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Material de Apoio Projeto de Literatura A Hora da Estrela A hora da estrela (1977) – Clarice Lispector – Pedro Gonzaga 1 – Sobre a estrutura do livro ( o que há de mais complexo a compreender) Se há uma dificuldade que se coloca aos leitores de A hora da estrela é perceber a complexa estrutura que compõe a obra, antes mais um projeto de livro do que um livro acabado. Não que se trata, contudo, de um livro interrompido ou abandonado por sua autora: é obra que intencionalmente fica aberta, apontando para as dificuldades do processo de criação, dilemas que geralmente não são visíveis na narrativa. Não à toa, um de seus importantes temas aqui é como alguém faz para escrever um livro sobre uma pessoa que não conhece, que viu apenas de relance, ainda mais sendo essa pessoa uma nordestina humilde, tão longe social e psicologicamente da vida que um artista de classe média pode levar e mesmo compreender. Em outras palavras, é como se A hora da estrela contasse três histórias no formato de uma só: 1ª – A história da maior autora brasileira, no apagar de sua vida (Clarice viria a morrer dois meses depois da publicação), que deveria ficar de fora do livro, uma vez que narrado em primeira pessoa por Rodrigo S. M., mas não fica, intervindo no conteúdo da própria trama, falando através do escritor angustiado, que busca uma saída para sua crise criativa, crise compartilhada pelos dois. 2ª – A história de Rodrigo S. M., um escritor em busca de um novo assunto para sair de sua imobilidade, de sua angústia, que percebe de relance, de passagem numa rua do Rio, todo o sofrimento da existência estampado no rosto de uma jovem nordestina, que ele aos poucos começará a construir, por divergências e semelhanças (ele também é do nordeste), que mais à frente na trama receberá o nome de Macabra. 3ª – A história de Macabéa, personagem de Rodrigo S. M., que vai sendo cercada pelos elementos de sua vida miserável na cidade: o subemprego, o quarto dividido com as quatro Marias na Rua do Acre, o conhecimento de Olímpico, a perda do namorado para Glória, a colega de trabalho, as previsões de Madama Carlota até sua morte ao fim da tarde, atropelada por um transatlântico Mercedes amarelo. Há que reparar, no entanto, que nenhuma delas pode ser construída e concluída nos moldes de uma história tradicional. Tal aspecto se revela já nos 13 títulos presentes da folha de rosto da publicação, entre os quais o provisório (mas definitivo) A hora da estrela. Entender a estrutura como se fosse a de um making of, como se estivéssemos vendo Rodrigo S. M. editar as imagens de um material bruto e não vendo um filme pronto, perceber que não há Macabéa como personagem autônoma (sua história não é narrada, é mencionada por Rodrigo S. M.), é essencial para se aproximar daquilo que parecem ser as intenções da autora: a escrita é uma ponte provisória para o mundo, a literatura é a única forma de experiência que se assemelha em complexidade e totalidade ao afeto como forma de compreensão do outro. Assim, Clarice cria uma ponte, Rodrigo S. M. (seu narrador), para poder habitar dentro do livro A hora da Estrela. Rodrigo S. M. cria uma ponte, Macabéa, para poder habitar dentro da história do livro que ele escreve sobre ela (como Clarice, sua autora, havia feito com ele). Macabéa, personagem de Rodrigo S. M. é a ponte para aquilo que foi real no mundo: a impressão de sofrimento captada no rosto de uma nordestina anônima que Rodrigo/ Clarice viu passar. Desse modo, não se deve estranhar o fato de que muitas questões de vestibular já tenham apontado para o caráter metanarrativo de A hora da Estrela. Mais do que reflexões sobre a escrita, consciência dessa mesma escrita e espelhamentos com a vida e a obra dos autores, aspectos que constituem as mais frequentes ocorrências de metalinguagem na literatura, o livro parece pôr em xeque esses mesmos recursos, último recurso da arte moderna ao ver naufragar a crença de verossimilhança realista. As tantas “explosões” que irrompem no texto parecem ser os gritos de uma autora que, ao modo dos grandes gênios do século XX (Virginia Woolf, Kafka, Borges), percebeu na literatura o último e mais humano dos gestos. 2 – Personagens – (O tema favorito das questões de vestibular) Uma das vantagens de A hora de estrela, quando se considera a cobrança em provas, é o reduzido número de personagens da trama, todos eles dependentes de Macabéa, como se em torno dela orbitassem, inclusive seu próprio criador, o escritor em crise Rodrigo S. M. Apesar de serem poucos, recomendo uma boa memorização das características atribuídas a cada um na lista a seguir. Rodrigo S. M.: Narrador-personagem da história. É um escritor em crise. Para escrever sua história, vive em solidão, trabalha num cubículo, decide se privar de tudo para chegar nas privações de sua personagem Macabéa. Tem um aspecto cansado, usa barba, sente uma dor de dente constante, informa que se criou no nordeste (como Clarice Lispector). De resto não há maiores informações sobre ele. Também pode ser tomado como autor-suposto (ocorrência comum às obras em que um dos personagens não apenas narra, mas escreve o que estamos lendo, como ocorre em Dom Casmurro, de Machado de Assis) S. M. é onisciente, mas parece ser incapaz de compreender onde a história que está criando vai desembocar, inclusive a morte de Macabéa, anunciada desde o início, parece surpreendê-lo no final, senão fazer com que se arrependa da escolha. Pode-se dizer que a morte de sua protagonista é também a morte simbólica de si mesmo (um escritor que não termina o livro existe como escritor?) Macabéa: É a protagonista da história de Rodrigo S. M. Alagoana, 19 anos. Perdeu os pais de “febres ruins” ainda muito cedo e foi criada por uma tia beata que batia nela (cascudos na cabeça, com força), além de privá-la de qualquer prazer (na infância de sua goiabada com queijo, já na adolescência prometendo que qualquer contato sexual que a sobrinha tivesse a levaria a ter doença ruim lá embaixo). Feia, o rosto coberto de manchas, magra e mal- alimentada, suja, apenas o terceiro primário cursado, Macabéa tenta, desde que veio com a tia para o Rio, manter-se num emprego de datilógrafa numa firma representante de roldanas. Depois da morte da tia, divide um quarto com quatro Marias, balconistas das lojas americanas na Rua do Acre, e vive praticamente alienada da realidade. Vê filmes em cinemas de reprise e espera pela chegada de sua hora de estrela, quando se tornaria de algum modo uma Marylin Monroe. Possivelmente o nome Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado avesso, pois Macabéa é o inverso deles, passiva e submissa. Tia beata: Aparece apenas em retrospectiva. Criou Macabéa com grandes privações. Por muito carola, incutiu na sobrinha uma série de medos e tentou lhe transmitir sua fé, que Macabéa segue apenas por convenção, sem poder crer realmente. Olímpico: Espécie de namorado de Macabéa. Olímpico é um paraibano que se apresenta como Olímpico de Jesus Moreira Chaves, sendo, no entanto, apenas de “Jesus”, o que indica não ter tido pai de registro. Não se classifica como operário, mas sim como um "metalúrgico". Ambicioso, orgulhoso, extremamente brutal, agradam-lhe toureiros, facas, sangue. Ele é magro, mas resistente, matou um homem antes de emigrar da Paraíba. Gosta de se gabar de sua força, embora fracasse ao tentar sustenta Macabéa no ar, por exemplo. Quer ser muito rico, um dia; e um dia quer também chegar a deputado, o que fica indicado que conseguirá para além da narrativa, o que não surpreende dados seus atributos. Glória: Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória é cheia de corpo, feia também, cabelos oxigenados, esperta e sensual. Colega de Macabéa, não comete os erros da outra na datilografia. Ao fim da trama, ficará com Olímpico, passando, de certo modo, o pé em Macabéa. Talvez movida por arrependimento, empresta um dinheiroà nordestina para que vá à cartomante Madama Carlota saber do futuro. Madama Carlota: Ex-prostiuta, ex-cafetina, agora ganha a vida lendo o futuro. Gosta de luxos e é gorda, tem nostalgia dos bons tempos em que ganhava a vida na rua. Põe as cartas do baralho para Macabéa, prevendo sua hora de estrela com a chegada de uma alemão rico, o Hans. Curioso é ter previsto, erradamente, para a cliente anterior, que ela morrerá atropelada, destino que caberá à Macabéa. As quatro Marias: Dividem um quarto com Macabéa na pensão da Rua do Acre. São elas a da Penha, a da Graça, a José e a Maria Apenas. Apesar de balconistas, todas estão socialmente acima de Macabéa. Raimundo Silveira: Chefe na representação de roldanas. Chega a demitir Macabéa logo no início da história dela, mas é tão humilde sua funcionária, e mesmo incapaz de compreender que está sendo demitida, que ele a manterá por mais um tempo no emprego. Outras personagens:, o médico que a atende e diagnostica a gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la embora. O médico: Gordo e despachado, tido por um médico de pobres, diagnosticará em Macabéa um princípio de tuberculose. Vendo que ela não terá grandes condições de se tratar, recomenda que ela coma muitas macarronadas. 3 – Breve resumo da obra Em um sentido direto, o livro, se fosse filmado, apresentaria um escritor angustiado, pensando e escrevendo e muitas vezes parado, considerando mentalmente a função da escrita, a razão de ser, a razão para existir, o dilema que é ter um pouco mais de recursos num país de tantos miseráveis, separados dele por um abismo social, sentimental, vital. “Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo”. De modo que, a partir desse vislumbre, no mesmo cubículo em que escreve, Rodrigo S. M. começa a inventar sua personagem, ainda sem nome, avançando e retrocedendo em eventos que vão se costurando para a compreensão de sua heroína. “Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém” . Importante é destacar que a essa altura Rodrigo S. M. ainda não começou a história propriamente dita de Macabéa. É como se estivesse recolhendo dados, ou melhor, desenhando sua personagem: “No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala.” Aos poucos, o narrador se aproxima do momento em que criará a ilusão nos leitores de que finalmente a história começa, por meio de um apagamento parcial, tornando-se quase uma terceira pessoa, para dar uma sequência aos episódios da vida de Macabéa. É como se pudéssemos ver o que ele está vendo, mas, não custa lembrar, não poucas vezes Rodrigo S. M. reforçará se tratar de uma escolha provisória, como se o filme da vida de Macabéa não estivesse definitivamente editado. Para facilitar o resumo, tomemos o que vem a seguir como se fosse uma história tradicional e linear, iniciada pelo meio. Macabéa é rispidamente demitida pelo chefe devido aos constantes erros de datilografia e suas folhas sempre sujas. Ela, no entanto, não entende a demissão e Raimundo termina suspendendo os efeitos da demissão por um tempo. Sua vida no Rio é miserável e medíocre. Vai da Rua do Acre, onde divide um quarto com as quatro Marias até a Rua do Lavradio para trabalhar. Por vezes, passeava aos domingos pelo porto, vez ou outra ia até a Zona Sul olhar vitrines de coisas que não poderá jamais comprar. Seguidamente passa fome, sonhando com coxas de vaca, mas conformando-se a tomar café frio (um luxo) ou comer papel bem picadinho. Consomem-na à noite pulsões sexuais, fantasias com soldados, mas na vida teme qualquer contato físico, traumatizada pelas neuroses da tia beata. Outro luxo: ir a cinemas de segunda linha ver filmes antigos quando “pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos”, que “roía quase até o sabugo”. Mas nada se comparava à sua alegria de ouvir no rádio da Maria da Penha à programação da Rádio Relógio, que dá “hora certa e cultura”, marcando a passagem dos minutos com o som de uma gota d’água. A bem da verdade, a rádio é uma fonte de cultura inútil e anúncios publicitários, mas Macabéa não se importa, pois é fascinada por anúncios de revistas, que coleciona, como o de um creme “tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo.” Pouco depois, na manhã de um 7 de maio, Macabéa finalmente ganhará nome no livro, quando é abordada por um paraibano chamado Olímpico que, sem constrangimento, oferece-se para acompanhá-la. Desde um primeiro momento, a relação dos dois será marcada por diálogos brutais, em que as diferenças dos dois pobres mais se acentuam do que se atenuam. Nunca dois personagens mais diferentes: Macabéa alienada e constrangida por estar no mundo; Olímpico feroz e selvagem, disposto a subir na vida a qualquer preço. A cada novo encontro, novos confrontos violentos aparecem. Poucas páginas da literatura brasileira e mundial terão mostrado tamanho horror. É tão absurda a conversa dos dois que não se pode descartar uma amarga ironia ou inclusive sarcasmo por parte de Clarice Lispector. Três exemplos ilustram bem a violência de Olímpico em relação à Macabéa. Primeiro, quando se conhecem, o “metalúrgico” diz que o nome dela parece nome de doença de pele, ao que ela se desculpa praticamente por ter sobrevivido à morte certa no primeiro ano de vida, o que levou a mãe a prometer à Nossa Senhora da Boa Morte, caso ela vingasse, chamá-la de Macabéa. Segundo, ao erguê-la no ar, para provar sua força, Olímpico não consegue sustentá-la e a deixa cair, o que a leva a se machucar e, apesar disso, trata-a como se fosse ela a culpada. Terceiro, quando Macabéa tenta cantar uma música que tinha ouvido, Una furtiva lacrima, ele diz, de supetão, que a voz dela é de taquara rachada. É quando Glória volta a aparecer. Sendo filha de um açougueiro, além de uma espécie de anti-Macabéa, porque bem fornida, loira (mesmo que falsa) e carioca, torna-se ela a mulher ideal para Olímpico, que vem a romper com Macabéa. Assim como quando perdeu o emprego, a alagoana não consegue entender que está sendo dispensada. Por estar agora com Olímpico, Glória vê crescer uma repulsa por sua colega, mas, ao mesmo tempo, algum sentimento de culpa. Por isso, ao saber que Macabéa não se sente bem, indica a ela um médico de pobres, além, mais à frente, de lhe emprestar um dinheiro para consultar uma cartomante que julga muito poderosa: Madama Carlota. A consulta com o médico é patética: ele percebe que a paciente já está com um princípio de tuberculose, mas percebendo a ignorância e pobreza de Macabéa, receita a ela que coma bastante massa, dispensando-a de modo agressivo. Já com Madama Carlota as coisas são diferentes, porque ela é bem recebida, talvez por escutar pacientemente ao animado passado da ex-prostituta e ex-caftina, que agora coloca cartas e vê o futuro. Depois de ver sair uma cliente anterior aos prantos, Macabéa começa a escutar as previsões para sua vida. Madama Carlota chega a prever a volta de Olímpico, mas logo diz que coisa muito melhor está para chegar. Vê a presença de umalemão, que cobrirá a nordestina de luxos, até casaco de pele. Começa a brotar em Macabéa um sentimento inédito de esperança. Neste estado, sai da casa da cartomante e toma um beco, à hora do crepúsculo. “Grávida de futuro”, ao pisar na rua, é colhida por um feroz Mercedes amarelo, que a atropela e segue, lançando-a ao chão, onde passa a agonizar longamente. É quando essa espécie de filme cru que vínhamos assistindo é de todo suspensa para que retornem as reflexões de Rodrigo S. M. Aos poucos, o personagem-autor se dá conta de quanto seu destino está mesclado ao da nordestina que morre. Parece até mesmo capaz de reverter a situação da pobre moça que morre enquanto cai a tarde. De volta ao filme, alguém coloca uma vela junto ao corpo de Macabéa. Agora que finalmente ela passara a ser alguma coisa, morria junto ao asfalto, alcançando, quem sabe, sua hora de estrela. Suas últimas palavras soam enigmáticas, “quanto ao futuro”, e ela morre querendo vomitar algo luminoso, feito uma estrela de mil pontas. Outra vez sozinho, Rodrigo S. M. precisa confrontar, a partir da morte de sua heroína, uma última verdade: a própria morte. E é com uma afirmação que a obra se encerra, do mesmo modo como havia começado por uma afirmação. Um sim fez Macabéa existir, um sim é a resposta que o narrador encontra para a pergunta de se também ele haverá de morrer. 4 – O que observar a) A linguagem: A hora da estrela é escrito com um estilo direto, basicamente coloquial, dentro do que se poderia enquadrar como estratégia do realismo tradicional. É preciso, contudo, salientar a pluralidade de vozes que convivem dentro do mesmo discurso, o que se chama, em linguagem técnica, polifonia. Na articulação verbal de Rodrigo S. M. há várias vozes entrelaçadas: expressões tipicamente claricianas (marcadas por forte lirismo), ditos populares, registros de oralidade, o estilo seco do próprio narrador-escritor, elementos da linguagem publicitária. Essas vozes todas se mesclam numa só voz e é por isso que alguma atenção é exigida para as questões que falam em uso irônico de um ou outro desses registros que aparecem mesclados. Um pequeno mistério aparece ao longo do livro no uso reiterado da palavra “explosão”, entre parênteses, que tanto pode representar uma chance de iluminação, de epifania, das personagens, que geralmente passam sem que sejam percebidas, seja uma espécie de ruptura da estrutura do texto, como se algo para além do que está no papel estivesse acontecendo. Parecem, e isso é afirmação especulativa, intervenções da própria Clarice Lispector na superfície do texto, como parece ocorrer em outros ditos entre parênteses ao longo do livro, em especial na abertura, quando Clarice diz ser, entre parênteses, Rodrigo S. M. b) Tempo e espaço: Há uma referência de Rodrigo S. M. de que a história passaria no mesmo instante em que ele escreve, o que faz com que tenhamos como localização temporal esta segunda metade da década de 1970, mais propriamente 1977. Vigora ainda a ditadura militar. O Rio de Janeiro serve de pano de fundo, em especial o eixo onde hoje há vários museus, como o Museu do Amanhã, o que então era a decadente zona portuária da cidade. A vida da protagonista decorre basicamente entre a Rua do Acre e a do Lavradio, onde trabalha. Seus passeios com Olímpico também não a levam muito longe. Sozinha, faz incursões, vez ou outra, pela Zona Sul da cidade, onde estão os bairros mais chiques. Do nordeste, de onde veio, só há referências, pois os eventos de sua infância são apenas mencionados. c) A alienação de Macabéa: Tomado socialmente, o personagem de Macabéa estaria numa posição da mais alta fragilidade. Sua baixa educação, sua incapacidade técnica, sua condição de imigrante nordestina, sua saúde prejudicada, tudo parece contribuir para seu alheamento, para uma espécie de alienação total. Clarice Lispector, de modo magistral, consegue apontar para a inadequação de uma criatura assim para o mundo moderno e urbano. Rodrigo S. M. chega a dizer que se ela pudesse ter ficado na sua terra, cerzindo, talvez pudesse ser feliz. No Rio de Janeiro, a alienação da protagonista se concretiza em três esferas: alimentar, laboral e afetiva. Na primeira, e é um dos aspectos mais chocantes do livro, em algo que ultrapassa mesmo a miséria, temos um ser que se alimenta de cachorro quente, coca-cola, café frio e papel. Não é apenas a falta extrema de dinheiro que a leva a ser assim. É mesmo uma incapacidade humana, resultado da educação e do meio em que vive, ou sobrevive. Na segunda, nota-se que Macabéa não tem qualquer condição de exercer o emprego de datilógrafa. Além de desconhecer palavras comuns, erra frequentemente a grafia do que escreve, fruto, é provável, da educação formal deficiente que recebeu. Ademais, desconhece por completo a estrutura dos trabalhos urbanos, é mais que uma peça dispensável, é uma peça dispensável que nunca se encaixou. “Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”. Daí que não compreenda o fato de que foi demitida. Na terceira, a mais grave, percebe-se que ela não é capaz de participar dos sentimentos mais básicos humanos. Não entende o que é a fé, não consegue sentir raiva, não consegue amar, quando deseja, culpa-se, quando se entristece, obriga-se a ser alegre. É só na hora da morte que passa a existir. Antes disso, era um ser mais bem resumido pelas palavras da própria obra: “Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem”. d) O papel de Rodrigo S. M.: Espécie de alter ego de Clarice Lispector, o escritor Rodrigo S. M. cumpre uma série de papéis preponderantes, para dentro e para fora da obra. Frequentemente acusada de ser uma autora hermética, intimista, Clarice encontra no estilo direto do escritor uma genial maneira de responder a essas críticas, apresentando uma história com início, meio e gran finale. Também no que diz respeito à crítica de que seus temas pecavam pela ausência de compromisso social, como se abordar as revoluções interiores das mulheres não tivesse valor social, Rodrigo S. M. é uma espécie de golpe em qualquer falsa comiseração das elites intelectuais do país, que quase sempre se debruçaram sobre a pobreza sem realmente poder chegar ao coração dos que sofrem, senão por conceitos gigantescos, classificando cada pessoa em categorias: o nordestino, o favelado, o excluído, e assim por diante. O protagonista de Clarice tenta abarcar Macabéa pela chave do afeto. Por fim, a escolha de um narrador de gênero diferente, para além da duplicação da mesma dificuldade que Rodrigo S. M. tem de ser Macabéa, um ser dele tão distinto, não se pode descontar o lado irônico da autora, como se nota na passagem a seguir: “Aliás –descubro eu agora –também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.” e) Macabéa sem metafísica: Se a procura por Macabéa é um tema de funda metafísica para Rodrigo S. M., envolvendo assuntos como solidão, simpatia pelo outro, estar no mundo, angústia existencial e tentativa de comunicação interpessoal, Macabéa parece, de seu nascimento à agonia que antecede à morte, um ser desprovido de metafísica, um Esteves, do poema de Álvaro de Campos, elevado à décima potência. Esta diferença entre as preocupações metafísicas do autor e a existência nada metafísica de sua criatura ficam evidentes neste trecho: “A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma ideia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer?” Por mais toscas que sejam as personagens que orbitam no entorno dela, todas possuem um mínimo apego ao aspecto gorduroso da existência: Glória, Olímpico, o médico, Madama Carlota.A despersonificação da protagonista é tão grande que ela chega a sonhar em ser Marylin Monroe, nunca alguém mais diferente do que ela no mundo, o que revela o poder dos mitos da cultura de massas. Criada sem subjetividade, habita o mundo como um bicho, sujeita aos ícones vendidos na revista numa existência sem transcendência. Somente após a consulta com a cartomante, quando adquire passado, presente e futuro (na esperança de vir o alemão Hans) e depois de ser atropelada, é que Macabéa passa a ser, tanto que pensa, enquanto agoniza, eu sou, eu sou, eu sou. Sim, ela é, inflada de metafísica, um ser para a morte, como o narrador e, desafortunadamente, todos nós leitores. f) Possíveis relações com outras obras: Na condição de clássico da literatura brasileira, A hora da estrela, sem grandes esforços, comporta relações com muitos títulos que vieram antes ou depois de sua publicação. As comparações podem vir por tema, como o tema nordestino, vendo em Macabéa uma sequência futura das migrações nordestinas, aproximando-a de Fabiano, de Vidas secas, ou mesmo da condição miserável do sertanejo, já desenhada por Euclides da Cunha, em Os Sertões, como se observa na paródia do dito de que o sertanejo era antes de tudo um forte: “O sertanejo é antes de tudo um paciente”. Outra aproximação se daria pela condição da miséria da protagonista, o que faz lembrar de um Quarto de desepejo, de Carolina Maria de Jesus. Há ainda a questão da autoria feminina, do intimismo, da exploração das epifanias, que permitem relações com muitos nomes, de Caio Fernando Abreu, visivelmente em Morangos mofados, à Lygia Fagundes Telles, de Lya Luft às vozes das novas gerações.
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