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Direito Internacional Direito Internacional Direito Internacional Direito Internacional Princípios do Direito Internacional Contemporâneo MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Ministro de Estado Aloysio Nunes Ferreira Secretário ‑Geral Embaixador Marcos Bezerra Abbott Galvão FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO Presidente Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Diretor Ministro Paulo Roberto de Almeida Centro de História e Documentação Diplomática Diretor Embaixador Gelson Fonseca Junior Conselho Editorial da Fundação Alexandre de Gusmão Presidente Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg Embaixador Jorio Dauster Magalhães Embaixador Gelson Fonseca Junior Embaixador José Estanislau do Amaral Souza Embaixador Eduardo Paes Saboia Ministro Paulo Roberto de Almeida Ministro Paulo Elias Martins de Moraes Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto Professor José Flávio Sombra Saraiva Professor Eiiti Sato A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Antônio Augusto Cançado Trindade Brasília – 2017 Princípios do Direito Internacional Contemporâneo 2ª Edição (revista e atualizada) Direitos de publicação reservados à Fundação Alexandre de Gusmão Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo 70170 ‑900 Brasília–DF Telefones: (61) 2030 ‑6033/6034 Fax: (61) 2030 ‑9125 Site: www.funag.gov.br E ‑mail: funag@funag.gov.br Equipe Técnica: Eliane Miranda Paiva André Luiz Ventura Ferreira Fernanda Antunes Siqueira Gabriela Del Rio de Rezende Luiz Antônio Gusmão Projeto Gráfico: Ademir da Rosa Programação Visual e Diagramação: Gráfica e Editora Ideal Capa: Imagem da Coleção de Baixos‑Relevos do Museu Cívico Arqueológico, de Bolonha, Itália, por A.A. Cançado Trindade. T833 Cançado Trindade, Antônio Augusto. Princípios do direito internacional contemporâneo / Antônio Augusto Cançado Trindade. – 2. ed. rev. atual. – Brasília : FUNAG, 2017. 463 p. ‑ (Direito internacional) ISBN 978 ‑85 ‑7631 ‑720‑3 1. Direito internacional público. 2. Fontes do direito. 3. Princípios gerais do direito. 4. Responsabilidade do Estado. 5. Nações Unidas (ONU). I. Título. II. Série. CDD 341.1 Impresso no Brasil 2017 Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004. SUMÁRIO Apresentação ............................................................................. 13 Sérgio Eduardo Moreira Lima Prólogo ...................................................................................... 19 Jean Michel Arrighi Prefácio à 2ª Edição ................................................................. 25 Antônio Augusto Cançado Trindade Prefácio à 1ª Edição ................................................................. 35 Vicente Marotta Rangel Parte I – Fontes Capítulo 1 Reavaliação das fontes do direito internacional público ..............53 1.1. Observações preliminares ....................................................53 1.2. O costume internacional ......................................................62 1.3. Os tratados internacionais ...................................................72 1.4. Os princípios gerais do direito ............................................87 1.5. Valor da jurisprudência internacional (decisões judiciais e arbitrais) .....................................................90 1.6. Valor da doutrina ...................................................................93 1.7. O elemento de equidade ........................................................96 1.8. A questão dos atos jurídicos unilaterais ............................99 1.9. A questão das resoluções das organizações internacionais ................................................................................105 1.10. Considerações finais ..........................................................118 Capítulo 2 Princípios do direito internacional contemporâneo regendo as relações amistosas entre os Estados e sua significação para uma reavaliação das fontes do direito internacional ..................121 2.1. Introdução .............................................................................121 2.2. Antecedentes históricos ......................................................124 2.3. Natureza e conteúdo da declaração de 1970 ..................128 2.4. Os trabalhos do Comitê Especial .......................................132 2.4.1. Os debates gerais ........................................................134 2.4.2. A elaboração dos sete princípios ...........................136 2.4.2.1. Proibição do uso ou ameaça da força ......136 2.4.2.2. Solução pacífica de controvérsias .............143 2.4.2.3. Não intervenção nos assuntos internos dos Estados .................................................................145 2.4.2.4. Dever de cooperação internacional .........155 2.4.2.5. Igualdade de direitos e autodeterminação dos povos .....................................................................157 2.4.2.6. Igualdade soberana dos Estados ................161 2.4.2.7. Boa ‑fé no cumprimento das obrigações internacionais .............................................................162 2.5. Considerações finais ............................................................164 Capítulo 3 Fundamentos do direito internacional: o papel e a importância dos seus princípios básicos ......................................177 3.1. Introdução .............................................................................177 3.2. A posição e o papel dos princípios gerais do direito .....179 3.3. Os princípios fundamentais como substratum do próprio ordenamento jurídico ..................................................184 3.4. O reconhecimento dos princípios gerais do direito pelo Estatuto da Corte da Haia (CPJI e CIJ) ...........................187 3.4.1. Princípios gerais do direito e a busca da justiça ..187 3.4.2. Princípios do direito internacional como pilares do sistema jurídico internacional ........................190 3.5. Observações finais ................................................................193 3.5.1. A validade sustentada dos princípios do direito internacional ............................................................193 3.5.2. A projeção no tempo do princípio em evolução da autodeterminação dos povos .......................................199 3.5.3. Os princípios do direito internacional, a busca da justiça e a universalidade do direito internacional ..204 Capítulo 4 Elementos para uma sistematização da prática do direito internacional .......................................................................................211 4.1. Necessidade de sistematização ..........................................211 4.2. Métodos de sistematização ................................................213 4.3. Generalização da sistematização .......................................214 4.4. Benef ícios da sistematização .............................................220 4.5. Considerações finais .............................................................221 Parte II – Estados: responsabilidade Capítulo 5 O contencioso diplomático e os recursos de direito interno ...225 5.1. Introdução: a evoluçãohistórica do tema .......................225 5.2. O contencioso diplomático nos séculos XIX e XX .......229 5.2.1. Exemplos da prática dos Estados europeus .........229 5.2.1.1. Reino Unido ..................................................229 5.2.1.2. França .............................................................232 5.2.1.3. Itália ................................................................235 5.2.1.4. Suíça ...............................................................236 5.2.2. Exemplos da prática dos Estados americanos .....237 5.2.2.1. Estados Unidos .............................................237 5.2.2.2. Canadá ...........................................................240 5.2.2.3. Estados latino ‑americanos .........................241 5.2.3. Exemplos da prática do Brasil .................................246 5.3. Conclusões ............................................................................254 Capítulo 6 A determinação do surgimento da responsabilidade internacional dos Estados ................................................................259 6.1. Introdução ..............................................................................259 6.2. O impasse da Conferência de Codificação da Haia de 1930 ............................................................................262 6.3. Teoria geral da regra do esgotamento dos recursos do direito interno no direito internacional .....274 6.3.1. Regra substantiva ......................................................274 6.3.2. Regra processual .......................................................277 6.3.3. Regra substantiva e processual ...............................281 6.3.4. Teorias explanatórias da regra do esgotamento dos recursos internos ...........................................................283 6.3.4.1. Delito internacional complexo ..................283 6.3.4.2. Dédoublement fonctionnel .........................287 6.3.4.3. Regra de conflito ..........................................290 6.3.4.4. Regra de conveniência ................................291 6.4. Avaliação e conclusões ........................................................295 Capítulo 7 A denegação de justiça no direito internacional: doutrina, jurisprudência, prática dos Estados ...............................................303 7.1. Sentido próprio e alcance da denegação de justiça .......303 7.2. Interação entre denegação de justiça e esgotamento dos recursos internos ..................................................................323 7.3. Conclusões ............................................................................328 Parte III – Organizações internacionais: competências Capítulo 8 A delimitação das competências no plano internacional: a Organização das Nações Unidas e os Estados ‑membros ..........333 8.1. Introdução ..............................................................................333 8.2. A personalidade jurídica internacional da ONU ...........334 8.3. As competências da ONU: as principais teses ...............337 8.3.1. A corrente da interpretação literal da Carta da ONU...................................................................................337 8.3.2. A doutrina dos “poderes inerentes” da ONU ......341 8.3.3. A doutrina dos “poderes implícitos” e sua aplicação na prática da ONU .............................................345 8.4. Problemas de competências ................................................351 8.4.1. Carta da ONU: constituição ou tratado? .............352 8.4.2. A distribuição interna de competências e sua alteração relativa pela prática da ONU ...........................353 8.4.3. As insuficiências da Carta e a expansão da prática da ONU .....................................................................359 8.4.4. A questão do controle da “legalidade” dos atos da ONU .................................................................................363 8.4.5. A pretensa “Competência nacional exclusiva”: lições da prática da ONU ...................................................368 8.5. Conclusões ............................................................................376 Parte IV – Indivíduos: posição internacional Capítulo 9 A implementação internacional dos direitos humanos .............383 9.1. Introdução .............................................................................383 9.2. Experimentos pioneiros outorgando capacidade processual internacional aos indivíduos ..................................384 9.3. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e as futuras medidas de implementação .........................................388 9.4. As medidas de implementação dos Pactos de Direitos Humanos da ONU .......................................................................392 9.5. A implementação da Convenção da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Racial .......................................400 9.6. O sistema da resolução 1503 do ECOSOC ......................403 9.7. A atuação das agências especializadas da ONU ............406 9.8. A proteção internacional dos refugiados em seus aspectos jurídicos ........................................................................412 9.9. Os sistemas regionais (europeu, interamericano e africano) de proteção dos direitos humanos ..........................420 9.10. As duas Conferências Mundiais de Direitos Humanos da ONU (1968 e 1993) ................................................................431 9.11. Considerações finais ..........................................................436 Capítulo 10 Conclusões: Os princípios básicos nos fundamentos do direito internacional .........................................................................447 Apêndice Relação de obras do Autor .........................................................455 13 APRESENTAÇÃO Sérgio Eduardo Moreira Lima* É com satisfação que a Funag publica a 2ª edição, revista e atualizada, de Princípios do Direito Internacional Contemporâneo, de Antônio Augusto Cançado Trindade. Trata-se do texto inaugural da extensa bibliografia do grande jurista brasileiro, reeleito, em 9 de novembro de 2017, pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para seu segundo mandato como juiz da Corte Internacional de Justiça (CIJ) na Haia. É o primeiro brasileiro que logrou tal distinção, o que destaca suas qualidades e seus méritos. Ela o coloca em companhia dos maiores e torna seus escritos fonte necessária de consulta e de inspiração a novas vocações. Gerações de estudiosos descobrirão no conjunto de seu trabalho não só a perspectiva do pensamento autônomo, como também a renovação da contribuição de juristas brasileiros ao direito internacional público. Sua obra ilumina a gênese e realça a importância dos princípios do direito internacional contemporâneo. A trajetória do autor, como professor, consultor jurídico do Itamaraty, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e membro da CIJ, desde 2009, revela seu compromisso * Embaixador e presidente da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG). 14 Sérgio Eduardo Moreira Lima com o direito e a justiça, e com a crença na expansão da jurisdição internacional como forma de enfrentar os graves desafios do nosso tempo. A partir de uma sólida base moral e acadêmica, sua visão de mundo, enriquecida pela prática, mostra o humanista e o pensador, capaz de marcar a doutrina latino-americana para o desenvolvimento progressivo do direito internacional. Ao fazê-lo, prepara com seu tão extenso labor de interpretação e formulação jurídicas um legado próprio que se fundamenta nos clássicos, mais em Francisco de Vitoria do que em Grotius. Como conceitos gerais e abstratos, mas parte do direitopo- sitivo, os princípios representam, no plano interno, as diretrizes primeiras do ordenamento jurídico, que se situam no vértice do sistema legal e servem como orientação básica para a organização do Estado a partir de preceitos constitucionais. No sistema inter- nacional, cumprem a função de guia moral e jurídico a partir do conjunto de regras que formam o direito das gentes. Enquanto na jurisdição interna prevalece o “rule of law”, ou seja, o reconheci- mento de direitos inalienáveis e o dever do cumprimento de obri- gações sob pena de sanções pelos poderes do Estado, na ordem externa, a adjudicação internacional tem sido, tradicionalmente, baseada no consentimento das partes e no reconhecimento da so- berania no tocante aos atos de império. A Carta das Nações Unidas, os Estatutos dos órgãos por ela criados e os tratados firmados sob sua égide constituem uma inflexão nesse processo com o reconhecimento da necessidade de estabelecer ordenamento mínimo contra a tendência caótica que prevaleceria na relação entre nações soberanas e independentes à falta de regras consensuais por todos respeitadas. Tradicionalmente, os padrões internacionais têm observado postulados como o da liberdade, igualdade e efetividade, que diferem dos princípios gerais dos sistemas nacionais no seu 15 Apresentação aspecto coercitivo, juridicamente obrigatório e sancionável. No entanto, após a destruição provocada pelas duas guerras mundiais, a comunidade internacional estabeleceu princípios e aspirações compartilhados de boa-fé pelos Estados-membros e fundou uma organização, as Nações Unidas, como garantia da realização dos propósitos e guardiã desses valores comuns, sobretudo os ideais da paz e da justiça. Não se trata de um resultado acabado, de prescrições definiti- vas, ao contrário, as Nações Unidas têm contribuído para promover os aperfeiçoamentos necessários nesse processo normativo e evo- lutivo, como no caso da descolonização, no estabelecimento dos princípios que devem reger a relação amistosa entre os Estados, na proteção aos direitos humanos e na promoção do desenvolvimento sustentável. Os princípios fundamentais do direito internacional representam conjunto de prescrições de ordem moral e progressi- vamente jurídica que norteiam os Estados, estabelecendo padrões de conduta que corresponderiam aos princípios constitucionais da comunidade internacional. Esses princípios encontram-se definidos no artigo 2 da Carta das Nações Unidas, segundo o qual os países membros, para a realização dos propósitos da organização, agirão de acordo com os princípios da igualdade soberana dos Estados, da boa- -fé, da resolução pacífica das controvérsias – com a consequente proibição do recurso à força –, da assistência às ações da ONU, da universalidade, com a aplicação desses dispositivos aos países não membros da organização, e da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados. A título de exemplo recente da aplicação desses princípios, num voto dissidente de 2016, sobre questão relacionada à obrigação dos Estados detentores de armas nucleares de negociarem de boa- -fé o desarmamento, como prevê o Tratado de Não Proliferação 16 Sérgio Eduardo Moreira Lima de Armas Nucleares, Cançado Trindade sustentou, no âmbito da CIJ, que teses sobre a legitimidade da estratégia de dissuasão não possuem fundamento jurídico. Nesse sentido, a primazia deveria caber, no caso, aos princípios gerais do direito e aos valores comuns superiores da comunidade internacional. Defendeu, assim, tratar- -se de tema que afeta a humanidade como um todo, e concluiu que a razão da humanidade deve prevalecer sobre a razão do Estado. A importância dessas decisões, nas circunstâncias históricas em que vivemos, revela não apenas os atributos do jurista, mas, sobretudo, a estatura moral e o destemor do intelectual, cuja causa é servida não por interesses ou conveniências políticas, mas pelos princípios da recta ratio, que decorrem da consciência humana e da relação entre o direito e a ética. São esses os argumentos que remetem à noção do bem comum, aos conceitos de liberdade, de igualdade e de justiça, e ao respeito devido pelos indivíduos e pela sociedade das nações a esses postulados em defesa dos valores mais altos da humanidade. O mérito dessa doutrina reside na sua consonância com as aspirações perenes do gênero humano e das sociedades no sentido de preservar a paz, realizar a justiça e promover o desenvolvimento. Tais propósitos foram, finalmente, consagrados na Carta de São Francisco, apesar das exceções ao princípio da igualdade jurídica dos Estados, que se imagina possam ser corrigidos com o tempo e a dinâmica das relações internacionais. De todo modo, o direito internacional tem evoluído, mercê dos seus princípios gerais, e sobrevivido às tentativas de desconstrução dos arautos do unilateralismo e do uso arbitrário da força. Esses princípios e a leitura que deles fazem juristas como Cançado Trindade são responsáveis por manter viva a consciência da necessária prevalência do direito sobre a força. O Direito Internacional criou 17 Apresentação meios mais efetivos de resolução das disputas internacionais e promoveu avanços nas soluções judiciais e arbitrais. O livro do eminente professor e juiz brasileiro inaugurou uma contribuição doutrinária pessoal que complementa a herança dos grandes juristas latino-americanos na defesa de princípios e valores do multilateralismo. Tiveram estes seu marco na Segunda Conferência da Paz de Haia de 1907, com os desenvolvimentos quanto ao princípio fundamental da igualdade jurídica dos Estados, ao recurso à arbitragem e ao não uso da força, ao fortalecimento da jurisdição internacional, ao acesso direto dos indivíduos à justiça internacional, avanços que seriam mais tarde consagrados na Carta das Nações Unidas e em tratados subsequentes. Princípios do Direito Internacional Contemporâneo não se limita à filosofia do direito. Mais que um exercício sobre princípios abstratos, trata-se de um verdadeiro curso de introdução ao direito internacional público, que permitirá aos leitores visão da disciplina e de sua importância para as relações internacionais e para a política externa brasileira. A obra de Cançado Trindade, que a Funag se orgulha de ter publicado, na parte relativa ao seu trabalho como consultor jurídico, no Repertório da Prática do Direito Internacional Público, em seis volumes, já constitui referência necessária a diplomatas e estudiosos das relações internacionais e a todos os brasileiros. É subsídio importante aos que acreditam poder com sua contribuição elevar o nível do conhecimento e do debate no Brasil dos nossos dias. E, assim, projetar a tradição jurídica brasileira, de uma perspectiva distinta, perante a comunidade das nações no ordenamento e na governança internacionais, a partir da experiência de uma das maiores democracias do mundo e de seus pensadores. Brasília, 18 de novembro de 2017. 19 PRÓLOGO Jean Michel Arrighi* A honra de poder escrever umas linhas introdutórias a esta nova edição dos Princípios do Direito Internacional Contemporâneo de Antônio Augusto Cançado Trindade me obriga a algumas reflexões pessoais que quero compartilhar com os leitores desta obra, e em particular com as novas gerações de estudantes e juristas. Já há muitos anos tenho sido e sou um leitor assíduo des- te livro. Sempre havia pensado que lograr em um pequeno livro tanta riqueza de conhecimento, saber condensá -lo, resumi -lo e apresentá -lo seria o logro somente depois de anos e anos de es- tudo, de tomos e tomos escritos, do exercício contínuo da docên- cia e da atividade jurídica. Havia me equivocado com este livro do professor Cançado Trindade: é este seu primeiro livro, publicado em 1981, ainda antes da publicaçãode sua tese de doutorado em Cambridge sobre o esgotamento dos recursos internos no direito internacional (1983), antes de seu Repertório da Prática Brasileira de Direito Internacional Público (seis tomos, 1984 -1988), de seu Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos (três tomos, 1997), e, por certo, muitíssimo antes de seu magistral Curso Geral * Consultor jurídico da Organização dos Estados Americanos (OEA), ex ‑professor de Direito Internacional Público da Universidade do Uruguai e membro do Institut de Droit International. 20 Jean Michel Arrighi de Direito Internacional Público ministrado na Academia de Di- reito Internacional da Haia (dois tomos, 2005). O presente livro foi também escrito antes de ser ele designado consultor jurídico do Itamaraty, de ser juiz e presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e de ser eleito juiz da Corte Internacional de Justiça. Em uma palavra, foi o livro de um debutante com a preci- são e clareza do livro de um sábio. Hoje o jurista reconhecido, o autor prolífico, o docente de vários continentes, o juiz do tribunal universal, revisita sua primeira obra com o olhar de quem já conhece tudo do direito internacional, seus logros, suas carências e seus desafios futuros. Nada mais oportuno. Chega ao leitor – e penso sobretudo no jovem leitor – em um momento em que é mais do que nunca necessário o conhecimento do direito internacional. É ampla e rica a tradição de autores latino -americanos, e em especial brasileiros, do direito internacional. É importante a marca que têm deixado no desenvolvimento jurídico, desde meados do século XIX até o presente. Mas lamentavelmente os centros de estudos da região, nossas faculdades de direito, têm, em sua grande maioria, diminuído consideravelmente as horas de ensino do direito internacional, quando não as tiverem suprimido para torná -la uma disciplina não obrigatória. E, no entanto, vivemos um tempo em que é muito difícil imaginar uma situação qualquer no âmbito interno que não esteja, também, regulada por normas internacionais. Todos nós estamos sujeitos e temos direitos que nos outorgam ambos ordenamentos jurídicos, o nacional e o internacional. Por isso nunca foi tão necessário como agora que o jurista, juiz ou advogado que opera no âmbito interno conheça, ademais de seu direito nacional, a normativa internacional, seus princípios, suas regras de interpretação, seus mecanismos de aplicação. 21 Prólogo A circulação de pessoas, de bens, de informação, a cooperação jurídica e judicial imprescindível para a proteção dos direitos individuais, para o combate às mais variadas formas de delinquência transnacional, a regulamentação das comunicações em suas mais diversas modalidades, exigem um conhecimento cada vez maior dos desenvolvimentos no campo do direito internacional. Não são normas que nos sejam estranhas e só necessárias ser conhecidas e compreendidas por um pequeno grupo de especialistas; são normas que fazem a nossa vida quotidiana. O acesso à informação por vias eletrônicas faz com que grande parte da documentação internacional (texto de convenções ou outras normas) que antes era difícil de ser conhecida, hoje possa ser lida imediatamente em qualquer computador. A dificuldade já não está na informação normativa. Tornam -se obsoletas as volumosas recompilações de convenções, rapidamente superadas. O mais difícil, o insubstituível, é a formação dos juristas no conhecimento das regras, critérios e princípios que fazem a própria existência do direito internacional; é saber como devem eles servir para a compreensão das normas hoje vigentes assim como as que dia a dia se vão elaborando. Em que pese tudo o que se possa dizer criticamente a respeito da efetividade do direito internacional, é, apesar de tudo, o ordenamento jurídico que hoje tem o maior grau de cumprimento: a mensagem (eletrônica) que chega, o televisor que recebe canais do exterior, o indivíduo que cruza uma fronteira, o avião que aterrissa, o fazem em observância de normas interna- cionais. Cumpre -se mais que as normas penais, civis ou comerciais. Mas há que dar ao estudante, ao juiz e ao advogado os instrumentos que os permitam compreender e apreender o direito internacional, suas fontes, seus fundamentos, as consequências da ação do Estado, a função das organizações internacionais, e o protagonismo último do indivíduo. Sem um bom entendimento de 22 Jean Michel Arrighi tudo isto a norma internacional ou será desconhecida ou não será bem aplicada. Todos os que nos dedicamos a difundir o direito internacional em nosso continente sentimos a falta de um texto ao mesmo tempo claro e preciso – como o da presente obra de Cançado Trindade – que desenvolva a perspectiva histórica, a evolução e o futuro do direito internacional. Hoje se encontra ele novamente disponível ao leitor brasileiro, e em uma edição revista e atualizada com o tempo, a sabedoria e a experiência. Tenho a certeza de que sua difusão ao resto do continente fará deste livro o texto básico para o conhecimento do direito internacional em todos os países latino -americanos. Não é meu propósito aqui resumir ou comentar ponto a ponto os capítulos deste livro: nada substitui sua leitura e o juízo que o leitor faça sem necessidade de orientação. Já o Prefácio do professor Vicente Marotta Rangel à 1ª edição faz uma análise do livro detalhada e precisa. Tampouco me permitiria resumir em poucas linhas as contribuições do professor Cançado Trindade ao direito internacional geral, ao direito internacional dos direitos humanos, à jurisprudência interamericana e agora à jurisprudência universal, centrando -se sempre em seu objeto último, o indivíduo. Há algum tempo numerosos e destacados juristas o fizeram, nos seis tomos do Liber Amicorum a ele dedicados em 2005 e em 2011. Mais recentemente, a coleção Doctrines (Édit. Pédone de Paris) consagrou um volume ao estudo de suas principais contribuições ao “direito internacional para a pessoa humana”1. Estou seguro de que esta nova edição dos Princípios do Direito Internacional Contemporâneo de Antônio Augusto Cançado Trindade vem preencher um vazio de anos na difusão atualizada 1 A. A. Cançado Trindade. Le Droit international pour la personne humaine. Paris: Pédone, 2012, p. 45 ‑368. 23 Prólogo do direito internacional e servirá para que o ensino do direito internacional adquira definitivamente o lugar importante que deve ter na formação de nossos futuros juízes, advogados, legisladores, diplomatas. Washington, D.C., 31 de agosto de 2017. 25 PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO Antônio Augusto Cançado Trindade A preparação da reedição da presente obra foi para nós um exercício único e sem precedentes, dado o longo lapso de tempo entre a 1ª e a 2ª edições (1981 e 2017), excedendo três décadas e meia. Procedemos a este exercício movidos em parte pelo incentivo a que o fizéssemos por parte de amigos de longa data, como os autores da Apresentação e Prólogo desta 2ª edição, respectivamente o embaixador Sérgio Moreira Lima, presidente da Funag, e o Dr. Jean Michel Arrighi, consultor jurídico da Organização dos Estados Americanos (OEA); também guardamos saudosa memória do autor do Prefácio à 1ª edição, o professor Vicente Marotta Rangel, nosso confrère no Institut de Droit International por vários anos. Ao escrevermos o prefácio à presente 2ª edição, cabe -nos de início ressaltar que nossos esforços em reeditar a presente obra foram consideráveis: mais além da sensação de trazer o passado ao presente, constatamos que, ademais de não ser fácil visualizar o futuro próximo, é ademais preocupante reviver o passado que se distancia. Viver no tempo que passa é um contínuo aprendizado. Ainda mais, trata -se talvez do maior enigma da existência humana. Esteaprendizado se viabiliza quando nos reconhecemos no passar do tempo: no tocante à presente obra, este reconhecimento de si 26 Antônio Augusto Cançado Trindade mesmo se dá na fidelidade aos princípios do direito internacional ao longo dos anos. Ao proceder a uma breve retrospectiva, nos recordamos, por exemplo, que, pouco após a 1ª edição deste livro, na segunda metade na década de oitenta, emitimos alguns Pareceres históricos como consultor jurídico do Itamaraty, hoje por ele publicados (como, e.g., os Pareceres, entre 1985 e 1989, em que suscitamos e apresentamos os fundamentos para a decisão de adesão do Brasil aos tratados gerais de direitos humanos e para sua aceitação da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH) em matéria contenciosa)1. Isto nos torna efetivamente a pessoa responsável pela fundamentação jurídica da decisão do Brasil de inserção no corpus juris do Direito Internacional dos Direitos Humanos de nossos tempos2, com atenção particular aos princípios do direito internacional. Em seguida, também nos recordamos da primeira década dos anos 90, época em que participamos do memorável ciclo das Conferências Mundiais das Nações Unidas, e inclusive como membro do Comitê de Redação da II Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena em 1993 (de onde emana nosso Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, 2ª edição, em 3 tomos), recorrendo continuadamente aos princípios do direito internacional. Em sequência, ao longo da década de noventa (e pos- teriormente até meados da década passada), muitas foram as 1 Pareceres reproduzidos in: A. P. Cachapuz de Medeiros (org.). Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty (1985 ‑1990 – Pareceres de A. A. Cançado Trindade), v. VIII. Brasília: Ministério das Relações Exteriores/Senado Federal, 2004, p. 57 ‑105, 369 ‑377 e 542 ‑616. 2 A. A. Cançado Trindade. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v. III. Porto Alegre: S.A. Fabris Ed., 2003, Addendum III, p. 597 ‑643; A. A. Cançado Trindade. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948 ‑1997): As Primeiras Cinco Décadas. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 1 ‑214; A. A. Cançado Trindade. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos – Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos. São Paulo: Editora Saraiva, 1991, p. 519 ‑638. 27 Prefácio à 2ª Edição lições que extraímos de nossa experiência acumulada na solução de importantes questões internacionais (como, inter alia, o ciclo dos casos de massacres adjudicados pela CtIADH3, o caso da independência do Timor -Leste, em que emitimos um parecer para as negociações tripartites Nações Unidas/Portugal/Indonésia, em 1999, em favor da independência do Timor -Leste; o caso da crise institucional da Nicarágua, de 1993 -1994, em que emitimos um parecer para a OEA como membro integrante de sua Comissão de Investigação (Fact ‑Finding); o caso do ingresso da Federação Russa no Conselho da Europa como Estado Parte na Convenção Europeia de Direitos Humanos, em que emitimos outro parecer, em 1995, para o Conselho da Europa4; as Consultas decenais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) – em que atuamos consultor jurídico ad honorem do ACNUR – na América Latina e Caribe, de 1994 a 2014. Durante nossa era na CtIADH, e, nesta última década, durante nossa atual era na CIJ aqui na Haia, temos emitido, como magistrado internacional, numerosos votos, sucessivamente em duas jurisdições internacionais, inclusive na adjudicação de casos que revelam a dimensão assustadora da crueldade humana, e novamente com a devida atenção constante aos princípios do direito internacional. Por exemplo, no tocante à CIJ, temos aqui mantido a postura humanista que sempre sustentamos, como, e.g., inter alia, nos casos recentes da Convenção contra o Genocídio (2015), assim como do Desarmamento Nuclear (2016), em que, face à posição restritiva das decisões da CIJ, emitimos quatro 3 A. A. Cançado Trindade State Responsibility in Cases of Massacres: Contemporary Advances in International Justice. Utrecht: Universiteit Utrecht, 2011, p. 1 ‑71. 4 Cf., para a lições extraídas destes Pareceres, A. A. Cançado Trindade. O Direito Internacional em um Mundo em Transformação. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 273 ‑322, 723 ‑745 e 1039 ‑1109. 28 Antônio Augusto Cançado Trindade extensos e contundentes votos dissidentes5, que vêm tendo ampla repercussão nos círculos jurídicos internacionais. Hoje, nossas Memórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos (4ª edição, 2017) contêm o relato de uma época de histórica e memorável construção jurisprudencial6, em particular nos anos em que a presidimos (1999 -2004). Tal construção, realizada em nossos anos na CtIADH, é hoje internacionalmente reconhecida7, e nossos Votos são hoje estudados em distintas latitudes8. Nestes Votos sempre destacamos a importância fundamental dos princípios do direito internacional, a exemplo de nosso Voto Concordante, de tanta atualidade, no Parecer Consultivo n. 18 da CtIADH sobre A Condição Jurídica e os Direitos dos Migrantes Indocumentados (de 17/9/2003)9. 5 Cf., recentemente, A. A. Cançado Trindade. La responsabilité de l´État sous la Convention contre le Génocide: Plaidoyer en defense de la dignité humaine. XLII Curso de Derecho Internacional del Comité Jurídico Interamericano, 2015. Washington D.C.: Secretaría General de la OEA, 2015, p. 187 ‑404; A. A. Cançado Trindade. A Plea in Support of Prompt Compliance with the Obligations of Cessation of the Nuclear Arms Race and of Nuclear Disarmament. XLIII Curso de Derecho Internacional del Comité Jurídico Interamericano, 2016. Washington, D.C.: Secretaría General de la OEA, 2016, p. 151 ‑284; A. A. Cançado Trindade. A Obrigação Universal de Desarmamento Nuclear/The Universal Obligation of Nuclear Disarmament. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017, p. 41 ‑224. 6 A. A. Cançado Trindade. El Ejercicio de la Función Judicial Internacional – Memorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. 4ª ed. Belo Horizonte: Edit. Del Rey, 2017, p. 1 ‑441. 7 Particularmente por sua valiosa contribuição a temas como os das medidas provisórias de proteção, das formas de reparação, da conceitualização do dano ao projeto de vida (mais além do dano moral) e ao projeto de pós ‑vida (dano espiritual), e da determinação da incompatibilidade das leis de autoanistia com a normativa de proteção internacional da pessoa humana (cujo caráter pioneiro – a partir do caso Barrios Altos de 2001 – veio a ser reconhecido inclusive na jurisprudência de outros tribunais internacionais). 8 Cf., e.g., a coletânea A. A. Cançado Trindade. Esencia y Transcendencia del Derecho Internacional de los Derechos Humanos (Votos en la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 1991 ‑2008), v. I ‑III. 2ª ed. rev. México D.F.: Ed. Cámara de Diputados, 2015, v. I, p. 3 ‑687; v. II, p. 3 ‑439; v. III, p. 3 ‑421. 9 Para um estudo geral, cf. A. A. Cançado Trindade. El Principio Básico de Igualdad y No ‑Discriminación: Construcción Jurisprudencial. Santiago de Chile: Ed. Librotecnia, 2013, p. 39 ‑748; A. A. Cançado Trindade. Le déracinement et la protection des migrants dans le Droit international des droits de l’homme. Revue trimestrielle des droits de l’homme. Bruxelles, v. 19, n. 74, 2008, p. 289 ‑328. 29 Prefácio à 2ª Edição Como magistrado internacional temos emitido – nesta última década também no seio da CIJ – numerosos Votos, sucessivamente em duas jurisdições internacionais, inclusive na adjudicação de casos que revelam graves violações dos direitos da pessoa humana, e novamente com a devida atenção constante aos princípios do direito internacional. Nossos Votos até o presente, encontram- -se hoje selecionados na Série “Juízes”da Editora Nijhoff/Brill, que contém apenas seis magistrados selecionados de 1945 até o presente (2017)10. Nosso livro A Humanização do Direito Internacional (2ª edição, 2015), contém, entre seus 37 capítulos, inter alia, uma análise das três décadas das mencionadas Consultas do ACNUR na América Latina e no Caribe (1994 -2014), a partir dos Pareceres que preparamos para o ACNUR para a proteção de migrantes – em relação à qual nossa região assumiu uma posição de vanguarda em todo o mundo. O livro, como um todo, contém os fundamentos de nossa posição jusnaturalista na construção de um novo jus gentium humanizado, a mesma que temos sempre sustentado, inclusive no Curso Geral de Direito Internacional Público que ministramos na Academia de Direito Internacional da Haia em 200511. Nosso legado na CtIADH foi o tema de outro Curso Geral que ministramos, em 2008, desta feita no Instituto Europeu de Direito Internacional em Florença, curso geral hoje publicado em livro pela 10 Cf. a coletânea Judge A. A. Cançado Trindade – The Construction of a Humanized International Law – A Collection of Individual Opinions (1991 ‑2013), v. I (Inter ‑American Court of Human Rights). Leiden: Brill/Nijhoff, 2014, p. 9 ‑852; v. II (International Court of Justice). Leiden: Brill/Nijhoff, 2014, p. 853 ‑1876; v. III, (International Court of Justice). Leiden: Brill/Nijhoff, 2017, p. 9 ‑764. Ademais destas coletâneas, há outra, desta vez em língua francesa, em etapa final de produção, com sua publicação programada para o final deste ano de 2017 em Paris. 11 Somos o único jurista brasileiro a ter ministrado um Curso Geral (em 2005) em toda a história da Academia da Haia até o presente (1923 ‑2017), em cujo Curatorium temos a honra de representar hoje toda a América Latina, desde 2004. 30 Antônio Augusto Cançado Trindade Oxford University Press: nele examinamos a bandeira que sempre portamos do acesso direto dos indivíduos à justiça internacional, inclusive com um concreto Projeto de Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos que preparamos para a CtIADH e apresentamos na OEA (a partir de 2001), que passou a figurar durante sete anos (até 2008) nas agendas da sua Assembleia Geral e de seu Conselho Permanente. No entanto, até o presente tem infelizmente prevalecido a força da inércia. Há casos, tanto na CIJ como na CtIADH, de cuja adjudicação jamais nos esqueceremos. Por exemplo, na CIJ, tomemos o caso do Templo de Préah Vihéar (Camboja versus Tailândia): quando inicialmente estudamos a Sentença original de 1962 neste caso, na mesma década, jamais poderíamos imaginar que, meio século depois, estaríamos adjudicando como juiz da CIJ a Interpretação de Sentença (2011 -2013) no mesmo caso. Participamos, ademais, na CIJ, da decisão do caso da Obrigação de Julgar ou Extraditar (Bélgica versus Senegal, 2009 -2012), relativo ao “processo Hissène Habrè”, em que, pela primeira vez na história, um tribunal internacional veio a determinar a aplicação do princípio da jurisdição universal. Ademais, ainda na CIJ, no caso da Disputa Fronteiriça entre Burkina Faso e Níger (2013), participamos de sua decisão em que, pela primeira vez, a demarcação de fronteira tomou em devida conta – tal como assinalamos em nosso Voto Arrazoado – as condições de vida das populações locais nômades e seminômades. Anteriormente, na passagem do século, as decisões da CtIADH no caso dos Meninos de Rua versus Guatemala (1999 -2001), asseguraram o acesso à justiça internacional de pessoas na mais completa vulnerabilidade. Pouco antes, a CtIADH, no caso Blake versus Guatemala (1997 -1999), considerou os familiares próximos de desaparecidos como vítimas diretas, para os efeitos de reparações. 31 Prefácio à 2ª Edição E os exemplos de casos inesquecíveis, que abriram caminho do direito internacional contemporâneo, se multiplicam. Ademais da revisão de todos os capítulos que compõem nosso livro Princípios do Direito Internacional Contemporâneo, a presente 2ª edição do mesmo contém dois capítulos novos, agora numerados III e X (este último contendo nossas conclusões). Deixamos claro, ao longo da obra, nosso entendimento de que são os princípios gerais do direito que atribuem ao ordenamento jurídico (nacional e internacional) sua inelutável dimensão axiológica, revelando os valores que o inspiram e se encontram em seus próprios fundamentos. Dos prima principia (presentes na própria origem do Direito) emanam as normas e regras, que neles encontram seu sentido. A identificação dos princípios básicos tem acompanhado pari passu a emergência e consolidação de todos os ramos do Direito. No mundo de nossos dias, violento e imerso em profunda crise de valores, necessitamos manter -nos atentos aos princípios básicos nos fundamentos do próprio direito internacional. Os princípios do direito internacional, encontrando -se nos próprios fundamentos da disciplina12, são de perene valor, e têm resistido a sucessivas crises no cenário internacional e inclusive à erosão do tempo. É o caso, por exemplo, do princípio da igualdade jurídica dos Estados, que tem permanecido um dos pilares básicos do direito internacional, da II Conferência de Paz da Haia em 1907 até nossos dias (2017). A Carta da ONU conferiu -lhe nova dimensão, com o sistema de segurança coletiva, no âmbito do Direito das Nações Unidas, a partir do entendimento de que a preservação da paz e segurança 12 A. A. Cançado Trindade. Foundations of International Law: The Role and Importance of Its Basic Principles. In: XXX Curso de Derecho Internacional Organizado por el Comité Jurídico Interamericano – OEA, 2003, p. 359 ‑415. 32 Antônio Augusto Cançado Trindade internacionais constituem uma preocupação comum de toda a comunidade internacional. Não podemos prescindir dos princípios gerais do direito, abarcando os princípios do direito internacional, se quisermos alcançar um direito internacional verdadeiramente universal, no atual processo histórico de construção de um novo jus gentium13 – tal como examinamos em Curso Geral que ministramos na Academia de Direito Internacional da Haia em 200514. Uma década depois, em conferência ministrada mais recente- mente na mesma Academia de Direito Internacional da Haia, assi- nalamos que a doutrina jusinternacionalista latino -americana tem, ao longo de sua projeção histórica, contribuído constantemente à evolução de diversos domínios do direito internacional, com aten- ção sempre voltada a seus princípios básicos. Tem, ademais, dado expressão ao entendimento de que a justiça internacional não se exaure na “vontade livre” dos Estados individualmente, mas ema- na, em última análise, dos ditames da consciência humana – sendo a consciência jurídica, como sempre sustentamos, a fonte material última do direito das gentes. Ademais, as contribuições da referida doutrina ao desen- volvimento progressivo de nossa disciplina, com ênfase particular nos princípios gerais do direito internacional, apontam rumo a um direito internacional verdadeiramente universal, o novo jus gentium de nossos tempos15. Com isto, a doutrina jusinternacionalista latino -americana tem, ao longo das décadas, se mantido sempre fiel aos ensinamentos, na linha do jusnaturalismo, dos “pais 13 A. A. Cançado Trindade. International Law for Humankind – Towards a New Jus Gentium. 2ª ed. rev. Leiden/The Hague: Nijhoff/The Hague Academy of International Law, 2013, p. 1 ‑726. 14 Originalmente publicados nos tomos 316 ‑317 de seu Recueil des Cours. 15 A. A. Cançado Trindade. The Contribution of Latin American Legal Doctrine to the Progressive Development of International Law. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, v. 376, 2014, p. 91 ‑92. 33 Prefácio à 2ª Edição fundadores” do direito dasgentes (droit des gens), inclusive para dar resposta adequada aos novos desafios de nossos tempos16. Haia, 10 de setembro de 2017. 16 A. A. Cançado Trindade. Prefacio. In: P. Calafate e R. E. Mandado Gutiérrez (eds.). Escuela Ibérica de la Paz (1511 ‑1694) – La Conciencia Crítica de la Conquista y Colonización de América. Santander: Ed. Universidad de Cantabria/Espanha, 2014, p. 40 ‑109; A. A. Cançado Trindade. La Perennidad del Legado de los “Padres Fundadores” del Derecho Internacional. In: Discurso del Acto de Investidura como Doctor Honoris Causa del Profesor Antônio Augusto Cançado Trindade. Madrid: Ed. Universidad Autónoma de Madrid, 20/5/2016, p. 17 ‑55. 35 PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO Vicente Marotta Rangel* Desdobra -se em nosso país o estudo e o ensino do direito internacional público em quatro etapas, que refletem, preponderantemente, eventos básicos de períodos históricos sucessivos. A primeira se projeta desde a independência até a segunda Conferência da Paz, de Haia (1907); a segunda se intercala entre esta Conferência e a Guerra de 1914 -1918; a terceira se localiza entre os dois conflitos armados mundiais; a quarta etapa flui a partir da II Guerra Mundial. Da interpenetração orgânica desses períodos e de sua ressonância, no direito das gentes se dava conta há mais de seis décadas, no decorrer da I Guerra Mundial, em página ainda repassada de atualidade, José Mendes, que o prelecionava na Faculdade de São Paulo: “O direito está para o organismo social”, dizia ele, “como a veste para o organismo individual: um e outro acompanham o desenvolvimento do respectivo corpo. Cada fase da evolução social contém a fase anterior, com alguma coisa a mais. Cada fase é o resumo das fases anteriores, numa e noutra evolução”. Em verdade, a simples menção das balizas que marcam o início e o fim de cada etapa nos sugere a profundidade das transformações * Professor Titular de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, coordenador de Atividades Culturais da Universidade São Paulo e membro do Institut de Droit International. 36 Vicente Marotta Rangel por que têm passado as condições sociais e políticas da sociedade contemporânea, em que o direito internacional – como todo direito – se assenta. O ensino do direito das gentes (segundo então era deno- minado) se iniciou com a instalação dos cursos jurídicos entre nós. Os professores que primeiro lecionaram matérias próprias a esse direito na Academia de São Paulo foram Avelar Brotero e Amaral Gurgel que alternadamente o regiam. Coube àquele escrever a primeira obra de direito internacional público no Brasil: Questões sobre Presas Marítimas, editada em 1836, em São Paulo, que surgiu, como se verifica, apenas quatro anos depois da edição dos Princípios de derecho das gentes, da autoria de Andrés Bello, obra marcante na bibliografia latino -americana. Prioridade do ensino em Olinda coube a Lourenço José Ribeiro e Pedro Autran da Matta e Albuquerque. Deste último, que prelecionou em Pernambuco por mais de cinco décadas, é a autoria dos Elementos do Direito das Gentes segundo a doutrina dos escritores modernos, editado em 1851. Com o escopo de completá -lo e atualizá -lo subsequentemente, dois outros cursos se publicaram no Recife, também da lavra de docentes da mesma Escola: as Preleções de Direito Internacional, de Antonio de Vasconcellos Menezes de Drummond, e as Lições Elementares do Direito das Gentes, de João Silveira de Souza, datadas de 1867 e 1889, respectivamente. Foram também editados na segunda metade do século passado os Elementos de Direito Internacional Marítimo, de Carlos Vidal de Oliveira Freitas, e os Apontamentos para o Direito Internacional ou Coleção Completa dos Tratados Celebrados pelo Brasil, de Antonio Pereira Pinto, repositório, em quatro volumes, de documentos de relevância nas relações exteriores de nosso país, editados entre 1864 e 18691. Todas as publicações do século 1 E agora reeditados, decorrido mais de um século, na Coleção “Memória Jurídica Nacional”: cf. Antonio Pereira Pinto, Apontamentos para o Direito Internacional (2ª edição, Introdução de Antônio Augusto Cançado Trindade), vols. I ‑IV, Brasília, Ministério da Justiça/ Imprensa Nacional, 1980. 37 Prefácio à 1ª Edição passado estão como que a preparar o advento da obra marcante do primeiro período, os Princípios de Direito Internacional, de Lafayette Rodrigues Pereira, obra em dois tomos, publicada em 1902. Jurista de escol, no plano da teoria e da prática, avulta, como se sabe, na última etapa do primeiro período, a prolongar -se no segundo, o Barão do Rio Branco. A participação do Brasil na II Conferência da Haia teve ampla repercussão entre nós e estimulou estudos em profundidade do direito internacional, a começar pelos realizados pelo próprio chefe da delegação brasileira à Conferência, Ruy Barbosa, e continuados com os Elementos de Direito Internacional, de autoria de Manoel Augusto de Sá Viana e a Evolução do Direito Internacional, de João Cabral, que vieram a lume em 1908, no Rio de Janeiro. Em 1911 Epitácio Pessoa divulgou o seu Projeto de Código de Direito Internacional Público, no Rio de Janeiro. Do mesmo ano e da mesma cidade é o Direito Internacional Público (com segunda edição em 1939), de Clovis Bevilaqua. Durante a terceira etapa se editaram exposições sistemáticas como as de Raul Pederneiras, Direito Internacional Compendiado (1931) e de Braz de Souza Arruda, Estrutura do Direito Internacional (1938), sobressaindo -se o Tratado de Direito Internacional Público, em três tomos, de Hildebrando Accioly, editado entre 1933 e 1935 (com 2ª edição em 1956). Em 1936, publicaram -se no Rio de Janeiro, Gênese e Evolução da Neutralidade, e Natureza Jurídica do Mar, de autoria, respectivamente, de Linneu de Albuquerque Mello e Breno Machado Vieira Cavalcanti. Embora se dedicando ao direito internacional privado, Haroldo Valladão analisou temas de internacional público, a que deu desenvolvimento na etapa ulterior. Desde o último conflito armado mundial, o direito das gentes, sem perder o sentido natural de continuidade no tempo e de sorte 38 Vicente Marotta Rangel a refletir o rumo e o espírito das mudanças por que tem passado a comunidade internacional, ampliou extraordinariamente seu âm- bito de competência ratione materiae; sofreu o impacto perturbador dos fatores econômicos, sociais, políticos e tecnológicos; acolheu novos sujeitos específicos, desde o ser humano, reidentificado à luz do direito positivo como polo de irradiação e alvo de destino de todo ordenamento jurídico, até as organizações internacionais que, por seu turno, crescem, se diversificam e se reproduzem por si próprias; reavaliou as funções do Estado no contexto da sociedade global, embora sem desconhecer -lhe a presença e o prestígio de ator principal e indeclinável; acompanhou o relacionamento dos homens em escala planetária e indagou, subsequentemente, das condições dos cosmonautas e do regime jurídico dos corpos celestiais contactados; e voltou a perquirir dos valores fundamentais de convivência humana e de ordem jurídica respectiva. O desenvolvimento dos estudos do direito internacional público, em nosso país, tem estado a acompanhar -lhe as vicissitudes de transformação e relevância crescente, como atestam os trabalhos de docência, de pesquisa e de orientação conduzidos por eminentes juristas, que hoje o cultivam, com segurança e descortino, nas diversas cátedras e departamentos das universidades brasileiras, assim como na diplomacia. Das obras publicadas no Brasil nessa quarta e última etapa, algumas a ela poderiam naturalmente pertencer por simples circunstância de ordem cronológica. Tal não ocorre com o livro que me cabe a honra aqui de proemiar, porquanto ele significauma resposta sensível e vital a indagações essenciais que marcam a presença do direito das gentes em nossos dias. Situa -se ele, por sinal, no centro de convergência de três termos inseridos no título com que se denomina e se apresenta ao público: Princípios do Direito Internacional Contemporâneo. O primeiro desses termos distingue a obra por mencionar princípios, aos quais ela deseja cingir -se, já que o seu escopo não consiste em expor a sistemática 39 Prefácio à 1ª Edição diversificada, abrangente e complexa do direito das gentes, mas as diretrizes de temas nucleares e vitais, desdobrados em partes, quatro ao todo: fontes; responsabilidade dos Estados; competências das organizações internacionais; e, finalmente, posição internacional dos particulares. O segundo desses termos concerne ao próprio direito internacional cujas origens remontam, pelo menos em sua feição moderna, à época da descoberta do Novo Mundo, mas cujas estruturas e lineamentos sofrem o influxo das transformações sociais, a influência do progresso tecnológico e científico, o vigoroso condicionamento dos fatores políticos, econômicos, culturais. Trata -se, pois, a rigor, do international law, segundo a terminologia dos países de common law, do qual se exclui necessariamente o direito internacional privado, conflict of laws. Precisamente em razão do impacto dessas transformações, o terceiro dos termos inseridos no título consiste no qualificativo de contemporâneo outorgado a esse direito internacional, que se deseja entrever, difundir e analisar à luz dos eventos da década de oitenta, considerado na perspectiva dos momentos decisivos da sociedade global de que todos participamos como membros, mais expectadores do que protagonistas. Teria a análise do direito das gentes contemporâneo o efeito de prescindir da busca desse direito em tempos menos recentes? A leitura dos ensaios componentes da obra autorizará resposta negativa e nos faz reconhecer neles a presença dos ensinamentos de José Mendes. O contemporâneo surge aí como resumo e complemento das fases anteriores, a que os ensaios recorrem toda vez que se faça necessário compreender e vistoriar os quadrantes e o cerne do direito perquirido. 40 Vicente Marotta Rangel I Planejar e executar o livro, assentá -lo em bases científicas, alicerçadas em pesquisas e perquirições de rumos pioneiros, constitui o mérito de Antônio Augusto Cançado Trindade. A tarefa somente poderia ser levada a cabo por fino espírito de jurista, aprimorado por largo período de estudo e investigação científica2. Bacharel em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais onde já se distinguira com primeiro prêmio em direito civil (1971), mestre em direito internacional por Cambridge (1973), veio a coroar seus estudos na Europa ao alcançar, nessa prestigiosa Universidade inglesa o Ph.D. com a tese Developments in the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International Law, a qual lhe ensejou ser galardoado igualmente com o Yorke Prize, concedido ao autor da melhor das teses de doutoramento defendidas naquela Universidade, na área do direito internacional, e referente ao biênio 1977 -1978. Do autor se pode aduzir estar ele a confirmar, assim, uma certa tradição dos docentes do direito das gentes em nosso país, a de preparação adequada em núcleos universitários do exterior, tradição essa firmada por Pedro Autran da Matta e Albuquerque que, antes de ensinar em Olinda o direito das gentes, havia na Universidade de Aix -en -Provence alcançado seu doutoramento no correr do mesmo ano em que se fundaram os cursos jurídicos em nosso país. A regência do ensino de direito internacional na Universidade de Brasília e no Instituto Rio Branco, assim como a Chefia do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da mesma Universidade, constituem natural corolário de fecundo período de habilitação e adestramento, começado em nosso país e aprimorado alhures. 2 Cf. a relação completa, até o presente, dos trabalhos de pesquisa do autor, editados em diversos países, in Apêndice infra, p. 265 ‑268. 41 Prefácio à 1ª Edição II A parte concernente às fontes, com que o livro se inicia, desdobra -se em três capítulos: reavaliação das fontes do direito internacional público ao início da década de oitenta; princípios do direito internacional contemporâneo regendo as relações amisto- sas entre os Estados, e sua significação para essa reavaliação; e elementos para uma sistematização da prática desse direito. No tocante ao primeiro capítulo, a reavaliação das fontes é feita a par- tir da enumeração do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, sem, porém, tê -lo como “fórmula peremptória e exaus- tiva”, e em função da inquirição de eventual relação hierárquica entre essas fontes. Poder -se -ia dizer, invocando tradição islâmica aludida por Giorgio dei Vecchio, quando Maomé fora chamado a responder como juiz a questionário de seu assistente, reportar- -se a problemática das fontes ao momento crucial e inexorável de julgar. Analisou -as o autor, para tanto, minudentemente. Sopesou os elementos constitutivos e o processo de criação de regras cos- tumeiras, mercê do exame dos casos Lotus e do Asilo outorgado a Haya de la Torre; a incidência sobre elas do processo de descolo- nização; os elementos probatórios do costume. Entrevistos à luz da Convenção de Viena, são os tratados internacionais focalizados nos diferentes aspectos de sua fenomenologia, sem prejuízo do exame de tópicos prévios como o do seu relacionamento com o princípio da soberania ou adicionais como o da significação das convenções não ratificadas. Quanto aos princípios gerais de direi- to, o autor indaga de seu conceito, sua natureza, sua exemplifi- cação. Entende abrangerem as “decisões judiciais” não apenas as provenientes de tribunais internacionais (arbitrais e judiciais), mas também as emanadas de tribunais administrativos interna- cionais assim como de tribunais internos. Embora meio auxiliar, a doutrina comparece em áreas especificas e, sobretudo, na pro- 42 Vicente Marotta Rangel dução das sociedades científicas. Enquanto sujeita o parágrafo 2 do artigo 38 do Estatuto da Corte ao crivo de arguição vigilante, o autor ultrapassa o rol das fontes nesse artigo arroladas para per- quirir da natureza e do alcance da questão quer dos atos jurídicos unilaterais, quer das resoluções das organizações internacionais, focalizando esta última indagação com lentes de microscopia e aparelhamento de megascópio. Desse instrumental se utiliza, a seguir, para perscrutar a Declaração Relativa aos Princípios do Di- reito Internacional Regendo as Relações Amistosas e Cooperação entre os Estados, adotada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1970, tanto quanto o que o autor denomi- na, com pertinência, de Elementos para uma Sistematização da Prática do Direito Internacional em que inventaria as fontes dis- poníveis para essa finalidade. III No concernente à responsabilidade dos Estados – Segunda Parte do livro – o contencioso diplomático e os recursos de direito interno constituem objeto de investigação original e acurada. Quais as origens do princípio do prévio esgotamento dos meios internos de reparação? Vinculando -as à prática de represálias, desde a Idade Média, mostra o autor como, nas diversas etapas de seu desenvolvimento, esse princípio acabou por alcançar respaldo tanto na doutrina como na prática internacional, de sorte a haver se constituído desde os fins do século passado, em regra costumeira de direito internacional. Essa prática é examinada, com espirito crítico, até os dias correntes, no âmbito dos Estados europeus, dos Estados americanos, e particularmente do Brasil. Dados os vínculos estreitos entre a regra do esgotamento dos recursos internose o direito da responsabilidade dos Estados, coloca -se o problema de saber se essa responsabilidade se configura 43 Prefácio à 1ª Edição mais remotamente no tempo com a mera violação de norma jurídica ou apenas depois de esgotados os recursos internos. Após relatar o impasse a que chegou a Conferência de Codificação de Haia de 1930, o autor examina detidamente as duas teses em confronto, a da regra substantiva e a da regra processual. Alude a teorias ecléticas. Passa a expor demais teses, explanatórias: a) do delito internacional complexo, em que é exposta a teoria de Ago, contida inicialmente em seu curso na Haia (1939) e aprimorada no projeto apresentado, posteriormente, na Comissão de Direito Internacional, base de referência principal do relatório apresentado por Carrillo na recente reunião de Mérida do Instituto Hispano- -Luso -Americano de Direito Internacional; b) a do dédoublement fonctionnel; c) a da regra de conflito; d) e a da regra de conveniência. Não é possível, todavia, eximir -se à dicotomia básica das teses substantiva e processual. Quanto à denegação de justiça, seu sentido próprio e seu alcance cuida -se de perscrutá -la em face da doutrina, da jurisprudência e da prática dos Estados. O termo denegatio justitiae remonta à baixa Idade Média e se encontra historicamente relacionado à proteção outorgada pelo príncipe a seus súditos no exterior. Após inventariar o emprego do termo através das diversas fontes, pondera o autor que “em seu sentido próprio, a denegação de justiça implica na recusa de um Estado em estender proteção judicial aos direitos dos estrangeiros através de seus recursos e dos tribunais nacionais”. IV Embora atinente, de maneira genérica, às competências das organizações internacionais, a terceira Parte é consagrada especificamente ao exame de competência das Nações Unidas, da “amplitude de sua esfera de ação”. O ponto de partida consiste 44 Vicente Marotta Rangel no exame da personalidade jurídica internacional da organização que, podendo conceituar -se através de dupla nota essencial — o de ser ratione materiae política e o de ser ratione loci de vocação universal — é, ademais a entidade sucessora da Sociedade das Nações. Assentado o reconhecimento dessa personalidade jurídica com base em disposições da Carta de São Francisco, no parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça, de 1949, referente ao caso da Reparação de Danos da mesma forma que em status especial comprovado por fatores como o de agir autonomamente, adotar decisões obrigatórias e engajar -se no jus belli ac pacis, o livro passa a perquirir das principais teses sobre as competências da ONU: a da interpretação literal da Carta; a dos “poderes inerentes” e a dos poderes “implícitos”. Preferida esta última tese pelos doutrinado- res, e favorecida ademais pelo prestígio que lhe conferiu o mencionado parecer consultivo, dela emerge o reconhecimento não apenas de um direito próprio da organização, mas também do poder de criar diretamente entidades ou órgãos internacionais, assim como de atribuições especiais das Nações Unidas no domínio de suas relações com os Estados -membros. Do cotejo entre, de um lado, o ordenamento originário e, de outro, a prática das Nações Unidas, se impõe reconhecer modificações sensíveis que se introduziram no sistema de distribuição de competências entre os órgãos da entidade. Essas modificações ocorreram em favor do alargamento de competências da Assembleia Geral e, ao mesmo tempo, em detrimento das que foram de início conferido ao Conselho de Segurança, assim como ao Conselho de Tutela e ao Conselho Econômico e Social. O crescimento de competência da ONU, como um todo, se tem verificado, igualmente, em áreas onde a Carta constitutiva é omissa ou reticente, como a da representação diplomática, ativa ou passiva, e a da convocação de conferências de plenipotenciários, ou em domínios – como o da descolonização – em que a atuação 45 Prefácio à 1ª Edição da entidade ultrapassa de muito as normas da Carta, embora o âmbito de atribuições nelas estipuladas já fosse por si mesmas claras e precisas. Tais diferentes modalidades de alargamento de competências suscita a problemática do conflito da Carta não apenas com demais acordos internacionais senão também com resoluções emanadas tanto dos órgãos como da própria entidade a que pertencem. Estariam tais atos a vulnerar a Carta? Seriam eles injurídicos? Emerge daí a questão do controle da “legalidade” desses atos, assim como do procedimento adequado a esse controle. Quais são, por outro lado, os assuntos a dependerem “essencialmente da jurisdição de qualquer Estado”, segundo a expressão usada no artigo 2(7) da Carta? Tratando -se de cláusula considerada “obscura” e cuja interpretação se entende como adstrita aos órgãos das Nações Unidas reafirma -se, por via de consequência, tanto em teoria como na prática, a tendência do alargamento do âmbito de competência da ONU. V O ponto de convergência do estudo sobre a posição internacional dos particulares reside na implementação dos direitos humanos e se reporta à sistemática dessa implementação ante o influxo concomitante de normas que poderão ser conflitantes, as do direito interno e as do direito das gentes, como conflitantes poderão ser igualmente as decisões dos órgãos eventualmente competentes nesse domínio, estatais e internacionais. Pode -se dizer que tal influxo se revela normal e de incidência crescente, por causa do conhecido fenômeno da progressiva internacionalização das matérias e por não ser possível traçar, entre um e outro direito, como outrora pretendera Louis Le Fur, fronteiras precisas. A solução a eventuais conflitos, dessa índole não seria dada, como pondera o autor, através das posições doutrinárias clássicas, 46 Vicente Marotta Rangel dualista e monista. Está em causa, a respeito por outro lado, a momentosa questão do domínio reservado, a reduzida prática da Sociedade das Nações sobre o artigo 15(8), cuja redação condicionava a área desse domínio ao direito internacional e que acabou não vingando nem no projeto de Dumbarton Oaks, nem na Carta das Nações Unidas. Da redação lacunosa e imprecisa do art. 2(7) dúvidas variadas, como se sabe, emergem, de sorte que a eventual inserção dos direitos humanos nesse domínio fica na dependência da natureza do órgão chamado a dirimi -las. Nos primórdios da década de oitenta – lembra o autor – dificilmente se poderia sustentar caíssem esses direitos sob o domínio reservado dos Estados. O estudo não se concentra “no direito substantivo, mas nos mecanismos de implementação a nível internacional, em âmbito global assim como regional”. Entre os de âmbito global, contemplam -se os das Nações Unidas, seus órgãos e suas agências especializadas; os da convenção sobre a eliminação da discriminação racial; e os dos atos sobre a proteção internacional dos refugiados. Entre os de âmbito regional, figuram como era de prever, os mecanismos do sistema europeu e do sistema interamericano. A preocupação com os mecanismos de implementação confere à obra de Cançado Trindade realce na bibliografia da língua portuguesa, da qual entre nós se valeram, com ênfase no direito substantivo, em passado recente, autores como Penna Marinho, José Soder, Dunshee de Abranches, Oliveiros Litrento, Mello Boson, Celso Albuquerque Mello, R. Valentino Sobrinho, idioma no qual, com notável senso de clarividência, em posição de vanguarda para a época, se exprimiu Sá Viana, ao ressaltar, na alvorada deste século, ser o homem sujeito do direito das gentes. Alenta verificar os progressos alcançados na explicitação e na garantia dos direitos humanos, pois não se insere hoje senão na galeria dos fatos pitorescos o escândalo provocado na segunda metade do século47 Prefácio à 1ª Edição passado por Heffter, ao afirmar que “o homem como tal, abstração feita de sua nacionalidade, tinha direitos e deveres internacionais”. Segundo mostra Cançado Trindade, o mecanismo de proteção dos direitos individuais aflorava, há um século atrás, ao nível das relações interestatais, através de prática tantas vezes condenável da chamada “intervenção humanitária”, a que se encontrava relacionada a polêmica acerca do padrão internacional ou do padrão nacional de tratamento de estrangeiros. Embora fosse essa prática abonada pela autoridade de Francisco de Vitória e demais fundadores do direito das gentes, não deveria ela subsistir ante o processo de institucionalização crescente da sociedade internacional e do advento de experimentos pioneiros, as petições de indivíduos e grupos particulares, inclusive das minorias de países europeus e dos habitantes de territórios sob mandato. Como ponto de desconformidade entre as duas guerras mun- diais, tem sido lembrado que enquanto a primeira delas se inspirou ideologicamente no primado da independência das nacionalida- des, a segunda importou, essencialmente, numa cruzada em favor dos direitos humanos. Vislumbra -se, até, entre as causas do ma- logro da Sociedade das Nações, ofensa a esses direitos. Prestigiá- -los, pois, deveria ser o propósito da entidade que viria a sucedê- -la. Tanto a Assembleia Geral como o Conselho Econômico e Social passaram a ter, de fato, competência no elaborar recomendações para favorecer o gozo e o respeito dos direitos humanos: Carta, artigos 13(1) e 62(2). Poder especial foi conferido ao Conselho, o de criar comissões para a proteção desses direitos (artigo 68). Foi poder que exerceu já em sua primeira sessão, celebrada em Lon- dres. Criada pela resolução de 16 de fevereiro de 1946 passou a Comissão de Direitos Humanos a ter incumbência de apresentar ao Conselho proposições referentes à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada, finalmente, pela Assembleia Geral a 48 Vicente Marotta Rangel 10 de dezembro de 1948 e na qual René Cassin entreviu o vasto pórtico de um templo, cujo átrio é formado pelo Preâmbulo e cujo embasamento é constituído pelos princípios gerais de liberdade, de não discriminação e de fraternidade proclamados nos artigos primeiro e segundo do documento. Das quatro colunas de impor- tância igual, que sustentam o pórtico, as três primeiras se referem a direitos civis e políticos enquanto a última a direitos econômicos, sociais e culturais. A dicotomia desses direitos avulta de importân- cia em relação tanto ao processo de elaboração legislativa como ao processo de implementação das normas respectivas, porquanto os primeiros implicam em dever de abstenção por parte do Esta- do, conquanto a este caiba estabelecer e manter a ordem para que eles se exercitem, e porque – como adverte Karel Vasak – o titular destes direitos é o ser humano ou o cidadão, não como abstrações autônomas e isoladas senão como entidades que atuam necessa- riamente no complexo da vida sociopolítica. A dualidade desses direitos subsiste no sistema europeu porquanto ao lado do Trata- do de Roma e de seus protocolos se situa a Carta Social Europeia. A Convenção Americana de Direitos Humanos enumera, em prin- cípio, os direitos civis e políticos e, quanto aos econômicos, sociais e culturais, se reporta ao Protocolo de Buenos Aires de Reforma da Carta da OEA. Tal dualidade tem, porém, sua expressão mais sig- nificativa, como se sabe, nos Pactos das Nações Unidas, de Direi- tos Econômicos, Sociais e Culturais, e de Direitos Civis e Políticos, assim como no Protocolo Facultativo deste último, adotados pela Assembleia Geral aos 16 de dezembro de 1966 e que entraram em vigor, o primeiro desses instrumentos, aos 3 de janeiro de 1976, e os dois últimos aos, aos 23 de março de 1976. Ambos os Pactos contemplam, entre as medidas de implementação, o sistema de re- latórios que cada Estado parte se compromete a apresentar. Cabe notar que a tramitação difere segundo se tratar de um ou de outro pacto. Em se tratando de direitos civis e políticos, o destinatário 49 Prefácio à 1ª Edição final do relatório será o Comitê de Direitos Humanos, instituído pelo Pacto respectivo, composto de dezoito membros, cidadãos dos Estados partes, “personalidades de alta moralidade e possuidores de competência reconhecida nos domínios dos direitos humanos”, eleitos a título individual em escrutínio secreto para um período de quatro anos, reelegíveis (artigos 28, 29 e 32). O Comitê poderá ter sua competência reconhecida pelos Estados partes no concernen- te ao recebimento e exame de reclamações intergovernamentais (artigo 41) assim como – segundo estipula o Protocolo facultativo – de petições individuais. A inaplicabilidade do mecanismo de re- clamações e de petições aos direitos econômicos, sociais e culturais se explicaria – como lembra Cançado Trindade – porque seus obje- tivos serão realizados em período de tempo mais longo e porque as obrigações respectivas não poderiam ser tão precisamente defini- das como no caso dos direitos civis e políticos. VI Ao reportar -me aos tópicos básicos do livro que estou a pro- logar, e da rica documentação perlustrada a palmo, tenho presente à interpretação lógica e lúcida que Cançado Trindade soube entre eles estabelecer. Essa qualidade adicional do livro me faz recordar uma das razões apontadas pela American Philosophical Society para a concessão do Phillips Prize a Wolfgang Friedmann. Segundo in- forma a coletânea de ensaios publicada no ano passado em home- nagem ao insigne filósofo e jurista, o premiado não era apenas “an expert in relevance”, mas era também “able to perceive the connec- tions between things whose relationship had not previously been clearly seen”. Tais vínculos se me afiguram revelados pelo autor de forma surpreendente por vezes mas sempre de modo categórico e preciso tanto entre os diferentes tópicos de ensaios diversos como entre ensaios que entre si se concatenam no âmago da obra. Víncu- 50 Vicente Marotta Rangel los também se tornam perceptíveis – permito -me aduzir – entre as normas e instituições jurídicas vistoriadas e a sociedade a que elas correspondem através de uma concepção subjacente que se pode- ria qualificar de global e dinâmica, mercê da qual a ordem jurídica aparece entrevista não apenas como estrutura oponente ao fluxo das mutações sociais mas também, ao mesmo tempo, como fonte impulsionadora do sentido e do ritmo dessas transformações. São Paulo, 15 de outubro de 1980. PARTE I FONTES 53 CAPÍTULO 1 REAVALIAÇÃO DAS FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO Sumário: I. Observações preliminares. II. O costume internacional. III. Os tratados internacionais. IV. Os princípios gerais do direito. V. Valor da jurisprudência internacional (Decisões judiciais e arbitrais). VI. Valor da doutrina. VII. O elemento de equidade. VIII. A questão dos atos jurídicos unilaterais. IX. A questão das resoluções das organizações internacionais. X. Considerações finais. 1.1. Observações preliminares A temática das “fontes” do direito internacional continua desafiando os teóricos da disciplina. O advento, ao longo das últimas décadas, de novos atores no plano internacional, tem contribuído para ampliar os modos pelos quais o direito internacional tem passado a se manifestar. Os autores do passado tendiam a ressaltar a distinção entre as fontes formais clássicas e a chamada “fonte” material, que era antes o substrato jurídico de que se originavam 54 Antônio Augusto Cançado Trindade as fontes externas (costume, tratados, etc.)1. Ainda hoje, talvez o ponto de partida mais conveniente, senão natural, para o estudo da matéria seja o artigo 38 do Estatuto Estatuto da Corte Internacional de Justiça