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Acordo De Nao Persecucao Penal

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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 CONTROLE PENAL VIA JUSTIÇA NEGOCIADA
1.1 Considerações iniciais
1.1.1 A influência neoliberal no mundo atual
1.1.2 Soluções antecipatórias da resolução do julgamento penal
1.1.3 A convivência entre a Civil Law e a Common Law
1.2 O nascimento do acordo criminal no Brasil
1.2.1 Inauguração do acordo criminal pela Lei nº 9.099/1995
1.2.2 A expansão do controle penal decorrente do acordo criminal
1.2.3 As novas modalidades de acordo criminal
1.3 A natureza de barganha do acordo criminal
1.3.1 Requisitos do plea bargaining
1.3.2 Modalidades do plea bargaining
1.4 Garantias constitucionais orientadoras do procedimento penal
1.4.1 O procedimento penal e o Estado Democrático de Direito
1.4.2 A garantia do procedimento
1.4.3 O devido processo penal
1.4.4 A presunção de inocência
1.4.5 O prazo razoável
1.5 Ponderações sobre a constitucionalidade do acordo de não persecução
penal
1.5.1 Razões utilitaristas do acordo criminal
1.5.2 A constitucionalidade ou não do acordo criminal que exige confissão
1.5.3 Os interesses institucionais e suas subjetividades
2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
PENAL
2.1.1 A persecução penal
2.1.2 O equívoco legislativo
2.2 Perspectivas conceituais do acordo de não persecução penal
2.2.1 O oferecimento pelo Ministério Público, e não pelo querelante
2.2.2 A mitigação da obrigatoriedade e da indisponibilidade
2.2.3 Interesses contemporâneos que sedimentam tais paradigmas
2.2.4 Fotografia conceitual do acordo de não persecução penal
2.3 Como o acordo de não persecução penal pode ter caráter
“despenalizador” se há preservação da pena?
2.3.1 O simplismo da afirmação de os acordos criminais adotados no
Brasil serem institutos despenalizadores
2.3.2 Da necessidade de se analisar a pena enquanto efeito e
consequência
2.3.3 Desvelando-se hipocrisias
2.3.4 Definitivamente o acordo de não persecução penal não se caracteriza
como um instituto despenalizador
2.4 A não carcerização, ponto fulcral do acordo de não persecução penal
2.4.1 A pena de prisão é um problema
2.4.2 O acordo de não persecução penal trata-se de não carcerização
2.5 A estigmatização e o acordo de não persecução penal
2.5.1 A estigmatização e suas consequências
2.5.2 O acordo na função antiestigmatizante
2.6 A judicialização é requisito para o acordo de não persecução penal
2.6.1 Da atividade judicial e da atividade jurisdicional
2.6.2 O acordo de não persecução penal não tem caráter extrajudicial
2.6.3 O acordo é composição que só se convalida pela via jurisdicional
2.6.4 A realização da proposta de acordo é sempre extraprocessual
2.7 O caráter híbrido do acordo de não persecução penal: instituto de
direito penal e de direito processual penal
2.7.1 O tempo da regência do direito penal e o do processo penal
2.7.2 A natureza híbrida do acordo de não persecução penal
2.7.3 A retroatividade da aplicação do acordo de não persecução penal
para os processos em andamento
3 SUJEITOS INTERESSADOS E CONDIÇÕES PARA O ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL
3.1 Quem são os sujeitos interessados acordantes?
3.1.1 Quando os opostos se atraem na persecução penal
3.1.2 O Ministério Público e o dever proponente do acordo
3.1.3 O acordo de não persecução como direito subjetivo do
investigado/acusado
3.1.4 E agora? Direito subjetivo do investigado/acusado versus
resistência do Ministério Público ao acordo
3.2 Requisitos para propositura do acordo de não persecução penal
3.2.1 Requisitos legais genéricos
3.2.2 Requisitos legais específicos (art. 28-A, caput, CPP)
3.2.2.1 Confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal
3.2.2.2 Condutas criminais praticadas sem violência ou grave ameaça
3.2.2.3 Pena mínima inferior a quatro anos
3.2.3 Necessidade e suficiência como requisitos e critérios para fixação
das condições do acordo
3.2.4 Requisitos formais (condições de procedibilidade) e procedimentais
3.3 Condições ajustadas para o acordo de não persecução penal
3.3.1 Reparar o dano ou restituir a coisa à vítima
3.3.2 Renúncia a bens e direitos ligados à conduta delituosa
3.3.3 Prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas
3.3.4 Pagar prestação pecuniária
3.3.5 Outra condição indicada pelo Ministério Público
3.4 Hipóteses impeditivas ao acordo de não persecução penal
3.4.1 Quando cabível transação penal no Juizado Especial Criminal
3.4.2 Se o investigado/acusado for reincidente
3.4.3 Se o investigado/acusado mantiver conduta criminosa habitual,
reiterada ou profissional
3.4.4 Quando o agente não tiver sido beneficiado nos últimos cinco anos
com igual instituto ou outros também não encarceradores
3.4.5 Quando os crimes forem praticados no âmbito de violência
doméstica ou familiar ou em razão de gênero
3.5 Situações não impeditivas para o acordo de não persecução penal
3.5.1 É possível a formulação do acordo de não persecução para crimes
hediondos e assemelhados, mormente no tráfico privilegiado?
3.5.2 Cabe o acordo de não persecução penal para os crimes eleitorais?
3.5.3 Da Justiça Militar e o acordo de não persecução penal
3.5.4 Crimes da competência do Tribunal do Júri e a possibilidade do
acordo
3.5.5 É possível a aplicação do acordo em sede recursal?
3.6 A fase de negociação entre o Ministério Público e a Defesa
4 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO EM JUÍZO
4.1 O juiz criminal frente ao acordo de não persecução penal
4.1.1 A atuação do juiz criminal e o sistema acusatório
4.1.2 A Constituição e o juiz criminal
4.1.3 O juiz e o acordo de não persecução penal
4.2 A audiência de apresentação do acordo
4.2.1 A audiência e a oralidade
4.2.2 A audiência do acordo em processos em andamento
4.2.3 A audiência especial e suas finalidades
4.2.4 A imprescindível presença da defesa pessoal e técnica
4.2.5 A participação do Ministério Público
4.3 O controle da constitucionalidade e da legalidade do acordo em
audiência
4.3.1 O controle da constitucionalidade e da legalidade do caso penal
4.3.2 Do controle do exercício das condições de postulação ao acordo
4.3.3 Do controle dos pressupostos formais do acordo
4.4 Controle das condições estabelecidas extrajudicialmente
4.4.1 Condições adequadas e inadequadas
4.4.2 Condições suficientes e insuficientes
4.4.3 Condições moderadas e abusivas
4.5 Controle da voluntariedade informada na adesão ao acordo
4.5.1 A preservação da vontade do declarante
4.5.2 O erro essencial que vicia a vontade
4.5.3 O dolo leva à enganação do declarante
4.5.4 Declarante coagido não tem vontade livre e a simula
4.5.5 O estado de perigo e o sistema acusatório
4.5.6 Audiência de custódia e realização do acordo
4.6 Recusa da homologação do acordo
4.6.1 A recusa de plano em face da ilegalidade não reparável
4.6.2 A inicial recusa da homologação para a reformulação do esboço do
acordo
4.7 Da homologação do acordo de não persecução penal
4.7.1 A decisão de homologação e sua fundamentação
4.7.2 A decisão homologatória e seu conteúdo
4.7.3 Consequências imediatas da homologação
4.7.4 O recurso adequado em face da decisão homologatória
4.8 Da execução do acordo de não persecução penal
4.8.1 Assumindo que as condições são penas disfarçadas
4.8.2 A tarefa do Ministério Público na execução do acordo de não
persecução penal
4.8.3 O proceder inicial do juiz da execução
4.8.4 A superveniência de questão nova a modificar a execução
4.8.5 Consequências do cumprimento do acordo
4.8.6 O descumprimento do acordo na execução
4.8.7 Consequências do descumprimento do acordo
4.8.8 O valor probatório da confissão instrumental do acordo de não
persecução penal
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
 
O direito objetivo, penal e processual penal, pós-Constituição de 1988,
expresso pelo conjunto das leis que rege o ordenamento jurídico, tem sido
pendular, movimentando-se de um extremo a outro, em ondas cíclicas de
maior rispidez ou de atenuação em relação aos princípios do Estado
Democrático de Direito. No entanto, ainda assim, não segue uma batida
ritmada. Infelizmente, o ranço autoritário do ancien régime ainda prevalece
na nossa cultura política, calcado que foi pela negativa de desvelar a
memória dos períodosditatoriais, aliado ao sentimento conservador
estribado pelo mote oligárquico e patriarcal que ainda viceja no seio de
nossa sociedade.
De fato, essa postura tende a ser mais cultural do que política e causa
enorme estranheza o fato de este movimento, em torno do encantamento
com legislação penal, como se fosse a tábua de salvação para todas as
mazelas sociais, não ter re�uído mesmo na oportunidade de governos mais
aliados aos preceitos democráticos. Ao fundo, registra-se uma enorme
contradição, porque  contrasta com os princípios marcantes do texto
constitucional de 1988, o qual reinaugurou a Democracia no Brasil.
O que é evidente em tudo isso é que o próprio projeto constituinte
parece ter sido apenas uma saída estratégica para acomodar as inquietações
sociais, quando o sistema já não continha a forte ebulição social por não
mais suportar os rigores do regime ditatorial. Nesta artimanha, o suposto
pacto para uma transição (a rigor, uma imposição daqueles que tinham
assacado o poder político pelo golpe de 1964) abafou o passado como
condição para se admitir a reabertura política e um novo texto
constitucional. Com a nova Constituição, restabeleceu-se o paradigma
democrático, que buscou resgatar uma enorme demanda por Direitos e
Garantias Fundamentais, ao mesmo tempo em que se criaram barreiras e
contrapontos para que não houvesse riscos para reincidência de um projeto
ditatorial.
No entanto, esses diques parecem não conter os germes do
autoritarismo e do reforço do Estado Policial. A difusão enganosa de que há
um aumento da criminalidade e violência urbana como uma tendência
social ao descalabro não condiz com os sentimentos de liberdade que
devem imperar no Estado Democrático de Direito. Este, ao �nal, serve de
argumentos para endurecer as vias de controle, numa verdadeira
contraposição democrática.
Nesse dilema, deparamo-nos com uma base constitucional nitidamente
garantista. Contudo, esta enfrenta enormes resistências no plano legislativo
e prático, como se houvesse realidades distintas e os princípios e valores
inseridos na Constituição, decorrentes de árduas lutas e conquistas por
direitos civis e políticos, �cassem apenas no mundo das ideias, num
patamar utópico. Mas, tudo indica que isso está dentro do planejado!!
Diante desse cenário − muito por conta do radicalismo político que se
acentuou nos últimos anos e que acabou por desvelar de vez sentimentos
mais insanos de boa parcela da sociedade, pautada pelos renitentes de
sempre aos ideais democráticos −, o pêndulo tencionou para um só lado.
Este �cou emperrado na extremidade mais cruel desse balanço, produzindo
consequências jurídicas no plano legislativo e judicial que signi�caram
grandes retrocessos.
Do mesmo modo, o modelo neoliberal fez imperioso o poder
econômico sobre o poder político e com ele a submissão do Direito aos seus
interesses1. Como adverte Rubens Casara, a racionalidade neoliberal rompe
o modelo de justiça inerente com os princípios democráticos, limitador do
poder político e econômico, para forjá-lo voltado à realização dos interesses
do mercado e, em especial, dos detentores do poder econômico. Tudo e todos
são tratados como objetos negociáveis, inclusive valores como a “liberdade” e
a “verdade”.2
É o que ocorre com os modelos institucionais, ou com a roupagem,
trazidos pela Lei nº 13.964/2019, deixando claro que a liberdade individual
pode ser negociada em troca de informações que atendam aos interesses dos
órgãos encarregados da persecução penal e que não necessariamente
guardam relação com o valor “verdade”.3   
A ciência jurídica não é mais o saber epistemológico em prol do avanço
civilizatório, na expectativa de crescentes ganhos em torno da ascensão dos
humanos, de conquistas de direitos fundamentais. O indivíduo foi colocado
em segunda escala, na qual os interesses econômicos vêm em primeiro
plano.
O Direito, mais do que em qualquer outro momento histórico, tornou-
se o braço servil do poder econômico. Não sem motivo, a tese da análise
econômica do direito tem ganhado muitos adeptos e ditado os rumos da
produção jurídica no mundo globalizado. Qualquer forma de regulação só
tem sentido se atender a estes objetivos puramente econômicos. Mesmo
quando aparentemente não se revela atraente, estará ali a intervenção
jurídica sob o viés da maximização econômica, com a minimização de
direitos fundamentais.
É assim, e por esse motivo, que se constroem os argumentos jurídicos
que irão redundar nas escolhas políticas e, com estas, na edição de leis e nas
decisões judiciais, como instrumentos em prol do melhor desempenho das
forças neoliberais. A exigência é que haja reduzida intervenção do Estado
para o deleite glamouroso da livre iniciativa, inclusive com óbice para que
interceda em favor dos mais frágeis. Porém, em contrapartida, impõe que
sejam in�adas as estruturas estatais em torno das políticas de segurança
pública, com o �m de aumentar as formas de controle social, sobretudo
diante daqueles que são verdadeiros estornos num modelo de produção e
consumo.
Nessas circunstâncias, mais do que um trabalho hermenêutico sobre o
novo instituto do acordo de não persecução penal, se pretende, neste texto,
buscar abordagens minimamente críticas sobre o tema, sem esquecer os
aspectos práticos e suas nuances. O desa�o é, portanto, conciliar esses
pontos que eventualmente se chocam.
Sobre essa temática, e o quanto o neoliberalismo esgarçou os modelos democráticos, forçando os
Estados nacionais a glosarem Direitos Fundamentais em nome de interesses puramente
econômicos, enquanto noutra via ampliando o Estado Policial, vide: SILVA, Denival Francisco da
Silva. De Guardião a Vilão: a contribuição do Poder Judiciário no desmonte da Democracia no
Brasil. Florianópolis: EMais, 2018.
CASARA, Rubens.  Em tempos de Justiça Neoliberal. Página eletrônica: Justi�cando. Coluna
Cláusula Pétrea. Disponível em: http://www.justi�cando.com/2020/02/07/em-tempos-de-justica-
neoliberal. Acesso em 9 fev. 2020. Publicado em 07 fev. 2020.
CASARA, Rubens.  Em tempos de Justiça Neoliberal. Página eletrônica: Justi�cando. Coluna
Cláusula Pétrea. Disponível em: http://www.justi�cando.com/2020/02/07/em-tempos-de-justica-
neoliberal. Acesso em: 9 fev. 2020. Publicado em 07 fev 2020.
1 CONTROLE PENAL VIA JUSTIÇA NEGOCIADA
Ao se adentrar no primeiro capítulo, pretende-se discutir as
circunstâncias fáticas, conferindo um olhar econômico que interfere na
construção de um modelo de justiça baseado na composição penal, com a
dispensa da tramitação de todo o devido processo penal.
Objetiva-se delinear a origem do acordo criminal4 e discutir a sua
natureza para que, posteriormente, o instituto do acordo penal da não
persecução possa ser compreendido. Apresenta-se ainda a necessidade de
situar as di�culdades do acordo criminal em face do ordenamento
constitucional.
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Para se entender o surgimento e a paulatina a�rmação do acordo
criminal no seio do processo penal brasileiro, é fundamental abordar e
conhecer o contexto social que levou à sua justi�cação perante o
ordenamento jurídico, ainda que isso ocorra de modo perfunctório. Não há
formação de conhecimento jurídico sem o alicerce emergido da
complexidade social.
1.1.1 A in�uência neoliberal no mundo atual
Nessa perspectiva, de início, cumpre ponderar que os avanços
tecnológicos são determinantes para a massi�cação da globalização com a
modi�cação da perspectiva da função do Estado Nacional. É certo que a
globalização é impulsionada pelos objetivos econômicos. Logo, as ideias
neoliberais têm ditado o ritmo da globalização, visando criar um mercado
mundial voltado (somente) para quem possui o poder de consumir (homo
economicus).5
Vale salientar que o neoliberalismo é fundamentado na doutrina do
livre mercado, no qual o capital assegurou plena liberdade de ação para
gerar as riquezas. Consiste está concepção econômica, que hoje domina a
seara mundial, em um conjunto de políticas e processos que permitem a um
número relativamente pequeno de interesses particularescontrolar a maior
parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus benefícios
individuais. 6
Sob a concepção neoliberal, incumbe ao Estado encolher as suas
atividades perante a sociedade, reservando-lhe o papel de garantidor e
promovedor do mercado livre ao mínimo, cabendo à responsabilidade
individual e à iniciativa empresarial ocupar os espaços de investimento nas
engrenagens sociais. Forja-se a visão pela qual o Estado se torna um
empecilho; necessário para coisas miúdas.7
Desse modo, o Estado reduzirá ao essencial o seu aparelho
administrativo, para assim reduzir ao máximo as suas despesas e poder
cobrar o título de impostos aos seus cidadãos apenas o mínimo indispensável,
na proporção dos haveres de cada um.8 Há a busca pela e�ciência com a
depuração dos meios9 para se atingir a lógica da e�ciência do mercado.10
Atuar na economia é atividade sagrada para os interesses privados e
agir profano para o Estado, cabendo a este ser um mero garantidor da
liberdade individual econômica de fazer negócios em teórica igualdade de
oportunidade para todos.
O neoliberalismo apropria-se da bandeira da liberdade e da
Democracia, apresentando-se com um signi�cativo poder de persuasão. Por
conseguinte, este discurso, ajudado pelos inúmeros dispositivos de
mobilização que o capital pode adquirir, se torna sedutor, camu�ando a sua
capacidade contínua de originar uma crescente exclusão social com o
abismo entre os ricos e os pobres.11
Fabricam-se consensos sob a matriz econômica e que são estruturados
em mensagens subliminares que plantam sementes com o objetivo de gerar
irre�etidas adesões ao projeto. O pensamento neoliberal associa-se a valores
caros à humanidade para obter ganhos com a construção de um discurso
único, sem alternativas,12 no qual os próprios excluídos se tornam soldados
do exército da liberdade econômica.
1.1.2 Soluções antecipatórias da resolução do julgamento penal
Especi�camente na legislação criminal, o discurso da e�ciência orienta
para a desburocratização do processo e a subliminar mensagem de que as
garantias fundamentais do cidadão, conquistas sedimentadas na história da
luta contra a opressão daqueles que momentaneamente estão no poder, são
transformadas em empecilhos à prestação jurisdicional. Garantias são
intencionalmente desenhadas como monstrengos a atrapalhar o progresso.
Dessa maneira, não surpreende a construção de idealizações jurídicas
que oferecem soluções procedimentais que trilham o caminho da
antecipação da resolução do caso penal13por intermédio da realização de
acordos. Tais ideias alcançam uma fácil aceitação na imersão dos
paradigmas neoliberais. É dado pouco valor à advertência de que os
acordos penais concretamente carregam a potencialidade de desnaturar o
devido processo penal, caso a negociação penal não seja manejada com
extrema responsabilidade.
1.1.3 A convivência entre a Civil Law e a Common Law
Sob outro prisma, pondera-se que a gradativa mistura dos institutos
processuais penais do tradicional sistema nacional do Civil Law (fundado
na legislação) com o Common Law (fundado na jurisprudência),14
fenômeno cada vez mais acentuado em nosso país, vem causando confusão
sobre o entendimento das premissas estruturais de aplicação da legislação
processual penal.
A mencionada convivência entre princípios que partem de premissas
calcadas em sistemas diferentes resulta na perda da referência de
postulados anteriormente sedimentados e na aplicação desarrazoada e sem
critérios transparentes de estranhos acordos criminais,15 trazendo enormes
di�culdades e falta da segurança para aqueles que lidam com o cotidiano
forense.
Apesar de todos os problemas que podem ser apontados, o acordo
criminal é cada vez mais realidade que se impõe em nossa legislação
processual penal. Cabe aos juristas, realizar estudos para conhecer o
funcionamento de seus mecanismos, conferindo o quanto for possível, uma
atenta percepção escudada nos comandos constitucionais para se evitar a
formação de um sistema na qual a prestação jurisdicional redunde numa
espécie de justiça de afogadilho.
1.2 O NASCIMENTO DO ACORDO CRIMINAL NO BRASIL
Com a promulgação da Constituição da República de 1988, nasceu a
inovação do Juizado Especial, com a previsão da competência criminal para
as denominadas infrações penais de menor potencial lesivo.
Consoante expressa o art. 98, inciso I: A União, no Distrito Federal e
nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por
juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o
julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações
penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e
sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses, previstas em lei, a transação e o
julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Dentro da
redação constitucional mencionada, abriu-se a possibilidade da chamada
barganha penal16 por intermédio da transação para as infrações penais de
menor potencial ofensivo.
1.2.1 Inauguração do acordo criminal pela Lei nº 9.099/1995
Após algum tempo, para referendar a previsão constitucional,
instaurou-se a Lei nº 9.099/1995, abraçando os sedutores discursos da
oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e da
celeridade. Dentro do texto legal, foram estabelecidas modalidades de
acordos criminais.
Nessa esteira, podem ser mencionadas: a composição dos danos cíveis
com efeitos penais de extinção para os crimes de ação penal de iniciativa
privada (art. 74, parágrafo único); a transação penal entre o Ministério
Público e a pessoa indicada autora dos fatos (art. 76) e a realização da
suspensão condicional do processo (art. 89). A partir da previsão
constitucional da transação penal, a legislação regulamentou e ampliou o
leque do acordo criminal com a inserção das demais modalidades
indicadas.
Pode-se a�rmar que a Lei nº 9.099/1995 inaugurou uma nova
sistemática penal, disciplinando algumas medidas de não carcerização. Estas
contêm, em si, a capacidade de provocar a discussão a respeito da vontade
do ofendido no prosseguimento da persecução penal, com a abertura para o
caminho da justiça negociada.
1.2.2 A expansão do controle penal decorrente do acordo criminal
Cumpre sublinhar que, após as primeiras experiências do Juizado
Especial com competência criminal, foi constatado que, ao contrário de
obter o efeito de redução do espaço de atuação penal, houve a ampliação
do controle penal.17 O resultado da aplicação dos Juizados na esfera penal
permitiu o agigantamento do sistema penal.18
Outrora, em processo de desaparecimento no cotidiano forense, as
contravenções penais e outros crimes de menor repercussão ganharam
vigor. Inúmeras questões que tomavam o destino civil pela redescoberta da
força penal, são utilizadas na condição de moeda de pressão. Ademais, fatos
socialmente insigni�cantes receberam nova dimensão de signi�cado.
Assim, os anseios irmanados à e�ciência (celeridade, economia e
informalidade) se tornaram as armas mais manejadas, deixando para
segundo plano o espeque da intervenção penal mínima que a criação da Lei
nº 9.099/1995 prometeu.
Não obstante a existência de inicial e profunda discussão19 sobre a
constitucionalidade do acordo criminal, logo houve a paci�cação
jurisprudencial no sentido da aplicação dos institutos fundados na
consensualização penal. Assim, a legislação ordinária, a partir da década de
90 do século passado, vem aumentando o seu campo de atuação.
Compreende-se que a busca pelo consenso, tão bem explorada pelos
discursos economicistas,20 abriu pelas portas dos Juizados a possibilidade de
se estabelecerem novos paradigmas penais. Neste enfoque, o acordo
criminal tornou-se um aliado daqueles que propugnam pela edi�cação do
gigantismo penal equacionado pela busca e�ciência dos �ns da aplicação da
lei penal.
1.2.3 As novas modalidades de acordo criminal
Após as modalidades contidas na Lei nº 9.099/1995, houve várias leis
contendo facetas do acordo criminal. Para ilustrar este quadro, pode-semencionar: a Lei nº 10.409/2002, que estabelecia procedimentos para os
crimes envolvendo drogas; a Lei nº 9.807/1999, que dispôs sobre a proteção
de testemunhas, e a Lei nº 11.343/2006, que estabelece comandos sobre a
questão das drogas. Nos aludidos exemplos há a previsão de acordo penal
com a incidência de causa de diminuição de pena.
Também é plausível apontar a Lei nº 12.529/2011, que inaugurou o
acordo de leniência, e a Lei nº12.850/2013, que estabelece a delação
premiada para os casos em que há envolvimento de crime organizado. Há
que se constatar, consoante já avisado na parte introdutória, que de
maneira rápida a lógica negocial transformou o processo penal num
mercado persa, no seu sentido mais depreciativo21 o que se tem mostrado
algo inevitável.
Mais recentemente, é pertinente registrar que a Resolução nº
181/2017, emitida pelo Conselho Nacional do Ministério Público,
regulamentou, sem o devido amparo na legislação processual penal até
então, o acordo de não persecução penal. Certamente essa Resolução serviu
de inspiração para a nova sistemática negocial contida no Código de
Processo Penal.
Nesse quadro é relevante, a partir desse instante, o estudo da nova
etapa do acordo penal, que é o acordo de não persecução penal,
inaugurado pela reforma processual contida na Lei nº 13.964/2019, que
deu conteúdo ao art. 28-A do Código de Processo Penal.
1.3 A NATUREZA DE BARGANHA DO ACORDO CRIMINAL
O acordo criminal na esfera nacional recebeu orientação inicial do
sistema jurídico da Itália por meio do instituto do patteggiamento.22 A
transação penal da Lei nº 9.099/1995 é o exemplo típico da aludida
inspiração.23 Contudo, observa-se que a crescente in�uência entre nós dos
institutos da Common Law leva a compreender o acordo criminal a partir
do instituto jurídico do plea bargaining desenvolvido nos EUA.
1.3.1 Requisitos do plea bargaining
De acordo com Vinícius Gomes de Vasconcelos, na plea bargaining são
identi�cados três requisitos para a sua admissibilidade24: a garantia da
voluntariedade; o consentimento informado; e que o acordo esteja
adequado à existência de uma conduta criminal plausível.
Logo, o acordo se estabelecerá de forma voluntária, sem qualquer
espécie de coação física ou moral que afete os acordantes.25 Não é cabível
qualquer forma de pressão para a adesão ao acordo proposto. Ameaças
subliminares de consequências jurídicas fáticas sobre a não aceitação são
inaceitáveis. Assim, por exemplo, não se pode condicionar expressa ou
veladamente a realização do acordo com o aceite do perseguido penal à
concessão de liberdade provisória ou à manutenção de prisão cautelar.
Soma-se à voluntariedade a existência de consentimento informado,
porquanto é vital que a pessoa perseguida pelo Estado tenha pleno
conhecimento de todas as circunstâncias jurídicas e fáticas que envolvem o
acordo. O modo de cumprimento do acordo, as questões penais e
processuais envolvidas, as consequências da aceitação ou da negação do
acordo e de seu eventual descumprimento precisam ser informados
expressamente ao perseguido, de forma tal que ele compreenda em que
situação jurídica ele está inserido. É o perseguido um sujeito de direito e,
assim, é imperativo que seja tratado.
Por �m, o conteúdo da barganha necessita ter adequação com os fatos
e a conduta supostamente praticada pelo perseguido penal.26 Há que se ter
um suporte mínimo que dê embasamento para que a proposta de acordo
não se traduza em abuso de acusação ou mera forma de se desburocratizar
um imaginário caso penal, sobrecarregando a pessoa que está na condição
de perseguido. Se não há adequação entre conduta e fatos, não há que se
falar em proposta de acordo, mas em novas investigações via diligências ou
de arquivamento formal do material existente.
Realisticamente, premissas de legitimação da barganha, que sustentam
um acordo entre partes em situação de igualdade, realizado de modo livre e
informado, são falaciosas e ingênuas.27 Muitos são os obstáculos fáticos e
sistêmicos que fragilizam a teoria da barganha. A ausência de igualdade
entre as partes, a inerente coercibilidade do sistema de Justiça Criminal e os
interesses burocráticos têm o condão de desvirtuar o alcance de seu ideal.28
1.3.2 Modalidades do plea bargaining
A doutrina costuma apresentar três modalidades de plea bargaining.29
Na primeira, o investigado confessa os fatos para alcançar o acordo, sempre
assistido pelo seu defensor. É o plead guilty. Há admissão da culpa para se
ter alcance a um benefício que está previsto na legislação.
Na segunda modalidade, para a realização do acordo, o investigado
pode negar sua culpa com a alegação de inocência. Esta é a modalidade da
not guilty. Aqui a pessoa que está sob a mira do Estado em sua faceta penal
não precisa da postura de submissão, podendo, inclusive, se declarar
inocente. Contudo, por questões de estratégia, declara que tem direito à
realização do acordo criminal.
Por derradeiro, a defesa pessoal, junto com a técnica, opta por não
discutir o feito sem assumir se é ou não culpado. É a modalidade do nolo
contendere. Esta modalidade, não obstante tenha o efeito parecido com a
modalidade anterior, segue o caminho de não adentrar na discussão sobre
os fatos penais, se satisfazendo com o acordo criminal. É o que se dá com a
transação penal e a suspensão condicional do processo, ambos previstos na
Lei nº 9.099/1995.
Estabelecendo uma prévia ponte com o tema deste trabalho, qual seja,
o acordo de não persecução penal previsto no art. 28-A do Código de
Processo Penal, tema que será aprofundado no próximo capítulo, convém
salientar que esta modalidade de acordo criminal exige a con�ssão
circunstanciada dos fatos. Conclui-se, desta forma, que o acordo de não
persecução penal é a modalidade da barganha da plead guilty, e a
integralização do acordo exige a con�ssão de culpa.
1.4 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS ORIENTADORAS DO PROCEDIMENTO PENAL
Realizado o estudo da natureza jurídica do acordo de não persecução,
acredita-se ser prudente, antes de adentrar nas peculiaridades da legislação
inaugurada, realizar, de forma perfunctória, ressalte-se, um estudo a
respeito dos comandos constitucionais que tocam diretamente o
procedimento da não persecução penal O objetivo é colocá-los na posição
de �ltrar qualquer interpretação que possa violar o sistema de garantias
processuais.
1.4.1 O procedimento penal e o Estado Democrático de Direito
A premissa adotada nos estudos do acordo de não persecução penal é a
da necessidade de se adequar às modi�cações processuais penais ao modelo
constitucional de processo.30 Não há aplicabilidade aceitável longe dos
paradigmas constitucionais.
Ciente de que o procedimento é uma série de atos que caminham por
meio da intervenção dos envolvidos no processo para se chegar ao objetivo
de�nido de se dar uma reposta estatal aos fatos colocados à apreciação
judicial, não é aconselhável ignorar que o procedimento tem a função de
ser um dique às vazões estatais punitivas indevidas, uma função política
fundamental de expressar concretamente o Estado Democrático de Direito.
Existe um direito ao procedimento como direito à ação positiva do
Estado para tornar efetivos os direitos fundamentais.31 Por intermédio do
procedimento seria expandida a possibilidade de um resultado no processo
mais em conformidade com os direitos fundamentais expressados na
Constituição da República.
Nesse sentido, o procedimento retrata um prosseguir de atos
devidamente regulamentados e movidos pelas subjetividades para que cada
cidadão reconheça, dentro das discussões do processo penal, a marca
indelével da presença do Estado Democrático de Direito. O alvo é garantir
a postura penal estatal em conformidade com os anseios de mínima
proteção formal em face de eventuais abusos estatais indevidos.
1.4.2 A garantia do procedimento
Em consonância com a Constituição da República de 1988, as garantias
processuais contidas na sistemática processual penal adotada incidem em
todas as formas de intervenção penal estatal. Logo, no decorrer doprocedimento penal, há a inafastável exigência de se observar todas as
garantias que afetam o desenvolvimento do processo.
A garantia traduz-se num mecanismo a serviço das normas jurídicas.32
Ela tem o objetivo de reforçar ou imprimir à norma uma força e um maior
alcance. Lembra Jorge Miranda que o conteúdo e o sentido de uma norma
não se garantem de per si, garantem-se através do conteúdo e do sentido de
outras ou outras normas.33 Neste quadro, há normas jurídicas garantidas e
normas jurídicas de garantia (estas ainda susceptíveis e ser garantidas). 34
De pouco valor teria a declaração no ordenamento jurídico penal dos
Direitos Fundamentais se não se vissem eles garantidos por instrumentos
aptos à sua asseguração, ao seu reconhecimento ou à sua satisfação por
órgãos estatais aos quais conferidos poderes para sua precaução,
determinação ou efetivação.35
O estabelecimento constitucional dos Direitos Fundamentais do
indivíduo exige as garantias a eles correspondentes, a �m de preservá-los e
tutelá-los mediante atuações judiciais, tanto quanto possível rápidas,
prontas e e�cazes.36
Embora não seja concebível a abdicação de nenhuma garantia na
caminhada procedimental, quando o manejo da lupa se volta para a
apreciação do acordo de não persecução penal, pode ser asseverado que o
devido processo penal, a presunção de inocência e o prazo razoável
merecem especial atenção.
1.4.3 O devido processo penal
A existência de um processo penal no caso concreto, visto pelo olhar
social, não deixa de signi�car que há um processo de exclusão caminhando,
na medida em que o �nal deste processo pode redundar em uma medida
restritiva ao perseguido.
Sob outro enfoque, no contexto do sistema jurídico adotado pelo
Estado Democrático de Direito, o processo penal se constitui em
instrumento de preservação da liberdade humana que está sendo
ameaçada pela intervenção penal. A pessoa exclusivamente pode ser
podada em sua liberdade caso o processo penal atue, estabelecendo os
limites da restrição. Assim, o devido processo legal/penal é um freio
constitucional a procedimentos estatais à margem do sistema democrático.37
Sublinha-se que o devido processo legal tanto é o processo necessário
para a aplicação de qualquer pena estatal quanto signi�ca o adequado
processo, ou seja, o processo que assegure a igualdade das partes, o
contraditório e a ampla defesa.38 O respeito a todos os princípios
constitucionais de certo modo está contido na noção do devido processo
pena/legal, que acaba funcionando como garantia inominada.
A observância do devido processo legal implica a não aceitação de
qualquer situação processual que contrarie as garantias da situação jurídica
processual estabelecida pelas partes do processo.
1.4.4 A presunção de inocência
Durante toda a persecução penal, a presunção de inocência é uma
premissa imprescindível para os parâmetros de racionalidade do processo
penal. Tal garantia impõe ao intérprete uma posição ativa, ou seja, os atores
processuais devem trabalhar no processo com a crença de que o réu é
inocente. 39
A presunção de inocência expressa uma regra de comportamento
perante o acusado, segundo o qual são ilegítimos quaisquer efeitos negativos
que possam decorrer exclusivamente da imputação. Neste sentido, antes da
sentença �nal, toda antecipação de medida punitiva ou que importe o
reconhecimento da culpabilidade viola esse princípio fundamental. 40
Inúmeras são as consequências jurídicas de proteção que podem ser
extraídas da presunção de inocência e que necessitam ser observadas. Para
efeito de melhor compreensão, elas podem se manifestar (não excludentes,
mas sim integradoras)41 como regra de garantia, regra de tratamento e regra
probatória.
A regra de garantia traduz-se na garantia de jurisdicionalidade, em
virtude da qual a veri�cação da culpa criminal somente pode ser alcançada
mediante um processo regular, o devido processo legal.42 Inclui-se, nesta
faceta da presunção de inocência, a exigência de que o processo se inicie
com a descrição clara do tipo penal e a necessidade de fundamentação para
permitir a superação do estado de inocência.
Por intermédio da regra de tratamento, o perseguido no processo penal
deverá ser tratado como um cidadão livre submetido a esse processo porque
existem suspeitas a seu respeito, porém, em nenhum momento sua
culpabilidade poderá ser antecipada.43 No que tange à regra probatória,
pode ser a�rmado que todo o ônus probatório da imputação pertence à
acusação.
Conferindo-se outra perspectiva, a presunção de inocência integra os
direitos que guardam uma maior e estreita relação de dependência com a
necessidade de estruturação organizacional e procedimental e�ciente. 44
1.4.5 O prazo razoável
Com a reforma constitucional promovida pela Emenda n. º 45,
entraram em vigor, no ordenamento constitucional, os princípios do prazo
razoável de duração do processo e o da sua celeridade. Nesta linha de
raciocínio, o sistema jurídico vigente deve adequar-se a essa nova exigência,
revisando seus procedimentos e o próprio ritual judiciário, buscando
equilibrar garantia e aceleração. 45
Pretende a Constituição que a duração do processo tenha a garantia de
certa celeridade su�ciente para que a questão discutida não �que
adormecida sem, no entanto, que a necessária maturidade para a melhor
solução do caso penal não recaia em precipitação indevida.
A delonga de um processo penal, além de violar a dignidade do
imputado ao se tornar o caso penal uma tortura procedimental, provoca
danos na produção probatória com sérios prejuízos para a construção da
versão jurisdicional formal pautada na memória das subjetividades.
Ademais, é interesse da coletividade que a função judicial possa passar uma
certeza sobre sua capacidade de resolução dos casos penais.
Se não se quer que a mora procedimental torne a função jurisdicional
inútil, também não se pretende que o vetor punitivo acabe por atropelar a
proteção mínima a que se incumbe o processo penal. Tanto na aceleração
indevida, como na dilação indevida, temos a negação da jurisdição, pois não
basta qualquer juiz e qualquer julgamento, a garantia da tutela jurisdicional
exige qualidade.46
O maior desa�o interpretativo para a aplicação do acordo criminal é a
compatibilização dos comandos constitucionais do devido processo penal e
da presunção de inocência com os anseios e�cientistas de uma maior
celeridade na resolução do caso penal.
1.5 PONDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL
A partir da promulgação da Constituição da República de 1988, foi
aberto campo para a discussão sobre a legalidade e constitucionalidade do
acordo criminal e de seus limites. A insatisfação com a resposta dada pelo
sistema processual tradicional, os anseios por uma maior celeridade com
menos custos (visão pautada nos valores do mercado) e a importação de
mecanismos processuais de outros países certamente contribuíram para a
inovação constitucional.
1.5.1 Razões utilitaristas do acordo criminal
Ademais, a crise �scal do Estado, o aumento da demanda por controle
penal, a debilidade dos mecanismos de controle comunitário e a perda da
legitimidade do próprio sistema de controle penal formal47 contribuíram para
a formação de novas estratégias de controle penal que rompem com a
concepção tradicional da prestação da justiça.
Em tal perspectiva, a maximização de resultados com o menor esforço
possível passou a ser um dos objetivos do processo penal brasileiro.48 Por
meio do discurso do consenso, passo após passo, os pilares estruturais dos
Direitos Fundamentais têm sido corroídos em favor do utilitarismo
processual penal e caminhado para a direção de seu instrumento
protagonista, que é a prisão.
Quando se enfrenta a questão da compatibilização do acordo criminal
perante o ordenamento constitucional e sua concretização ou não na
prática forense, podem ser vislumbrados, em pleno confronto, os reclamos
de minimização penal com os anseios de maior e�ciência na punição.
Também não poderá ser esquecido, para efeitosde sedimentação ou não do
acordo criminal, o papel desempenhado por cada uma das corporações
responsáveis pela vivi�cação dos institutos penais e processuais penais.
1.5.2 A constitucionalidade ou não do acordo criminal que exige con�ssão
Surge a indagação sobre a constitucionalidade do acordo criminal, que
redunda na exigência de con�ssão espontânea para a sua homologação, aos
moldes do acordo de não persecução penal, principalmente sob a ótica do
devido processo penal e da presunção da inocência. Para Nereu José
Giacomolli, o processo penal não pode correr o risco de tornar-se um lócus,
onde se pode negociar com a liberdade das pessoas, como se negocia com as
coisas no direito privado. 49
Aduz-se que o devido processo penal exige que o processo funcione
como instrumento de preservação da liberdade. Posição plausível de ser
sustentada é a que defende que a homologação judicial do acordo criminal
contribui para subverter a função do processo, pois, ao contrário de
trabalhar como freio constitucional, funciona como auxiliar para destino do
caso penal de forma mais rápida e sem maiores gastos.
Como instrumento de proteção dos Direitos Fundamentais, o devido
processo penal signi�ca o adequado processo e o acordo criminal em suas
diversas modalidades; ao antecipar um julgamento negativo ao cidadão, faz
com que o processo funcione a favor do agigantamento do Estado punitivo.
Além do mais, no acordo de não persecução penal, há um retrocesso
processual no sentido de dar à con�ssão um valor superior.
Sob a perspectiva criminológica, fator que precisa ser levado em
consideração, questiona-se a existência de verdadeira negociação quando
uma das partes está submetida às agruras do sistema penal e com a
possibilidade de ter a sua liberdade restringida.50 Desta maneira, há que se
frisar frágil tradição de democracia processual no processo penal, o que
pode acentuar a seletividade penal.
Lembra-se, ainda, que a presunção da inocência também poderia estar
sendo atropelada com o acordo criminal, na medida em que, sem um
julgamento ponderado, por meio da dialética contraditória para se chegar a
uma solução maturada pelo caminhar dos atos procedimentais, os
acordantes partem de uma premissa inicial que retrata o acusado como
previamente culpado na adoção do plead guilty.
Haveria violação da regra de tratamento (tratando o acusado como
culpado) à regra probatória (isentando o Estado da comprovação da prova
incriminatória) e da regra de garantia ao se abreviar o procedimento,
instrumento assegurador dos Direitos Fundamentais. Como se vê, o acordo
criminal pode ter um alto custo à sociedade que demanda proteger seus
direitos.
Em posição contrária, pode-se argumentar que a previsão da
propositura do acordo criminal não é uma obrigação da defesa, mas sim
para o Ministério Público quando presentes os requisitos legais. Isso ocorre
no sentido de minimizar os danos de um julgamento �nal negativo ao
acusado e à consequente evitação de virtual sentença condenatória.
Para a defesa, o acordo criminal seria um recurso a mais no vasto
desempenho da ampla defesa. Con�guraria a realização do acordo uma
estratégia da defesa em observar, concretamente qual seria a posição mais
favorável aos seus interesses.
Ainda na defesa da aplicação do instituto, assevera-se que o devido
processo penal e a presunção de inocência �cam intocáveis na medida em
que se dá a faculdade de escolha à defesa. Esta pode optar pelo acordo de
não persecução penal com a pertinente con�ssão, para que a situação penal
fática do acusado tenha um ganho com o impedimento do nascer de um
processo (nos casos em que ainda não exista) ou de uma sentença (para os
processos pendentes). É fundamental, deste modo, projetar o real, e não o
imaginário.
A constitucionalidade ou não do acordo criminal e, notadamente, do
novo acordo de não persecução penal poderá ser muito debatida até que se
atinja um denominador comum realizável. Adeptos da maior e�ciência da
punição e minimalistas penais serão protagonistas de inúmeros combates.
Também a atuação das subjetividades dos partícipes do processo, ainda
mais se for focalizado o pensamento médio representativo de cada
corporação, não pode ser descartada na intervenção do destino do instituto
do acordo de não persecução penal.
1.5.3 Os interesses institucionais e suas subjetividades
Observa-se que a inovação do acordo de não persecução penal confere
grande relevo para a atuação do Ministério Público. Acredita-se que tal
ganho funcional não passará despercebido para os integrantes da
instituição, o que resultará em um importante passo no sentido da sua
efetivação no cotidiano forense.51
Por sua vez, salienta-se que, para a defesa técnica, embora, por dever
de ofício, possa ocorrer uma inicial resistência, acredita-se que pode ocorrer
posterior adesão ao acordo de não persecução penal. Este acordo valoriza
ainda mais o papel do defensor técnico ao eleger a defesa como a detentora
da palavra �nal sobre a estratégia realização ou não do acordo.
Já pelo olhar da magistratura, o acordo de não persecução penal pode
encontrar alguma insurgência por meio de reações contrárias à perda de
“poder”. Muito mais do que resistências constitucionais, podem ocorrer
rebeliões corporativas, ainda mais quando se percebe a existência de um
confuso engajamento dos juízes com bandeiras políticas punitivistas
disfarçadas pelo discurso da moralidade.
Sem adentrar no mérito de�nitivo das questões levantadas sobre a
constitucionalidade ou não do acordo de não persecução penal, acredita-se
que, nos tempos do pragmatismo penal e da massi�cação da prestação
jurisdicional (inevitável), nossos tribunais continuarão a dar respaldo à
e�ciência dos mecanismos penais.
Sobre a adoção da expressão “acordo criminal”, conferir: GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade,
oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais:
Alemanha – Espanha – Itália – Portugal – Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal
democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008,
p. 24.
McCHESNEY, Robert W. (Introdução ao livro CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas:
neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002, p. 07).
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Temas de direito penal & processo penal: por prefácios
selecionados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 91.
AVELÂS NUNES, António José. As voltas que o mundo dá...: Re�exões a propósito das aventuras e
desventuras do estado social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 15/16.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um
problema às reformas processuais. In: WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Escritos de direito e
processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2002, p. 143.
AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e direitos humanos. Rio de Janeiro/São Paulo:
Renovar, 2003.
CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix,
2005, p. 155.
ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 51.
Neste trabalho opta-se por utilizar o termo “caso penal”, expressão cunhada por Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho para, quando houver a necessidade de dar referência ao conteúdo do direito
processual penal, sempre partindo da premissa que apesar da relativização dos princípios da
obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, os temas processuais penais não podem ser
orientados por vetores civilistas que não enxergam o drama penal. Para maior profundidade do
tema, conferir: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal.
Curitiba: Juruá, 1989.
Neste contexto, “Unidade, coerência e completude (Bobbio) se esvaem” (COUTINHO, Jacinto Nelson
de Miranda. Por que tem sido tão difícil cumprir a lei noBrasil? Publicação eletrônica:
Consultor Jurídico- CONJUR. Coluna Limite Penal. Veiculado em: 02/11/2018. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2018-nov-02/limite-penal-sido-tao-di�cil-cumprir-lei-brasil. Acesso
em:7 fev. 2020).
BIZZOTTO, Alexandre. Lições de direito processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade
Inquisitória, 2019, p.14.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance;
GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à lei 9.099/95. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p. 16.
Merece ser lembrado o artigo de Alexandre Wunderlich, intitulado “Sociedade de consumo e
globalização: abordando a teoria garantista na barbárie. (Re) a�rmação dos direitos humanos”.
In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a Justiça dialogal:
teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da Justiça Penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002.
KARAN, Maria Lúcia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir.
São Paulo: RT, 2004, p. 38.
Por todos: PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003.
Sobre a fabricação de consensos na economia neoliberal é pertinente o livro: CHOMSKY, Noan. O
lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformação constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009. p. 245.
GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva
das garantias constitucionais: Alemanha – Espanha – Itália – Portugal – Brasil. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 326.
Conferir: FRANCO, José Henrique Kaster. O que a justiça italiana pode ensinar ao Brasil. In: Revista
Bonijuris. Ano 32, fev./mar. 2020. Disponível em: www.editorabonijuris.com.br. Acesso em: 15 fev.
2020.
VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: Análise das tendências de
expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p.
210.
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teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico de consenso no processo penal
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2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL
A ciência do direito e, em especial, o direito positivo têm como
parâmetro de sustentação a linguagem escrita e falada. Porém, para além da
representação descritiva dos signos linguísticos, a metalinguagem no direito
é o seu lado mais emblemático, porque é onde se escondem signi�cados e
objetivos que não estão latentes expressamente na redação e que, por isso,
não transluz uma simples abordagem.
Há de se destacar, no entanto, que a linguagem da ciência do direito e
a do direito positivo necessariamente não se equivalem e não se
confundem. Enquanto o direito positivo consiste no complexo de normas
jurídicas válidas em determinado tempo e espaço, a ciência do direito
con�gura a descrição daquele enredo normativo.52 Daí porque a aplicação do
direito positivo carece de interpretação, não podendo ser um ato de mera
reprodução do texto legal.
Não se quer, com isso, provocar atitudes de insurgências contra a lei
(podendo até eventualmente ocorrer, desde que se constate incongruência
com os princípios gerais, a partir de uma análise consentânea com os
parâmetros para sua validação). O alvo é dizer da necessidade de
compreensão dos fenômenos jurídicos, sob os aspectos sistêmicos e
cientí�cos do direito, com o intuito de unicidade do própriosaber,
veri�cando quanto a especi�cidade do texto legal, e de quanto é preciso e
de como se darão as intervenções jurídicas para regulação das relações
sociais.
Nesse ínterim, toda vez que surge um novo texto legal, sobretudo
quando rompe antigos paradigmas, este sempre traz severos
questionamentos, exigindo enormes re�exões para sua compreensão e
aplicação.
É o que há na recente reforma legislativa face à criação do instituto do
acordo de não persecução penal, introduzido no ordenamento jurídico
nacional pela Lei nº 13.964/2019. Trata-se de grande novidade que quebra
padrões em torno da aplicação de instrumentos procedimentais pelo
sistema penal, merecendo, portanto, detida análise.
2.1 A QUESTÃO DA NOMENCLATURA ADOTADA PELA LEI Nº 13.964/2019
Cumpre pontuar que a modi�cação efetivada no Código de Processo
Penal, por intermédio da Lei nº 13.964/2019, ao abraçar o acordo de não
persecução penal, parte de premissa equivocada na escolha do nome do
instituto. É que se sugere que não existe uma persecução penal com a
realização do acordo criminal em discussão. Mas há.
2.1.1 A persecução penal
A persecução penal serve tanto para velar pelo Estado − que tem a
missão, observando-se o devido processo penal de buscar a punição de
quem viola o ordenamento jurídico com uma ação/omissão tipi�cada como
infração penal−, como é uma proteção do cidadão. Ele somente pode sofrer
punição estatal após a observância de todas as garantias que o processo
contém.
Sublinha-se que a persecução penal é composta por duas fases: a da
investigativa criminal e a processual. A primeira é a fase da investigação,
que se desenvolve no âmbito administrativo. Quando ocorre a notícia de
um fato, que teoricamente resvala na integridade do ordenamento penal, o
Estado tem o dever de apurá-lo e colher elementos de auxílio para a
formação de convicção. Em consequência, a investigação é movida pelo
comando do princípio da o�cialidade, cujo comando vigente é que a
persecução penal é obra do Estado.53
Com o encerramento da fase da investigação criminal com o
delineamento aparente de um fato penal, inicia-se a fase processual da
persecução penal, instante em que se praticará uma série de atos conexos e
sucessivos. O alvo é visar a um objetivo �nal de resolução da questão penal
discutida, representada por uma sentença judicial, observando-se que tais
atos são legitimados apenas com o efetivo contraditório entre o Estado e o
perseguido.
2.1.2 O equívoco legislativo
Para a realização do chamado acordo de não persecução penal,
observa-se que já existe uma persecução penal. Porquanto depende, no
mínimo, da existência de investigações criminais em curso, posto que
poderá inclusive se encontrar na 2ª fase persecutória a qual envolve a ação
penal. Seja representada por diligências policiais, por meio de informações
documentais enviadas para autoridades, o certo é que persecução penal
existe.
Em igual sentido, Afrânio Silva jardim e Pierre ponderam que a
persecução penal, quando da realização do acordo previsto no novo art. 28-
A, já se iniciou (a primeira fase até �ndou), eis que o Ministério Público só
fará tratativas com seu parteiro de negócio54 depois de estar instruído com o
inquérito ou peças de informação.
Embora se defenda a importância das escolhas técnicas, o acordo de
não persecução penal é realidade e foi o nome escolhido para representar a
possibilidade de abreviação do caso penal, desde que haja o consenso entre
as partes. Assim, registrada a falta de técnica, é importante conhecer o
instituto.
2.2 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O acordo de não persecução penal é um instrumento legal que permite
que as partes afastem a investigação criminal e, excepcionalmente, o
processo em andamento. O objetivo é resolver o caso penal por intermédio
de realização de acordo criminal entre as partes, com a necessária
apreciação e homologação judicial mediante contrapartidas da acusação
(não promoção da ação penal) e do investigado/acusado (submissão a
condições legais impostas concretamente).
2.2.1 O oferecimento pelo Ministério Público, e não pelo querelante
De início, é importante dizer que o acordo de não persecução penal
permite que o Ministério Público, nas ações penais de iniciativa pública e
nas condicionadas à representação da vítima, renuncie ao seu exercício em
favor de se barganhar com o investigado/acusado e assuma algumas
condições previamente estipuladas. Impende ressaltar que tal acordo não é
pertinente na ação penal de iniciativa privada, haja vista que o querelante
tem total disponibilidade da ação.
Em tese é verossímil a realização de acordo entre querelante e
querelado, mas isso não se caracteriza no acordo de não persecução penal,
que implica a participação do Ministério Público na qualidade de titular da
ação penal de iniciativa pública ou da ação penal de iniciativa pública
condicionada à representação ou à requisição.
Para reforçar a falta de possibilidade de realização do acordo de não
persecução penal nas ações de iniciativa privada, ressalta-se que não há
previsão legal na legislação. Além disso, a realidade produziria problemas
de difícil solução, como ocorre no caso de recusa da vítima aderir ao
acordo. Desta forma, não se pode ser cogitado que o magistrado atue de
ofício para fazer uma proposta ou do promotor atuar, na medida em que
não tem legitimidade para tanto.55 Salienta-se, no entanto, que existe
respeitada posição defendendo que o Ministério Público pode fazer a
proposta para se evitar desigualdades. 56
2.2.2 A mitigação da obrigatoriedade e da indisponibilidade
Comumente, a ação penal de iniciativa pública é obrigatória, e o
corolário disto é que ela se reveste da natureza da indisponibilidade. Não
pode o Ministério Público dispor da ação penal por vontades ocultas. A
indisponibilidade implica que ninguém pode encerrar o processo por
caminhos anormais.57 Há que se preservar o devido processo penal sem que
vontades arbitrárias possam interferir.
Cumpre demarcar que a obrigatoriedade atua no momento da
fundamentação para a propositura da ação penal. De seu lado, a
indisponibilidade sustenta a manutenção do que foi disposto na ação penal
no desenvolvimento do processo.
A obrigatoriedade não é impedimento para o oferecimento de
promoção ministerial fundamentada na direção do �m do processo. Esta se
dá no exercício da garantia constitucional da independência funcional. Por
outro lado, na própria legislação há casos que são apontados como exceções
à obrigatoriedade e à indisponibilidade. É o que se dá com o acordo da não
persecução penal.
É perceptível que os princípios da obrigatoriedade e da
indisponibilidade, bem como o próprio direito de defesa, na sua mais plena
concepção, foram mitigados nos últimos anos, conduzidos pela ânsia da
expectativa da velocidade58 e da e�ciência dos dias atuais. Sobreveio, assim,
a relativização da obrigatoriedade.59
2.2.3 Interesses contemporâneos que sedimentam tais paradigmas
Sob outro ângulo, o pragmatismo político e jurídico – decorrente do
fundamentalismo neoliberal e que foi fortemente disseminado com a nova
globalização propiciada pela era digital e, com ela, o fenômeno
expansionista da comunicação virtual60 – exige urgência na solução dos
problemas sociais, de preferência sem a intervenção do poder público.
Contudo, sendo necessário, impõe a máxima contenção de gastos públicos,
sobretudo quando há pela frente temas economicamente não “rentáveis”.
Por isso, são forjados entendimentos que deliberadamente seguem a
trilha de tornar menos rígidos os Direitos Fundamentais, caracterizando-os
negativamente e colocando-os na posição de estorvos a uma nova visão de
modernidade.
Nesse cenário, o sistema penal que antes era o limite para intervenção
do Estado sobre as liberdades individuais, passou acentuadamente a servir
aos interesses econômicos neoliberais em múltiplos aspectos, podendo ser
destacados três aspectos mais chamativos.
Por conseguinte, primeiramente, o sistema penal presta-se a conter os
“indesejáveis”, aquelesque nada oferecem à sociedade globalizada, porque
não produzem, não consomem e dependem, em grande medida, de
políticas assistenciais e previdentes.61 O sistema penal devota-se a dar às
forças produtivas segurança nas suas ações, inibindo que insurgências e
contenções ao próprio modelo sejam entrave às suas atividades. Ademais,
seus protagonistas empenham-se em realizar aliança com as forças políticas
para aproveitar-se do exercício de atividades subterrâneas, a �m de obter
lucros.
Diante dessa lógica pragmática, vão sendo engendrados, pelo caminho
legislativo, alguns instrumentos que buscam dar celeridade e
economicidade ao exercício do direito de punir. O movimento implica o
reducionismo de protocolos até então inarredáveis dentro do sistema penal,
com a relativização dos Direitos Fundamentais. Ainda que se possa
ressentir dessas novas engenharias, não é admissível, no quadro social
reinante, repudiar toda e qualquer mudança paradigmática.
Nessa conjuntura é preciso compreender que a dinâmica do mundo
atual não permite estancar ideários apenas nas históricas bandeiras do
passado. A percepção de um personagem extremamente fragilizado na
relação persecutória e que não pode decidir sobre determinados pontos por
si só, devidamente assessorado e orientado por defensor, pro�ssional de
direito, não coonesta com a realidade atual.
Essa mudança de paradigma permite ao sistema penal o rompimento
de duas barreiras até pouco intransponíveis: abre mão dos mantras da
obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal e, em contrapartida, a
título de barganha − sem tolher ao investigado/acusado o direito de ampla
defesa e de se assegurar suas próprias escolhas −, dá-lhe oportunidade para
optar por vias de solução mais rápidas, com a promessa de menores
consequências.
2.2.4 Fotogra�a conceitual do acordo de não persecução penal
O modelo em análise, novidade enquanto instrumento legal, é forma
negociada de aplicação da justiça penal. Assim, como produto resultante de
uma negociação entre sujeitos (não processuais) diretamente interessados –
Ministério Público e Investigado/acusado –, rompe-se a orientação segura
da obrigatoriedade/indisponibilidade da ação penal, abrindo oportunidade
para transação e a consequente interrupção da persecução penal.
Como todo pacto, o mencionado acordo traz direitos e obrigações, uma
troca entre os interessados/acordantes. O Estado, por seu órgão titular da
ação penal pública, desiste dos atos persecutórios, condicionando o
investigado/acusado à submissão de determinadas “condições” instituídas
legalmente (ao cabo verdadeiras penas antecipadas, porque impositivas pelo
Estado, mas sem direito ao devido processo para formação de culpa). Em
contraprestação, o indivíduo, até então sujeitado aos atos persecutórios, vê-
se livre desses atos, evitando os efeitos e as consequências daí decorrentes,
diretas e colaterais, desde que cumpra integralmente as condições
acordadas, impedindo que o Ministério Público possa reacendê-los.
O acordo gera obrigações entre os acordantes. No entanto, o seu
descumprimento provoca sua rescisão, restabelecendo os procedimentos
persecutórios. É que o Estado, por seu órgão titular da ação penal, não
poderá forçar sua execução, restando rescindir o acordo e prosseguir com os
atos persecutórios.
Tão somente ao �nal do devido processo penal, com o resultado da
sentença criminal condenatória (com todos os efeitos que lhes são
adjacentes), é que se poderão, eventualmente, ser aplicadas as penas
semelhantes àquelas previamente �xadas no pacto – com a nomenclatura
de “condições” – e que deixaram de ser cumpridas. Todavia, a partir de
então, o Estado contará com um título em desfavor do condenado, que
poderá executar, inclusive, pelo modo mais inciso que lhe é permitido:
expedindo-se mandado de prisão.
2.3 COMO O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL PODE TER CARÁTER
“DESPENALIZADOR” SE HÁ PRESERVAÇÃO DA PENA?
Conforme foi antecipado e super�cialmente tratado no capítulo
anterior, é chegado o momento de discutir a natureza do acordo de não
persecução penal, instituto assemelhado à transação penal e à suspensão
condicional do processo. Signi�cativa parte da doutrina a�rma que estas
possuem a natureza despenalizadora.62
2.3.1 O simplismo da a�rmação de os acordos criminais adotados no Brasil
serem institutos despenalizadores
Permissa venia, essa concepção parece simplista demais para seu
dimensionamento. Embora se apresente como caminho menos turbulento,
escapa dos reais objetivos que levaram à mudança de concepção quanto à
legislação penal e processual penal, conforme as premissas estabelecidas na
condição de políticas de segurança pública e criminais que são atualmente
adotadas.
É que, tomada essa narrativa “despenalizadora”, a um só tempo ela
comete dois deslizes: “nega” a verdadeira essência do instituto, porque traz
consigo a obrigatoriedade de cumprimento de sanções e, de igual forma,
fabrica a ilusão de ascensão do princípio de um direito penal mínimo,
quando a rigor tais soluções elevam a frequência da atuação estatal com a
ampliação do controle social.
Ligando esses dois extremos, nota-se que, mesmo aqui, o Estado não
abre mão do exercício do ius puniendi, pois apenas faz uma concessão, se
colocando na posição de emissor de um ato de benevolência, no sentido de
interromper a persecução penal. No entanto, não despreza o imperativo
categórico da pena, que é efetivamente aplicada com outras denominações
e, pior, necessita de um devido processo (democrático).
Com essas provocações, modestamente pretende-se aqui elucidar
algumas questões. Para tanto, lança-se o olhar sobre pontos distintos sobre
o novo instituto, visando a provocar re�exões críticas sobre o assunto e
propondo a elaboração de de�nição jurídica consentânea com seu real
sentido, para melhor compreender sua natureza e seus objetivos.
De início, ousa-se discordar desse enfoque “despenalizador” que se
quer atribuir ao instituto do acordo de não persecução penal, por entender
se tratar de assertiva que parte de premissa incorreta. É certo que se houver
a �xação no conceito estrito de pena, sendo ela apenas a consequência do
sistema penal decorrente de uma decisão judicial condenatória, não haverá
como negar esta característica ao novo instituto. Mas essa é tão somente
uma faceta da sanção penal, a que pode ser denominada de pena stricto
sensu.
2.3.2 Da necessidade de se analisar a pena enquanto efeito e consequência
Partindo-se da análise da pena enquanto efeito e consequência
decorrente do exercício do Estado punitivo sobre as liberdades individuais,
qualquer obrigação que se imponha ao indivíduo, como forma candente de
atuação do sistema penal, terá sempre a natureza sancionatória. Ou seja,
toda determinação estatal sobre as condutas humanas no âmbito do sistema
penal tem caráter potestativo e, por mais que o próprio sistema crie outras
vias de satisfação das demandas nesta seara − querendo evitar o imperativo
da ação penal, a qual traz em si a perspectiva de uma sentença
condenatória, e que ao cabo �xará pena (stricto sensu) −, sempre virá
carregada de obrigações impositivas, onerosas e limitadoras do direito de
liberdade do indivíduo, como condições irrefutáveis à não
instrumentalização de uma ação penal.
Dessa maneira, toda vez que o Estado interfere nas liberdades
individuais por seu braço punitivo, desde que não seja situação de
abdicação dessa persecução pela vítima − quer pela condenação decorrente
de uma ação penal, quer por qualquer outro caminho instituído legalmente
como forma de satisfação dos interesses atinentes ao seu dever de garantir
segurança pública a toda a coletividade − estará impondo sanção (pena lato
sensu). A razão é porque não poderá dispor do exercício punitivo sem exigir
algo em troca do infrator como verdadeira condicionante ou contrapartida.
A saber, a sanção penal é essencialmente retributiva, vale dizer, a pena
é a rea�rmação do poder estatal que se materializa por meio de uma
restrição imposta àquele que violou a paz social garantida pelo Estado.63Eis
aqui a constatação de que, sem a imposição sancionatória estatal – até
ameaçadora quando se tem pela frente a tarefa da atender os propósitos da
segurança pública e políticas criminais – não há via factível de acordo,
porque somente pela existência de uma cláusula coercitiva, a qual o
indivíduo se compromete a cumprir, se poderá efetivá-lo.
O fato é que, ao se criar tais institutos “despenalizadores”(!), a par de
considerar diverso o momento persecutório e o procedimento para seus
usos, nem por isso se deixa de incidir o poder cogente do Estado penal
sobre as liberdades individuais por meio de pena. Esse simples fato induz a
concluir que nada muda essa natureza, senão a alteração da denominação
dos institutos, sem que haja perda do viés impositivo e sancionador. Ao
�nal, e sob a percepção sistêmica em relação ao poder de punir, o termo
pena é tão somente substituído por outros, como medidas ou condições,
mas sem perder seu caráter de cláusulas impositivas, com nítido viés de
sanção.
Basta observar que algumas das decantadas “condições” na legislação
penal, previstas ao instituto da suspensão do processo (art. 89, da Lei nº
9.099/1995), se assemelham ipsis literis com determinadas penas restritivas
de direitos (a reparação do dano indicada como condição para suspensão
no art. 89, § 1º, I, equivale à pena pecuniária que pode ser revertida à
vítima, prevista no art. 45, § 1º do Código Penal; a proibição de frequentar
determinados lugares, descrita no art. 89, § 1º, II, como condição na
suspensão, é idêntica à pena de interdição temporária de direitos, descrito
no art. 47, IV, do Código Penal).
A evidência se torna ainda mais clara ao se perceber que, para o caso
das “condições”, então descritas a este instituto de não persecução penal,
sequer são realizadas novas descrições, tendo o legislador preferido (talvez
por praticidade), respectivamente no art. 28-A, III e IV do Código de
Processo Penal, fazer remissões expressas aos arts. 46 (prestação de serviços
à comunidade ou a entidades públicas) e 45 (prestação pecuniária, neste
caso, exclusivamente destinada à entidade pública ou de interesse social) do
Código Penal.
Considerando-se, ainda, que uma das �nalidades da pena é a
prevenção (geral e especial), não se nega que as mencionadas condições (ou
poderiam ser denominadas de penas disfarçadas) exercem de modo mais
efetivo esta tarefa. O investigado, ao se sujeitar aos termos apresentados
pelo Estado, por seu órgão titular da ação penal, o toma como uma “lição”,
como um aviso preventivo para que não volte a cometer outras condutas
delituosas (inclusive sob a advertência de que não poderá mais gozar do
benefício).
Esse informe preventivo também é dado à coletividade. A resposta
estatal de repreensão – com exigência para cumprimento de obrigações
individuais com nítido caráter sancionatório – atende ao parâmetro de
como não se pode conduzir (prevenção geral), servindo de alerta para que
outros compreendam que poderão sofrer os idênticos efeitos
intervencionistas do poder estatal em suas liberdades individuais, caso
infrinjam iguais proibições.
2.3.3 Desvelando-se hipocrisias
Esse debate, apenas aparentemente, pode ser considerado vazio. No
entanto, sob a perspectiva em que é enredado o instituto, com foco em
políticas de segurança pública e criminais, camu�a o real signi�cado, que é
o de maior intervenção estatal sobre as liberdades individuais: o engodo de
maiores liberdades e direitos, mas com a ampliação disfarçada do poder de
vigilância e controle sobre os indivíduos.
E isso ocorre por motivos óbvios. Quanto mais instrumentos e
caminhos são forjados para o pleno exercício do direito de punir, sob o doce
argumento de inversão quanto ao ímpeto punitivista, mais se agiganta o
imperativo estatal sobre as liberdades individuais, alargando-se as
oportunidades e condições para a incidência da tutela social pela via do
sistema penal, tudo sob o manto discursivo de menor intervenção.
A�nal, se apenas o Estado detém o controle do sistema penal, qualquer
instituto que se proponha no sentido de (aparentemente) se fazer mais
distante a necessidade de judicialização da aplicação das regras do sistema
penal, com forte tendência a uma sentença condenatória − seja negociando
outras medidas sancionatórias, seja, eventualmente, dizendo-se abrir mão
do próprio direito de punir −, ainda assim passará, obrigatoriamente, pela
seara estatal em razão do monopólio que detém sobre a temática.
Assim, enquanto as agências do sistema penal puderem diminuir os
esforços persecutórios, desburocratizando e resumindo a investigação
criminal, almejando-se evitar a instauração de ação penal, simplesmente
estará atendendo uma demanda neoliberal para contenção de gastos e
custos nas esferas públicas, sob o prisma dos princípios que bem lhes
convêm, da economicidade e celeridade. Todavia, esses atalhos não
suprimem a tarefa contínua e cada vez mais presente de perseguição –
sobretudo dos indesejáveis e mais frágeis – e exercício pleno do controle
social pela via do sistema penal.
Nesse contexto, ao contrário de se reduzir a atuação persecutória,
alarga-se o poder intervencionista do Estado no campo penal, inclusive com
subversão de princípios fundamentais, na medida em que restarão mais
tempo e recursos para o seu exercício.
2.3.4 De�nitivamente o acordo de não persecução penal não se caracteriza
como um instituto despenalizador
Por estes motivos, não se pode a�rmar que o instituto do acordo de
não persecução tenha caráter despenalizador. Se, ainda entre nós, João
Calmon de Passos, que ao tempo da criação dos Juizados Especiais
Criminais e de seus procedimentos, a�rmou que se tratava de verdadeira
burla aos princípios democráticos e afrontosos aos Direitos Fundamentais,
posto que impunha penas sem devido processo, deitar-se-iam novamente
severas críticas.
Não obstante a transação penal ainda seja propagada por muitos como
um instituto com caráter despenalizador, não se duvida que, neste caso,
existe contradição ainda maior e latente, porque o termo “pena” está inserto
no próprio dispositivo que o institui: a transação penal é condicionada à
aceitação de “pena imediata”, restritiva de direito ou multa. O fato é que,
diante disto, o legislador não se omitiu e não cometeu nenhuma heresia na
tentativa de dissimular a pena sob outras denominações terminológicas.
Disse o que precisava ser dito: pena para se evitar pena (!!).
A questão é: quem ganha com a pena de prisão64, mesmo quando não
nominada de pena?
Não é por isso, entretanto, que surgiram discussões quanto à
imaginável inconstitucionalidade desta �gura, posto que, se o termo “pena”
tivesse sido substituído por “condições”, prevalecer-se-ia o caráter
sancionatório e, daí, igualmente, o debate quanto à supressão do devido
processo penal.
Essas críticas são também proferidas por renomados autores, como
Geraldo Prado65 e Debora Regina Pastana66 e revelam o quão há de
desejoso para a relativização dos Direitos Fundamentais, uma vez que não
se arranjam desculpas e motivos para suprimir o deferimento de suas vias
protetivas. Isso tudo é em nome de um interesse supostamente maior,
sempre ligado à urgência de satisfação social quanto às políticas de
repressão à violência criminalizada. O diferente agora, daquilo que Fauzi
Hassan Choukr67 tratava como “processo penal emergencial”, é que as
urgências se transformaram no trivial, tornando-se a exceção da exceção o
que era antes padrão.
Há um mote neoliberal ofuscado nessa estratégia e que se justi�ca
pelos discursos ostensivos difundidos pela semeadura da cultura do medo68:
o “aumento da criminalidade”; a impotência do poder público ante “o
estágio crescente da violência urbana”; a “sensação de insegurança”; a
necessidade, frente aos fatos precedentes, de se “conter a impunidade”, e
tantos outros estratagemas para disseminar o apoio a medidas excepcionais
e emergentes que tem como justi�cativa assegurar a proteção social.
2.4 A NÃO CARCERIZAÇÃO, PONTO FULCRAL DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
PENAL
Ao se a�rmar que o

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