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Crer depois de Freud - Epílogo -

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Epílogo – do livro “Crer depois de Freud” �
O que significa, pois, crer depois de Freud? Antes de tudo, crer. Com todo o tremor de quem se arrisca a dar um passo mais além do que pode ver; e também com a consciência de tantos males que esse passo nas crenças ocasionou ao longo da história. Mas a fé, depois de Freud – se é que continua a ser fé –, sabe manter toda a sua determinação e toda a sua firmeza.
Porque crer depois de Freud não significa sentir a necessidade de diluir a identidade e os conteúdos da fé para acomodar-se, de maneira envergonhada, a prévios pressupostos psicanalíticos (ou quaisquer outros) aos quais agora se concede o privilégio da honra e da glória. O inconsciente, com todo o fascínio que pode suscitar, não pode ser elevado aos altares. A proposta de uma boa relação com ele não pode ser proclamada de nenhum púlpito como uma “boa palavra”. Nem a religião deve automutilar-se em função da concordância com pressupostos que lhe são estranhos.
Essa firmeza, não obstante, não deseja ser uma defesa maníaca em face do horror ao vazio. A crença não garante de nenhuma maneira a sonhada pre​sença sem defeito ou falta. E, por isso mesmo, a fé tampouco dispensa de en​frentar essa terrível situação de ponto zero, onde o passo imediato pode ser tanto o tudo como o nada, a presença ilusória ou consentida, o sentido ou o absurdo total, a vida ou a morte como palavra última e definitiva. Porque a fé nunca fecha definitivamente em nós o caminho que conduz à descrença, nem o amor elimina para sempre o ódio, nem a esperança o desespero.
Crer depois de Freud continua significando, pois, por um lado, ter a expe​riência (sempre com esse caráter forçosamente inefável que corresponde à vivência religiosa) de sentir-se fundamentado e acolhido na magnitude simbóli​ca de Deus. Com tudo o que Ele possa significar de integração entre os diversos dinamismos da pessoa, de estímulo para o crescimento, de fonte de alegria para viver, de origem no interesse pelo real... Tudo isso é experimentado e acolhido como dom. Sem arrogância, é preciso dizer. Mas tampouco sem culpa, para que seja uma experiência que possa ser gozosamente compartilhada por todos.
Nas profundezas da experiência religiosa se reconhece a mediação e a presença das estruturas psíquicas inconscientes ("mística é a autopercepção obscura do reino exterior ao eu, do isso", escreveu Freud ao fim de sua vida). Ao homem que crê depois de Freud não assusta nem incomoda tal presença ou mediação. Ele renuncia à pura imediatez entre seu credo e sua consciência. Sabe-se atravessado por um discurso que lhe fala. E crê que, em sua fé, é também falado por outra presença que igualmente o habita e o transcende.
Essa convicção – em certo sentido não deixa de sê-lo – vive alerta, contudo, para evitar deixar-se aprisionar nas malhas do puro desejo infantil, tão devastador, que a todo custo pretende segurança e plenas garantias de proteção. Crer é apenas arriscar-se a ler a realidade, para além do empírico e do perceptível, em chave de signo e símbolo: ler a realidade como metáfora. Mas essa realidade, lida desse outro modo, não passa a ser considerada magicamente transformada. Esse Deus fundante e protetor não pode, pois, diante da terrível e apavorante autonomia do real, ser interpretado como um Deus “em beneficio de”. Estar-se-á sempre disposto, portanto, a aceitar que, mesmo com a fé, se pode acabar envolvido com o pior, no sentido pleno da dor e do indecifrável. Como Jesus se viu. E ali, não obstante, continuar-se-á acreditando que Deus está presente.
Deus simbolicamente nomeado como Pai. Sem chegar nunca a saber muito bem tudo o que dessa maneira podemos estar, por nossa vez, dizendo e ocultando. Opta-se assim, contudo, pela proclamação do sentido. E, ao mesmo tempo, essa proclamação de Deus como nosso Pai insta-nos a não pretender nem sonhar com nenhum outro tipo de paternidade sobre a terra.
Esse atrevimento de chamar a Deus de Pai é ao mesmo tempo o resultado de uma "invenção" e de uma "escuta". Construção elaborada – “invensão” – das complexas estratégias do inconsciente. Palavra também ouvida, mas proveniente de um lugar distinto daquele do próprio desejo. Por isso a fé estará sempre à escuta. Somente assim preserva-se de converter-se em mera expressão do próprio afã. Jesus, Palavra pronunciada pelo Pai, confronta a simples criação afetiva sobre Deus – nossa "invenção" – com o que Deus diz de si. Os especularismos do imaginário são exorcizados na escuta de uma Palavra que quer revelar a Deus tal como Ele é, e não como o crente o deseja. Tornou-se, pois, proibido confundir Deus com sua imagem. Porque a imagem é sempre coisa nossa...
O Deus-Pai de quem nos falou Jesus deve constituir uma permanente surpresa. Porque seu Deus desbaratou os esquemas mais comuns e universais que somos levados a elaborar sobre ele. A "invenção" sofre assim uma permanente reestruturação quando sabe situar-se na escuta. Esse Deus Pai, com efeito, não se assemelha em nada a Júpiter. Preferiu revelar sua maior potência na suprema fraqueza. Não para nos incitar à exaltação do fracasso, da fraqueza e da impotência, mas tão-somente como afirmação de um amor que nunca cede.
Tudo já foi dito e feito em nome do amor. Freud, em particular, nos ensinou com quantas raízes apodrecidas ele pode crescer. Jesus não falou muito sobre isso. Estenderam-se muito mais os seus seguidores. Jesus, antes de qualquer coisa, manifestou com o testemunho autêntico de sua vida que somente no amor podemos reconhecer a força que, ultrapassando o narcisismo e a violência, pode conduzir a algo melhor.
A nenhum deus grego – apesar de terem amado muito e de tantas formas belas e terríveis – pudemos contemplar compassivamente ajoelhado, lavando os pés dos seus. Isso, que não pudemos ver no Olimpo, pudemos encontrar, entretanto, como parte de nossa história. E esse gesto, situado no suceder de nosso próprio espaço e tempo, exerce uma atração irresistível, porque dentro dele pressente-se a "salvação" do humano: o permanente descentramento com relação a si como um passo irrecusável da plenitude e da própria realização.
Crer que Deus é nosso Pai pressupõe confessar que Ele o é do mesmo modo que o foi Deus-Pai para Jesus: não o liberou de sua própria responsabilidade nem de sua morte. Isso implica um modo de assumir uma maneira de se realizar na finitude e jamais uma estratégia para safar-se dela. Conquistar para nós mesmos a finitude que nos corresponde e não fazer de Deus o cúmplice da ilusão de infinitude significa adquirir a única base na qual podemos ser fiéis a nós mesmos e estabelecer uma relação honesta com Ele. Porque, se com o Deus Pai de Jesus confessamos o triunfo da vida sobre a morte, não será para outorgar a essa vida – a nossa – a categoria de ilimitada.
Nessa finitude reconhece-se um amplo espaço para a plenitude e para o gozo, para a surpresa e para a descoberta. O mais além, como possível dom no encontro definitivo, não será nunca esperado como fruto de uma necessidade, e menos ainda de uma exigência. Com razão se disse: não cremos na imortalidade da alma, mas na ressurreição dos mortos.
E se um sentido é proclamado não será tampouco para alçar-se com a soberba pretensão de haver encontrado "a resposta". Muitas interrogações pungentes permanecerão para sempre. Desse modo, pois, somos convidados à saudável ascética de renunciar às sínteses totais. A fé que se confronta com a psicanálise aprende a viver e a permanecer na modéstia das formulações provisórias.
Crer depois de Freud significa também se negar a qualquer forma de religiosidade que exale cheiro de carne estragada e morta. Também sabemos, pela psicanálise, quanta carne humana foi sacrificada nos altares da religião. O recalcamento pulsional solicitou muitas vezes a aprovação de Deus para exercer-se. Com isso se pretendeu que Ele exilasse e renegasse aquilo que criou e animou com sua Presença. Tratamos de negar o Deus que "vegeta" na planta, que "sente" no animal e que "entende" no humano; e que – como tão belamente afirmouInácio de Loyola – se encontra "em mim concedendo-me o ser, animando, sentindo e fazendo-me entender". Não excluiu sua presença de nenhuma parte nossa. A nós somente corresponde perceber a limpeza e a beleza que se encontram em toda parte de nós mesmos. Má é a fé que não salvaguarda e promove o gozo e injeta nele a carcoma da culpa, da dúvida e do remorso. Má é a fé que coloca a ética no centro de tudo. E ingrata e, além disso, pouco elegante com Deus, que nos deseja independentemente de sermos mais ou menos éticos.
Crer depois de Freud significa também reconhecer que essa fé é inseparável da presença dos outros. Para os outros adveio a fé, cruzando identificações e rejeições. Com os outros se realiza, porque somente na mtersubjetividade aos libertamos da aspiração onipotente do imaginário. A fé comida os outros tamo para a celebração do dom compartilhado como para o trabalho na realização de um projeto. Esse projeto a que chamamos Reino pode facilmente parecer ura delírio. Para a comunidade cristã, não obstante, supõe apenas incorporar-se ativamente a um dinamismo que ela crê perceber palpitando no coração da história. Por isso, essa fé se insere na história e se alista em toda pequena ou grande luta que tem lugar onde quer que o humano seja abatido, marginalizado ou negado pela força dos outros, pela mera contingência da natureza ou da própria história.
Crer depois de Freud significa, portanto, crer. Sem diluir nem mutilar conteúdos com o objetivo de estabelecer "concordâncias". Mas, tendo passado pelo saber do inconsciente�, essa fé será também inevitavelmente uma fé experimentada de maneira radicalmente nova e, na medida em que tenha alcançado esse saber, também será pensada e dita de uma forma nova.
� MORANO, Carlos D. Crer depois de Freud. Trad. Eduardo D. Gontijo. 2. Ed. São Paulo: Loyola, 2009. Pg. 333-6.
� [A fé, naturalmente, não sai do inconsciente, mas apenas pode saber algo dele". N. do T.]

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