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6º grupo Ana Maria Berlin Alfredo Bione Hilário Caíque Claudina José Alferes Cleide Mouzinho Gimo Grace Collins Tauzi Rabia Amad Aly Analise da narrativa de João Dias e Luís Bernardo Honwana UNIVERSIDADE PÚNGUÈ MANICA, Junho de 2021 6º grupo Ana Maria Berlin Alfredo Bione Hilário Caíque Claudina José Alferes Cleide Mouzinho Gimo Grace Collins Tauzi Rabia Amad Aly Analise da narrativa de João Dias e Luís Bernardo Honwana UNIVERSIDADE PÚNGUÈ MANICA, Junho de 2021 Trabalho de carácter avaliativo a ser entregue no departamento de letras, ciências sociais e humanidade, no curso de licenciatura em português, relativo a cadeira de literaturas africanas em língua portuguesa I, sob a orientação da docente Alima Pereira Índice 1.0. Introdução .............................................................................................................. 4 2.0. Analise da narrativa de João Dias e Luís Honwana .............................................. 5 2.1. Analise da narrativa de João Dias ...................................................................... 7 2.2. Analise da narrativa de Luís Bernardo Honwana ............................................ 12 3.0. Conclusão ............................................................................................................ 17 4.0. Referências bibliográficas ................................................................................... 18 4 1.0.Introdução o presente trabalho pretende focalizar alguns aspectos observados em dois contos de escritores moçambicanos que se organizam, cada um a sua maneira, em torno do tema da força de trabalho e que propomos como chave para a análise crítica da ficção moçambicana. O conto “Godido”, de João Dias (escrito na década de 1940), e o conto “matamos o cão tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana (escrito entre a 1964 a 1967 enquanto o emblemático autor que impulsionou com as suas obras a luta de libertação nacional do jugo português estava detido sob a custódia da policia colonial devido a sua posição política), são narrativas estruturadas a partir, principalmente, do questionamento de uma realidade social vigente e que, sendo assim, internalizam em suas composições aspectos fundamentais do contexto moçambicano sob os quais foram escritas. Dessa forma, apresentam, a partir de seus respectivos focos narrativos, em suas especificidades, conforme pretendemos discutir, as condições do trabalho do negro e um despertar para a liberdade moçambicana do sistema opressor da qual Moçambique foi vitima. O método usado para a elaboração do trabalho foi a pesquisa bibliográfica e analise textual das narrativas dos autores já referidos e o objectivo geral é analisar as emblemáticas obras dos autores João Dias e Luís Bernardo Honwana entre os específicos destacam-se: referir o contexto da produção das principais obras dos autores, falar da imperiosidade na busca por liberdade do jugo colonial, interpretar as narrativas, assemelhar os conteúdos e referenciar o seu contributo na luta de libertação colonial e resistência ao sistema colonial. 5 2.0. Analise da narrativa de João Dias e Luís Honwana Nosso ponto de partida se organiza pela compreensão do que seja o trabalho, historicamente constituído dentro de uma ordem capitalista que inevitavelmente vai modificar as formas e relações de trabalho, no final do século XIX e século XX, em territórios africanos com a ascensão dos colonialismos. Se no conto “Godido” isso se revela na dinâmica das relações estabelecidas entre o patrão Manuel Costa, a mãe de Godido e o próprio Godido. Seguindo algumas premissas marxianas, cujo repertório, sem dúvida, esclarece as intervenções do modelo capitalista em diferentes regiões do mundo dentro, portanto, de uma perspectiva ampliada, temos o trabalho como criador de valores de uso, como trabalho útil, é uma condição de existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana (V.I, [s.d.], p. 50). Tomamos como pressuposto básico, portanto, os entrelaçamentos sempre dinâmicos entre a produção literária de um respectivo espaço, seu processo histórico específico e as relações socioculturais aí estabelecidas, para perceber nessa produção literária índices que revelam as conformações sociais que se desencadearam a partir da transformação das relações de trabalho. Procuramos, desse modo, reflectir acerca das questões que se remetem à categoria do trabalho, e que compõem a tessitura literária, na medida em que, nos processos históricos vividos por Moçambique ao longo do colonialismo, o trabalho deixa de ser condição para uma existência social de acordo com os parâmetros endógenos historicamente, socialmente e culturalmente que se estabeleceram ao longo dos séculos, para se transformar em mercadoria, violência e estranhamento. Nessa relação constituída a partir do valor de troca emerge no sistema a mercadoria (cerne do capitalismo). O que nos interessa, portanto, considerando as dinâmicas e dialécticas imbricações entre literatura e história, é perceber em que medida essas relações de trabalho impostas pelo capitalismo emergem na narrativa ficcional partindo das relações históricas de onde os contos de João Dias e Luís Bernardo Honwana emergiram. Destacamos, inicialmente, que a despeito da proclamação da República portuguesa, em 1910, em que se estabeleciam os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o que permanecia paradoxalmente nas bases da ocupação dos territórios africanos era a supremacia portuguesa, que tratava agora de regulamentar as novas formas de ocupação colonial efectivamente. De acordo com Maria Paula G. Meneses: O 6 dever moral de colonizar, de expandir os alcances civilizacionais da Europa ao resto do mundo era parte dos desafios das grandes nações, onde Portugal se incluía. “O império do mundo pertence às raças não somente mais activas, mas mais expansivas e colonizadoras”, afirmava Marnoco e Sousa (1910, p. 35). A diferença cultural assumia agora a tonalidade da diferença hierárquica racial, concepção desenvolvida a partir da articulação entre o evolucionismo, o positivismo e o racismo (MENESES, 2010). É possível perceber, portanto, as premissas legais que originariam normas e regras capazes de sintetizar e organizar juridicamente a exploração do trabalho negro, de acordo com os modos de produção capitalistas que se inscreviam nas dinâmicas sociais locais. Ainda segundo Maria Paula Meneses: Os projectos de República para o desenvolvimento de Moçambique deram continuidade aos anteriores modelos de exploração do trabalho africano. Embora as críticas internacionais tenham levado a que o trabalho forçado fosse, juridicamente falando, abolido, em 1928, a legislação que se seguiu insistiria no dever moral do governo colonial em desenvolver as propensões morais dos indígenas encorajando-os a cumprir as suas obrigações morais de melhoria das suas condições de vida através do engajamento em actividades laborais compulsivas, durante seis meses por ano. Esta filosofia política colonial havia sido desenvolvida por um dos principais políticos coloniais, António Ennes. Em finais do século XIX, o principal desafio que Portugal enfrentava era o de “obrigar as províncias ultramarinas a produzirem (ENNES, 1946, p. 27). Como nesta empresa não se poderia contar com o trabalho dos colonos brancos, sob argumento da inclemência do clima, da aridez do solo e da proliferação de doenças desconhecidas e insuportáveis, restava o trabalho indígena: precisamos dele para a economia da Europa e para o progresso da África. A nossa África tropical não se cultiva senão com Africanos (MENESES, 2012,p. 75). Desse modo, podemos inferir que as relações de trabalho estabelecidas, então, constroem a moderna escravidão, na medida em que os trabalhadores negros progressivamente perdem a posse da matéria prima, dos instrumentos do seu trabalho e, consequentemente, do produto final, e isso ocorre com a ascensão de sistemas colonialistas assentados em premissas de um capitalismo cada vez mais mundializado. Na esteira dessa reflexão, para a qual esses movimentos do capital vão destituindo o homem de suas relações humanizadoras com o trabalho, é que se procura pensar acerca 7 das incidências desses mecanismos e interesses económicos e hegemónicos sobre as sociedades africanas desde a Conferência de Berlim (1884-1885), em finais do século XIX. Os colonialismos impuseram àquelas estruturas sociais mecanismos de intervenção capitalista, uma vez que a lógica político-económica que todas as embarcações trouxeram na bagagem era o interesse exclusivo de acumulação de bens e riquezas para as respectivas metrópoles. Essa seria, portanto, questão relevante trazida pela leitura dos textos de ficção e da produção poética de Moçambique. ambos são contos e, portanto, uma história curta e fechada em si, em geral com uma só acção, um protagonista e um narrador objectivo. A seguir, por estarem ambos os contos de alguma forma ligados entre si por um aspecto fundamental: a percepção de duas crianças (protagonistas), sempre amparadas pela figura materna, sobre uma realidade relacionada à exploração da força de trabalho, que é conjecturada a partir do lugar do negro na esfera do trabalho em Moçambique no período da colonização. Há no livro de contos Godido e Outros Contos, de João Dias e Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, aspectos fundamentais relativos às suas estruturas narrativas que indicam, no percurso de sua construção, o interesse comum de trazer como eixo central as tensões sociais do país, que mobilizaram a acção de tantos escritores, sobretudo a partir da década de 1940, em países africanos (não só de língua portuguesa). Ressaltamos que os dois contos aqui apresentados trazem em comum uma dinâmica de denúncia ora mais evidente por um narrador irónico e ora mais escamoteada por um narrador infantil, mas ambos imbuídos pelo contagiante interesse de entender o espaço social dentro do qual circulam e que se organiza, sobretudo, a partir da depreciada relação de trabalho estabelecida entre proprietários brancos e empregados negros. 2.1. Analise da narrativa de João Dias Em João Dias, nascido em 1926, é relevante a intensidade, marcada por uma gradação que se observa através dos olhos de Godido em relação ao espaço físico dentro do qual se encontra, o latifúndio de Manuel Costa, e a densidade com que projecta as suas personagens num cenário de opressão sistemática em que crianças, mulheres e homens de todas as idades se encontram enredados na dinâmica de um moderno de escravidão. Mas para além da intensidade projectada por essas muitas personagens, a comoção se reforça quando descobrimos, no caso de João Dias, que o autor dessas imagens faleceu aos vinte e três anos e que, portanto, sua escrita está embebida na profundidade dos 8 argumentos constituídos a partir de uma compreensão urgente do processo histórico, que impunha aquelas populações uma realidade violenta de exploração. Seu emblemático conto “Godido” desencadeia uma sequência de imagens em que a realidade da opressão colonialista revela-se a partir da chegada do português patrão Manuel Costa, que traz consigo “máquinas, autoridade, réguas” (p. 35). A chegada de Manuel Costa anuncia, assim, as transformações do local, sobretudo e essencialmente no que se refere à esfera do trabalho, como podemos identificar na explicação do narrador: “Os pretos dividiam-se em dois grupos: os das pequenas machambas independentes e os empregados da quinta. Os primeiros, sentindo o peso dos impostos, vendiam seus produtos ao caseiro. De modo que uns subordinados directamente e outros conscientes de uma liberdade que não tinham, todos viviam para o grande proprietário”.(DIAS, 1988, p. 35). A partir daí, o quotidiano é transformado pelas leis que vão garantir o enriquecimento do novo proprietário. Tomada a terra, transformada parte significativa da mão de obra em trabalho alienado, endividada a outra parte pelos altos impostos cobrados, o espaço é violentamente atingido por novas regras e leis que, de forma progressiva, irão empobrecer as condições de vida daquela população. O foco narrativo omnisciente e em terceira pessoa, que abre espaço para o desencadeamento do discurso directo livre, revela uma aflitiva projecção de um mundo mobilizado pela produção e acumulação de riquezas, no qual a força de trabalho está posta como mercadoria, e é a linguagem que atravessa a missão civilizadora [portuguesa] estava pois profundamente imbuída de princípios racistas. “Nos modernos contextos coloniais, de que Moçambique foi exemplo, os negros „não civilizados‟ ou indígenas eram considerados meros súbditos coloniais, podendo ser recrutados pelas autoridades coloniais para o trabalho forçado” (MONDLANE, 1995). A metáfora estruturadora destas relações no espaço colonial era a noção de civilizado, que rapidamente se transformou em sinónimo de europeu, a que se opunha a imagem dos colonizados, simbolizados pelo indígena africano. O „não- indígena‟ original detinha, teoricamente, todos os privilégios da cidadania portuguesa (MENESES, 2012, p. 83) convertida em lucro para branco e em expropriação para o negro. 9 O conto é construído a partir de um movimento dialéctico que se organiza materialmente no plano da escrita de duas maneiras: à medida que o fortalecimento de Manuel Costa significa o empobrecimento da população e à medida que o amadurecimento de godiado, que busca sua emancipação, implica em um menor espaço para a exposição das conquistas de Manuel Costa no conto. Organiza-se a estrutura narrativa, portanto, a partir da ascensão económica e social do patrão em oposição às precárias condições sociais das populações locais, que perdem seus direitos e são encerradas em um projecto jurídico-social que legitima a mão de obra compulsória, na primeira parte. Mas também, em seu inverso, na segunda parte, organiza-se através da resistência de Godido a essa condição, impulsionada, principalmente, pela consciência emancipadora de sua mãe. Temos então que o conto se inicia remetendo-se aquilo que poderia ser entendido como o princípio de um conto de fadas, “Era uma vêgi um dia” (p. 35), (Era uma vez...). Se por um lado, temos uma posição tanto quanto irónica colocada aqui na narrativa, uma vez que em uma história de cunho denunciativo de uma realidade de invasão e exploração sobrepõe-se um início que remete inevitavelmente ao aparato ideológico dos contos de fadas, por outro, temos uma subversão desse aparato através da projecção de uma voz moçambicana (com acentuados registos de coloquialidade), que se põe a contar sobre o seu lugar e a condição que lhe foi dada no mundo. No imediato do conto de João Dias somos remetidos então para uma espécie de tomada de voz moçambicana que norteará a construção do enredo, encaminhando o protagonista para a construção de sua identidade a partir da ruptura com um destino (mundo interior) que desde o nascimento lhe é imposto pela realidade colonial (mundo exterior). Para isso colabora, como podemos observar, o carácter denunciativo que será o principal aporte da voz narrativa: “Agora machamba não é de preto” (p. 35). Mais que isso, também colabora a construção no conto de uma condição de trabalho adversa que precisa ser superada para que Godido alcance uma vida “compensadora e boa” (ao menos, livre). É sob essa expectativa criada ao longo de toda a primeira metade do conto que emerge a figura de Godido. Desde o nascimento, sua condiçãode vida é submetida às opressivas relações de trabalho presentes naquele espaço de domínio do “senhor Costa”, o que já estava cunhado na narrativa pelo ponto de vista do narrador, que evidentemente (pela ironia) opõe-se à ascensão de Costa, e será ressaltado no dia do nascimento de Godido, relativamente ao dia de trabalho de sua mãe, dona Carlota: 10 “Certo dia sentiu náuseas, voltou à palhota. Descontaram-lhe horas de trabalho. A barriga rompeu e vazou. O senhor Costa espiou” (DIAS, 1988, p. 36). É importante notar que a presença de Godido no conto acontece, portanto, após a elaboração de um primeiro momento do movimento dialéctico, ao qual fizemos menção inicialmente, com um senhor Manuel Costa atingindo o ápice de seu poder, porque já havia tomado o lugar do soba, fazendo-se “de juiz entre os indígenas”, expulsado o feiticeiro, “raivando riso, empurrou pra longe o negro ladrão”, e colocando-se, portanto, como patrão e máxima autoridade local. Em oposição à ascensão de Manuel Costa, intercalando a ocupação do território (que se quisermos, podemos entender como país metonimicamente representado por essa aldeia), as diversas passagens que compõem o discurso directo livre auxiliam o narrador a alertar para a falta de liberdade, o pagamento forçado dos impostos, a fome, o excesso de trabalho, a falta da escola, numa cadência que configura a situação de exploração, culminando numa desigualdade que se assenta sobre a fome e não tolera possibilidades futuras: “Os produtos seguiam para as grandes cidades. Na aldeia, a fome” (p. 35); “Escola pra preto num tinha. Branco estava a falar cos pretos é só pra cavari, cavari ni chão” (DIAS, 1988, p. 36). É a partir desse contexto, assim projectado nessa unidade sempre contraditória entre proprietário e trabalhador, entre os donos dos meios de produção e a força de trabalho, entre o colonialista e as populações locais, organizadas parágrafo a parágrafo até aqui, que se dará início da segunda parte do conto (marcada pela percepção da mãe sobre os 15 anos do filho), em que a fuga de Godido em busca de sua liberdade torna-se o centro da narrativa. O que ocorre é uma espécie de virada narrativa: conforme Godido ascende como herói (aprontando-se para as lutas do destino, ou seja, sua fuga aquele destino que lhe está sendo imposto), Manuel Costa sofre uma espécie de apagamento no conto, enquanto personagem que pratica acção, para tornar-se apenas um referencial negativo (representado através da omnisciência do narrador que acompanha Godido). Para essa virada, no entanto, apresenta-se como fundamental o despertar de Dona Carlota para uma resistência ainda a ser organizada (e que organiza a resistência de seu filho). A exploração do trabalho e as violações sexuais praticadas pelo patrão, colocam a mãe de Godido num posicionamento que dissolve qualquer defesa do ponto de vista luso tropicalista e, com isso, a personagem também se desloca para o campo das denúncias, em que já está o narrador e para o qual está projectada a acção de Godido, para anunciar 11 a sua resistência às condições de opressão, dentro das quais ela e o filho se encontram. A vida “é mais que mandioca e chicote” (p. 37) é o que dirá ao filho, e “Godido ficou maluco... fugiu....” (p. 37) será sua resposta intencionalmente evasiva ao patrão. Dona Carlota assume, assim, o ponto de vista próximo ao narrador que desde o início se revela por meio de digressões organizadas ao longo do conto: “A vida fazia-se fábrica de descasque: os homens entravam, descascavam-se e saíam farelo para a estrumeira” (p. 36); ou “Na máquina ficava suor. Amadureciam os campos, desfazia-se a vida em adubo. Não se pintavam novas cores no cenário; era aquele o método único, com mais ou menos pormenores” (p. 36). Nesse fluxo composto por uma voz narrativa que abre espaços para o discurso de variadas vozes é possível perceber, sobretudo, uma intenção política, uma estratégia discursiva que assim construída aproxima o narrador de Dona Carlota e de Godido. Há, portanto, no conto uma ruptura subversiva que emerge dentro da própria estrutura colonialista na medida em que será dona Carlota, por exemplo, a responsável pela partida do filho menino que começa a amadurecer. Mamana Carlota lembrou que tinham passado tantos anos quantos os dedos das mãos e de um pé, depois que Godido nascera. Cercavam-no olhos brancos de cobiça do senhor Costa, gulavam- lhe charruas e sementeiras no campo. Mãe negra desgastara-se naquilo; sabia os trabalhos dos que nem corpo haviam para a sexualidade do senhor Costa. Godido precisava outros rumos (DIAS, 1988, p. 36-7). A recusa de dona Carlota daquela realidade revela não só o potencial de subversão, como a capacidade de intervenção inscritas dentro de uma realidade silenciada pela exploração do trabalho através de um colonialismo com amparo militar. Assim, Godido inicialmente entre ir e não ir (às lutas do destino), acaba deparando-se com a fronteira da cidade. Ainda que a cidade pareça trazer nos finais do conto a reprodução da configuração das cercanias do Senhor Costa (o sistema colonial é o mesmo), fica evidente, na voz do narrador, que o seu lugar de liberdade só poderá ocorrer a partir da resistência a um sistema que lhe é massacrante: “Como se não fosse humano um negro pensar que a „vida do negro há-de acabar‟ ” (p. 38). Há, portanto, nessa estruturação, o despertar do menino de quinze anos para uma vida que lhe é imposta por ser negro e para a necessidade de busca de novos horizontes. No entanto, no embate das relações colonialistas, o espaço não é de todos e as experiências quotidianas concentram-se na divisão desigual das riquezas e do trabalho. O conto de João Dias regista a produção de outros sentidos, significados e valores, permitindo ao leitor a apreensão das relações sociais estabelecidas sob o prisma 12 endógeno, mas que vão apontar para uma tentativa de descortinar a natureza do colonialismo e as implicadas relações sociais estabelecidas, além de sua complexidade. A literatura surge nesse cenário como chave para a compreensão do funcionamento social e sua potencial transformação. 2.2. Analise da narrativa de Luís Bernardo Honwana Luís Bernardo Honwana nasceu em Maputo, Moçambique em 1942, antiga Lourenço Marques (nome colonial de Maputo), regressou a capital de Moçambique em 1959, para se dedicar ao Jornalismo, vindo a tornar-se amigo de José Craveirinha, na época, o mais influente poeta de Moçambique. A amizade com Craveirinha proliferou não somente na literatura como na política, e em torno dessa amizade formou-se um círculo de amigos que conviviam com intelectuais brancos, como Rui Knopfli e Eugénio Lisboa. Em 1964, Honwana uniu-se ao FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), um grupo militante que pretendia libertar Moçambique de regime opressor colonial português. Nesse período, devido ao seu posicionamento político anticolonial foi preso, juntamente com Craveirinha, pela Polícia Política de Portugal (PIDE), de 1964 a 1967. Na prisão escreveu o livro Nós matamos o cão tinhoso, posteriormente, considerado uma obra fundamental da literatura moderna de Moçambique (NOA, 2015). Participou activamente do processo de libertação moçambicano, e no seu livro de contos: Nós matamos o cão tinhoso, considerado um marco da literatura moderna moçambicana, apresenta um retrato histórico do regime colonial português em Moçambique. De acordo com Pires Laranjeira, “O aparecimento de Nós matamos o cão tinhoso, estabeleceu um novo paradigma para o texto narrativo moçambicano, após a curta e esteticamente inexpressiva experiência do jovem malogrado João Dias (na viragem para a década de 50), pondo de lado, é claro, textos com menos pretensões qualitativas.” (LARANJEIRA, 1995, p. 290) Nós matamos cão tinhoso é composto por sete contos que, de modo geral, recriam a atmosfera opressora vividapelos trabalhadores colonizados de Moçambique e suas famílias. Os contos enfatizam a violência material e simbólica, do racismo e de todo tipo de injustiças a que era submetida a população moçambicana pobre em meados do século passado. O conto que dá título ao livro nos traz a história do Cão Tinhoso, um animal velho, já em estado decrépito, cheio de feridas e muito fraco, que vive em uma escola onde todos sentem raiva do Cão, e nem mesmo os outros cachorros querem 13 brincar com ele, a única que parece se importar com o animal é a Isaura, uma das alunas da escola, e em alguns momentos do conto, o próprio narrador. A professora considera Isaura uma pessoa perturbada, com problemas mentais, parece não existir no mundo dos outros, a chamam de “parva”, por seu jeito silenciado. Isaura é a única que cuida do Cão Tinhoso, tem cuidado por ele, e não se importa com as feridas que carrega na pele, sempre enojado por todos. As outras personagens, que são as crianças formadoras da “malta” da escola, têm o seguinte tratamento em relação ao Cão Tinhoso: Ginho é o narrador da história, inicialmente diz que o Cão é imundo, e até os próprios cães repelem a presença do animal. Os meninos da malta são em doze, e todos os sábados à tarde, jogam futebol no clube da cidade onde o cão tinhoso vai assistir ao jogo. Na varanda do clube estão sempre presentes jogando sueca, o Senhor Administrador, o Doutor Veterinário Duarte, e o Chefe dos Correios. De acordo com a apresentação dos nomes das personagens no conto, (todos começados com letras maiúsculas) fica nítido que representam o sistema colonizador na cidade. Dessa forma, o cenário é palco para o Cão Tinhoso assistir aos jogos, porém, os administradores não consideram o ambiente adequado para a presença de um Cão em estado lamentável e quase putrefacto, uma vez que mostra suas feridas, e o aspecto asqueroso e doente. Durante o jogo de sueca, o Senhor Administrador foi derrotado no jogo pelo Dr. Veterinário, por esse motivo, o Ginho, menino negro da malta, e o Cão Tinhoso ficavam rindo dele. Notem que a narrativa destaca o Cão Tinhoso como se fosse um ser humano, uma vez que o riso não pertence ao animal. Por esse motivo, o Senhor Administrador se sente humilhado por dois seres que ele considera escórias: o menino negro e o Cão feridento, por isso decide cuspir em direcção a eles, como se o cuspe fosse para atingir o Ginho e o Cão Tinhoso. Depois desse episódio, o Senhor Administrador decide que é hora de matar o Cão Tinhoso, e procura manter as coisas em ordem, pois somente a presença do Cão já produzia incómodo suficiente e precisava ser eliminado. O Doutor Veterinário, agora chamado pelos meninos de Sr. Duarte, decide reunir a malta e encarregá-los de executar o Cão Tinhoso. Ele fala ter conhecimento das actividades ilícitas dos meninos, que envolve o uso de armas dos pais, que eles pegaram sem autorização, para matar alguns pássaros na mata e usa esse argumento afim de persuadi-los a pegarem as armas dos pais, escondidos, e matar o Cão Tinhoso da forma mais discreta possível. 14 A malta resolve seguir as ordens do Sr. Duarte, carregando as armas dos pais. Em sequência, os garotos amarram uma corda no pescoço do Cão Tinhoso o levando para a mata atrás do matadouro. Toda a crueldade da cena reforça a opressão dos mais fracos. Os meninos tiram a sorte para saber quem irá atirar no Cão, e Faruk fica encarregado de puxar o Cão pela corda. Insatisfeito com a função, Faruk se nega a cumprir ordens, e Quim decide, então, transferir a função de carregar o Cão Tinhoso para o Ginho. Inicialmente, a malta é seguida por um grupo de meninos chamados no conto de “muleques do costa” (HONWANA, 1984 p. 19), que são violentamente expulsos por Quim, chegando a apontar a arma na direcção deles. A malta segue o caminho enquanto o pobre Cão Tinhoso treme e chia com a boca fechada, se aconchegando nas pernas de Ginho, que a essa altura já está se afeiçoando ao cão: “— Quim, a gente pode não matar o Cão, eu fico com ele, trato-o das feridas e escondo-o para não mais andar pela vila com essas feridas que é um nojo...” (HONWANA, 1984, p. 21). Apesar dos apelos de Ginho, a malta ignora a vontade dele e segue com o plano de matar o Cão Tinhoso, mas que isso, insistem que Ginho dispare o primeiro tiro. O grupo pressiona Ginho a atirar, questionando sua masculinidade e agredindo-o verbalmente: “— Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não és macho, como a gente... Maricas! Não tens vergonha? Dá lá o tiro, anda...” — Porra, atiras ou não, preto de merda?” (HONWANA, 1984, p. 29). Esse contexto mostra claramente a forma como a malta quer se livrar do Cão, mas ninguém demonstra coragem de matar aquele animal, que já está morto socialmente, pois ninguém interage com ele, excepto Isaura, o Cão é a figura nítida de um excluído, enojado por todos, e enxotado onde chega. Os garotos foram obrigados a seguir a ordem do colono, que por si só demonstra a sua mediocridade e fraqueza, quando ele próprio não teve coragem de interromper a vida do Cão Tinhoso Apesar de toda comoção em relação à morte do Cão, pode-se perceber que as crianças ainda mostram um pouco de sentimento, com a piedade por aquele ser tão indefeso. Essa reacção é bastante recorrente, mesmo com toda a possibilidade de saber que o Cão terá seu fim concluído, conforme desejo do Senhor Administrador. A partir da reacção do narrador observa-se que ele tem medo de voltar a sentir aquele sentimento de piedade, pois isso é uma forma de mostrar fraqueza: Os outros, às vezes calavam-se, e só o Quim é que se ria sempre, sempre e cada vez com mais força. Os outros ouviam-no quando se calavam e voltavam a rir-se com força como ele. E riam-se, riam-se, riam-se enquanto o peso no meu pescoço e cá dentro aumentava cada vez mais. Parece que 15 nunca mais acabavam de se rir, e eu com aquilo só tinha vontade de chorar ou de fugir com o Cão-Tinhoso, mas também tinha medo de voltar a sentir a corda a tremer de tão esticada, com o chiar dos ossos a querer fugir da minha mão, e com os latidos que saíam a chiar, afogados na boca fechada como ainda há bocado. Sim, eu nunca mais queria voltar a sentir isso. (HONWANA, 1984, p. 36). O Cão não foi atingindo fatalmente pelo tiro, e ainda está vivo, porém a malta ainda deseja executar o trabalho. Assim, Quim encarrega Ginho de tirar Isaura de cima do Cão Tinhoso, mas Isaura não facilita a tarefa, que resiste, mas Quim conta de um até três, para que no fim, toda a malta atire em conjunto no convalescente Cão. Quando Quim chega no três a malta hesita, e ele vê a necessidade de ameaçar os meninos, que cedem a ordem e, na última tentativa, atiram, no final da segunda contagem, contra o Cão Tinnhoso. O barulho das balas assusta Isaura, que cai sobre o Ginho e fica sobre ele durante o tiroteio, a malta continua atirando, mesmo quando o Cão já está falecido. No encerramento do tiroteio, Isaura que vive no silêncio, emite um último berro, que é ignorado pela malta. Por fim, os meninos começam a se gabar dos tiros que acertaram em cheio o Cão, sem demonstrar o menor remorso ou piedade pelo animal aniquilado, pelo contrário, estavam cheios de si: “— Eu acertei o tipo no olho esquerdo quando o tipo ainda estava de pé”. (HONWANA, 1984, p. 34) “—... A gente atirou para um alvo já morto”. (HONWANA, 1984, p. 35). Isaura se levanta e vai embora, ainda sem dizer uma única palavra e deixa a malta para trás. O comportamento dos meninos, que agem de forma fria e calculista, recai como um processo do fascismo, como um regime de opressão, e que de uma certa forma está totalmente ligado ao colonizador. Os meninos foram obrigados a fazer algo terrível, que no início se mostraram com algum tipo de sentimento de piedade pelo Cão, mas depois do serviço realizado, o sentimento que sobrou foi o de alívio com desprezo pela vidado animal. Diante desse aspecto, mais uma vez fica evidente o traço do colonialismo na narrativa, que segundo Memmi: as relações humanas ali provêm de uma exploração tão intensa quanto possível, fundam-se na desigualdade e no desprezo e são garantidas pelo autoritarismo policial. Não há qualquer dúvida, para quem o viveu, de que o colonialismo é uma variação do fascismo. Esse rosto totalitário, assumido em suas colónias por regimes muitas vezes democráticos, só é aberrante na aparência: representados junto ao colonizado pelo colonialista, eles não podem ter outro. (MEMMI, 2007b, p. 100). 16 Essa relação entre o colonizado e o colonizador é muito próxima, pois uma ordem emitida por um superior, com a promessa de expor os meninos aos pais, caso não cumprissem a ordem de matar o Cão somente reforça a subordinação dos mais fracos em relação aos mais fortes. O aspecto colonial é fortemente apreendido nesse contexto, no qual o colonizado ainda está fortemente subordinado aos desmandos do colonizador. A partir dessa leitura sobre o conto “Nós matamos o Cão Tinhoso”, encontra-se a possibilidade de verificar várias leituras e interpretações, porém uma das que mais se destaca refere-se à trajectória de um menino, que a princípio se gaba pela morte de um Cão totalmente rejeitado pela sociedade, como também carrega a culpa pela morte de um inocente, que o único defeito era o de ser doente e indesejável por suas feridas expostas. Observamos que o Cão e o menino são representações visíveis do colonizado africano, pois trazem em suas narrativas a fragilidade e a capacidade de serem indesejados pelos dominadores. Conseguem fugir de bombas, mas sucumbem, como no caso do cachorro, que não resiste aos tiros da malta, ou continuam em sua existência no papel de subservientes dos poderosos, no caso do menino. Nesse sentido, Isaura é a representação da vítima, que fragilizada pelo sentimento de piedade não consegue salvar o Cão. Os meninos da malta são algozes do Cão Tinhoso, mas também tomam para si a pecha de vítimas de uma sociedade que não tolera os subservientes, mas que os usam até as últimas consequências para tornarem possíveis seus desmandos. O conto de Honwana apresenta questões sociais de exploração e de segregação racial, de distinção de classe e de educação. A figura do Cão Tinhoso é uma representação do próprio colonizado, pois é o cão do medo, o cão da guerra, e o cão colonizado. Entretanto, também pode ser visto como o cão colonizador, o cão coragem, o cão da decadência, o cão de fantasia, o cão da ingenuidade, o cão criança adulta ou o cão fatalidade. São inúmeras as simbologias desse Cão. 17 3.0. Conclusão A partir dessas considerações breves em torno do contos Dias e Honwana, Falar em revolucionar uma sociedade significa que, no centro mesmo da velha sociedade, formaram-se elementos de uma nova sociedade e que a queda de velhos conceitos acompanham a queda das antigas condições de vida. Os textos literários anunciam, engendram, reclamam as contradições resultantes dessa ordem capitalista estabelecida, encenando os embates travados na esfera social, e as diversas formas de ser e de estar no mundo pelas práticas sociais vividas. A partir da transformação dessas crianças, lançam, sobretudo, o olhar para a potencial transformação social que vem da autonomia crítica da consciência humana, gerada no embate entre as estruturas do poder e a experiência quotidiana da exploração. Notamos que ambos os contos analisados convergem para o questionamento da ordem dada, da situação de exploração presente e de uma possível nova possibilidade de futuro. Se há diferenças substanciais que tingem suas estruturas, tanto com relação à voz narrativa, quanto com relação à explicitação da temática que propõem como discussão e à projecção do protagonista, é necessário que coloquemos em nossa perspectiva de análise o contexto histórico disposto nos textos. Em João Dias era urgente a revelação da condição precária de exploração imposta aos negros naquela década de 1940, em que os autores se posicionavam politicamente na literatura com o intuito de dar voz aos Godidos amordaçados. Para Honwana, além disso, ao escolher um narrador infantil não negro, parece ser fundamental também pontuar as complexidades impostas por aquele universo colonial, que persistirão à luta de libertação. No entanto, também é perceptível, como esta análise procurou apontar, que ambos os textos denunciam, cada um à sua maneira, as relações de trabalho e de exploração presentes na sociedade moçambicana nos tempos da colonização, que despertam a consciência do menino Godido e do menino em matamos o cão tinhoso perante a realidade que se apresenta, elaborando neles um ímpeto de resistência. 18 4.0. Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos do Estado (AIE). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. DIAS, João. Godido e Outros Contos. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1988. HONWANA, Luís Bernardo. Nós Matamos o Cão Tinhoso. São Paulo: Editora Ática, 1980. MENESES, Maria Paula G. 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