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12 CAPÍTULO I ESTADO E PRODUÇÃO DE BENS PÚBLICOS NO PENSAMENTO ECONÔMICO* 13 1. INTRODUÇÃO Desde a sua formação, o Estado moderno não mais parou de crescer. Desfrutando de um poder absoluto nas suas fases iniciais, mas com acanhada estrutura material, institucional e financeira, evoluiu, nos períodos seguintes, para estender seu domínio e ampliar o controle sobre a sociedade civil em todos os campos da vida econômica e social, ao ser legitimado como instrumento de organização e de realização da humanidade e ao completar o processo de constituição de suas estruturas, com a profissionalização das forças armadas e o avanço da burocracia. Tendo se tornado senhor da moeda e garantido o financiamento de suas atividades com a cobrança de impostos consentidos, ao ser legitimado politicamente, viu caírem as barreiras que ainda limitavam sua ação no campo econômico com a grande crise do sistema capitalista da década de 1930, quando as idéias keynesianas justificaram sua maior intervenção na economia para “salvar” o sistema da derrocada. De lá para cá, aumentou consideravelmente seu poder de extração de receitas da renda e da riqueza geradas nas economias em geral, as quais atingiram, em alguns casos, mais de 40% deste total, um nível impensável, quando, apesar de apoiado em um poder absoluto, de origem divina, engatinhava no processo de sua formação, limitado por condições financeiras, materiais e institucionais. Apesar dessa trajetória, a importância e o papel que o Estado tem desempenhado para a reprodução do sistema econômico capitalista não conquistaram unanimidade no pensamento econômico. Vilão para alguns, à medida que, de sua ação, acredita-se, geram- se ineficiências para o sistema econômico, o Estado deveria limitar-se, nessa visão, a desempenhar poucas atividades, apenas cuidando da ordem e da segurança interna e externa e protegendo os direitos da propriedade. Considerado, por outros, como indispensável para garantir as condições de reprodução do sistema e evitar o seu colapso, pelas contradições que este encerra, ao Estado, para cumprir sua sina e tornar vitorioso o capital, deveriam ser atribuídas bem mais atividades do que as preconizadas por seus oponentes. Em meio a este debate, onde ora predomina uma ou outra dessas posições sobre a dimensão e os papéis que lhe cabem, o fato é que o Estado não parou de avançar e de se consolidar como instrumento de organização da sociedade e de garantia da reprodução do sistema, criando as condições necessárias para tanto, mesmo quando retornaram revigoradas, nas últimas décadas do século XX, as vozes que se opõem à sua presença na economia. Este capítulo é dedicado a analisar a evolução do papel do Estado ao longo das fases marcantes do desenvolvimento do capitalismo, bem como as mudanças que ocorreram em suas formas de atuação. Para tanto examina, na segunda seção, a evolução dessa forma de “enxergar” o Estado pelo pensamento econômico dominante, as revisões nele operadas à luz dessas transformações, bem como os argumentos teóricos utilizados para justificar o aumento ou redução de suas atividades. Na terceira apresenta, como contraponto a este pensamento, a visão marxista sobre o papel do Estado, que entende sua essência como elemento associado ao capital e seus movimentos pendulares como resultado da necessidade de dar respostas às demandas do sistema para garantir sua reprodução. Na quarta, faz um balanço “livre” dessas posições, procurando colher elementos que melhor permitam entender sua natureza, dinâmica e tendências. Na quinta, analisa, em linhas gerais, a evolução do Estado na economia brasileira, procurando 14 apreender como os elementos dessas teorias influenciaram sua conformação, tamanho e natureza e refletiram-se nas suas estruturas de financiamento e de gastos. Desvelar a essência do Estado, com essa leitura, é importante para o propósito deste trabalho que é o de identificar tanto os determinantes de seus gastos (e de seu crescimento) como as fontes de onde retira recursos para o seu financiamento, bem como a que situação pode conduzir este processo no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, em que sua forma de atuação se encontra sob forte questionamento pela teoria econômica dominante e pelo mundo dos negócios. 2. A EVOLUÇÃO DO ESTADO NO CAPITALISMO E O PENSAMENTO ECONÕMICO DOMINANTE O Estado cumpre na sociedade, desde a sua origem, determinados papéis que variam em função de sua inserção na realidade histórico-concreta. Para desempenhá-los precisa ele de dispor de um determinado montante de recursos que serão utilizados para o funcionamento da máquina pública, a manutenção das forças armadas, o pagamento de seus funcionários e para a realização de obras demandadas pela sociedade. A dimensão dos recursos de que necessita varia, assim, em função da dimensão e da amplitude do papel que desempenha nessa realidade. Papel que se amplia ou se estreita, à medida que se modificam as condições de reprodução do capital, as quais, por sua vez, refletem-se sobre a sua natureza e sobre a sua forma de atuação. Segundo Musgrave & Musgrave (1980, Cap. 1), que atribuem grande importância às falhas do mercado para explicar sua forma de atuação, “…há explicações ideológicas, sociais e políticas [para justificar tanto os papéis que cumpre como o seu tamanho], mas o fato é que o mecanismo do sistema não pode desempenhar sozinho todas as funções econômicas. A atuação governamental é necessária para guiar, corrigir e suplementar este mecanismo em alguns aspectos, o que torna o tamanho apropriado do setor público uma questão técnica ao invés de uma questão ideológica.” A posição desses autores representa a síntese de um período da história do capitalismo onde houve o predomínio de determinadas correntes teóricas sobre a importância do papel do Estado para corrigir essas falhas e para fortalecer e consolidar o sistema capitalista. Nessa perspectiva, ao Estado caberia desempenhar determinadas funções – alocativa, estabilizadora e distributiva -, indispensáveis para um eficiente funcionamento do sistema, as quais o mercado, pela sua natureza, não seria capaz de cumprir. Nem sempre, entretanto, essas idéias prevaleceram ao mesmo tempo, assim como também nem sempre os papéis por ele desempenhados integraram o corpo teórico do pensamento dominante. Houve períodos na história do capitalismo em que o papel do Estado consistiu precipuamente em criar e garantir as condições para o triunfo do capital, ainda que isso implicasse restrições à sua liberdade. Em outros, quando muito se admitia o desempenho de sua função alocativa para prover a sociedade de bens que o mercado não seria capaz de produzir, deixando o capital livre das amarras que aparentemente prendiam seus movimentos ao Estado. Assim como houve períodos em que não somente essas funções foram ampliadas como também lhe foram conferidas atribuições de forte regulação da vida econômica para impedir que a concorrência intercapitalista conduzisse o 15 sistema ao colapso. A partir da década de 1980, depois de um longo período de regulação e de ampliação dos papéis do Estado, ressurgiram, com força, as teses antiestado e anti- regulamentação, sob o argumento de que sua intervenção provoca mais prejuízos para o sistema do que o mercado com suas falhas. Tese que não levou muito tempo para novamente ruir, diante dos estragos produzidos pelas políticas neoliberais e, posteriormente, com a crise financeira sistêmica provocada pela “bolha” das hipotecas nos EUA na segunda metade da primeira década do século XXI. Desse breve relato, pode-se inferir que as funções do Estado tendem a se modificar historicamente.E, como num movimento pendular, fases de liberdade econômica tendem a se alternar com fases de maior regulação, modificando-se seus papéis. E mais: a legitimação de sua forma de atuação encontra, em cada um destes períodos, respaldo em um conjunto de explicações teóricas que a sustentam e justificam. Por isso, para entender as transformações qualitativas operadas em seu aparelho e nas suas formas de atuação, torna-se necessário acompanhar sua trajetória à luz das grandes mudanças ocorridas no modo de produção capitalista, desde o seu nascimento até os dias atuais, e analisar como o pensamento teórico dominante, que em alguns períodos condenou sua intervenção no campo econômico, em outros a justificou como necessária para revitalizar suas forças, utilizando os mesmos argumentos que antes combatera. 2.1. O Estado e as fases de desenvolvimento do capitalismo A análise feita em seguida sobre os papéis desempenhados pelo Estado e as transformações ocorridas em seu aparelho percorre quatro fases marcantes de desenvolvimento da sociedade capitalista: a) a do período conhecido como Mercantilismo, que corresponde ao momento em que se gestam as condições necessárias para a emergência do capitalismo; b) a do período do capitalismo concorrencial, onde predominam os ideais da doutrina liberal, da liberdade de escolha para o capital em oposição à forte regulação do período anterior; c) a do período do capitalismo monopolista, onde novamente o Estado é convocado para intervir e regular o funcionamento do sistema; e d) a do capitalismo mundializado (globalizado), onde retornam, com força, as idéias de desregulamentação e de maior liberdade para o capital. Se é possível fazer uma analogia dessa evolução com as fases do desenvolvimento da vida humana, podemos identificar no mercantilismo a infância do capitalismo, o período em que, chegando a um mundo desconhecido e, às vezes hostil, o capital (ou a criança) precisa contar essencialmente com proteção para nele se situar e se instalar, o que encontra no Estado (ou no pai). No capitalismo concorrencial, a sua adolescência, período de rebeldia em que, se sentindo capaz de andar com suas próprias pernas, dispensa a tutela do pai (do Estado) e se aventura por caminhos ignotos, como dono do mundo. No capitalismo monopolista, a fase de maturidade, em que se retorna ao lar, reconhecendo a importância do pai (do Estado) para a travessia da longa jornada da vida com menores riscos e conflitos. No mundo globalizado, a terceira (ou quarta) idade, em que se mesclam sonhos juvenis de liberdade com a percepção dos sinais de outono, e, sentindo-se privado de limites, quer-se reviver projetos e ilusões que se mostraram inviáveis, em outros períodos, desprezando os riscos que isso representa. 2.1.1. O Estado no Mercantilismo: a infância 16 A história da sociedade capitalista revela que as funções assumidas pelo Estado na economia expandiram-se consideravelmente a partir do século XX e, mais especificamente, das adversidades resultantes da crise de 1929, que induziram alguns governos a acionar a máquina pública, visando atenuar os efeitos deletérios engendrados sobre o nível de renda e de emprego da economia. Roosevelt nos EUA, ancorado no pacto social e democrático do "New Deal", e Hitler, na Alemanha, que atemorizou o mundo com os horrores do nazismo, constituem exemplos conspícuos da forma como o Estado, embora em direções distintas, entronizar-se-ia na vida econômica e social de forma crescente, antecipando, em alguns casos, as formulações keynesianas sobre o papel que lhe caberia desempenhar diante de situações de crise enfrentadas pelo sistema. Antes da crise de 1929, em plena vigência da doutrina liberal, eram restritas as funções atribuídas ao Estado. Segundo preconizava essa doutrina, o Estado deveria evitar imiscuir-se na vida econômica, sob pena de reduzir a eficiência do sistema. Era imprescindível, nessa perspectiva, que os mecanismos de mercado operassem sem restrições, sendo o Estado visto como um mero agente consumidor improdutivo e, como conseqüência, a atividade governamental como um mal necessário. Em virtude disso, era- lhe reservado o papel de guardião do sistema, o qual se restringia ao cumprimento das tarefas de mantenedor da ordem e da segurança do país, oferecendo e fornecendo serviços de defesa, justiça, diplomacia e algumas poucas obras públicas. O arcabouço teórico que dava amparo à tese de que o Estado deveria ter uma atuação passiva na economia tinha suas raízes plantadas nas idéias liberais que se consolidaram no século XVIII e que representaram um libelo contra a doutrina mercantilista, que imperou durante o período que separa a Idade Média do liberalismo, e que demarca, historicamente, a época em que ocorre a acumulação primitiva do capital. Neste período, também conhecido como Mercantilismo, dado o predomínio do capital mercantil sobre o capital industrial, o Estado, ao contrário daquele que o sucederá, exerceria um papel tão amplo quanto agressivo na vida da sociedade. Corresponde o Mercantilismo ao período em que se gestam as condições requeridas para o advento da sociedade capitalista. É, portanto, um período de transição, que retém elementos tanto do modo de produção anterior - o feudal - como do que estava para se instaurar - o capitalista. Mas para liquidar os resquícios do mundo medieval, que entravavam o desenvolvimento da produção, foi necessário romper com dogmas e crenças vigentes e quebrar a coluna dorsal das forças que se opunham às mudanças que abririam o caminho para colocar a produção da riqueza material e do enriquecimento como valor supremo do homem. Não foi um processo simples, linear e nem coincidente, no tempo, nos países que o percorreram. Pelo contrário, foi um processo longo, que exigiu mudanças na visão predominante de mundo sobre o fim da vida social e do Estado, lutas contra as forças políticas que sustentavam e se beneficiavam do sistema dominante, e criação das condições econômicas e também de infra-estrutura necessárias para viabilizar a nova perspectiva de vida e de realização da humanidade que brota deste período. Para Denis (1974:98), com as idéias mercantilistas “... teremos, pela primeira vez, diante de nós, uma teoria da sociedade que se desenvolve essencialmente no âmbito da economia, dado que o fim da vida social [passa a ser] concebido com um fim econômico e que [...] os meios encarados para realizar esse fim são também econômicos.”. Condenado pela igreja, a busca 17 pelo lucro oriundo das atividades comerciais e financeiras transforma-se, a partir deste período, em atividade indispensável para o homem alcançar a felicidade. A construção da riqueza depende, contudo, nessa doutrina, da participação decisiva do Estado, o qual, por sua vez, necessita dessa mesma riqueza para seu fortalecimento. Para os mercantilistas, o enriquecimento de um país é dado pelo lucro do comércio e da indústria, que, para se materializar, depende do desenvolvimento das atividades exportadoras, com as quais se garante o fluxo e a abundância de metais (moeda) para a expansão dos empréstimos essenciais para o desenvolvimento. E é dessa mesma riqueza que se alimenta o Estado, de acordo com Denis (1974:107) para aumentar seu poder, dado que é dela que obtém receitas para formar exércitos e constituir tesouros de guerra. Os interesses dos mercadores – a busca pelo lucro – se confundem e se misturam, nessa visão, com os interesses do próprio Estado na busca por maior poder. A criação das condições objetivas para a produção dessa riqueza dependia, também, da reunião crescente de homens no mercado de trabalho, da implementação de políticas específicas voltadas para o desenvolvimento do comércio e da manufatura, da integração do mercado nacional. Insuficientemente forte para comandar essas mudanças, aburguesia comercial alia-se e se apóia no Estado – e o instrumentaliza – para liquidar com o particularismo regional fundado na existência da economia natural e nas deficientes vias de comunicações e para garantir a delimitação das fronteiras nacionais, indispensável para a implementação dessas políticas. Tarefa de tal envergadura, só poderia ser realizada por um Estado forte. É isso que explica porque as idéias mercantilistas, favoráveis ao fortalecimento do Estado, mantêm uma admirável coerência, uma unidade irrepreensível de pensamento, evidenciando-se em todas as obras de seus representantes. Não sem razão o Estado atua, nessa época, como o termômetro da sociedade, como o seu grande regulador, imiscuindo-se em áreas tão variadas quanto abrangentes, tais como as que se referem, inter alia, ao controle exercido sobre os salários, à promulgação de leis sobre o desemprego, à concessão de monopólios para a exploração de determinadas atividades, ao mesmo tempo em que é ele quem comanda as grandes conquistas coloniais. Nas palavras de Faoro (2000:70), nesse período, “o Estado organiza o comércio, incrementa a indústria, assegura a apropriação da terra, determina salários, tudo para o enriquecimento da nação e o proveito do grupo que a dirige. O mercantilismo opera sob tal constelação, como agente unificatório e centralizador, versado contra o disperso e universal mundo da idade média. O Estado, desta forma elevado a uma posição prevalecente, ganha poder, internamente contra as instituições e classes particularistas, e, externamente, se estrutura como nação em confronto com outras nações. Do seu seio, mediante este estímulo, floresce o absolutismo, consagrado na razão do Estado.” Com o fortalecimento do Estado, amplia-se o poder do monarca e, com a igreja minada em suas forças, transfere-se para ele o poder divino. De acordo com Denis (1974:99) “a nova filosofia política é oposta à concepção católica do Estado defendida na Idade Média, porque faz do Estado uma força autônoma e não uma realidade subordinada à igreja.” Nessa época, em que não havia separação entre a esfera pública e a esfera privada e o governante era identificado com o governo, Estado e rei se tornam absolutos. Fundado no poder divino, o rei dispõe de poderes ilimitados. Segundo Soboul (1981: Cap.2): “o rei é a fonte de toda a justiça; de toda a religião; de toda atividade 18 administrativa; da guerra e da paz.” Estado e governante fundem-se, portanto, numa única entidade, ungida pelo poder divino. É isso que permite compreender a célebre síntese dessa situação feita por Luís XIV, rei da França entre 1661 e 1715, ao afirmar que “l’état c’est moi” (“O Estado sou eu”). Este excessivo poder do Estado constituirá a razão que conduzirá ao seu enfraquecimento, ao despertar e impulsionar resistências à liberdade com que contava para cobrar tributos e contrair vultosos empréstimos para o financiamento de suas atividades e dos governantes, tornando-se, com isso, um crescente obstáculo para o desenvolvimento das atividades produtivas. As revoluções inglesa de 1648 e de 1688, assim como a revolução francesa de 1789, representam, na história, pontos culminantes das resistências que foram surgindo e crescentemente se opondo ao Estado absolutista, as quais, com sua derrocada, vão imprimir nova feição ao Estado, separando-o, definitivamente, da figura do governante e estabelecendo mecanismos de controle da sociedade sobre suas formas de atuação e de decisões tomadas sobre gastos e cobrança de tributos. As transformações que se operaram nas condições econômicas, políticas e intelectuais, neste longo período em que o Estado absolutista predominou, encontram-se na base que deu origem à nova concepção – e configuração – do Estado que brota no século XVIII. 2.1.2. O Estado no Capitalismo Concorrencial: a adolescência Enquanto o sistema capitalista avançava na construção de suas bases, a existência de um Estado forte, com grande poder regulatório e intervencionista na vida social e econômica do país, revelou-se altamente funcional para os objetivos da burguesia nascente. À medida, entretanto, que o capitalismo sentiu-se suficientemente confiante para andar com os seus próprios pés, dispensou essa tutela, apontando-a como contrária aos seus interesses e à sua indispensável liberdade para garantir mais rapidamente, em escala crescente, a sua reprodução. Com essa mudança, a liberdade de que desfrutava o Executivo, na figura do monarca, para impor sua vontade, viu-se enfraquecida e sua atuação limitada a poucas atividades. O avanço das idéias que se opunham ao absolutismo, associado ao surgimento das explicações mecânicas do mundo combinaram-se para dar lugar à construção das bases da teoria econômica, onde ao Estado estaria reservado papel importante, mas complementar às forças endógenas de reprodução do sistema. No plano político, as obras de Hobbes, Locke e Montesquieu reforçaram a importância do Estado na organização da sociedade, mas separando-o do governante, ao descartarem o direito divino que mantinha estes elos e criarem meios para proteger a sociedade civil do poder arbitrário do soberano. Da obra de Montesquieu, O espírito das leis, sairia a fórmula que asseguraria o triunfo definitivo do Estado, mas representaria, ao mesmo tempo, um antídoto contra o seu poder absoluto, ao dividir e distribuir sua soberania entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário (Cf. van Creveld, 2004:cap. 3). Com a separação Estado/governante, a esfera pública desprendeu-se da esfera privada, surgindo, para a sociedade, instrumentos e canais para influenciar e controlar a tomada de decisões do Estado. Legitimado politicamente, este, em que pese ter sua atuação cerceada no campo econômico, neste período, estendeu e ampliou rapidamente seu domínio e controle sobre a sociedade civil em diversos campos, como os da segurança, oferta de determinados serviços e regulamentação de várias atividades. A constituição de sua ossatura material e o crescimento da burocracia, juntamente com a profissionalização das forças armadas à sua disposição, garantiriam a firmeza desta trajetória. Segundo Creveld (2004:369-370), que resume bem essa trajetória, o Estado 19 “Quando viu a luz do dia pela primeira vez, era relativamente pequeno e fraco, a ponto de alguns governantes megalomaníacos o olharem de cima e afirmar que era idêntico à sua própria pessoa. De então em diante, foi crescendo incessantemente. A cada estágio, destacava-se da sociedade civil e se elevava acima dela. Ao fazê-lo, encomendava mapas e usava-os para fazer declarações políticas sobre si mesmo; aumentou os impostos e, o que talvez seja mais importante, concentrou-os em suas mãos. Para completar seu predomínio, criou forças policiais e de segurança, prisões, forças armadas e órgãos especializados, responsáveis pela supervisão da educação e do bem estar social...”. Por outro lado, à medida que o comércio e a indústria se desenvolviam, fortalecendo econômica e financeiramente a burguesia, mais esta passava a prescindir do apoio do Estado para ultimar seus objetivos. Com a realidade objetiva se transformando, novas idéias sobre o comportamento dos fenômenos da natureza foram surgindo. As explicações mecânicas do mundo defendidas por Galileu, Descartes e Locke desmontam a idéia aristotélica da imutabilidade do ser, ao demonstrarem, nas palavras de Denis (1975:140) que “os movimentos [...] não se devem explicar pela natureza ou pelas qualidades dos seres, mas como efeitos de certos choques ou de impulsões comunicados do exterior às coisas”, método que tornaria possível prever um grande número de fenômenos, por meio de fórmulas matemáticas relacionando suas causas e efeitos. Foi com esse avanço da ciência que se abriu a possibilidade, que teve como precursores, na economia, os pensadoresda escola conhecida como fisiocracia, de se aplicar aos fatos humanos os métodos da física. Existiria, nessa perspectiva, uma “ordem natural”, que regula os movimentos dos seres, sendo possível compreendê-los por meio da investigação de suas relações de causa e efeitos, apesar de seu controle direto não estar ao alcance do homem. Apoiados nessa visão, os economistas clássicos (Smith, Ricardo, Mill) procuraram compreender o funcionamento do organismo econômico, como se esse fosse governado por “leis naturais”, as quais, se não subvertidas por fatores externos, seriam capazes de garantir a eficiência do sistema. Na imagem celebrizada por Smith existiria uma "mão invisível" que se encarregaria de promover a melhor alocação de recursos da economia e de conduzi-la para um ponto de equilíbrio “natural”, desde que assegurada a liberdade também “natural” do comércio (a concorrência) e se mantivesse o Estado – uma força externa a este organismo – à distância deste mundo. Neste caso, dispondo cada um de “liberdade” para escolher e decidir sobre suas atividades e negócios e de realizar livremente trocas no mercado, mecanismo que corrigiria falhas e desvios cometidos pelos agentes econômicos nas suas decisões de produção, consumo, trabalho etc. – seriam alcançadas a eficiência e a felicidade individual, traduzindo-se em benefícios para toda sociedade. O mercado disporia, nessa perspectiva, de mecanismos estabilizadores automáticos, por meio da concorrência, capazes de corrigir seus desequilíbrios e garantir eficiência se não sofresse interferências externas. Em suas obras, portanto, as variáveis econômicas apresentam-se como dotadas de valores da natureza – valor natural do trabalho, taxa natural de juros, equilíbrio natural da economia -, cujo curso poderia, contudo, conhecer desvios de suas “tendências naturais” em decorrência de fricções e entrechoques provocados por 20 problemas surgidos no curso da acumulação, caso, por exemplo, dos efeitos provocados por uma situação de escassez ou abundância da força de trabalho sobre os salários e sobre os lucros. Por isso, a preocupação dos economistas clássicos será a de investigar as leis que determinam a distribuição da renda entre as classes da sociedade envolvidas no processo de produção – trabalhadores, capitalistas e proprietários de terra – e sua influência/efeitos sobre o processo de acumulação de longo prazo. Todos os seus esforços são voltados, diante disso, para identificar a fonte de valor das mercadorias e as leis que determinam sua distribuição entre os salários, os lucros e a renda da terra, bem como os fatores que a modificam, durante o processo de crescimento, provocando desvios de sua “tendência natural”, com prejuízos para a acumulação. Mas, apesar dessas inevitáveis fricções, se o Estado não se imiscuísse neste processo, o organismo econômico, por meio de suas leis naturais, seria capaz de corrigir esses desvios e recolocar a economia em sua trajetória natural. Era, para o que nos interessa, a senha para se pôr cobro à sua liberdade de intervir na vida econômica, tão defendida pelos mercantilistas. Este edifício da economia, no qual não havia lugar para o Estado, recebeu contribuições de vários autores em sua construção. Comandado por uma “mão invisível”, ou por leis naturais, o sistema contaria com mecanismos estabilizadores automáticos que garantiriam uma situação permanente de equilíbrio. Neste sistema, não havia lugar para a ociosidade do capital e nem crises gerais, já que a Lei de Say, também incorporada ao modelo teórico de Ricardo, assegurava que toda produção encontraria mercado; a flexibilidade dos preços, salários e taxas de juros, bem como a ausência do Estado no interior deste organismo, garantiam a correção de eventuais desvios da trajetória de equilíbrio da economia; e a igualação da taxa de lucro, determinada pela concorrência, aparecia resolvendo, por sua vez, os conflitos entre os distintos tipos e dimensões do capital (industrial, agrícola, financeiro etc.) e garantindo a reprodução do sistema. Apesar das inevitáveis fricções que poderiam surgir, mantida a liberdade de cada um de buscar seu interesse pessoal, essa seria o motor (a força, ou alavanca) que movimentaria a roda da produção da felicidade geral, beneficiando a sociedade como um todo. É importante fazer uma distinção sobre o conceito de eficiência utilizado por essa escola da economia, denominada clássica, pois este conhecerá modificação substantiva nas escolas que surgirão nos períodos seguintes, conhecidas como neoclássica e novo-clássica. Como mostra Ramalho Jr. (2006), o conceito de eficiência, na escola clássica, é resultado “... da liberdade de ação que possui o indivíduo de poder escolher e se dedicar à atividade em que apresenta maior habilidade e produtividade.” É essa lógica que encontra no mercado (a mão invisível de Smith) os elementos para a correção de erros de avaliação e de desvios cometidos pelos agentes econômicos, o que garante eficiência máxima para o sistema, traduzindo-se em benefícios para o conjunto da sociedade. 2.1.2.1. Abrindo uma exceção para o Estado em nome da eficiência: os bens públicos Na construção deste edifício, percebeu-se, contudo, que nem tudo poderia ser produzido e ofertado pelo mercado, já que este não era capaz de captar e transmitir, para certos tipos de bens, os sinais dos consumidores para o sistema produtivo, o que, se não corrigido, geraria ineficiência para o sistema como um todo. Era o caso, por exemplo, de 21 alguns bens e serviços que apresentavam características distintas dos que são produzidos pelo setor privado, por não serem divisíveis para o consumo individual e, por essa razão, não serem capazes de fornecer os elementos para o cálculo de custos, preços e volume produzido necessários para a determinação da taxa de lucro, motor primus do sistema. Essenciais para sua eficiência, a responsabilidade pela produção destes bens de consumo coletivo – chamados modernamente de bens públicos – passou a ser atribuída ao Estado, com o seu financiamento sendo garantido pela cobrança de impostos gerais. A condição para que isso fosse possível, era a de que o Estado não deveria incorrer em déficit orçamentário, operando, portanto, com contas equilibradas, um dos pilares que sustentava a visão de equilíbrio geral do sistema. Da construção da teoria econômica, apoiada nos ideais do liberalismo, derivou-se, assim, uma função específica para o Estado, mais modernamente conhecida como função alocativa, justificada pela existência de falhas apresentadas pelo mercado na produção de bens e serviços de consumo coletivo. Pelo que representa na trajetória do Estado, convém explicitar melhor o seu significado, bem como as diferenças e características do que aqui chamamos de bens públicos e bens privados. 1 A função alocativa atribuída ao Estado surgiu, neste novo corpo teórico, como resultado do reconhecimento da incapacidade do mercado de suprir a sociedade de bens e serviços de consumo coletivo, tais como os conhecemos na atualidade: defesa e segurança públicas, iluminação de ruas e avenidas, proteção ambiental, etc. Isso porque, como o consumo desses bens e serviços por determinado(s) indivíduo(s) não obedece ao princípio da exclusão - um princípio que assegura o acesso ao mercado somente para aqueles que dispõem de recursos para adquirir determinado produto - por se caracterizar como um consumo não-rival - seu consumo por um ou mais indivíduos não reduz a sua quantidade para o consumo de outros - não há meios de o mercado estabelecer/definir seu preço, tornando-se, portanto, inviável sua produção pelo setor privado. Como se tratam, entretanto, de bens e serviços indispensáveis para a sociedade, cabe ao Estado destinar recursos de seu orçamento para produzi-los e satisfazer sua demanda. São estesdenominados bens públicos, os quais não permitem, por apresentarem essas características, a mensuração da quantidade consumida e, consequentemente, dos benefícios com eles recebidos pelo indivíduo - problematizando o estabelecimento da contribuição a ser cobrada pelo poder público -, à medida que os consumidores não se sentem propensos a revelar a sua escala de preferência por estes bens e serviços. Contrariamente, os bens privados se caracterizam por sua divisibilidade, por serem bens de consumo-rival, à medida que alcançam preços de mercado, e por estarem sujeitos ao princípio da exclusão. Os economistas da escola clássica e, posteriormente, os da neoclássica, convictos, de acordo com os pressupostos teóricos da livre concorrência, das virtudes auto-reguladoras do mercado, concordavam que, somente no caso de ausência de sinais para ele emitidos, caso característico dos bens públicos, estaria justificada a interferência do Estado para garantir sua oferta e, com isso, aumentar a eficiência do sistema. 1 Deve-se chamar a atenção para o fato de que não foram os economistas da escola clássica que desenvolveram estes conceitos e estabeleceram princípios para diferenciar bens públicos de bens privados. Embora a eles se refiram, foram os economistas da chamada “Síntese Neoclássica” – uma combinação de teoria keynesiana com teoria neoclássica renovada, de acordo com Osdchaya (1974:289) - que reuniram em torno de três funções – alocativa, distributiva e estabilizadora – as ações desenvolvidas pelo Estado, para avaliá-los em termos de eficiência e desenvolveram princípios de distinção entre estes bens, à luz dos mecanismos do mercado e de equilíbrio do sistema. 22 De acordo com essa visão, apoiada, portanto, na crença de que leis naturais governavam o organismo econômico (a "mão invisível" de Smith), qualquer interferência "externa" a esse mundo seria capaz de provocar fricções e de reduzir a eficiência do sistema. E, como se considerava o Estado uma força externa, à medida que este não surgira com a sociedade, mas em determinado estágio de seu desenvolvimento, sua presença na vida econômica era vista como uma barreira que impedia a sociedade de alcançar essa eficiência. Isto porque, ainda de acordo com essa argumentação, desde que cada indivíduo tenha liberdade de escolher as atividades de seu interesse e em que apresente condições de obter maiores ganhos, o resultado final deste processo seria, no conjunto, benéfico para toda a sociedade. Por isso, o Estado deveria manter-se à margem do sistema econômico, sem nele intervir e restringir-se a garantir a defesa e a segurança do país. Essa constituiria a época de ouro do laissez faire, quando se acreditava, como o Dr. Pangloss, de Voltaire, que tudo corria pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. 2.1.2.2. A eficiência em xeque e a escola neoclássica: novos rumos teóricos Muito cedo, entretanto, os alicerces do liberalismo começaram a sofrer abalos. O progresso industrial representado pela Revolução Industrial ocorrida na Grã-Bretanha no século XVIII trouxe, como conseqüência, um aumento tão acentuado da pobreza que crianças e mulheres terminaram sendo lançadas no mercado, trabalhando em condições desumanas, para complementar a renda familiar. O progresso evidenciava, assim, a falácia da premissa liberal: a de que a busca da felicidade e do bem-estar individual resultaria na felicidade geral. Pelo contrário, assistia-se à confirmação da teoria da seleção natural, que assegurava aos ricos e poderosos tornarem-se ainda mais ricos e os pobres ainda mais pobres. Rosseau foi um dos poucos pensadores da escola liberal que desvelaria esse fenômeno e mostraria a importância da intervenção do Estado na vida econômica e social para reduzir as desigualdades existentes. Foram, entretanto, as idéias socialistas, que encontraram um campo fértil para desnudar, primeiramente, de forma assistemática, e, mais tarde, cientificamente estruturadas, a essência do capitalismo e para pôr a descoberto o papel que o Estado desempenhava numa sociedade de classes: o de servir de instrumento para a classe dominante. Contra essas vozes que ganhavam, pouco a pouco, maior orquestração, surgiriam, por volta de 1870, trabalhos de três autores, os quais, embora defendendo, como a economia clássica inglesa, as vantagens do liberalismo econômico, afastavam-se de suas principais bases teóricas que tinham no trabalho (na força de trabalho) a fonte de criação de valor, ao enfatizarem apenas o valor da utilidade das mercadorias na sua determinação. Com isso, a discussão do preço deixou de estar subordinada a preocupações com o valor “natural” a longo prazo, que marcaram a obra dos economistas clássicos, e a questão da distribuição dos rendimentos ganhou outra explicação. Walras, Jevons e Menger, considerados os fundadores da teoria neoclássica, apoiados no principio marginal, desenvolveriam, aparentemente sem se conhecerem, a idéia de ser o produto gerado resultado da participação e combinação dos fatores de produção trabalho-capital-terra, valendo-se da tese de Say sobre a origem/fonte dos rendimentos. E, apoiados naquele princípio, de que a distribuição destes rendimentos entre esses fatores de produção seria determinada pela contribuição marginal (produtividade marginal, um conceito posteriormente trabalhado e refinado por J.B. 23 Clark) que cada um dava ao processo, avalizada pelo mercado, de acordo com a utilidade do produto. Substituíram, com isso, a preocupação dos clássicos em investigar o valor natural das mercadorias no longo prazo, bem como a leis de sua distribuição entre lucros, salários e rendas, e suas implicações para o crescimento econômico, para a investigação do processo de alocação de recursos feitas pelas unidades econômicas que tomavam essas decisões – famílias e firmas – que encontravam, no mercado, os mecanismos de sua correção, por meio dos preços determinados pela oferta e procura, para garantir a máxima eficiência do sistema. Colocados no mesmo pé-de-igualdade pela teoria, os conflitos de classes desapareceram e, com a distribuição de seus rendimentos sendo determinados pela utilidade do produto e pela produtividade marginal dos fatores de produção, erigiu-se uma estrutura teórica em que o mercado, funcionando sem a interferência do Estado, seria capaz de garantir a reprodução harmônica do sistema. No mundo surgido da escola neoclássica, que contou com a contribuição de vários outros autores (Marshall, Wicksell, Böhm-Baverk, Fisher), ergueu-se, assim, um mundo econômico perfeito, governado por leis naturais e pela concorrência: constituído, de um lado, de uma multidão de pequenas empresas concorrendo entre si, essas não dispunham de poder para determinar as condições de oferta, o preço do produto e a taxa de lucro de suas atividades; contando, de outro, com consumidores soberanos, indivíduos racionais, egoístas em busca da maximização de suas rendas e utilidades, os quais, dispondo de todas as informações de mercado, participavam da determinação dos preços, das quantidades demandadas e do nível de produção requerido, por meio da manifestação de suas preferências, garantia-se que o sistema operasse com o máximo de eficiência. É interessante ressaltar como se modifica, com essa escola, apoiada na perspectiva utilitarista, o conceito de eficiência e as relações entre os fatores de produção. Nela, e nas que a sucederam no pensamento dominante, os conceitos de racionalidade e eficiência passam a ser associadas à perspectiva utilitarista em que cada agente busca a maximização de suas utilidades de uso (consumo e fatores de produção), com base em pressupostos dados, deslocando-se e modificando o enfoque analítico utilizado pelos economistas clássicos. O mercado continua sendo o campo (o guia) de convergência das decisões dos agentes econômicose de sinalizador dos ajustes e correções necessárias para a máxima eficiência alocativa, condicionada, contudo, à restrição orçamentária de cada agente que dele participa. Mas o que determina essa capacidade orçamentária que este utiliza para maximizar suas utilidades (consumo de produtos, lucros etc.)? A resposta da teoria é óbvia: considerando a utilidade dos fatores de produção (a produtividade, neste caso) para a geração da riqueza social, é a contribuição marginal que cada um agrega ao produto obtido que determina essa capacidade (a sua remuneração), variando essa, portanto, em função de sua eficiência. Dessa forma, quanto menos eficiente o agente, menores os recursos com que contará para satisfazer o princípio de sua racionalidade maximizadora. Quanto mais eficiente, maior sua contribuição e, portanto, maior a sua capacidade orçamentária para essa finalidade. Uma espécie de “vale quanto pesa”, sem possibilidades de correção das desigualdades existentes, já que a teoria não leva em conta a questão distributiva e opera, em sua lógica de maximização das utilidades, com o pressuposto de uma estrutura de distribuição de renda dada. 24 Com o objetivo de conferir às ciências econômicas o status de ciência exata e, de acordo com Barber (1974:191) “refinar suas descobertas sob a forma de proposições matemáticas”, os economistas neoclássicos procuraram, através da construção de modelos de equilíbrio geral, definir o ponto em que o sistema estaria operando numa situação de máxima eficiência. A solução dessa questão terminou sendo encontrada por Vilfredo Pareto, um economista italiano, que a divulgou em seu trabalho intitulado “Manual de Economia Política”, publicado em 1907 (Denis, 1974:550-4) De acordo com a solução de Pareto, considera-se que a economia atinge a máxima eficiência, quando modificações em dada alocação de recursos não se revelam capazes de melhorar o nível de bem-estar de um indivíduo sem prejudicar o de outro. Em linguagem matemática, diz-se que esta solução é representada pelo ponto em que a taxa marginal de substituição de um bem por outro se iguala à taxa marginal de possibilidades da produção, indicando que as decisões de escolhas dos agentes econômicos – unidades familiares, produtivas etc. – atingiram a máxima eficiência, valendo o mesmo argumento para as decisões tomadas em relação às possibilidades de combinações possíveis entre lazer, trabalho, poupança, consumo corrente etc. Em homenagem ao autor, essa situação de equilíbrio passou a ser conhecida, na literatura econômica, como caracterizando uma situação de “Pareto eficiente” ou de “ótimo de Pareto”. O rigor formal pareceu dar, ao modelo, um aspecto de cientificidade que ia muito além da realidade dos fatos e contextos históricos, mas garantiu seu sucesso por muito tempo e encantou – e ainda encanta – muitos economistas. Com ele, as classes sociais saíram de cena, os conflitos desapareceram e a sociedade foi transformada na soma de indivíduos, os quais, agindo de forma egoísta e racional, eram capazes não somente de assegurar sua felicidade pessoal, mas também de contribuir para o bem-estar coletivo, ao mesmo tempo em que o sistema econômico, governado por “leis naturais” se encontrava protegido de crises, desemprego, desigualdades e instabilidade. Neste mundo panglossiano, só não existia lugar para o Estado. Nele, o liberalismo se mantinha de pé para garantir sua harmonia, e ao Estado continuava sendo recomendado manter-se à distância do que ocorria na esfera da produção e restringir-se a garantir a ordem e a segurança do país. Na realidade, entretanto, como resultado do intenso processo de concentração e centralização do capital verificado no final do século XIX, apenas na teoria o Estado vinha mantendo-se à margem do sistema. 2.1.3. O Estado no Capitalismo Monopolista: a maturidade Em que pese a teoria, a verdade é que o Estado vinha conhecendo rápidas e profundas transformações. A monopolização crescente do capital, que teve início na última quadra do século XIX, colocou a necessidade cada vez maior da intervenção do Estado nesse processo. Isso, por várias razões. Em primeiro lugar, por ter se tornado imprescindível sua ação para assegurar mercados externos para a crescente produção resultante dos países que se industrializaram nesse período - França, Alemanha etc. - e que disputavam acirradamente a "partilha" do mundo. Era a época do imperialismo "confessado", que acabou desaguando na Primeira Guerra Mundial, com o Estado desempenhando papel fundamental nessa disputa. 25 Em segundo, porque se os próprios mecanismos de mercado asseguravam, no capitalismo concorrencial, a solução dos conflitos através da igualação da taxa de lucros, o mesmo não ocorreria no capitalismo monopolista que se instaura. À medida que a atomização cedia espaço às grandes empresas oligopólicas, em condições de impor/ditar seus preços e de assegurar suas fatias de mercado, o mecanismo que antes se incumbia de tornar em soma zero as diferenças entre os distintos capitais, perde fôlego, vindo à tona sua grande heterogeneidade e seus conflitos, como vai deixar claro sobre essa questão, como se verá ainda neste capítulo, a teoria marxista do Estado. Diante desses conflitos, tornou-se evidente a importância do Estado, como força externa ao sistema, para organizar e soldar, por meio da política econômica, os distintos interesses do capital, atuando como árbitro deste processo para garantir a reprodução do sistema. Para desempenhar este papel deveria este contar com uma relativa autonomia, e se integrar crescentemente, ao mesmo tempo, ao processo de reprodução econômica, penetrando em áreas que, apesar de indispensáveis ao processo de acumulação, não interessavam ao setor privado assumir, especialmente as que dizem respeito à infra- estrutura econômica e ao capital social básico (as chamadas “externalidades” econômicas tão necessárias ao sistema). Essa mudança no aparelho do Estado, embora não problematizado no corpo teórico do pensamento dominante, acarretaria, com a transposição destes conflitos para dentro de seu aparelho, uma série de implicações para a reprodução do sistema, principalmente no tocante à luta que passaria a ser travada entre os distintos capitais para deter sua hegemonia e influenciar a condução e o conteúdo da política econômica. Neste contexto, o Estado se tornaria o responsável pela organização das relações mantidas entre as classes sociais e suas frações, as quais determinariam, por meio de um equilíbrio de compromissos entre elas estabelecido, avalizado pelo Estado, a condução da política econômica em geral. Para o pensamento econômico dominante, que não consegue perceber essa mudança qualitativa em seu papel, e continua a depositar fé na força dos mecanismos de mercado, toda e qualquer intervenção do Estado na economia continuava sendo vista apenas como heresia. Somente com os desdobramentos da crise de 1929, que provocou quedas acentuadas nos níveis de renda e de emprego da economia capitalista em geral, é que serão dadas as condições objetivas para que se justifique, nos campos teórico e prático do pensamento econômico dominante, a intervenção do Estado na economia. Tarefa que coube a John Maynard Keynes desenvolver com brilhantismo em seu trabalho lapidar sobre o emprego, o juro e a moeda, de 1936. Embora as idéias de Keynes não captem essa politização do Estado, são elas as responsáveis – ou as que lhe fornecem o arcabouço teórico e a caixa de ferramentas a ser usada para essa finalidade, através dos instrumentos de política econômica – para justificar sua intervenção na economia, visando salvar o capitalismo. Foi a partir de sua germinação e sua difusão que se ampliaram suas tarefas, e deram sustentação teórica ao surgimento do Estado do bem-estar nas economias desenvolvidas(ou o Estado Providência) e ao Estado com maior presença na vida econômica nos países de industrialização retardatária, ancorados em doutrinas teóricas que, tendo como referencial de análise a matriz keynesiana, caso, por exemplo, da Comissão de Estudos Econômicos para a América Latina (CEPAL), deram origem ao desenho de Estados com forte conteúdo desenvolvimentista. 26 Keynes foi, no mínimo, um economista instigante. Integrante dos quadros da escola neoclássica rompeu com suas premissas teóricas quando suas recomendações e a fé que aquela depositava no mercado revelaram-se incapazes de retirar o capitalismo da crise em que mergulhou na década de 1930. Não hesitou, para isso, em desmontar os principais pilares em que essa se assentava, como a Lei dos Mercados de Say, a concepção walrasiana sobre o mercado de trabalho e o mito do orçamento equilibrado, e propor mudanças no papel do Estado para salvar o regime da empresa privada, com o abandono do laissez-faire integral. Oponente das idéias de Marx sobre o socialismo, apoiou-se em algumas de suas teses para explicar as crises do capitalismo2, embora modificando conceitos e significados, e, com sua contribuição teórica, deu origem a um Estado reformado, vital para sustentar o curso da acumulação e para acomodar, por meio do avanço do welfare state, as tensões sociais que poderiam colocar em risco sua reprodução. Abriria de vez, com isso, as portas para o maior avanço do Estado no domínio econômico. Sua obra "A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, vinda a lume em 1936, estabelecerá os contornos teóricos definitivos e desvelará a importância dos investimentos públicos para atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para viabilizar uma política de pleno emprego. A obra de Keynes representaria, assim, um verdadeiro libelo contra a ortodoxia imperante, a qual garantia que os ajustes do sistema ocorriam de forma automática, com a economia tendendo para um único ponto de equilíbrio possível, sob a condição de que não houvesse entraves à livre flutuação da taxa de juros, do nível de salários e dos preços. Keynes, contrariamente, demonstraria a possibilidade de a economia estar em equilíbrio sem que, necessariamente, este nível correspondesse ao de pleno emprego dos fatores produtivos. Para ele, este nível constituía um caso particular da teoria, mas não podia ser tratado como regra geral. A economia poderia muito bem estar em equilíbrio, mas se defrontar com insuficiência de demanda agregada para atingir o nível ótimo de plena utilização dos fatores produtivos ou, reversamente, apresentar excesso de demanda sobre a capacidade produtiva, padecendo de pressões inflacionárias. Qualquer que fosse a situação, o Estado repontava, em seu arcabouço teórico, como o elemento capacitado para atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para corrigir as fortes desigualdades do sistema, através do manejo da demanda agregada. Se houvesse insuficiência de demanda, deveria ele atuar como seu criador, seja aumentando seus gastos, seja reduzindo as imposições tributárias sobre a sociedade ou mesmo fazendo uma combinação de ambos instrumentos. Com isso expandiria, via multiplicador, os níveis de investimento, de renda e de emprego da economia. Se a situação, por outro lado, fosse de excesso de demanda, o caminho percorrido deveria ser o da direção oposta. 2.1.3.1. Ampliando os papéis do Estado: as funções distributiva e estabilizadora Com as formulações keynesianas, o Estado foi colocado no centro do palco e assumiu uma importância capital para longevizar a vida do sistema. Embora tenha havido muita resistência, no início, às idéias de Keynes, elas acabariam por prevalecer, 2 Essa interpretação se encontra em Denis, para quem a explicação de Keynes das crises de superprodução se aproxima muito da marxista, ao atribuir à insuficiência do investimento a causa de depressão, partindo de conceitos como o de custo de produção dos bens produzidos no ano (de equipamentos e de consumo) que equivale “... ao valor da produção nacional líquida, no sentido marxista, i.é, à soma dos salários e da mais valia.” (Denis, 1974:696-8) 27 especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, e o Estado moderno incorporaria novas funções e atribuições, aumentando o seu grau de intervenção na economia. De um Estado teoricamente passivo e improdutivo transformar-se-ia num Estado fortemente intervencionista, indispensável para a vitalidade e estabilidade do sistema. Além das restritas funções que vinha desempenhando - regulatória, garantidor da defesa e segurança, alocativa - passaria ele, nessa nova perspectiva teórica, a desempenhar o importante papel de mantenedor da estabilidade econômica e de agente responsável pela implementação de políticas de conteúdo redistributivista, que passaram a ser consideradas necessárias para garantir a reprodução do sistema no longo prazo. Alguns esclarecimentos devem ser feitos sobre essas novas funções a ele atribuídas como resultado do reconhecimento de que o mercado apresentava mais falhas do que era capaz de supor a teoria dominante. Da mesma forma que a função alocativa, a distributiva decorre do reconhecimento de ser o mercado incapaz de conduzir a sociedade a uma estrutura de distribuição de renda que seja considerada justa ou eqüitativa. Isso porque, como o ponto de partida não é o mesmo para todos, quer interclasses - trabalho e capital, por exemplo - quer intraclasses - há o pequeno, o médio e o grande capital; o trabalho qualificado, semiqualificado e não- qualificado; etc. - deixar que os mecanismos de mercado presidam livremente a questão distributiva implica correr os riscos de se conduzir o sistema a tamanha desigualdade, que esta, ao se tornar intolerável para as camadas mais pobres, coloque em perigo a sua reprodução. Foi para corrigir essas falhas do mercado que se passou a atribuir ao Estado, ainda que isso significasse reduzir a eficiência do sistema, o papel de intervir para melhorar a estrutura da distribuição da renda e da riqueza, especialmente através do manejo dos instrumentos de política fiscal. Ganhou importância, nessa perspectiva, a provisão pelo Estado dos chamados bens semipúblicos também conhecidos como bens meritórios (merits goods). Diferentemente dos bem públicos puros, os bens semipúblicos apresentam características semelhantes aos bens privados, como as de serem divisíveis para o consumo individual, obedecerem ao princípio da exclusão e tratarem-se de consumo rival. É o caso, por exemplo, dos serviços de saúde, educação, saneamento, por exemplo. Sua importância para a sociedade – e também pelas externalidades que gera para o próprio sistema econômico -, bem como a necessidade de se garantir o acesso ao seu consumo aos cidadãos que não dispõem de poder de compra para adquiri-los, aumentou consideravelmente a sua provisão pelo Estado, especialmente a partir das idéias keynesianas e da importância assumida por políticas redistributivas com a constituição do welfare state. O maior cuidado com os efeitos redistributivos também pelo lado da tributação ganhou também maior importância na política fiscal a partir dessa visão. Exemplos como o do Imposto de Renda Negativo para garantir níveis mínimos de rendimentos para as famílias que se situam abaixo da linha de pobreza, combinados com estruturas de impostos efetivamente progressivos, especialmente em se tratando dos impostos diretos, ou com regressividade atenuada no caso dos indiretos, passaram a inscrever-se entre essas preocupações de tornar o Estado um agente minimizador das desigualdades existentes e de garantir maior coesão social. O importante a reter dessa discussão, é que essa função só ganharia maior espaço entre as políticas públicas, com a revolução keynesiana, uma vez que, para os economistas clássicos e neoclássicos, comovisto anteriormente, políticas dessa natureza implicavam redução de eficiência do sistema. 28 Já a função estabilizadora, que só entrou efetivamente em cena a partir das idéias keynesianas, justifica-se, segundo Musgrave & Musgrave (1980:11), pelo reconhecimento também de não serem “... o pleno emprego e a estabilidade de preços (...) resultados automáticos do funcionamento do sistema de mercado [e exigirem, por essa razão] uma orientação por parte da política implementada pelo setor público. Na ausência dessa política orientadora, a economia tende a estar sujeita a flutuações significativas e/ou passar por períodos de desemprego ou inflação". Para atenuar essas flutuações e possibilitar à economia caminhar ou retornar, sempre que dela desviada, à trajetória onde se combinam os objetivos de pleno emprego dos fatores produtivos e de estabilidade monetária, o Estado deve utilizar a sua "caixa de ferramentas" - instrumentos fiscais, monetários, etc. - para materializá-los. Na ausência de estabilizadores automáticos do mercado, a ação do Estado, especialmente através do manejo da política fiscal, passaria a ser vista como decisiva tanto para a criação de demanda efetiva necessária para a economia retomar sua expansão - e reduzir/absorver o desemprego - como para desaquecer a atividade produtiva e desacelerar o crescimento do nível de preços e ainda para conciliar os objetivos domésticos com aqueles vinculados ao comércio internacional e à balança de pagamentos. A necessidade de construção/consolidação do Estado do bem-estar no mundo capitalista, muito como resultado da crise e dos problemas políticos e sociais engendrados pela depressão da década de 1930, ganhou maior força com o temor, encerrada a Segunda Guerra Mundial, de que o comunismo soviético poderia, aproveitando-se das precárias condições sociais em que se encontrava uma Europa em ruínas, se alastrar pela região. Para enfrentar esse desafio, o Plano Marshall implementado pelos Estados Unidos, bem como a importância de políticas compensatórias implementadas pelos Estados nacionais encontraram justificativa, inclusive, no campo ideológico, reforçando o papel do Estado como agente indispensável para manter a coesão social. O Estado que brotou do pensamento keynesiano serviu de modelo para o restante do mundo capitalista, mas assumiu, em outros países e regiões, formas e características distintas das que apresentou no mundo desenvolvido, variando a intensidade dos seus graus de intervenção na atividade econômica. Especificamente, na América Latina, influenciou a formulação das idéias cepalinas sobre o papel nuclear que o Estado deveria desempenhar para garantir a industrialização da região, diante da fraqueza financeira da burguesia, atuando como agente estruturante e organizador deste processo, o que deu origem ao que se conhece na literatura do pensamento da CEPAL como “Estado desenvolvimentista”3, o qual, no caso do Brasil, tornou-se o principal agente das transformações de sua economia entre os anos 1930 e 1980, como se verá na análise da experiência brasileira na parte final deste capítulo. De qualquer modo, à medida que se foi confirmando essa importância do Estado para a economia e para o sistema, foi crescente, no mundo capitalista, sua participação na geração da renda e do emprego. A tabela 1.1 retrata bem essa realidade sobre a importância assumida pelo Estado na vida econômica de um conjunto de países desenvolvidos selecionados. Como se percebe, de uma participação em torno de 10% do PIB/PNB em 1880 - à exceção da França onde esse nível atinge 15% - o Estado vê 3 Para entendimento da teoria da CEPAL, consultar os trabalhos de Cardoso de Mello (1998 ) e da CEPAL (1951) sobre seus fundamentos. 29 aumentado continuamente seu peso na economia, o qual se acentua a partir da crise de 1929, vindo a responder por níveis equivalentes ou superiores à metade de sua geração em 1985 - é o caso da Alemanha, Inglaterra, França e Suécia - ou em torno de 1/3 de seu produto, como se observa para os EUA e Japão. Tabela 1.1 Participação da Despesa Governamental no PIB ou no PNB (em %) Países Ano 1880 1929 1960 1985 França 15,0 19,0 35,0 52,0 Alemanha 10,0 31,0 32,0 47,0 Japão 11,0 19,0 18,0 33,0 Suécia 6,0 8.0 31,0 65,0 Inglaterra 10,0 24,0 32,0 48,0 EUA 8,0 10,0 28,0 37,0 Fonte: Banco Mundial: Relatórios sobre o Desenvolvimento Mundial, 1991, p.158 2.1.3.4. A reação a Keynes (e ao Estado keynesiano) pela ortodoxia Se na vida real as idéias de Keynes deram vida pró-ativa a um Estado renovado, necessário para corrigir desequilíbrios e atenuar as flutuações cíclicas do sistema, e à política fiscal um papel nuclear entre os instrumentos de política econômica para ultimar estes objetivos, no plano teórico, a ortodoxia, após absorver o golpe desferido pela revolução keynesiana em seus pressupostos, voltaria à carga, com armas renovadas, visando fornecer explicações para a inflação dos anos 1960 e desmontar a visão positiva que predominava sobre a ação e intervenção do Estado na economia. Neste contexto surgiu nessa época, em oposição à visão de Keynes, para quem a inflação é um fenômeno decorrente do excesso de demanda, a teoria monetarista, a qual, apoiada em modelos de expectativas inflacionárias, concluía serem inócuas as políticas fiscais expansionistas voltadas para os objetivos de ampliação da renda e do emprego e responsáveis pela aceleração do nível de preços e, portanto, pela instabilidade do sistema econômico. Essa teoria tomou como ponto de partida para explicar a manutenção da taxa de inflação a partir do modelo das expectativas, a curva de Phillips, assim conhecida em homenagem ao trabalho empírico que foi desenvolvido por A.W. Phillips sobre a evolução do desemprego e da taxa de variação dos salários nominais na Inglaterra entre 1862 e 1957, no qual constatou a existência de uma relação inversa entre essas duas variáveis. Dois anos mais tarde, em 1960, R.G. Lipsey teorizou a curva de Phillips e formalizou a existência deste trade-off entre inflação crônica e desemprego, reforçando a tese de que taxas de desemprego menores podiam ser obtidas por meio de políticas expansionistas, mas produzindo inflação dos salários nominais e, por extensão, dos preços em geral. Era o que o pensamento ortodoxo necessitava para assestar suas baterias contra o pensamento keynesiano. 30 No final da década de 1960, Edmund Phelps e Milton Friedman introduziram os salários reais neste modelo em substituição aos salários nominais, justificando essa mudança como um erro que identificaram na teoria original, e concluíram que o dilema não era exatamente entre inflação e desemprego, mas entre desemprego e inflação acima das expectativas dos agentes econômicos. Esse desvio, que poderia ser causado por uma espécie de ilusão monetária dos trabalhadores sobre o valor dos salários, como reflexo da expansão da atividade produtiva, seria responsável por uma pressão “temporária” exercida sobre a “taxa natural de desemprego” – uma das hipóteses com que opera essa escola para explicar o funcionamento do sistema econômico -, à qual se retornaria depois das inevitáveis correções que seriam feitas no nível de expectativas pelos agentes econômicos, abortando-se a expansão econômica que deu início a este processo. Para melhor entender esses argumentos, é preciso esclarecer a visão dessa corrente sobre o funcionamento do sistema econômico e também como se formam as expectativas inflacionárias desses agentes. Para essa teoria, assim como para a escola neoclássica, como visto anteriormente, o mundo econômico funciona de forma harmoniosa, com os mecanismos de mercado garantindo a plena utilização dos fatores produtivos e a inexistência de desemprego de caráter involuntário. A acomodação do sistema aosmovimentos cíclicos da economia é garantida por uma “taxa natural de desemprego”, hipótese central em seu corpo teórico, que varia para cada economia e em cada contexto histórico. Admite-se, apenas, a existência do desemprego voluntário e friccional. O primeiro revela uma situação em que o trabalhador não se dispõe a trabalhar pelo salário vigente no mercado, preferindo manter-se ocioso. O segundo, um período de transição em que o trabalhador fica momentaneamente desempregado enquanto não encontra trabalho em outra empresa. Como naquela escola, tudo se assemelha a uma ficção, sem correspondência no mundo real. A diferença é que, para essa teoria, os agentes econômicos formam expectativas sobre a taxa de inflação, porque essa terá influência sobre o salário real. São dois os elementos que consideram neste processo de formação das expectativas: a) previsão da taxa de inflação do período seguinte, com base na média das taxas de inflação dos períodos anteriores; b) como podem ocorrer os desvios mencionados, adiciona-se, a essa previsão, uma fração de correção proporcional ao erro de expectativa do período anterior. Os agentes econômicos fazem, portanto, uma adaptação das expectativas, que formaram sobre a inflação, procurando corrigir o erro que cometeram ou que foram induzidos a cometer pelo comportamento da economia real. Mas como se explica esse erro? Quando o governo resolve promover uma política expansionista, a oferta de moeda aumenta e também a demanda por bens e serviços. Esse aumento leva as empresas a expandirem a sua produção (a oferta de produtos), demandando mais trabalho, o que eleva os salários nominais (e também os salários reais por algum tempo). Essa elevação motiva os trabalhadores ociosos (os do desemprego voluntário) a ingressarem no mercado, já que os salários se tornam mais atraentes. Acontece que os preços também se elevam até mesmo como resultado do aumento dos salários nominais (um importante componente dos custos de produção), provocando uma queda nos salários reais. Diante disso, os trabalhadores reduzem a oferta de trabalho (retornam à ociosidade, que se torna mais vantajosa) e a economia retorna ao seu estado natural de equilíbrio do emprego. Mas a inflação adicional que foi gerada por este movimento (inócuo) permanece e será transmitida para os períodos seguintes, porque será incorporada aos cálculos de previsão da inflação futura feita pelos agentes econômicos, garantindo-se, portanto, sua aceleração. 31 As condições e recomendações práticas dessa teoria para a política econômica (para a ação do Estado) não podem ser mais claras: i) políticas econômicas expansionistas alteram e afetam, no curto prazo, a economia real e mudam o curso da “taxa natural de desemprego”, induzindo os agentes econômicos a cometerem erros de avaliação, diante da elevação dos salários; ii) no longo prazo, quando esses erros são corrigidos, por um processo de ajustamento das expectativas, retorna-se às condições de equilíbrio da economia (e do mercado trabalho), abortando-se a expansão econômica produzida por este movimento; iii) apesar de inócuo, no longo prazo, para a ampliação da renda e do emprego, este movimento deixa seqüelas para o quadro macroeconômico, já que a inflação se acelera nos períodos seguintes, pois seu aumento no ano, e também a fração do erro das expectativas incorporam-se ao cálculo das previsões feitas pelos agentes econômicos sobre a inflação futura; iv) neste caso, recomenda-se ao governo evitar a aventura de incorrer em déficit público para implementar políticas expansionistas e manter um rígido controle sobre a oferta de moeda, pois, ao fim e ao cabo, é esta que explica e sanciona, no longo prazo, o fenômeno inflacionário. Apesar de racionais, os agentes econômicos de Friedman estão sujeitos – ou serem induzidos pela ação nefasta da política econômica – a incorrerem em erros sistemáticos de previsão sobre a inflação, por serem afetados pelo fenômeno da ilusão monetária. É essa ilusão que permite a geração de efeitos das políticas expansionistas no curto prazo, embora esses se esfumem no longo prazo, quando os agentes, através de um processo de aprendizado e de adaptação, acertarem suas expectativas. Apesar dessa nova teoria, a supremacia da teoria keynesiana vis-à-vis a ortodoxia se prolongaria até o início da década de 1970, sustentando, com a implementação de suas políticas, o longo e vigoroso ciclo de crescimento conhecido pelo capitalismo no período pós Segunda Guerra Mundial. Somente quando essas políticas começaram a se mostrar inadequadas para combater um renitente processo inflacionário combinado com o processo de estagnação e de crise que se abateu sobre a economia mundial nessa época, perderam força. Independente das causas que estavam na raiz da reversão deste ciclo, o agravamento da crise nos anos seguintes, diante, inter alia, da crise do dólar, da desestruturação do sistema monetário e da crise do petróleo, deu ao pensamento ortodoxo os argumentos que esse necessitava para retornar à cena e apontar o Estado como o grande responsável pelos desequilíbrios do sistema provocados pelos crescentes déficits e elevados níveis de endividamento em que este, de um modo geral, mergulhou. 2.1.4. O Estado no Capitalismo Mundializado: a terceira (ou quarta) idade A crise em que a teoria keynesiana mergulhou na década de 1970 em face da incapacidade de seus instrumentos de darem respostas à perversa combinação de um processo recessivo com inflação em alta, abriu espaços para o ressurgimento das idéias liberais, que passaram a atribuir ao tamanho do Estado na economia e à sua ineficiência na gestão de atividades consideradas afeitas ao setor privado, as causas primárias da crise, na forma dos gigantescos déficits públicos que passaram a ser gerados pelos países do mundo capitalista. Com a memória dos efeitos da Grande Depressão dos anos 30 tendo praticamente se apagado, graças ao longo ciclo de desenvolvimento do capitalismo iniciado após a Segunda Grande Guerra, para o que fora decisiva a intervenção estatal, essas idéias frutificaram revigoradas. 32 A nova concepção teórica sobre o papel negativo do Estado ganhou força com o avanço da Terceira Revolução Industrial e do processo de globalização, os quais, pelas suas características, exigiam compromissos com a abertura da economia, o aumento da concorrência e da eficiência produtiva e com a desregulamentação dos mercados financeiros e de produtos, o que implicava retirar, novamente, o Estado da vida econômica por sua ação ser considerada prejudicial para seu funcionamento. No mundo globalizado (mundializado), em que se restringem os espaços de atuação do Estado, surgem, em diversos campos, várias contribuições teóricas, contrapondo-se ao pensamento keynesiano, para dar sustentação à nova investida contra suas ações. Um apanhado dessas posições de que se valeram – e continuam se valendo – a forças antiestado, é feito em seguida, dando-se maior ênfase às análises e recomendações da Teoria da Escolha Pública, que considera o Estado apresentando mais falhas do que o mercado, devido às imperfeições do mundo político. Embora não se enquadre na visão neoliberal, que forneceu munição para o retorno, com sucesso, dessas forças, a Teoria da Regulação é também apresentada, à medida que adiciona elementos que questionam sua ação enquanto agente que, “em tese”, deveria estar voltado para defender e promover o interesse público. a) A Teoria da Regulação No campo institucional, a Teoria da Regulação de Stigler (1971), Posner (1974) e Peltzman (1976), de que a regulação, ao contrário do que se acreditava, não favorece o interesse público, mas protege os interesses da indústria e setores regulados, colocou em xeque o papel intervencionista do Estado. Tal situação seria resultadode uma relação promíscua estabelecida entre reguladores, em busca de apoio político, e setores regulados, visando protegerem-se da concorrência de outras firmas e obterem melhores vantagens econômicas, por meio de regras de entrada no mercado e estabelecimento mais favorável de preços para o seu conjunto, o que se traduziria em perda de bem-estar social não somente pelos custos envolvidos neste processo (custos das agências reguladoras, dos lobbies etc.), mas também pelos prejuízos e distorções provocados pela ausência de concorrência. Nos EUA, a década de 1970, quando esses trabalhos foram publicados, foi marcada, de um lado, por um amplo processo de desregulamentação, especialmente em setores da atividade produtiva (setores de transportes, telefonia, petróleo, gás natural), movimento que pareceu representar a negação – ou seguir a recomendação – da Teoria da Regulação, como anotam Mattos et. al. na Introdução do livro que organizaram sobre o tema (Mattos et. al., 2004:16). De outro, várias agências de regulação foram criadas em outras áreas, como na dos direitos dos consumidores, ambientais, trabalhistas, da saúde e do bem-estar social. Tais movimentos contraditórios para a Teoria da Regulação conduziram à sua revisão e refinamento de seus pressupostos por Peltzman, em 1989 (Peltzman, 1989), que conclui não existir um “único interesse econômico que captura o ente regulatório” e que se deve “encará-la como fruto de uma política de coalizões, na qual os políticos tenderão a maximizar suas vantagens por meio da distribuição a diferentes grupos de interesse envolvidos no jogo regulatório.” (Mattos et. al., 2004:16) Desenvolvimentos ulteriores dessa temática, reconhecendo a importância da regulação em áreas importantes para a sociedade (principalmente na de direitos sociais), 33 cuidaram de sugerir meios de aperfeiçoamento para o funcionamento dessas agências em nome da eficiência e da legitimidade e aumento de seu controle pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, visando evitar os riscos e impedir sua captura pelos agentes regulados (Mattos et. al., 2004:18). Em suma, uma espécie de reinvenção do Estado em que a preocupação com a eficiência remete ao redesenho das instituições e ao fortalecimento dos mecanismos de controle nos processos de sua interação com a sociedade. b) A Teoria das Expectativas Racionais No campo da macroeconomia, os teóricos da escola novo-clássica de R. Lucas, T. Sargent e N. Wallace (Rego et. al., 1986:37) acrescentaram mais argumentos para condenar a intervenção do Estado na economia, na linha anteriormente desenvolvida pela teoria monetarista (a das expectativas adaptativas), mas corrigindo os erros sistemáticos de previsão da inflação que os agentes econômicos da última cometiam provocados pela ilusão monetária. Os teóricos da chamada escola novo-clássica adotam, como a escola monetarista, o pressuposto de uma “taxa natural de desemprego”. Para eles, também o processo inflacionário é um fenômeno essencialmente monetário, mas, ao contrário dos teóricos daquela escola negam, mesmo no curto prazo, quaisquer efeitos de aumentos na oferta de moeda sobre as variáveis reais da economia, como no nível de renda e emprego, restringindo seus impactos apenas ao aumento de preços, ou seja, à geração de inflação. Descartam, para isso, a hipótese de formação de expectativas adaptativas, resultado da ilusão monetária dos agentes econômicos, e introduzem, no modelo, agentes que não se deixam enganar por esse fenômeno (ou se isso ocorre, conseguem corrigir rapidamente seus erros, evitando que eles se repitam), sendo capazes, portanto, de formar expectativas de forma racional, e, com isso, neutralizar a ação nefasta do governo (do Estado) na implementação de políticas expansionistas. Como isso se torna possível? Os agentes deste modelo são mais ágeis e atualizados do que o das expectativas adaptativas: não se guiam por informações do passado, mas do presente (da atualidade) para a formação de expectativas nem repetem os erros que cometem, procurando corrigi-los quando atualizam as informações. Os erros tendem a ocorrer não pelas fraquezas da condição humana (são racionais), mas pela existência de informações incompletas ou imperfeitas (caso de choques não antecipados, como os de decisões não divulgadas sobre a implementação de políticas expansionistas tomadas pelo governo, por exemplo), o que pode produzir, momentaneamente, desvios da economia de sua posição de equilíbrio. Atualizadas as informações, os agentes rapidamente corrigem suas expectativas, neutralizando a ação do governo e garantindo a convergência entre a inflação esperada e a efetiva e a taxa de desemprego efetivo e a taxa de equilíbrio. Como bem anota Carvalho (2001:216) sobre essa questão: “Não importa aos teóricos novo-clássicos se, de fato, os agentes conhecem a teoria econômica que, segundo eles, é capaz de explicar os fenômenos reais. O que importa é que os agentes agem como se soubessem de tal teoria. Por exemplo, para se saber o dia em que é seguro levar o guarda-chuva para o trabalho não é necessário conhecer os avançados modelos de previsão meteorológicos. O mesmo pode ser dito em relação à economia. Não é necessário conhecer a teoria quantitativa da 34 moeda para se saber que um aumento de um estoque de moeda provoca inflação. Basta reagir elevando os preços e os salários todas as vezes que o governo inflar a economia com moeda.” Apesar das diferenças entre os modelos das expectativas adaptativas e racionais sobre o comportamento dos agentes econômicos neste processo, os resultados a que chegam sobre o papel do Estado neste processo são os mesmos: concluindo pela neutralidade da política monetária no longo prazo em relação às variáveis reais da economia, recomendam que o governo não deve lançar-se na aventura de incorrer em déficits públicos e utilizar-se da ampliação da oferta de moeda visando estimular o crescimento da economia, visto que isso apenas se traduziria em aumento da inflação e da instabilidade do sistema, sem resultados práticos para os objetivos de aumento da renda e do emprego. c) A Teoria da Escolha Pública Para essa escola de pensamento, que se apóia nas mesmas premissas teóricas dos neoclássicos, mas modifica radicalmente sua posição em relação ao Estado, este é sempre sinônimo de ineficiência para o sistema, mesmo quando sua atuação visa apenas corrigir eventuais falhas do mercado. De acordo com este argumento, se o mercado pode, de fato, apresentar falhas – o que no pensamento neoclássico e keynesiano justifica a intervenção pública – a ação estatal voltada para corrigi-las – ou mesmo a simples possibilidade de fazê-lo –, pode revelar-se ainda mais danosa para a eficiência do sistema. Assim, como também apresenta falhas, que podem ser mais prejudiciais que as derivadas do funcionamento do mercado, a intervenção do Estado passaria a ser condenada por essa escola, justificando as proposta de esvaziamento de suas funções e de sua redução à condição de Estado mínimo, através da implementação de políticas de desregulamentação, privatização das empresas estatais, encolhimento/extinção do welfare-state etc. É importante conhecer suas bases teóricas e a linha de argumentos que a conduz a tais conclusões e propostas. Conhecida como Escolha Pública (Public Choice), essa escola de pensamento adota o mesmo método de análise utilizado pela teoria econômica convencional, que considera, como hipótese de trabalho, o homem um animal egoísta, racional e maximizador de utilidades, mas dela diverge no que diz respeito à sua aceitação de considerar a intervenção do Estado necessária para corrigir/atenuar as chamadas falhas do mercado e, com isso, garantir maior eficiência para o sistema capitalista. Para isso, procura entender as escolhas orçamentárias como orientadas
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