos criminais adotados no Brasil serem institutos despenalizadores 2.3.2 Da necessidade de se analisar a pena enquanto efeito e consequência 2.3.3 Desvelando-se hipocrisias 2.3.4 Definitivamente o acordo de não persecução penal não se caracteriza como um instituto despenalizador 2.4 A não carcerização, ponto fulcral do acordo de não persecução penal 2.4.1 A pena de prisão é um problema 2.4.2 O acordo de não persecução penal trata-se de não carcerização 2.5 A estigmatização e o acordo de não persecução penal 2.5.1 A estigmatização e suas consequências 2.5.2 O acordo na função antiestigmatizante 2.6 A judicialização é requisito para o acordo de não persecução penal 2.6.1 Da atividade judicial e da atividade jurisdicional 2.6.2 O acordo de não persecução penal não tem caráter extrajudicial 2.6.3 O acordo é composição que só se convalida pela via jurisdicional 2.6.4 A realização da proposta de acordo é sempre extraprocessual 2.7 O caráter híbrido do acordo de não persecução penal: instituto de direito penal e de direito processual penal 2.7.1 O tempo da regência do direito penal e o do processo penal 2.7.2 A natureza híbrida do acordo de não persecução penal 2.7.3 A retroatividade da aplicação do acordo de não persecução penal para os processos em andamento 3 SUJEITOS INTERESSADOS E CONDIÇÕES PARA O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL 3.1 Quem são os sujeitos interessados acordantes? 3.1.1 Quando os opostos se atraem na persecução penal 3.1.2 O Ministério Público e o dever proponente do acordo 3.1.3 O acordo de não persecução como direito subjetivo do investigado/acusado 3.1.4 E agora? Direito subjetivo do investigado/acusado versus resistência do Ministério Público ao acordo 3.2 Requisitos para propositura do acordo de não persecução penal 3.2.1 Requisitos legais genéricos 3.2.2 Requisitos legais específicos (art. 28-A, caput, CPP) 3.2.2.1 Confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal 3.2.2.2 Condutas criminais praticadas sem violência ou grave ameaça 3.2.2.3 Pena mínima inferior a quatro anos 3.2.3 Necessidade e suficiência como requisitos e critérios para fixação das condições do acordo 3.2.4 Requisitos formais (condições de procedibilidade) e procedimentais 3.3 Condições ajustadas para o acordo de não persecução penal 3.3.1 Reparar o dano ou restituir a coisa à vítima 3.3.2 Renúncia a bens e direitos ligados à conduta delituosa 3.3.3 Prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas 3.3.4 Pagar prestação pecuniária 3.3.5 Outra condição indicada pelo Ministério Público 3.4 Hipóteses impeditivas ao acordo de não persecução penal 3.4.1 Quando cabível transação penal no Juizado Especial Criminal 3.4.2 Se o investigado/acusado for reincidente 3.4.3 Se o investigado/acusado mantiver conduta criminosa habitual, reiterada ou profissional 3.4.4 Quando o agente não tiver sido beneficiado nos últimos cinco anos com igual instituto ou outros também não encarceradores 3.4.5 Quando os crimes forem praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar ou em razão de gênero 3.5 Situações não impeditivas para o acordo de não persecução penal 3.5.1 É possível a formulação do acordo de não persecução para crimes hediondos e assemelhados, mormente no tráfico privilegiado? 3.5.2 Cabe o acordo de não persecução penal para os crimes eleitorais? 3.5.3 Da Justiça Militar e o acordo de não persecução penal 3.5.4 Crimes da competência do Tribunal do Júri e a possibilidade do acordo 3.5.5 É possível a aplicação do acordo em sede recursal? 3.6 A fase de negociação entre o Ministério Público e a Defesa 4 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO EM JUÍZO 4.1 O juiz criminal frente ao acordo de não persecução penal 4.1.1 A atuação do juiz criminal e o sistema acusatório 4.1.2 A Constituição e o juiz criminal 4.1.3 O juiz e o acordo de não persecução penal 4.2 A audiência de apresentação do acordo 4.2.1 A audiência e a oralidade 4.2.2 A audiência do acordo em processos em andamento 4.2.3 A audiência especial e suas finalidades 4.2.4 A imprescindível presença da defesa pessoal e técnica 4.2.5 A participação do Ministério Público 4.3 O controle da constitucionalidade e da legalidade do acordo em audiência 4.3.1 O controle da constitucionalidade e da legalidade do caso penal 4.3.2 Do controle do exercício das condições de postulação ao acordo 4.3.3 Do controle dos pressupostos formais do acordo 4.4 Controle das condições estabelecidas extrajudicialmente 4.4.1 Condições adequadas e inadequadas 4.4.2 Condições suficientes e insuficientes 4.4.3 Condições moderadas e abusivas 4.5 Controle da voluntariedade informada na adesão ao acordo 4.5.1 A preservação da vontade do declarante 4.5.2 O erro essencial que vicia a vontade 4.5.3 O dolo leva à enganação do declarante 4.5.4 Declarante coagido não tem vontade livre e a simula 4.5.5 O estado de perigo e o sistema acusatório 4.5.6 Audiência de custódia e realização do acordo 4.6 Recusa da homologação do acordo 4.6.1 A recusa de plano em face da ilegalidade não reparável 4.6.2 A inicial recusa da homologação para a reformulação do esboço do acordo 4.7 Da homologação do acordo de não persecução penal 4.7.1 A decisão de homologação e sua fundamentação 4.7.2 A decisão homologatória e seu conteúdo 4.7.3 Consequências imediatas da homologação 4.7.4 O recurso adequado em face da decisão homologatória 4.8 Da execução do acordo de não persecução penal 4.8.1 Assumindo que as condições são penas disfarçadas 4.8.2 A tarefa do Ministério Público na execução do acordo de não persecução penal 4.8.3 O proceder inicial do juiz da execução 4.8.4 A superveniência de questão nova a modificar a execução 4.8.5 Consequências do cumprimento do acordo 4.8.6 O descumprimento do acordo na execução 4.8.7 Consequências do descumprimento do acordo 4.8.8 O valor probatório da confissão instrumental do acordo de não persecução penal REFERÊNCIAS INTRODUÇÃO O direito objetivo, penal e processual penal, pós-Constituição de 1988, expresso pelo conjunto das leis que rege o ordenamento jurídico, tem sido pendular, movimentando-se de um extremo a outro, em ondas cíclicas de maior rispidez ou de atenuação em relação aos princípios do Estado Democrático de Direito. No entanto, ainda assim, não segue uma batida ritmada. Infelizmente, o ranço autoritário do ancien régime ainda prevalece na nossa cultura política, calcado que foi pela negativa de desvelar a memória dos períodosditatoriais, aliado ao sentimento conservador estribado pelo mote oligárquico e patriarcal que ainda viceja no seio de nossa sociedade. De fato, essa postura tende a ser mais cultural do que política e causa enorme estranheza o fato de este movimento, em torno do encantamento com legislação penal, como se fosse a tábua de salvação para todas as mazelas sociais, não ter re�uído mesmo na oportunidade de governos mais aliados aos preceitos democráticos. Ao fundo, registra-se uma enorme contradição, porque contrasta com os princípios marcantes do texto constitucional de 1988, o qual reinaugurou a Democracia no Brasil. O que é evidente em tudo isso é que o próprio projeto constituinte parece ter sido apenas uma saída estratégica para acomodar as inquietações sociais, quando o sistema já não continha a forte ebulição social por não mais suportar os rigores do regime ditatorial. Nesta artimanha, o suposto pacto para uma transição (a rigor, uma imposição daqueles que tinham assacado o poder político pelo golpe de 1964) abafou o passado como condição para se admitir a reabertura política e um novo texto constitucional. Com a nova Constituição, restabeleceu-se o paradigma democrático, que buscou resgatar uma enorme demanda por Direitos e Garantias Fundamentais, ao mesmo tempo em que se criaram barreiras e contrapontos para que não houvesse riscos para reincidência de um projeto ditatorial. No entanto, esses diques parecem não conter os germes do autoritarismo e do reforço do Estado Policial. A difusão enganosa de que há um aumento da criminalidade e violência urbana como uma tendência social ao descalabro não condiz com os sentimentos de liberdade que devem imperar no Estado Democrático de Direito. Este, ao �nal, serve de argumentos para endurecer as vias de controle, numa verdadeira contraposição democrática. Nesse dilema, deparamo-nos com uma base constitucional nitidamente garantista. Contudo, esta enfrenta enormes resistências no plano legislativo e prático, como se houvesse realidades distintas e os princípios e valores inseridos na Constituição, decorrentes de árduas lutas e conquistas por direitos civis e políticos, �cassem apenas no mundo das ideias, num patamar utópico. Mas, tudo indica que isso está dentro do planejado!! Diante desse cenário − muito por conta do radicalismo político que se acentuou nos últimos anos e que acabou por desvelar de vez sentimentos mais insanos de boa parcela da sociedade, pautada pelos renitentes de sempre aos ideais democráticos −, o pêndulo tencionou para um só lado. Este �cou emperrado na extremidade mais cruel desse balanço, produzindo consequências jurídicas no plano legislativo e judicial que signi�caram grandes retrocessos. Do mesmo modo, o modelo neoliberal fez imperioso o poder econômico sobre o poder político e com ele a submissão do Direito aos seus interesses1. Como adverte Rubens Casara, a racionalidade neoliberal rompe o modelo de justiça inerente com os princípios democráticos, limitador do poder político e econômico, para forjá-lo voltado à realização dos interesses do mercado e, em especial, dos detentores do poder econômico. Tudo e todos são tratados como objetos negociáveis, inclusive valores como a “liberdade” e a “verdade”.2 É o que ocorre com os modelos institucionais, ou com a roupagem, trazidos pela Lei nº 13.964/2019, deixando claro que a liberdade individual pode ser negociada em troca de informações que atendam aos interesses dos órgãos encarregados da persecução penal e que não necessariamente guardam relação com o valor “verdade”.3 A ciência jurídica não é mais o saber epistemológico em prol do avanço civilizatório, na expectativa de crescentes ganhos em torno da ascensão dos humanos, de conquistas de direitos fundamentais. O indivíduo foi colocado em segunda escala, na qual os interesses econômicos vêm em primeiro plano. O Direito, mais do que em qualquer outro momento histórico, tornou- se o braço servil do poder econômico. Não sem motivo, a tese da análise econômica do direito tem ganhado muitos adeptos e ditado os rumos da produção jurídica no mundo globalizado. Qualquer forma de regulação só tem sentido se atender a estes objetivos puramente econômicos. Mesmo quando aparentemente não se revela atraente, estará ali a intervenção jurídica sob o viés da maximização econômica, com a minimização de direitos fundamentais. É assim, e por esse motivo, que se constroem os argumentos jurídicos que irão redundar nas escolhas políticas e, com estas, na edição de leis e nas decisões judiciais, como instrumentos em prol do melhor desempenho das forças neoliberais. A exigência é que haja reduzida intervenção do Estado para o deleite glamouroso da livre iniciativa, inclusive com óbice para que interceda em favor dos mais frágeis. Porém, em contrapartida, impõe que sejam in�adas as estruturas estatais em torno das políticas de segurança pública, com o �m de aumentar as formas de controle social, sobretudo diante daqueles que são verdadeiros estornos num modelo de produção e consumo. Nessas circunstâncias, mais do que um trabalho hermenêutico sobre o novo instituto do acordo de não persecução penal, se pretende, neste texto, buscar abordagens minimamente críticas sobre o tema, sem esquecer os aspectos práticos e suas nuances. O desa�o é, portanto, conciliar esses pontos que eventualmente se chocam. Sobre essa temática, e o quanto o neoliberalismo esgarçou os modelos democráticos, forçando os Estados nacionais a glosarem Direitos Fundamentais em nome de interesses puramente econômicos, enquanto noutra via ampliando o Estado Policial, vide: SILVA, Denival Francisco da Silva. De Guardião a Vilão: a contribuição do Poder Judiciário no desmonte da Democracia no Brasil. Florianópolis: EMais, 2018. CASARA, Rubens. Em tempos de Justiça Neoliberal. Página eletrônica: Justi�cando. Coluna Cláusula Pétrea. Disponível em: http://www.justi�cando.com/2020/02/07/em-tempos-de-justica- neoliberal. Acesso em 9 fev. 2020. Publicado em 07 fev. 2020. CASARA, Rubens. Em tempos de Justiça Neoliberal. Página eletrônica: Justi�cando. Coluna Cláusula Pétrea. Disponível em: http://www.justi�cando.com/2020/02/07/em-tempos-de-justica- neoliberal. Acesso em: 9 fev. 2020. Publicado em 07 fev 2020. 1 CONTROLE PENAL VIA JUSTIÇA NEGOCIADA Ao se adentrar no primeiro capítulo, pretende-se discutir as circunstâncias fáticas, conferindo um olhar econômico que interfere na construção de um modelo de justiça baseado na composição penal, com a dispensa da tramitação de todo o devido processo penal. Objetiva-se delinear a origem do acordo criminal4 e discutir a sua natureza para que, posteriormente, o instituto do acordo penal da não persecução possa ser compreendido. Apresenta-se ainda a necessidade de situar as di�culdades do acordo criminal em face do ordenamento constitucional. 1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Para se entender o surgimento e a paulatina a�rmação do acordo criminal no seio do processo penal brasileiro, é fundamental abordar e conhecer o contexto social que levou à sua justi�cação perante o ordenamento jurídico, ainda que isso ocorra de modo perfunctório. Não há formação de conhecimento jurídico sem o alicerce emergido da complexidade social. 1.1.1 A in�uência neoliberal no mundo atual Nessa perspectiva, de início, cumpre ponderar que os avanços tecnológicos são determinantes para a massi�cação da globalização com a modi�cação da perspectiva da função do Estado Nacional. É certo que a globalização é impulsionada pelos objetivos econômicos. Logo, as ideias neoliberais têm ditado o ritmo da globalização, visando criar um mercado mundial voltado (somente) para quem possui o poder de consumir (homo economicus).5 Vale salientar que o neoliberalismo é fundamentado na doutrina do livre mercado, no qual o capital assegurou plena liberdade de ação para gerar as riquezas. Consiste está concepção econômica, que hoje domina a seara mundial, em um conjunto de políticas e processos que permitem a um número relativamente pequeno de interesses particularescontrolar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus benefícios individuais. 6 Sob a concepção neoliberal, incumbe ao Estado encolher as suas atividades perante a sociedade, reservando-lhe o papel de garantidor e promovedor do mercado livre ao mínimo, cabendo à responsabilidade individual e à iniciativa empresarial ocupar os espaços de investimento nas engrenagens sociais. Forja-se a visão pela qual o Estado se torna um empecilho; necessário para coisas miúdas.7 Desse modo, o Estado reduzirá ao essencial o seu aparelho administrativo, para assim reduzir ao máximo as suas despesas e poder cobrar o título de impostos aos seus cidadãos apenas o mínimo indispensável, na proporção dos haveres de cada um.8 Há a busca pela e�ciência com a depuração dos meios9 para se atingir a lógica da e�ciência do mercado.10 Atuar na economia é atividade sagrada para os interesses privados e agir profano para o Estado, cabendo a este ser um mero garantidor da liberdade individual econômica de fazer negócios em teórica igualdade de oportunidade para todos. O neoliberalismo apropria-se da bandeira da liberdade e da Democracia, apresentando-se com um signi�cativo poder de persuasão. Por conseguinte, este discurso, ajudado pelos inúmeros dispositivos de mobilização que o capital pode adquirir, se torna sedutor, camu�ando a sua capacidade contínua de originar uma crescente exclusão social com o abismo entre os ricos e os pobres.11 Fabricam-se consensos sob a matriz econômica e que são estruturados em mensagens subliminares que plantam sementes com o objetivo de gerar irre�etidas adesões ao projeto. O pensamento neoliberal associa-se a valores caros à humanidade para obter ganhos com a construção de um discurso único, sem alternativas,12 no qual os próprios excluídos se tornam soldados do exército da liberdade econômica. 1.1.2 Soluções antecipatórias da resolução do julgamento penal Especi�camente na legislação criminal, o discurso da e�ciência orienta para a desburocratização do processo e a subliminar mensagem de que as garantias fundamentais do cidadão, conquistas sedimentadas na história da luta contra a opressão daqueles que momentaneamente estão no poder, são transformadas em empecilhos à prestação jurisdicional. Garantias são intencionalmente desenhadas como monstrengos a atrapalhar o progresso. Dessa maneira, não surpreende a construção de idealizações jurídicas que oferecem soluções procedimentais que trilham o caminho da antecipação da resolução do caso penal13por intermédio da realização de acordos. Tais ideias alcançam uma fácil aceitação na imersão dos paradigmas neoliberais. É dado pouco valor à advertência de que os acordos penais concretamente carregam a potencialidade de desnaturar o devido processo penal, caso a negociação penal não seja manejada com extrema responsabilidade. 1.1.3 A convivência entre a Civil Law e a Common Law Sob outro prisma, pondera-se que a gradativa mistura dos institutos processuais penais do tradicional sistema nacional do Civil Law (fundado na legislação) com o Common Law (fundado na jurisprudência),14 fenômeno cada vez mais acentuado em nosso país, vem causando confusão sobre o entendimento das premissas estruturais de aplicação da legislação processual penal. A mencionada convivência entre princípios que partem de premissas calcadas em sistemas diferentes resulta na perda da referência de postulados anteriormente sedimentados e na aplicação desarrazoada e sem critérios transparentes de estranhos acordos criminais,15 trazendo enormes di�culdades e falta da segurança para aqueles que lidam com o cotidiano forense. Apesar de todos os problemas que podem ser apontados, o acordo criminal é cada vez mais realidade que se impõe em nossa legislação processual penal. Cabe aos juristas, realizar estudos para conhecer o funcionamento de seus mecanismos, conferindo o quanto for possível, uma atenta percepção escudada nos comandos constitucionais para se evitar a formação de um sistema na qual a prestação jurisdicional redunde numa espécie de justiça de afogadilho. 1.2 O NASCIMENTO DO ACORDO CRIMINAL NO BRASIL Com a promulgação da Constituição da República de 1988, nasceu a inovação do Juizado Especial, com a previsão da competência criminal para as denominadas infrações penais de menor potencial lesivo. Consoante expressa o art. 98, inciso I: A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses, previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Dentro da redação constitucional mencionada, abriu-se a possibilidade da chamada barganha penal16 por intermédio da transação para as infrações penais de menor potencial ofensivo. 1.2.1 Inauguração do acordo criminal pela Lei nº 9.099/1995 Após algum tempo, para referendar a previsão constitucional, instaurou-se a Lei nº 9.099/1995, abraçando os sedutores discursos da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e da celeridade. Dentro do texto legal, foram estabelecidas modalidades de acordos criminais. Nessa esteira, podem ser mencionadas: a composição dos danos cíveis com efeitos penais de extinção para os crimes de ação penal de iniciativa privada (art. 74, parágrafo único); a transação penal entre o Ministério Público e a pessoa indicada autora dos fatos (art. 76) e a realização da suspensão condicional do processo (art. 89). A partir da previsão constitucional da transação penal, a legislação regulamentou e ampliou o leque do acordo criminal com a inserção das demais modalidades indicadas. Pode-se a�rmar que a Lei nº 9.099/1995 inaugurou uma nova sistemática penal, disciplinando algumas medidas de não carcerização. Estas contêm, em si, a capacidade de provocar a discussão a respeito da vontade do ofendido no prosseguimento da persecução penal, com a abertura para o caminho da justiça negociada. 1.2.2 A expansão do controle penal decorrente do acordo criminal Cumpre sublinhar que, após as primeiras experiências do Juizado Especial com competência criminal, foi constatado que, ao contrário de obter o efeito de redução do espaço de atuação penal, houve a ampliação do controle penal.17 O resultado da aplicação dos Juizados na esfera penal permitiu o agigantamento do sistema penal.18 Outrora, em processo de desaparecimento no cotidiano forense, as contravenções penais e outros crimes de menor repercussão ganharam vigor. Inúmeras questões que tomavam o destino civil pela redescoberta da força penal, são utilizadas na condição de moeda de pressão. Ademais, fatos socialmente insigni�cantes receberam nova dimensão de signi�cado. Assim, os anseios irmanados à e�ciência (celeridade, economia e informalidade) se tornaram as armas mais manejadas, deixando para segundo plano o espeque da intervenção penal mínima que a criação da Lei nº 9.099/1995 prometeu. Não obstante a existência de inicial e profunda discussão19 sobre a constitucionalidade do acordo criminal, logo houve a paci�cação jurisprudencial no sentido da aplicação dos institutos fundados na consensualização penal. Assim, a legislação ordinária, a partir da década de 90 do século passado, vem aumentando o seu campo de atuação. Compreende-se que a busca pelo consenso, tão bem explorada pelos discursos economicistas,20 abriu pelas portas dos Juizados a possibilidade de se estabelecerem novos paradigmas penais. Neste enfoque, o acordo criminal tornou-se um aliado daqueles que propugnam pela edi�cação do gigantismo penal equacionado pela busca e�ciência dos �ns da aplicação da lei penal. 1.2.3 As novas modalidades de acordo criminal Após as modalidades contidas na Lei nº 9.099/1995, houve várias leis contendo facetas do acordo criminal. Para ilustrar este quadro, pode-semencionar: a Lei nº 10.409/2002, que estabelecia procedimentos para os crimes envolvendo drogas; a Lei nº 9.807/1999, que dispôs sobre a proteção de testemunhas, e a Lei nº 11.343/2006, que estabelece comandos sobre a questão das drogas. Nos aludidos exemplos há a previsão de acordo penal com a incidência de causa de diminuição de pena. Também é plausível apontar a Lei nº 12.529/2011, que inaugurou o acordo de leniência, e a Lei nº12.850/2013, que estabelece a delação premiada para os casos em que há envolvimento de crime organizado. Há que se constatar, consoante já avisado na parte introdutória, que de maneira rápida a lógica negocial transformou o processo penal num mercado persa, no seu sentido mais depreciativo21 o que se tem mostrado algo inevitável. Mais recentemente, é pertinente registrar que a Resolução nº 181/2017, emitida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, regulamentou, sem o devido amparo na legislação processual penal até então, o acordo de não persecução penal. Certamente essa Resolução serviu de inspiração para a nova sistemática negocial contida no Código de Processo Penal. Nesse quadro é relevante, a partir desse instante, o estudo da nova etapa do acordo penal, que é o acordo de não persecução penal, inaugurado pela reforma processual contida na Lei nº 13.964/2019, que deu conteúdo ao art. 28-A do Código de Processo Penal. 1.3 A NATUREZA DE BARGANHA DO ACORDO CRIMINAL O acordo criminal na esfera nacional recebeu orientação inicial do sistema jurídico da Itália por meio do instituto do patteggiamento.22 A transação penal da Lei nº 9.099/1995 é o exemplo típico da aludida inspiração.23 Contudo, observa-se que a crescente in�uência entre nós dos institutos da Common Law leva a compreender o acordo criminal a partir do instituto jurídico do plea bargaining desenvolvido nos EUA. 1.3.1 Requisitos do plea bargaining De acordo com Vinícius Gomes de Vasconcelos, na plea bargaining são identi�cados três requisitos para a sua admissibilidade24: a garantia da voluntariedade; o consentimento informado; e que o acordo esteja adequado à existência de uma conduta criminal plausível. Logo, o acordo se estabelecerá de forma voluntária, sem qualquer espécie de coação física ou moral que afete os acordantes.25 Não é cabível qualquer forma de pressão para a adesão ao acordo proposto. Ameaças subliminares de consequências jurídicas fáticas sobre a não aceitação são inaceitáveis. Assim, por exemplo, não se pode condicionar expressa ou veladamente a realização do acordo com o aceite do perseguido penal à concessão de liberdade provisória ou à manutenção de prisão cautelar. Soma-se à voluntariedade a existência de consentimento informado, porquanto é vital que a pessoa perseguida pelo Estado tenha pleno conhecimento de todas as circunstâncias jurídicas e fáticas que envolvem o acordo. O modo de cumprimento do acordo, as questões penais e processuais envolvidas, as consequências da aceitação ou da negação do acordo e de seu eventual descumprimento precisam ser informados expressamente ao perseguido, de forma tal que ele compreenda em que situação jurídica ele está inserido. É o perseguido um sujeito de direito e, assim, é imperativo que seja tratado. Por �m, o conteúdo da barganha necessita ter adequação com os fatos e a conduta supostamente praticada pelo perseguido penal.26 Há que se ter um suporte mínimo que dê embasamento para que a proposta de acordo não se traduza em abuso de acusação ou mera forma de se desburocratizar um imaginário caso penal, sobrecarregando a pessoa que está na condição de perseguido. Se não há adequação entre conduta e fatos, não há que se falar em proposta de acordo, mas em novas investigações via diligências ou de arquivamento formal do material existente. Realisticamente, premissas de legitimação da barganha, que sustentam um acordo entre partes em situação de igualdade, realizado de modo livre e informado, são falaciosas e ingênuas.27 Muitos são os obstáculos fáticos e sistêmicos que fragilizam a teoria da barganha. A ausência de igualdade entre as partes, a inerente coercibilidade do sistema de Justiça Criminal e os interesses burocráticos têm o condão de desvirtuar o alcance de seu ideal.28 1.3.2 Modalidades do plea bargaining A doutrina costuma apresentar três modalidades de plea bargaining.29 Na primeira, o investigado confessa os fatos para alcançar o acordo, sempre assistido pelo seu defensor. É o plead guilty. Há admissão da culpa para se ter alcance a um benefício que está previsto na legislação. Na segunda modalidade, para a realização do acordo, o investigado pode negar sua culpa com a alegação de inocência. Esta é a modalidade da not guilty. Aqui a pessoa que está sob a mira do Estado em sua faceta penal não precisa da postura de submissão, podendo, inclusive, se declarar inocente. Contudo, por questões de estratégia, declara que tem direito à realização do acordo criminal. Por derradeiro, a defesa pessoal, junto com a técnica, opta por não discutir o feito sem assumir se é ou não culpado. É a modalidade do nolo contendere. Esta modalidade, não obstante tenha o efeito parecido com a modalidade anterior, segue o caminho de não adentrar na discussão sobre os fatos penais, se satisfazendo com o acordo criminal. É o que se dá com a transação penal e a suspensão condicional do processo, ambos previstos na Lei nº 9.099/1995. Estabelecendo uma prévia ponte com o tema deste trabalho, qual seja, o acordo de não persecução penal previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, tema que será aprofundado no próximo capítulo, convém salientar que esta modalidade de acordo criminal exige a con�ssão circunstanciada dos fatos. Conclui-se, desta forma, que o acordo de não persecução penal é a modalidade da barganha da plead guilty, e a integralização do acordo exige a con�ssão de culpa. 1.4 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS ORIENTADORAS DO PROCEDIMENTO PENAL Realizado o estudo da natureza jurídica do acordo de não persecução, acredita-se ser prudente, antes de adentrar nas peculiaridades da legislação inaugurada, realizar, de forma perfunctória, ressalte-se, um estudo a respeito dos comandos constitucionais que tocam diretamente o procedimento da não persecução penal O objetivo é colocá-los na posição de �ltrar qualquer interpretação que possa violar o sistema de garantias processuais. 1.4.1 O procedimento penal e o Estado Democrático de Direito A premissa adotada nos estudos do acordo de não persecução penal é a da necessidade de se adequar às modi�cações processuais penais ao modelo constitucional de processo.30 Não há aplicabilidade aceitável longe dos paradigmas constitucionais. Ciente de que o procedimento é uma série de atos que caminham por meio da intervenção dos envolvidos no processo para se chegar ao objetivo de�nido de se dar uma reposta estatal aos fatos colocados à apreciação judicial, não é aconselhável ignorar que o procedimento tem a função de ser um dique às vazões estatais punitivas indevidas, uma função política fundamental de expressar concretamente o Estado Democrático de Direito. Existe um direito ao procedimento como direito à ação positiva do Estado para tornar efetivos os direitos fundamentais.31 Por intermédio do procedimento seria expandida a possibilidade de um resultado no processo mais em conformidade com os direitos fundamentais expressados na Constituição da República. Nesse sentido, o procedimento retrata um prosseguir de atos devidamente regulamentados e movidos pelas subjetividades para que cada cidadão reconheça, dentro das discussões do processo penal, a marca indelével da presença do Estado Democrático de Direito. O alvo é garantir a postura penal estatal em conformidade com os anseios de mínima proteção formal em face de eventuais abusos estatais indevidos. 1.4.2 A garantia do procedimento Em consonância com a Constituição da República de 1988, as garantias processuais contidas na sistemática processual penal adotada incidem em todas as formas de intervenção penal estatal. Logo, no decorrer doprocedimento penal, há a inafastável exigência de se observar todas as garantias que afetam o desenvolvimento do processo. A garantia traduz-se num mecanismo a serviço das normas jurídicas.32 Ela tem o objetivo de reforçar ou imprimir à norma uma força e um maior alcance. Lembra Jorge Miranda que o conteúdo e o sentido de uma norma não se garantem de per si, garantem-se através do conteúdo e do sentido de outras ou outras normas.33 Neste quadro, há normas jurídicas garantidas e normas jurídicas de garantia (estas ainda susceptíveis e ser garantidas). 34 De pouco valor teria a declaração no ordenamento jurídico penal dos Direitos Fundamentais se não se vissem eles garantidos por instrumentos aptos à sua asseguração, ao seu reconhecimento ou à sua satisfação por órgãos estatais aos quais conferidos poderes para sua precaução, determinação ou efetivação.35 O estabelecimento constitucional dos Direitos Fundamentais do indivíduo exige as garantias a eles correspondentes, a �m de preservá-los e tutelá-los mediante atuações judiciais, tanto quanto possível rápidas, prontas e e�cazes.36 Embora não seja concebível a abdicação de nenhuma garantia na caminhada procedimental, quando o manejo da lupa se volta para a apreciação do acordo de não persecução penal, pode ser asseverado que o devido processo penal, a presunção de inocência e o prazo razoável merecem especial atenção. 1.4.3 O devido processo penal A existência de um processo penal no caso concreto, visto pelo olhar social, não deixa de signi�car que há um processo de exclusão caminhando, na medida em que o �nal deste processo pode redundar em uma medida restritiva ao perseguido. Sob outro enfoque, no contexto do sistema jurídico adotado pelo Estado Democrático de Direito, o processo penal se constitui em instrumento de preservação da liberdade humana que está sendo ameaçada pela intervenção penal. A pessoa exclusivamente pode ser podada em sua liberdade caso o processo penal atue, estabelecendo os limites da restrição. Assim, o devido processo legal/penal é um freio constitucional a procedimentos estatais à margem do sistema democrático.37 Sublinha-se que o devido processo legal tanto é o processo necessário para a aplicação de qualquer pena estatal quanto signi�ca o adequado processo, ou seja, o processo que assegure a igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa.38 O respeito a todos os princípios constitucionais de certo modo está contido na noção do devido processo pena/legal, que acaba funcionando como garantia inominada. A observância do devido processo legal implica a não aceitação de qualquer situação processual que contrarie as garantias da situação jurídica processual estabelecida pelas partes do processo. 1.4.4 A presunção de inocência Durante toda a persecução penal, a presunção de inocência é uma premissa imprescindível para os parâmetros de racionalidade do processo penal. Tal garantia impõe ao intérprete uma posição ativa, ou seja, os atores processuais devem trabalhar no processo com a crença de que o réu é inocente. 39 A presunção de inocência expressa uma regra de comportamento perante o acusado, segundo o qual são ilegítimos quaisquer efeitos negativos que possam decorrer exclusivamente da imputação. Neste sentido, antes da sentença �nal, toda antecipação de medida punitiva ou que importe o reconhecimento da culpabilidade viola esse princípio fundamental. 40 Inúmeras são as consequências jurídicas de proteção que podem ser extraídas da presunção de inocência e que necessitam ser observadas. Para efeito de melhor compreensão, elas podem se manifestar (não excludentes, mas sim integradoras)41 como regra de garantia, regra de tratamento e regra probatória. A regra de garantia traduz-se na garantia de jurisdicionalidade, em virtude da qual a veri�cação da culpa criminal somente pode ser alcançada mediante um processo regular, o devido processo legal.42 Inclui-se, nesta faceta da presunção de inocência, a exigência de que o processo se inicie com a descrição clara do tipo penal e a necessidade de fundamentação para permitir a superação do estado de inocência. Por intermédio da regra de tratamento, o perseguido no processo penal deverá ser tratado como um cidadão livre submetido a esse processo porque existem suspeitas a seu respeito, porém, em nenhum momento sua culpabilidade poderá ser antecipada.43 No que tange à regra probatória, pode ser a�rmado que todo o ônus probatório da imputação pertence à acusação. Conferindo-se outra perspectiva, a presunção de inocência integra os direitos que guardam uma maior e estreita relação de dependência com a necessidade de estruturação organizacional e procedimental e�ciente. 44 1.4.5 O prazo razoável Com a reforma constitucional promovida pela Emenda n. º 45, entraram em vigor, no ordenamento constitucional, os princípios do prazo razoável de duração do processo e o da sua celeridade. Nesta linha de raciocínio, o sistema jurídico vigente deve adequar-se a essa nova exigência, revisando seus procedimentos e o próprio ritual judiciário, buscando equilibrar garantia e aceleração. 45 Pretende a Constituição que a duração do processo tenha a garantia de certa celeridade su�ciente para que a questão discutida não �que adormecida sem, no entanto, que a necessária maturidade para a melhor solução do caso penal não recaia em precipitação indevida. A delonga de um processo penal, além de violar a dignidade do imputado ao se tornar o caso penal uma tortura procedimental, provoca danos na produção probatória com sérios prejuízos para a construção da versão jurisdicional formal pautada na memória das subjetividades. Ademais, é interesse da coletividade que a função judicial possa passar uma certeza sobre sua capacidade de resolução dos casos penais. Se não se quer que a mora procedimental torne a função jurisdicional inútil, também não se pretende que o vetor punitivo acabe por atropelar a proteção mínima a que se incumbe o processo penal. Tanto na aceleração indevida, como na dilação indevida, temos a negação da jurisdição, pois não basta qualquer juiz e qualquer julgamento, a garantia da tutela jurisdicional exige qualidade.46 O maior desa�o interpretativo para a aplicação do acordo criminal é a compatibilização dos comandos constitucionais do devido processo penal e da presunção de inocência com os anseios e�cientistas de uma maior celeridade na resolução do caso penal. 1.5 PONDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL A partir da promulgação da Constituição da República de 1988, foi aberto campo para a discussão sobre a legalidade e constitucionalidade do acordo criminal e de seus limites. A insatisfação com a resposta dada pelo sistema processual tradicional, os anseios por uma maior celeridade com menos custos (visão pautada nos valores do mercado) e a importação de mecanismos processuais de outros países certamente contribuíram para a inovação constitucional. 1.5.1 Razões utilitaristas do acordo criminal Ademais, a crise �scal do Estado, o aumento da demanda por controle penal, a debilidade dos mecanismos de controle comunitário e a perda da legitimidade do próprio sistema de controle penal formal47 contribuíram para a formação de novas estratégias de controle penal que rompem com a concepção tradicional da prestação da justiça. Em tal perspectiva, a maximização de resultados com o menor esforço possível passou a ser um dos objetivos do processo penal brasileiro.48 Por meio do discurso do consenso, passo após passo, os pilares estruturais dos Direitos Fundamentais têm sido corroídos em favor do utilitarismo processual penal e caminhado para a direção de seu instrumento protagonista, que é a prisão. Quando se enfrenta a questão da compatibilização do acordo criminal perante o ordenamento constitucional e sua concretização ou não na prática forense, podem ser vislumbrados, em pleno confronto, os reclamos de minimização penal com os anseios de maior e�ciência na punição. Também não poderá ser esquecido, para efeitosde sedimentação ou não do acordo criminal, o papel desempenhado por cada uma das corporações responsáveis pela vivi�cação dos institutos penais e processuais penais. 1.5.2 A constitucionalidade ou não do acordo criminal que exige con�ssão Surge a indagação sobre a constitucionalidade do acordo criminal, que redunda na exigência de con�ssão espontânea para a sua homologação, aos moldes do acordo de não persecução penal, principalmente sob a ótica do devido processo penal e da presunção da inocência. Para Nereu José Giacomolli, o processo penal não pode correr o risco de tornar-se um lócus, onde se pode negociar com a liberdade das pessoas, como se negocia com as coisas no direito privado. 49 Aduz-se que o devido processo penal exige que o processo funcione como instrumento de preservação da liberdade. Posição plausível de ser sustentada é a que defende que a homologação judicial do acordo criminal contribui para subverter a função do processo, pois, ao contrário de trabalhar como freio constitucional, funciona como auxiliar para destino do caso penal de forma mais rápida e sem maiores gastos. Como instrumento de proteção dos Direitos Fundamentais, o devido processo penal signi�ca o adequado processo e o acordo criminal em suas diversas modalidades; ao antecipar um julgamento negativo ao cidadão, faz com que o processo funcione a favor do agigantamento do Estado punitivo. Além do mais, no acordo de não persecução penal, há um retrocesso processual no sentido de dar à con�ssão um valor superior. Sob a perspectiva criminológica, fator que precisa ser levado em consideração, questiona-se a existência de verdadeira negociação quando uma das partes está submetida às agruras do sistema penal e com a possibilidade de ter a sua liberdade restringida.50 Desta maneira, há que se frisar frágil tradição de democracia processual no processo penal, o que pode acentuar a seletividade penal. Lembra-se, ainda, que a presunção da inocência também poderia estar sendo atropelada com o acordo criminal, na medida em que, sem um julgamento ponderado, por meio da dialética contraditória para se chegar a uma solução maturada pelo caminhar dos atos procedimentais, os acordantes partem de uma premissa inicial que retrata o acusado como previamente culpado na adoção do plead guilty. Haveria violação da regra de tratamento (tratando o acusado como culpado) à regra probatória (isentando o Estado da comprovação da prova incriminatória) e da regra de garantia ao se abreviar o procedimento, instrumento assegurador dos Direitos Fundamentais. Como se vê, o acordo criminal pode ter um alto custo à sociedade que demanda proteger seus direitos. Em posição contrária, pode-se argumentar que a previsão da propositura do acordo criminal não é uma obrigação da defesa, mas sim para o Ministério Público quando presentes os requisitos legais. Isso ocorre no sentido de minimizar os danos de um julgamento �nal negativo ao acusado e à consequente evitação de virtual sentença condenatória. Para a defesa, o acordo criminal seria um recurso a mais no vasto desempenho da ampla defesa. Con�guraria a realização do acordo uma estratégia da defesa em observar, concretamente qual seria a posição mais favorável aos seus interesses. Ainda na defesa da aplicação do instituto, assevera-se que o devido processo penal e a presunção de inocência �cam intocáveis na medida em que se dá a faculdade de escolha à defesa. Esta pode optar pelo acordo de não persecução penal com a pertinente con�ssão, para que a situação penal fática do acusado tenha um ganho com o impedimento do nascer de um processo (nos casos em que ainda não exista) ou de uma sentença (para os processos pendentes). É fundamental, deste modo, projetar o real, e não o imaginário. A constitucionalidade ou não do acordo criminal e, notadamente, do novo acordo de não persecução penal poderá ser muito debatida até que se atinja um denominador comum realizável. Adeptos da maior e�ciência da punição e minimalistas penais serão protagonistas de inúmeros combates. Também a atuação das subjetividades dos partícipes do processo, ainda mais se for focalizado o pensamento médio representativo de cada corporação, não pode ser descartada na intervenção do destino do instituto do acordo de não persecução penal. 1.5.3 Os interesses institucionais e suas subjetividades Observa-se que a inovação do acordo de não persecução penal confere grande relevo para a atuação do Ministério Público. Acredita-se que tal ganho funcional não passará despercebido para os integrantes da instituição, o que resultará em um importante passo no sentido da sua efetivação no cotidiano forense.51 Por sua vez, salienta-se que, para a defesa técnica, embora, por dever de ofício, possa ocorrer uma inicial resistência, acredita-se que pode ocorrer posterior adesão ao acordo de não persecução penal. Este acordo valoriza ainda mais o papel do defensor técnico ao eleger a defesa como a detentora da palavra �nal sobre a estratégia realização ou não do acordo. Já pelo olhar da magistratura, o acordo de não persecução penal pode encontrar alguma insurgência por meio de reações contrárias à perda de “poder”. Muito mais do que resistências constitucionais, podem ocorrer rebeliões corporativas, ainda mais quando se percebe a existência de um confuso engajamento dos juízes com bandeiras políticas punitivistas disfarçadas pelo discurso da moralidade. Sem adentrar no mérito de�nitivo das questões levantadas sobre a constitucionalidade ou não do acordo de não persecução penal, acredita-se que, nos tempos do pragmatismo penal e da massi�cação da prestação jurisdicional (inevitável), nossos tribunais continuarão a dar respaldo à e�ciência dos mecanismos penais. Sobre a adoção da expressão “acordo criminal”, conferir: GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha – Espanha – Itália – Portugal – Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 24. McCHESNEY, Robert W. (Introdução ao livro CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002, p. 07). COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Temas de direito penal & processo penal: por prefácios selecionados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 91. AVELÂS NUNES, António José. As voltas que o mundo dá...: Re�exões a propósito das aventuras e desventuras do estado social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 15/16. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In: WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 143. AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e direitos humanos. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2005, p. 155. ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 51. Neste trabalho opta-se por utilizar o termo “caso penal”, expressão cunhada por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho para, quando houver a necessidade de dar referência ao conteúdo do direito processual penal, sempre partindo da premissa que apesar da relativização dos princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, os temas processuais penais não podem ser orientados por vetores civilistas que não enxergam o drama penal. Para maior profundidade do tema, conferir: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989. Neste contexto, “Unidade, coerência e completude (Bobbio) se esvaem” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Por que tem sido tão difícil cumprir a lei noBrasil? Publicação eletrônica: Consultor Jurídico- CONJUR. Coluna Limite Penal. Veiculado em: 02/11/2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-02/limite-penal-sido-tao-di�cil-cumprir-lei-brasil. Acesso em:7 fev. 2020). BIZZOTTO, Alexandre. Lições de direito processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, p.14. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à lei 9.099/95. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 16. Merece ser lembrado o artigo de Alexandre Wunderlich, intitulado “Sociedade de consumo e globalização: abordando a teoria garantista na barbárie. (Re) a�rmação dos direitos humanos”. In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a Justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. KARAN, Maria Lúcia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: RT, 2004, p. 38. Por todos: PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Sobre a fabricação de consensos na economia neoliberal é pertinente o livro: CHOMSKY, Noan. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformação constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 245. GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha – Espanha – Itália – Portugal – Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 326. Conferir: FRANCO, José Henrique Kaster. O que a justiça italiana pode ensinar ao Brasil. In: Revista Bonijuris. Ano 32, fev./mar. 2020. Disponível em: www.editorabonijuris.com.br. Acesso em: 15 fev. 2020. VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 210. VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 210. VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 210. VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 210. VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. 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Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 09. 2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL A ciência do direito e, em especial, o direito positivo têm como parâmetro de sustentação a linguagem escrita e falada. Porém, para além da representação descritiva dos signos linguísticos, a metalinguagem no direito é o seu lado mais emblemático, porque é onde se escondem signi�cados e objetivos que não estão latentes expressamente na redação e que, por isso, não transluz uma simples abordagem. Há de se destacar, no entanto, que a linguagem da ciência do direito e a do direito positivo necessariamente não se equivalem e não se confundem. Enquanto o direito positivo consiste no complexo de normas jurídicas válidas em determinado tempo e espaço, a ciência do direito con�gura a descrição daquele enredo normativo.52 Daí porque a aplicação do direito positivo carece de interpretação, não podendo ser um ato de mera reprodução do texto legal. Não se quer, com isso, provocar atitudes de insurgências contra a lei (podendo até eventualmente ocorrer, desde que se constate incongruência com os princípios gerais, a partir de uma análise consentânea com os parâmetros para sua validação). O alvo é dizer da necessidade de compreensão dos fenômenos jurídicos, sob os aspectos sistêmicos e cientí�cos do direito, com o intuito de unicidade do própriosaber, veri�cando quanto a especi�cidade do texto legal, e de quanto é preciso e de como se darão as intervenções jurídicas para regulação das relações sociais. Nesse ínterim, toda vez que surge um novo texto legal, sobretudo quando rompe antigos paradigmas, este sempre traz severos questionamentos, exigindo enormes re�exões para sua compreensão e aplicação. É o que há na recente reforma legislativa face à criação do instituto do acordo de não persecução penal, introduzido no ordenamento jurídico nacional pela Lei nº 13.964/2019. Trata-se de grande novidade que quebra padrões em torno da aplicação de instrumentos procedimentais pelo sistema penal, merecendo, portanto, detida análise. 2.1 A QUESTÃO DA NOMENCLATURA ADOTADA PELA LEI Nº 13.964/2019 Cumpre pontuar que a modi�cação efetivada no Código de Processo Penal, por intermédio da Lei nº 13.964/2019, ao abraçar o acordo de não persecução penal, parte de premissa equivocada na escolha do nome do instituto. É que se sugere que não existe uma persecução penal com a realização do acordo criminal em discussão. Mas há. 2.1.1 A persecução penal A persecução penal serve tanto para velar pelo Estado − que tem a missão, observando-se o devido processo penal de buscar a punição de quem viola o ordenamento jurídico com uma ação/omissão tipi�cada como infração penal−, como é uma proteção do cidadão. Ele somente pode sofrer punição estatal após a observância de todas as garantias que o processo contém. Sublinha-se que a persecução penal é composta por duas fases: a da investigativa criminal e a processual. A primeira é a fase da investigação, que se desenvolve no âmbito administrativo. Quando ocorre a notícia de um fato, que teoricamente resvala na integridade do ordenamento penal, o Estado tem o dever de apurá-lo e colher elementos de auxílio para a formação de convicção. Em consequência, a investigação é movida pelo comando do princípio da o�cialidade, cujo comando vigente é que a persecução penal é obra do Estado.53 Com o encerramento da fase da investigação criminal com o delineamento aparente de um fato penal, inicia-se a fase processual da persecução penal, instante em que se praticará uma série de atos conexos e sucessivos. O alvo é visar a um objetivo �nal de resolução da questão penal discutida, representada por uma sentença judicial, observando-se que tais atos são legitimados apenas com o efetivo contraditório entre o Estado e o perseguido. 2.1.2 O equívoco legislativo Para a realização do chamado acordo de não persecução penal, observa-se que já existe uma persecução penal. Porquanto depende, no mínimo, da existência de investigações criminais em curso, posto que poderá inclusive se encontrar na 2ª fase persecutória a qual envolve a ação penal. Seja representada por diligências policiais, por meio de informações documentais enviadas para autoridades, o certo é que persecução penal existe. Em igual sentido, Afrânio Silva jardim e Pierre ponderam que a persecução penal, quando da realização do acordo previsto no novo art. 28- A, já se iniciou (a primeira fase até �ndou), eis que o Ministério Público só fará tratativas com seu parteiro de negócio54 depois de estar instruído com o inquérito ou peças de informação. Embora se defenda a importância das escolhas técnicas, o acordo de não persecução penal é realidade e foi o nome escolhido para representar a possibilidade de abreviação do caso penal, desde que haja o consenso entre as partes. Assim, registrada a falta de técnica, é importante conhecer o instituto. 2.2 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL O acordo de não persecução penal é um instrumento legal que permite que as partes afastem a investigação criminal e, excepcionalmente, o processo em andamento. O objetivo é resolver o caso penal por intermédio de realização de acordo criminal entre as partes, com a necessária apreciação e homologação judicial mediante contrapartidas da acusação (não promoção da ação penal) e do investigado/acusado (submissão a condições legais impostas concretamente). 2.2.1 O oferecimento pelo Ministério Público, e não pelo querelante De início, é importante dizer que o acordo de não persecução penal permite que o Ministério Público, nas ações penais de iniciativa pública e nas condicionadas à representação da vítima, renuncie ao seu exercício em favor de se barganhar com o investigado/acusado e assuma algumas condições previamente estipuladas. Impende ressaltar que tal acordo não é pertinente na ação penal de iniciativa privada, haja vista que o querelante tem total disponibilidade da ação. Em tese é verossímil a realização de acordo entre querelante e querelado, mas isso não se caracteriza no acordo de não persecução penal, que implica a participação do Ministério Público na qualidade de titular da ação penal de iniciativa pública ou da ação penal de iniciativa pública condicionada à representação ou à requisição. Para reforçar a falta de possibilidade de realização do acordo de não persecução penal nas ações de iniciativa privada, ressalta-se que não há previsão legal na legislação. Além disso, a realidade produziria problemas de difícil solução, como ocorre no caso de recusa da vítima aderir ao acordo. Desta forma, não se pode ser cogitado que o magistrado atue de ofício para fazer uma proposta ou do promotor atuar, na medida em que não tem legitimidade para tanto.55 Salienta-se, no entanto, que existe respeitada posição defendendo que o Ministério Público pode fazer a proposta para se evitar desigualdades. 56 2.2.2 A mitigação da obrigatoriedade e da indisponibilidade Comumente, a ação penal de iniciativa pública é obrigatória, e o corolário disto é que ela se reveste da natureza da indisponibilidade. Não pode o Ministério Público dispor da ação penal por vontades ocultas. A indisponibilidade implica que ninguém pode encerrar o processo por caminhos anormais.57 Há que se preservar o devido processo penal sem que vontades arbitrárias possam interferir. Cumpre demarcar que a obrigatoriedade atua no momento da fundamentação para a propositura da ação penal. De seu lado, a indisponibilidade sustenta a manutenção do que foi disposto na ação penal no desenvolvimento do processo. A obrigatoriedade não é impedimento para o oferecimento de promoção ministerial fundamentada na direção do �m do processo. Esta se dá no exercício da garantia constitucional da independência funcional. Por outro lado, na própria legislação há casos que são apontados como exceções à obrigatoriedade e à indisponibilidade. É o que se dá com o acordo da não persecução penal. É perceptível que os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade, bem como o próprio direito de defesa, na sua mais plena concepção, foram mitigados nos últimos anos, conduzidos pela ânsia da expectativa da velocidade58 e da e�ciência dos dias atuais. Sobreveio, assim, a relativização da obrigatoriedade.59 2.2.3 Interesses contemporâneos que sedimentam tais paradigmas Sob outro ângulo, o pragmatismo político e jurídico – decorrente do fundamentalismo neoliberal e que foi fortemente disseminado com a nova globalização propiciada pela era digital e, com ela, o fenômeno expansionista da comunicação virtual60 – exige urgência na solução dos problemas sociais, de preferência sem a intervenção do poder público. Contudo, sendo necessário, impõe a máxima contenção de gastos públicos, sobretudo quando há pela frente temas economicamente não “rentáveis”. Por isso, são forjados entendimentos que deliberadamente seguem a trilha de tornar menos rígidos os Direitos Fundamentais, caracterizando-os negativamente e colocando-os na posição de estorvos a uma nova visão de modernidade. Nesse cenário, o sistema penal que antes era o limite para intervenção do Estado sobre as liberdades individuais, passou acentuadamente a servir aos interesses econômicos neoliberais em múltiplos aspectos, podendo ser destacados três aspectos mais chamativos. Por conseguinte, primeiramente, o sistema penal presta-se a conter os “indesejáveis”, aquelesque nada oferecem à sociedade globalizada, porque não produzem, não consomem e dependem, em grande medida, de políticas assistenciais e previdentes.61 O sistema penal devota-se a dar às forças produtivas segurança nas suas ações, inibindo que insurgências e contenções ao próprio modelo sejam entrave às suas atividades. Ademais, seus protagonistas empenham-se em realizar aliança com as forças políticas para aproveitar-se do exercício de atividades subterrâneas, a �m de obter lucros. Diante dessa lógica pragmática, vão sendo engendrados, pelo caminho legislativo, alguns instrumentos que buscam dar celeridade e economicidade ao exercício do direito de punir. O movimento implica o reducionismo de protocolos até então inarredáveis dentro do sistema penal, com a relativização dos Direitos Fundamentais. Ainda que se possa ressentir dessas novas engenharias, não é admissível, no quadro social reinante, repudiar toda e qualquer mudança paradigmática. Nessa conjuntura é preciso compreender que a dinâmica do mundo atual não permite estancar ideários apenas nas históricas bandeiras do passado. A percepção de um personagem extremamente fragilizado na relação persecutória e que não pode decidir sobre determinados pontos por si só, devidamente assessorado e orientado por defensor, pro�ssional de direito, não coonesta com a realidade atual. Essa mudança de paradigma permite ao sistema penal o rompimento de duas barreiras até pouco intransponíveis: abre mão dos mantras da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal e, em contrapartida, a título de barganha − sem tolher ao investigado/acusado o direito de ampla defesa e de se assegurar suas próprias escolhas −, dá-lhe oportunidade para optar por vias de solução mais rápidas, com a promessa de menores consequências. 2.2.4 Fotogra�a conceitual do acordo de não persecução penal O modelo em análise, novidade enquanto instrumento legal, é forma negociada de aplicação da justiça penal. Assim, como produto resultante de uma negociação entre sujeitos (não processuais) diretamente interessados – Ministério Público e Investigado/acusado –, rompe-se a orientação segura da obrigatoriedade/indisponibilidade da ação penal, abrindo oportunidade para transação e a consequente interrupção da persecução penal. Como todo pacto, o mencionado acordo traz direitos e obrigações, uma troca entre os interessados/acordantes. O Estado, por seu órgão titular da ação penal pública, desiste dos atos persecutórios, condicionando o investigado/acusado à submissão de determinadas “condições” instituídas legalmente (ao cabo verdadeiras penas antecipadas, porque impositivas pelo Estado, mas sem direito ao devido processo para formação de culpa). Em contraprestação, o indivíduo, até então sujeitado aos atos persecutórios, vê- se livre desses atos, evitando os efeitos e as consequências daí decorrentes, diretas e colaterais, desde que cumpra integralmente as condições acordadas, impedindo que o Ministério Público possa reacendê-los. O acordo gera obrigações entre os acordantes. No entanto, o seu descumprimento provoca sua rescisão, restabelecendo os procedimentos persecutórios. É que o Estado, por seu órgão titular da ação penal, não poderá forçar sua execução, restando rescindir o acordo e prosseguir com os atos persecutórios. Tão somente ao �nal do devido processo penal, com o resultado da sentença criminal condenatória (com todos os efeitos que lhes são adjacentes), é que se poderão, eventualmente, ser aplicadas as penas semelhantes àquelas previamente �xadas no pacto – com a nomenclatura de “condições” – e que deixaram de ser cumpridas. Todavia, a partir de então, o Estado contará com um título em desfavor do condenado, que poderá executar, inclusive, pelo modo mais inciso que lhe é permitido: expedindo-se mandado de prisão. 2.3 COMO O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL PODE TER CARÁTER “DESPENALIZADOR” SE HÁ PRESERVAÇÃO DA PENA? Conforme foi antecipado e super�cialmente tratado no capítulo anterior, é chegado o momento de discutir a natureza do acordo de não persecução penal, instituto assemelhado à transação penal e à suspensão condicional do processo. Signi�cativa parte da doutrina a�rma que estas possuem a natureza despenalizadora.62 2.3.1 O simplismo da a�rmação de os acordos criminais adotados no Brasil serem institutos despenalizadores Permissa venia, essa concepção parece simplista demais para seu dimensionamento. Embora se apresente como caminho menos turbulento, escapa dos reais objetivos que levaram à mudança de concepção quanto à legislação penal e processual penal, conforme as premissas estabelecidas na condição de políticas de segurança pública e criminais que são atualmente adotadas. É que, tomada essa narrativa “despenalizadora”, a um só tempo ela comete dois deslizes: “nega” a verdadeira essência do instituto, porque traz consigo a obrigatoriedade de cumprimento de sanções e, de igual forma, fabrica a ilusão de ascensão do princípio de um direito penal mínimo, quando a rigor tais soluções elevam a frequência da atuação estatal com a ampliação do controle social. Ligando esses dois extremos, nota-se que, mesmo aqui, o Estado não abre mão do exercício do ius puniendi, pois apenas faz uma concessão, se colocando na posição de emissor de um ato de benevolência, no sentido de interromper a persecução penal. No entanto, não despreza o imperativo categórico da pena, que é efetivamente aplicada com outras denominações e, pior, necessita de um devido processo (democrático). Com essas provocações, modestamente pretende-se aqui elucidar algumas questões. Para tanto, lança-se o olhar sobre pontos distintos sobre o novo instituto, visando a provocar re�exões críticas sobre o assunto e propondo a elaboração de de�nição jurídica consentânea com seu real sentido, para melhor compreender sua natureza e seus objetivos. De início, ousa-se discordar desse enfoque “despenalizador” que se quer atribuir ao instituto do acordo de não persecução penal, por entender se tratar de assertiva que parte de premissa incorreta. É certo que se houver a �xação no conceito estrito de pena, sendo ela apenas a consequência do sistema penal decorrente de uma decisão judicial condenatória, não haverá como negar esta característica ao novo instituto. Mas essa é tão somente uma faceta da sanção penal, a que pode ser denominada de pena stricto sensu. 2.3.2 Da necessidade de se analisar a pena enquanto efeito e consequência Partindo-se da análise da pena enquanto efeito e consequência decorrente do exercício do Estado punitivo sobre as liberdades individuais, qualquer obrigação que se imponha ao indivíduo, como forma candente de atuação do sistema penal, terá sempre a natureza sancionatória. Ou seja, toda determinação estatal sobre as condutas humanas no âmbito do sistema penal tem caráter potestativo e, por mais que o próprio sistema crie outras vias de satisfação das demandas nesta seara − querendo evitar o imperativo da ação penal, a qual traz em si a perspectiva de uma sentença condenatória, e que ao cabo �xará pena (stricto sensu) −, sempre virá carregada de obrigações impositivas, onerosas e limitadoras do direito de liberdade do indivíduo, como condições irrefutáveis à não instrumentalização de uma ação penal. Dessa maneira, toda vez que o Estado interfere nas liberdades individuais por seu braço punitivo, desde que não seja situação de abdicação dessa persecução pela vítima − quer pela condenação decorrente de uma ação penal, quer por qualquer outro caminho instituído legalmente como forma de satisfação dos interesses atinentes ao seu dever de garantir segurança pública a toda a coletividade − estará impondo sanção (pena lato sensu). A razão é porque não poderá dispor do exercício punitivo sem exigir algo em troca do infrator como verdadeira condicionante ou contrapartida. A saber, a sanção penal é essencialmente retributiva, vale dizer, a pena é a rea�rmação do poder estatal que se materializa por meio de uma restrição imposta àquele que violou a paz social garantida pelo Estado.63Eis aqui a constatação de que, sem a imposição sancionatória estatal – até ameaçadora quando se tem pela frente a tarefa da atender os propósitos da segurança pública e políticas criminais – não há via factível de acordo, porque somente pela existência de uma cláusula coercitiva, a qual o indivíduo se compromete a cumprir, se poderá efetivá-lo. O fato é que, ao se criar tais institutos “despenalizadores”(!), a par de considerar diverso o momento persecutório e o procedimento para seus usos, nem por isso se deixa de incidir o poder cogente do Estado penal sobre as liberdades individuais por meio de pena. Esse simples fato induz a concluir que nada muda essa natureza, senão a alteração da denominação dos institutos, sem que haja perda do viés impositivo e sancionador. Ao �nal, e sob a percepção sistêmica em relação ao poder de punir, o termo pena é tão somente substituído por outros, como medidas ou condições, mas sem perder seu caráter de cláusulas impositivas, com nítido viés de sanção. Basta observar que algumas das decantadas “condições” na legislação penal, previstas ao instituto da suspensão do processo (art. 89, da Lei nº 9.099/1995), se assemelham ipsis literis com determinadas penas restritivas de direitos (a reparação do dano indicada como condição para suspensão no art. 89, § 1º, I, equivale à pena pecuniária que pode ser revertida à vítima, prevista no art. 45, § 1º do Código Penal; a proibição de frequentar determinados lugares, descrita no art. 89, § 1º, II, como condição na suspensão, é idêntica à pena de interdição temporária de direitos, descrito no art. 47, IV, do Código Penal). A evidência se torna ainda mais clara ao se perceber que, para o caso das “condições”, então descritas a este instituto de não persecução penal, sequer são realizadas novas descrições, tendo o legislador preferido (talvez por praticidade), respectivamente no art. 28-A, III e IV do Código de Processo Penal, fazer remissões expressas aos arts. 46 (prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas) e 45 (prestação pecuniária, neste caso, exclusivamente destinada à entidade pública ou de interesse social) do Código Penal. Considerando-se, ainda, que uma das �nalidades da pena é a prevenção (geral e especial), não se nega que as mencionadas condições (ou poderiam ser denominadas de penas disfarçadas) exercem de modo mais efetivo esta tarefa. O investigado, ao se sujeitar aos termos apresentados pelo Estado, por seu órgão titular da ação penal, o toma como uma “lição”, como um aviso preventivo para que não volte a cometer outras condutas delituosas (inclusive sob a advertência de que não poderá mais gozar do benefício). Esse informe preventivo também é dado à coletividade. A resposta estatal de repreensão – com exigência para cumprimento de obrigações individuais com nítido caráter sancionatório – atende ao parâmetro de como não se pode conduzir (prevenção geral), servindo de alerta para que outros compreendam que poderão sofrer os idênticos efeitos intervencionistas do poder estatal em suas liberdades individuais, caso infrinjam iguais proibições. 2.3.3 Desvelando-se hipocrisias Esse debate, apenas aparentemente, pode ser considerado vazio. No entanto, sob a perspectiva em que é enredado o instituto, com foco em políticas de segurança pública e criminais, camu�a o real signi�cado, que é o de maior intervenção estatal sobre as liberdades individuais: o engodo de maiores liberdades e direitos, mas com a ampliação disfarçada do poder de vigilância e controle sobre os indivíduos. E isso ocorre por motivos óbvios. Quanto mais instrumentos e caminhos são forjados para o pleno exercício do direito de punir, sob o doce argumento de inversão quanto ao ímpeto punitivista, mais se agiganta o imperativo estatal sobre as liberdades individuais, alargando-se as oportunidades e condições para a incidência da tutela social pela via do sistema penal, tudo sob o manto discursivo de menor intervenção. A�nal, se apenas o Estado detém o controle do sistema penal, qualquer instituto que se proponha no sentido de (aparentemente) se fazer mais distante a necessidade de judicialização da aplicação das regras do sistema penal, com forte tendência a uma sentença condenatória − seja negociando outras medidas sancionatórias, seja, eventualmente, dizendo-se abrir mão do próprio direito de punir −, ainda assim passará, obrigatoriamente, pela seara estatal em razão do monopólio que detém sobre a temática. Assim, enquanto as agências do sistema penal puderem diminuir os esforços persecutórios, desburocratizando e resumindo a investigação criminal, almejando-se evitar a instauração de ação penal, simplesmente estará atendendo uma demanda neoliberal para contenção de gastos e custos nas esferas públicas, sob o prisma dos princípios que bem lhes convêm, da economicidade e celeridade. Todavia, esses atalhos não suprimem a tarefa contínua e cada vez mais presente de perseguição – sobretudo dos indesejáveis e mais frágeis – e exercício pleno do controle social pela via do sistema penal. Nesse contexto, ao contrário de se reduzir a atuação persecutória, alarga-se o poder intervencionista do Estado no campo penal, inclusive com subversão de princípios fundamentais, na medida em que restarão mais tempo e recursos para o seu exercício. 2.3.4 De�nitivamente o acordo de não persecução penal não se caracteriza como um instituto despenalizador Por estes motivos, não se pode a�rmar que o instituto do acordo de não persecução tenha caráter despenalizador. Se, ainda entre nós, João Calmon de Passos, que ao tempo da criação dos Juizados Especiais Criminais e de seus procedimentos, a�rmou que se tratava de verdadeira burla aos princípios democráticos e afrontosos aos Direitos Fundamentais, posto que impunha penas sem devido processo, deitar-se-iam novamente severas críticas. Não obstante a transação penal ainda seja propagada por muitos como um instituto com caráter despenalizador, não se duvida que, neste caso, existe contradição ainda maior e latente, porque o termo “pena” está inserto no próprio dispositivo que o institui: a transação penal é condicionada à aceitação de “pena imediata”, restritiva de direito ou multa. O fato é que, diante disto, o legislador não se omitiu e não cometeu nenhuma heresia na tentativa de dissimular a pena sob outras denominações terminológicas. Disse o que precisava ser dito: pena para se evitar pena (!!). A questão é: quem ganha com a pena de prisão64, mesmo quando não nominada de pena? Não é por isso, entretanto, que surgiram discussões quanto à imaginável inconstitucionalidade desta �gura, posto que, se o termo “pena” tivesse sido substituído por “condições”, prevalecer-se-ia o caráter sancionatório e, daí, igualmente, o debate quanto à supressão do devido processo penal. Essas críticas são também proferidas por renomados autores, como Geraldo Prado65 e Debora Regina Pastana66 e revelam o quão há de desejoso para a relativização dos Direitos Fundamentais, uma vez que não se arranjam desculpas e motivos para suprimir o deferimento de suas vias protetivas. Isso tudo é em nome de um interesse supostamente maior, sempre ligado à urgência de satisfação social quanto às políticas de repressão à violência criminalizada. O diferente agora, daquilo que Fauzi Hassan Choukr67 tratava como “processo penal emergencial”, é que as urgências se transformaram no trivial, tornando-se a exceção da exceção o que era antes padrão. Há um mote neoliberal ofuscado nessa estratégia e que se justi�ca pelos discursos ostensivos difundidos pela semeadura da cultura do medo68: o “aumento da criminalidade”; a impotência do poder público ante “o estágio crescente da violência urbana”; a “sensação de insegurança”; a necessidade, frente aos fatos precedentes, de se “conter a impunidade”, e tantos outros estratagemas para disseminar o apoio a medidas excepcionais e emergentes que tem como justi�cativa assegurar a proteção social. 2.4 A NÃO CARCERIZAÇÃO, PONTO FULCRAL DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL Ao se a�rmar que o
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