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Dados lnternacionais de Catalogayao na Publicayao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ponce, Anfbal, 1898-1938 Educavao e !uta de classes I Anfbal Ponce, traduvao de Jose Severo de Camargo Pereira.- 18. ed.- Sao Paulo: Cortez, 2001. Bibliografia ISBN 85-249-0241-8 1. Conflito social 2. Educavao- Hist6ria I. Titulo II. Serie. 90-0131 lndic~s para catalogo sistematico: 1. Educavao : Hist6ria 370.9 2. Educavao e Sociedade 370.19 3. Luta de classes: Sociologia 303.6 CDD-370.9 -303.6 -310.19 ANiBAL PONCE Traduc;iio de Jose Severo de Camargo Pereira (Do Instituto de Matematica e Estatfstica da USP) 18aedigao @C.ORTEZ ~EDITORQ EDUCA<;:AO E LUTA DE CLASSES Anfbal Ponce Capa: DAC Revisiio: Agnaldo Alves de Oliveira Composit;iio: Dany Editora Ltda. Coordenar;iio editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autoriza(iao expressa do tradutor e do editor. ©do esp6Iio Direitos para esta edi(iao CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 - Perdizes 05009-000 - Sao Paulo - SP Tel.: (II) 3864-0111 Fax: (II) 3864-4290 E-mai I: cortez@ cortezedi lora. com. br www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil- abril de 2001 SUMARIO Prefacio da segunda edic;:ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Prefacio da traduc;:ao brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 I. A EDUCA~AO NA COMUNIDADE PRIMITIV A . . . . . . . . . 17 II. A EDUCA~AO DO HOMEM ANTIGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Primeira parte - Esparta e Atenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 III. A EDUCA~AO DO HOMEM ANTIGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 Segunda parte - Roma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 IV. A EDUCA~AO DO HOMEM FEUDAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 V. A EDUCA~AO DO HOMEM BURGUES . . . . . . . . . . . . . . . . 111 Primeira parte - Do Renascimento ate o Seculo XVIII . . . . Ill VI. A EDUCA~AO DO HOMEM BURGUES ................ 133 Segunda parte - Da Revoluc;:ao Francesa ao Seculo XIX . . . 133 VII. A NOVA EDUCA~AO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 Primeira parte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 VIII. A NOV A EDUCA~AO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Segunda parte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 5 PREFACIO DA SECUNDA EDI<;AO Em fins de 1963, veio a luz a primeira edic,:ao da traduc,:ao brasileira deste livro de Anfbal Ponce, publicado originalmente em 1937, pouco antes da tnigica e prematura1 morte do scu Autor, num desastre, no Mexico. Foi bern acolhida pela crftica e pelo publico em geral, mas a epoca escolhida para o seu lanc,:amento nao foi muito feliz, como logo se constatou pelos acontecimentos polfticos que se desencadearam no Brasil logo no inicio do ano seguinte. Os exemplares existentes em livrarias e depositos foram recolhidos compulsoriamente e durante o "qtiinqiii!nio revoluciomirio" seguinte a presente obra esteve fora de mercado no Brasil. 1. Anfbal Norberto Ponce Speratti nasceu em Buenos Aires em 6 de junho de 1898 e faleceu na Ciudad de Mexico etn 18 de maio de 1938, em conseqiiencia dos ferimentos recebidos num desastre de autom6vel ocorrido perto de Zitacuaro, na estrada que liga Morelia a Capital. Anfbal Ponce fez seus estudos elementares na cidade de Dolores e os secundarios no Colegio Nacional Central da capital argentina, ingressando em seguida na Faculdade de Medicina, que abandonou no 3° ano, sem completar o curso. Sua carreira de escritor, primeiramente como ensafsta e depois como fil6sofo, historiador e cientista, comec,:ou muito cedo, em 1917, na revista Nosotros, dirigida por Alfredo Bianchi. Em 1920, Ponce conhece Ingenieros, com quem conviveu estreitamente nos cinco anos seguintes e que o influenciou profundamente, moldando a mentalidade liberal, positivista e pre-socialista do jovem Anfbal. Com a morte de Ingenieros, Ponce continua sozinho o seu amadurecimento intelectual, encaminhando-se pouco a pouco para o materialismo dialetico, que acaba abrac,:ando definitivamente por volta de 1930, depois de uma estada na Europa, principalmente em Paris. De volta a patria, inicia Ponce uma militancia socialista ativa entre operarios e estudantes, especialmente entre estes ultimos, pronunciando conferencias, ministrando cursos e escrevendo artigos. Em 1930, funda com outros intelectuais portenhos o Colegio Livre de Estudos Superiores, onde ministrou, em 1934, urn curso de Hist6ria da Educac,:ao que se converteria, 7 Hoje, decorridos quase 20 anos desde o seu lanc;arnento original, ja ern "plena abertura", a traduc;ao brasileira de Educaci6n y Lucha de Clases esta sendo relanc;ada, praticarnente sern rnodificac;oes. Apenas as alterac;oes ortograficas necessarias e a atualizac;ao da nota (do Tradutor) n° 7 da pagina 156, segundo os dados do Censo de 1970, publicados no Anuario Estatfstico do Brasil, 1978. Essas inforrnac;oes atualizadas ( os dados do Censo de 1980 ainda nao forarn publicados) sao as seguintes: 1. Pessoas de 10 anos e mais que sabem fer e escrever: 44.848.108 (68%), das quais 22.889.036 sao hornens (51%) e 21.959.072, rnulheres (49%); 2. Pessoas de 10 anos e mais que niio sabem fer e escrever: 21.098.428 (32%), das quais 9.657.476 sao homens (46%) e 11.440.952, rnulheres (54%); 3. Pessoas de 10 anos e mais que tern curso primario (de 4 anos) completo, inclusive cursos supletivos: 8.796.754; 4. Pessoas que possuem curso media completo, inclusive cursos supletivos ( r e 2° graus): 4.789.776; 5. Pessoas que possuem curso superior completo: 593.009. Jose Severo de Camargo Pereira Sao Paulo, fevereiro de 1981 tres anos mais tarde, no presente livro. Em 1933, preside em Montevideu o Congresso Latino-Americano Contra a Guerra lmperialista. Em 1936, funda a revista Dialetica. Essa atividade politica acaba despertando a ira das autoridades ditatoriais argentinas (em 6/9/30, o Presidente Yrigoyen havia sido deposto pelo General Uriburu) e Ponce e demitido pelo General-Presidente Agostini Justo da sua catedra de Psicologia do lnstituto Professoral Secundario e do seu cargo no Laborat6rio do Hospicio de las Mercedes, sob o pretexto de que !he faltava urn diploma de curso superior para exercer essas fun~6es. Impedido de continuar trabalhando em sua patria, Ponce emigra entao para o Mexico, no infcio de I 937, onde continua sua carreira de professor e de escritor ate sua morte, no ano seguinte. Suas obras sao numerosas, com destaque especial para as seguintes publica~6es: Problemas de Psicologia lnfantil (1931), Dos Hombres: Marx y Fourier (1933), Ambicidn y Angustia de los Adolescentes (1936), Educacidn y Lucha de C/ases (1937), Humanismo Burgues y Humanismo Proletario (1938) e £1 Viento en el Mundo (1939), titulos nem sempre respeitados nas diversas edi~oes que conheceram. 8 PREFACIO DA TRADU<;AO BRASILEIRA Poi corn inegavel prazer que indicarnos este livro de Anfbal Ponce para integrar esta COLEyAO DE ESTUDOS SOCIAlS E FILOSOFICOS, e que nos encarregarnos da sua traduc;ao. Nao nos rnoveu, ao faze-lo, outro rnotivo que nao o de alargar os horizontes bibliograficos do leitor brasileiro ern geral, e dos alunos das nossas escolas norrnais, institutos de educac;ao e faculdades de filosofia ern particular. No campo da Hist6ria da Educac;ao, a bibliografia acessfvel ao leitor brasileiro e extrernarnente pobre. N6s nos lernbrarnos rnuito bern de que quando iniciarnos o nosso curso de escola normal - e bern verdade que nurna cidade do interior do estado, mas nurna cidade relativarnente grande, Piracicaba -, s6 tfnharnos a nossa disposic;ao dois livros nesse terreno: urn antigo e ja bastante surradocompendia frances, escrito por Gabriel Cornpayre, que lfarnos na biblioteca da escola, e as No~oes de Hist6ria da Educa~iio, de Afranio Peixoto, hoje, ao que sabernos, esgotadas, mas que, na epoca, conseguirnos cornprar, nurna bela encadernac;ao de percalina verrnelha, ern urna das livrarias da cidade. Ja quase no firn do curso, apareceu nas livrarias da rninha terra, que naquela ocasiao erarn quatro, e eu acho que ainda sao, outro livro de Hist6ria da Educac;ao, que foi urn sucesso, apesar de ser urna simples brochura, sem capa de percalina verrnelha e sern tftulo ern letras douradas: o de Paul Monroe, nao o grande, ern cinco volumes, ern ingles, que isso seria exigir dernasiado de livreiros do interior, mas o pequeno, a traduc;ao publicada pela Cornpanhia Editora Nacional na sua colec;ao intitulada Atualidades Pedag6gicas. E esta situac;ao de verdadeira penuria bibliografica nao rnudou rnuito no decenio seguinte: os rnesrnos dois livros rnencionados, rnais tres novas publicac;oes: urna de L. Luzuriaga, outra de T. M. Santos, arnbas tarnbern da Nacional, 9 e urn compendia publicado pela Saraiva. Mais urn decenio e, novamente, apenas mais dois livros vieram enriquecer o mercado brasileiro, ambos da Editora Nacional, urn de Rene Hubert e outro do ja citado Lorenzo Luzuriaga, mas este ultimo tratando somente de urn aspecto do problema: a hist6ria da educac;ao publica. Em rela<;:ao aos livros estrangeiros, a situa<;:ao nao era muito melhor: no interior, nada, mas nas livrarias das grandes cidades existiam a venda alguns poucos exemplares da primeira edi<;:ao castelhana da presente obra, e uns tantos mais do bern documentado e bern escrito livro de H. I. Marrou (Histoire de !'Education dans l'Antiquite), e nada mais. 0 trabalho de Marrou e urn born livro de Hist6ria da Educa<;:ao, nao ha como negar, mas o seu alto pre<;:o coloca-o fora do alcance do bolso do publico estudantil em geral, ao mesmo tempo que as suas massudas 600 paginas desencorajam qualquer leitor que nao esteja decididamente interessado em Hist6ria da Educa<;:ao, e isso dando de barato que o frances seja urn idioma facilmente lido e compreendido pela maioria dos nossos estudantes de pedagogia. Alem disso, esse livro de H. I. Marrou aborda apenas urn campo relativamente restrito dentro da Hist6ria da Educa<;:ao, mais restrito ainda do que o seu tftulo sugere, porque ele, na realidade, praticamente s6 trata da educa<;:ao na Grecia e no Imperio Romano. Nessas condi<;:oes, nao temos duvidas em afirmar que o presente livro de Anfbal Ponce vern contribuir bastante para aumentar a bibliografia acessfvel aos que se interessam pelos problemas hist6rico-educacionais em nossa terra. Mas o presente trabalho nao foi indicado por n6s a Editora Fulgor apenas porque sao poucas as obras de Hist6ria da Educa<;:ao existentes no mercado brasileiro. A nosso ver, o trabalho de Anfbal Ponce apresenta, sobre os mencionados, algumas vantagens. Em primeiro Iugar, ele nao e uma simples exposi<;:ao das pniticas pedag6gicas, dos sistemas escolares e das correntes filos6fico-educacionais que encontramos nos diferentes povos e nas diversas epocas da hist6ria da humanidade. 0 autor considera a educa<;:ao como urn fenomeno social de superestrutura e, portanto, defende, ao Iongo de toda a obra, a ideia de que bs fatos educacionais s6 podem ser convenientemente entendidos quando expostos conjuntamente com uma analise s6cio-econ6mica das sociedades em que tern Iugar. Assim, juntamente com a apresenta<;:ao dos fatos educacionais e com a exposi<;:ao das concep<;:5es filos6fico-educacionais, o Autor procura sempre, e as vezes com rara felicidade, fazer uma analise da subestrutura economica da sociedade correspondente. Em segundo Iugar, o presente livro nao e uma exposi<;:ao desconchavada da Hist6ria da Educa<;:ao. De fato, lendo-se o trabalho de Anfbal Ponce, 10 percebe-se claramente a existencia de uma ideia central ao Iongo de toda a obra. 0 Autor defende uma ideia, defende uma tese; ele mostra, atravcs dos sucessivos capitulos, isto e, atraves dos diversos povos e das diferentes epocas, que a principal caracterfstica da educa<;:ao, desde 0 instante do aparecimento da sociedade dividida em classes - vale dizer, desde o infcio dos tempos propriamente hist6ricos -, pode ser encontrada numa progressiva "populariza<;:ao" da cultura. Propriedade praticamente exclusiva das classes dominantes, a educa<;:ao era, inicialmente, negada quase que totalmente as classes menos favorecidas. Mas as transforma<;:oes economicas por que passaram inevitavelmente todas as sociedades foram provocando modifica<;:oes sensfveis no status quo, foram fazendo com que massas cada vez maiores de indivfduos tivessem acesso a uma educa<;:ao conveniente. Todavia, e claro que essas transforma<;:oes mencionadas nao ocorreram sempre suavemente. Muito ao contrario. As mais das vezes, as classes desfavorecidas tiveram de lutar, e freqtientemente de modo violento - Revolu<;:ao Francesa e Revolu<;:ao Sovietica, os dois exemplos principais, a emancipa<;:ao da burguesia e a liberta<;:ao do proletariado - pelos seus direitos. Nessas condi<;:oes, no fim de contas, o estudo da Hist6ria da Educa<;:ao e inseparavel do estudo dessas lutas mantidas pelas classes desfavorecidas contra as classes dominantes, no sentido de conquistarem o direito sagrado de se educarem. Alias, essa ideia de defender uma tese ao Iongo de urn trabalho de Hist6ria da Educa<;:ao nao e propria unica e exclusivamente do livro de Anfbal Ponce. E o que tambem acontece, por exemplo, com o de Marrou, citado logo no infcio deste Prefacio. De fato, esse autor, logo na Introdu<;:ao do seu livro, esbo<;:a o plano geral do seu trabalho, tece considera<;:oes a respeito do fenomeno educativo em geral e tenta tra<;:ar a sua "curva evolutiva" a partir do seculo X a.C., afirmando que, a partir dessa data, a hist6ria da educa<;:ao reflete a passagem progressiva de uma cultura de nobres guerreiros, para uma cultura de escribas. Nao ha duvida de que a afirma<;:ao de Marrou e verdadeira, s6 que ele percebeu apenas uma faceta do problema e, na realidade, apenas a faceta exterior. Por detras da mudan<;:a apontada, existe toda uma realidade s6cio-econ6mica, toda uma !uta de interesses, toda uma !uta de classes, que nao foi percebida pelo autor frances. Outra caracterfstica importante do livro de Anfbal Ponce reside no Capftulo II da sua obra, em que o Autor trata do problema da educa<;:ao grega. Nao que haja, af, grandes novidades, na apresenta<;:ao ou na interpreta<;:ao dos fatos. Quase tudo que se encontra nesse capitulo pode tambem ser encontrado em Morgan, por exemplo, ou nos autores da chamada escola do materialismo hist6rico, em Engels, por exemplo. Mas isso nao quer dizer que a interpreta<;:ao apresentada da sociedade grega e II da sua educac;ao seja bastante conhecida. Ao contrario, e bastante comum, mesmo nos chamados bons livros de Historia da Educac;ao, ou de Historia da Civilizac;ao, encontrarmos interpretac;oes "romanticas", inteiramente di- vorciadas da realidade. De fato, a epoca cantada por Romero - cerca de 1500 a.C. tern sido freqiientemente descrita como uma verdadeira "idade media", em virtude de possfveis analogias formais existentes entre a estrutura polfti- co-economico-social da sociedade de entao, e a da Idade Media propriamente dita. Nessa linha de ideias, reconhece-se, comumente, que, nos primordios da sociedade grega, existia urn rei, que vivia cercado por uma aristocracia de guerreiros, uma verdadeira corte, no sentido moderno do termo. Essa comunidade de guerreiros teria durado ate o momento em que o rei, em paga dos servic;os recebidos, distribuiu, aos seus companheiros de armas, verdadeiros "feudos" que, pouco a pouco, foram-se tornando hereditarios. A cultura grega, nas suas origens, tern sido apresentada, por muitos historiadores, como urn privilegio dessa classe de guerreiros, cujos membros aparecem comoverdadeiros cavaleiros, no sentido medieval do termo. Eles sao apresentados como se entretendo com jogos de salao, com divertimentos musicais, com torneios de cac;a, com batalhas, como apreciadores da beleza, como respeitadores da mulher e como amantes das coisas do espfrito. Essa imagem da vida grega e inteiramente falsa. Na epoca heroica, cantada por Romero, a Grecia ja havia sido conquistada pelos helenos que, descendo das regioes montanhosas do Norte, subjugaram e expulsaram os habitantes da Helade. Nessa ocasiao, as tribos gregas ja se apresentavam unidas e habitavam cidades nao muito numerosas nem muito populosas, onde as gens e as fratrias viviam mais ou menos independentemente umas das outras. Ravia ja urn comec;o de aristocracia, baseada na incipiente desigualdade de fortuna ( desigualdade essa que, alias, viria a se acentuar demasiadamente com o correr do tempo), e a escravatura ja era uma pratica estabelecida, mas os antigos costumes comunistas tribais primitivos ainda nao estavam inteiramente esquecidos, nem havia desaparecido total- mente a antiga organizac;ao social gentflica. 0 proprio Romero nos da disso testemunho, ao por na boca de Nestor estas palavras, dirigidas a Agamenon, por ocasiao da Guerra de Troia: "... disponha as tropas por fratrias e tribos, de modo que a tribo auxilie a tribo, e a fratria auxilie a fratria ... " (Ilfada, II, 362.) Por essa ocasiao, os gregos, do mesmo modo que outros povos do estagio superior da Barbarie, estavam organizados em gens, fratrias e tribos que, mais tarde, viriam a se unir para formar cidades-nac;oes, como a ateniense e a espartana, por exemplo. A autoridade polftico-administrativa estava nas maos de urn Conselho (Bule, em grego), prototipo dos senados modernos, formado pelos chefes de gens. Esse Conselho tomava resoluc;oes a respeito de todos os assuntos, mas tinha a 12 sua liberdade de ac;ao limitada por uma Assembleia Popular (Agora, em grego) naqueles problemas de magna importancia. Essa Assembleia era constitufda por todos os gentios e, nela, todos, sem excec;ao, tinham o direito de se fazerem ouvir. Ravia, ainda, urn chefe, impropriamente considerado como urn rei por muitos autores, o Basileus, que era eleito livremente pelos gentios. Esse chefe tinha func;oes sacerdotais, militares e, em alguns casos, tambem judiciais. 0 Basileus nao era, portanto, urn rei, nem na acepc;ao moderna da palavra, nem no sentido medieval do termo. No proprio Romero, nunca urn Basileus aparece desempenhando o papel de rei. Agamenon, por exemplo, que era urn Basileus, aparece na Ilfada apenas como o comandante supremo de urn exercito confederado, em operac;oes de guerra. E, mesmo como comandante militar supremo, o seu poder nao era discricionario, porque as suas ac;oes eram limitadas por uma Agora democratica. Aristoteles tambem testemunha no mesmo sentido de que o Basileus nao pode ser considerado urn rei. De fato, ao se referir a epoca heroica, afirma que a Basileia (Governo do Basileus, expressao essa que, muitas vezes, tern sido impropriamente traduzida pela palavra reino) era urn governo sobre homens livres, e que o Basileus era, ao mesmo tempo, urn chefe militar, urn juiz e urn sacerdote. Confira-se, nesse sentido, Aristoteles: Polftica, capftulos IX e X. Urn dos principais responsaveis por essa falsa interpretac;ao da estrutura polftico-social da sociedade grega da epoca heroica foi urn escritor ingles do seculo passado, Gladstone, que, no seu livro Juventus Mundi, apresentou os chefes gregos como reis e prfncipes adornados por qualidades "cavalheirescas". Desde essa epoca, como faz ressaltar Haldane (La Filosoj{a Marxista y las Ciencias), essas inverdades historicas tern sido constantemente repetidas e difundidas. A respeito desse assunto, as palavras de Morgan nao deixam margem a qualquer duvida: "A Monarquia e incompatfvel com as instituic;oes gentflicas pelo fato de estas serem essencialmente democraticas. Cada gen, fratria ou tribo era urn corpo autonomo, completamente organizado; e onde varias tribos se fundiram em uma nac;ao, o governo resultante estava organizado em harmonia com os princfpios que animavam as suas partes constituintes." Confira-se Morgan: La Sociedad Primitiva, pagina 224. Consulte-se, tambem, no mesmo sentido, o excelente e poucas vezes citado livro de Fustel de Coulanges: A Cidade Antiga. Nao devemos, portanto, ter duvidas de que, nos seus primordios, as instituic;oes polftico-sociais dos gregos eram essencialmente democraticas, pela razao mesma de serem gentflicas. E so a partir do seculo VII a.C., mais ou menos, que essas instituic;oes comec;aram a sofrer transformac;oes de vulto, como uma conseqiiencia das 13 mudanc;:as experimentadas pela infra-estrutura econ6mica da sociedade grega de entao. Ate essa epoca, as tribos gregas viveram baseadas numa economia quase que inteiramente agricola. Ravia ainda alguma atividade pastoril e tambem urn pouco de industria domestica. Nao se cogitava de trocas de caniter propriamente comercial; nas obras de Romero, sao poucos os comerciantes que aparecem, e, assim mesmo, estrangeiros, fenfcios. Os gentios eram os donos da terra, e a trabalhavam por suas pr6prias maos, auxiliados por seus familiares e tambem por escravos. Mas e conveniente esclarecer que, ate essa epoca, esses escravos eram os descendentes dos antigos habitantes da regiao, ou eram prisioneiros de guerra, a quem se perdoara a vida em troca de trabalho; ainda nao se cogitava da escravizac;:ao dos companheiros tribais, mas esta nova escravidao nao deveria tardar a aparecer, com o advento do capitalismo comercial, que ja se fazia anunciar. Mas, a partir do seculo VII a.C., a economia comercial, com o maior rendimento do trabalho humano, produzido pelas novas tecnicas descobertas, comec;:ou a sobrepujar nitidamente a economia agricola gentflica que predominara ate entao, provocando modificac;:oes de vulto na estrutura social, as mais importantes das quais foram a acentuac;:ao das desigualdades de fortuna, que Jevaram ao aparecimento das classes sociais, o aparecimento da escravidao dos companheiros tribais, o desaparecimento das instituic;:oes gentflicas democraticas, a busca e a conquista de novos mercados etc. Essas modificac;:oes na estrutura social, como nao poderia deixar de ser, tiveram importantes reflexos na educac;:ao. Mas nao e necessaria continuar porque, agora, nao farlamos mais do que repetir a materia exposta, e com muita propriedade, no Capitulo II. Uma observac;:ao, ainda, em todo caso. 0 Autor passa muito de !eve sobre urn dos importantes aspectos da educac;:ao grega: o problema da homossexualidade e da pederastia, que impregnaram toda a vida grega e, em particular, a educac;:ao. Nao e este o momento adequado para tecermos considerac;:oes a respeito do assunto, porque este Prefacio ja vai Iongo demais, mas nao nos podemos furtar a obrigac;:ao de chamar a atenc;:ao do leitor para a importancia do problema - basta lembrar, por exemplo, o "batalhao sagrado de Tebas", formado por pares de jovens amantes - indicando, por exemplo, o citado livro de Marrou, onde ha urn born estudo do problema, e onde o Jeitor interessado tambem encontrara indicac;:oes bibliograficas especializadas. 0 presente livro de Anfbal Ponce apresenta ainda outra vantagem que, eventualmente, para certo tipo de leitor, poderia ser uma desvantagem. E urn livro de sfntese. Sao quase duzentas paginas para tratar de toda a hist6ria da educac;:ao, desde as sociedades primitivas, ate as tendencias educacionais contemporaneas. "Nessas condic;:oes, e evidente que o Autor tern de se Jimitar a discutir OS problemas tratados em rapidas pinceJadas, que apanhem, apenas, as linhas gerais de desenvolvimento, deixando 14 praticamente de lado qualquer analise mais detalhada da situac;:ao. Trata-se, portanto, de uma obra de sfntese e isso, como dissemos, pode ser urn bern, ou pode ser urn mal, dependendo do tipo de leitor considerado.E urn bern porque se trata de urn tipo de livro de leitura mais amena, menos cansativa e mais interessante, capaz de atingir urn publico bastante numeroso, composto tanto pelo leitor nao iniciado nos problemas de hist6ria da educac;:ao, que deseja, apenas, uma visao geral do assunto, quanto pelo leitor especialista na materia, que dcseja uma obra de coroamento de estudos, que possa sintetizar, em poucas linhas, as muitas informac;:oes, talvez urn pouco desconexas, que tern a respeito da educac;:ao das diversas sociedades e das diferentes epocas. E isso porque esta obra de Anfbal Ponce, apesar de ser de sfntese, nao e superficial. Por outro !ado, o presente trabalho nao se destina aqueles que pretendem realizar urn estudo minucioso e sistematico dos problemas hist6rico-educacionais, porque esses nao irao encontrar, nesta obra, os detalhes informativos por que anseiam. Foi pelas raz6es expostas acima que indicamos, com prazer, o presente livro de Anfbal Ponce, para integrar esta COLE<;AO DE ESTUDOS SOCIAlS E FILOSOFICOS, da Editora Fulgor. Sao Paulo, marc;:o de 1963 JOSE SEVERO DE CAMARGO PEREIRA 15 ! / CAPITULO VII A NOV A EDUCAC::AO Primeira Parte As aspira~6es da burguesia no terreno pedag6gico, tao pomposamente enunciadas por Rousseau e tao pobremente realizadas por Pestalozzi e seus discfpulos, pareceram, por volta de 1880, quase uma realidade. 0 advento da escola laica, conseguido por essa epoca depois de violentos debates, punha, de certo modo, urn ponto final a batalha empreendida alguns seculos atnis com a inten~ao confessada de arrebatar a Igreja o controle do ensino. Mas, na realidade, o advento da escola laica nao foi uma vit6ria, foi apenas uma transa~ao. Depois da Revolu~ao Francesa, a restaura~ao momirquica foi acompanhada em todas as partes por uma feroz rea~ao nas escolas. Uma rea~ao tao feroz que provocou por sua vez, da parte da burguesia liberal, urn 6dio a Igreja, perfeitamente companivel ao dos primeiros dias da Revolu~ao. Logo no dia seguinte ao da subida de Luis Felipe ao trono- prot6tipo do rei burgues -, uma multidao de comerciantes e openirios irrompeu a sede da arquidiocese de Paris, quebrando janelas, destruindo m6veis e lan~ando ao Sena vestimentas eclesiasticas, calices e imagens. 0 diario oficial - Le Moniteur - se Iimitou a publicar poucas linhas a respeito dessa justa indigna~ao do povo. 1 I. Dubreton Casimir Perier, pags. 70-77. 153 I I Nao se passaram muitos anos quando algumas vozes, que reclamavam o cumprimento das promessas com que a burguesia conquistou, em 1830, () apoio do proletariado, vieram demonstrar as classes dirigentes que talvez fosse oportuno volver os olhos ao Padre-nosso da infancia. A her6ica subleva<_;:ao dos tecel6es de Liao, em primeiro Iugar, e do proletariado de Paris, depois, fez com que a burguesia se aproximasse da lgreja, e como esta nao empresta gratuitamente a sua colabora<_;:ao para nada, o resultado dessa aproxima<_;:ao foi uma considenivel invasao do clero nas atribui<_;:6es estatais, tao consideravel que, no terreno pedag6gico, e impossfvel imaginar uma submissao mais completa da escola aos interesses da Igreja, do que a que ocorreu na Fran<_;:a, em meados do seculo XIX, como uma decorrencia da chamada Lei Falloux. As tentativas que a burguesia liberal empreendeu desde essa epoca, no sentido de arrebatar de novo a Igreja a conquistada hegemonia no terreno pedag6gico, ressentiram-se da existencia de graves contradi<_;:6es. A burguesia era inimiga da lgreja, mas, ao mesmo tempo, necessitava dela. lnimiga, na medida em que pretendia realizar os seus neg6cios sem a interferencia desse "s6cio" de ma-fe, que sempre estava disposto a apro- priar-se dos melhores bocados; aliada, na medida em que via na Igreja, e com razao, urn poderoso instrumento para inculcar nas massas operarias a sagrada virtude de se deixar tosquiar sem protestos. A escola laica que resultou desse conflito estava, portanto, muito Ionge de ser revolucionaria: ela pretendia tao-somente regulamentar o ensino religioso ministrado nas escolas, de modo a evitar conflitos no seio de uma institui<_;:ao que era freqlientada por burgueses pertencentes a varios credos. E tanto isso e verdade que todas as vezes que os paladinos dessa lei se viram obrigados a expor francamente as suas ideias, estas se mostraram bern mais retr6gradas do que as expostas urn seculo atras pela ala esquerda do Terceiro Estado. Em vez de combater· a lgreja, como o fazia Voltaire, em vez de afirmar que urn povo educado por sacerdotes nao pode ser urn povo livre, como o fez Condorcet, os que na ocasiao defendiam o laicismo se limitaram, no fundo, a proclamar o seu maximo respeito pelo Jato religioso. "Nao nos sentimos autorizados pelos nossos eleitores a combater nenhuma cren<_;:a", declarava Jules Ferry. E, no Congresso Pedag6gico de 1881, esse mesmo parlamentar aconselhava aos professores "que se guardassem dos fanatismos, tanto do religioso quanto do nao-religioso, que sao igualmente maus".2 Mais explfcito ainda, Ernest Lavisse, no seu famoso Discurso as Crian(:aS, dizia que OS enciclopedistas procederam muito mal "referindo-se impensadamente ao espfrito religioso, 2. Citado por Buisson na pag. 12 da sua Enseiianza Laica. 154 opw ,. 11111 podcr legftimo e forte". 3 "Quando observamos, estrita neutralidade illlo·so·cnla ·- c 6 necessaria que nao se !he oponha o menor impedimenta, IIIIIJ'IIl"lll ll'm o direito de queixar-se. Os escolares tern as suas horas leigas ,. ,,., .~uas horas religiosas. Nao se introduziu na sua existencia nenhuma 1""11111 ku;:·1o". "A escola ntio esta nunca demasiado longe da Igreja". 4 l'\llll"ssivas palavras essas nos labios de urn campeao do laicismo; tao 1 l.u a.s no seu aspecto politico, que pronuncia-las equivale a dizer: a IHII)',IIl'sia e a Igreja se estorvam mutuamente muitas vezes, mas como lt'lll lllll inimigo comum pela frente seria insensato que elas se separassem d1"111asiado uma da outra.5 Cinqlienta anos ja transcorreram desde essa ocasiao. De acordo com as dcclara<_;:6es expressas dos seus pr6prios te6ricos, a burguesia nao foi capaz de dar as massas durante todo esse tempo nem mesmo aquele mrnimo de ensino que convinha aos seus pr6prios interesses. Se tomarmos como fndice da eficacia da escola primaria a porcentagem de alunos que conseguiram termimi-la, somos obrigados a concluir que s<l urn numero muito reduzido de crian<_;:as esta em condi<_;:oes de cursa-Ia de ponta a ponta: 45% na Prussia, 41% na Austria, 25% na Bclgica. Na Argentina, a estatfstica escolar de 1916 demonstrou que, dos alunos que tenninaram o quarto ano primario, s6 20% terminaram os seus estudos no Colcgio Nacional e que, portanto, 80% das crian<_;:as argentinas nao recebem instru<,:ao suficiente. De cada 100 alunos do primeiro ano, 55 cursam tambcm o segundo, 31, o terceiro, 19, o quarto, 10, o quinto, e, 6, o sexto. Resulta daf uma perda anual de respectivamente 45, 69, 81, 90 e 94%, que se mantem constante. Esses numeros sao tao claros que urn ex-mtmstro argentino da instru~ao publica, Carlos Saavedra Lamas, declarava h:i nao muito tempo que o nosso sistema atual de educa<_;:ao era inepto, "porque nao atendia as necessidades de toda a popula<_;:ao segundo idade, situa~;ao escolar e tendencias".6 Seculo e meio ap6s a Revolu<_;:ao Francesa, a burguesia reconheceu, portanto, e pelas palavras dos seus pr6prios ministros, que as suas escolas nao asseguram as massas o mfnimo necessaria de educa~;ao de que necessitam. 3. Lavisse: Discurso a los Niiios, pag. 6. 4. Lavisse, ob. cit., pag. 8. 5. Na Argentina, a Lei no 1420 de Educa9iio Comum exclui dos programas o ensino da religiao, mas niio o profbe. Ao contnirio, no programa de instru9iio moral destinado ao quarto ano fala-se da "reverencia a Deus e da obediencia as suas leis". 6. Schallzman: Humanizaci!Jn de Ia Pedagogfa, pag. 96. 155 E verdade que os espfritos mais reaciomirios se atreverama negar essa realidade: nao e verdade que a escola burguesa nao possa dar instru~ao a todos, ela apenas elimina os realmente incapazes de receber essa instru~ao. Essa e a opiniao que se percebe em muitos pedagogos contemporiineos, mesmo nos mais lucidos, como acontece, por exemplo, com o autor do Plano lena. De fato, na sua opiniao, os alunos que abandonam a escola - que na Belgica sao 75% e, na Argentina, 80% - "o fazem porque a escola os expulsa merce de repetidas reprovar;iies".1 0 absurdo dessa afirma~ao salta aos olhos de tal modo que ao mesmo Saavedra Lamas, na Argentina, lhe parece que nao e razoavel supor que "os 80% de crian~as e jovens que fracassam na sua tentativa de escapar a sua condifiio prolet6.ria sejam biologicamente ineptos". Note, o leitor, a confissao expressiva do Ministro, ao supor que os que terminam o ciclo primario "estejam pretendendo" escapar "a sua condifiiO de prolet6.rios". E nao diz mal o Sr. Ministro. A escola prim6.ria est6. orientada de tal modo que afasta do proletariado as poucos filhos de oper6.rios que a freqiientam. Mediante urn ensino habilmente dirigido e continuado, ela os leva a compreender a sua "superioridade" em rela~ao aos seus pais e faz com que se esque~am ou se envergonhem da sua 7. Os dados correspondentes ao Brasil, obtidos no Anudrio Estat{stico do Brasil, 1957, publica~ao do IBGE e do Conselho Nacional de Estatfstica, sao os seguintes: I - Dados fornecidos pelo Recenseamento Cera[ de 1950: Pessoas de 10 anos e mais, que sabem ler e escrever, 17.675.504; Pessoas de 10 anos e mais, que nao sabem ler e escrever, 18.882.486 (Atualmente, primeiro semestre de 1961, a situa~ao ja deve ter evolufdo para melhor, mas a percentagem de analfabetismo ainda deve ser da ordem de 50%. Aguardemos os •'dados do R. G. do ano passado para vermos.); Pessoas de 10 anos e mais que possuem curso primario completo, 2.701.836 homens e 2.683.859 mulheres; Pessoas de 10 anos e mais, que possuem curso medio completo, 495.910 homens e 491.238 mulheres; Pessoas de 10 anos e mais, que possuem o curso superior completo, 114.233 homens e 13.837 mulheres. (Notar que, percentualmente falando, existe uma · notavel equivalencia entre os sexos, mas que essa equivatencia desaparece totalmente quando consideramos o curso superior. 0 numero de mulheres com instruc;;ao superior completa nao chegava, em 1950, a atingir 10% do numero de homens nessas condi~oes. Isso caracteriza bern o tipo de organizac;;ao paternalista da sociedade brasileira, que, felizmente, esta em processo de mudanc;;a. Os dados relativos ao R. G. de 1960 ainda nao sao conhecidos, mas acreditamos que as coisas tenham mudado urn pouco nesta ultima decada.) II - Dados fornecidos pelas estat{sticas escolares, referentes ii matrfcula no .fim do primeiro mes letivo de 1957; I' serie, 2.885.252; 2' serie, 1.193.686; 3' serie, 811.081; 4' serie, 483.104; 5" serie (que s6 existe em algumas escolas), 33.148. Como se ve, trata-se nao de uma distribuic;;ao piramidal, mas de uma distribuic;;ao verdadeiramente afunilada, o que indica claramente o cardter seletivo, para usar a expressao de Anfsio Teixeira (n° 67 da Revista Brasileira de Estudos Pedagdgicos), da escola primaria brasileira: cerca da sexta parte apenas dos que ingressam na escola elementar conseguem completa-la. (Nota do Tradutor.) 156 origem modesta. Formar uma aristocracia oper6.ria, arrivista e dedicada e uma das inten~6es mais claras do ensino popular dentro da burguesia. Creio inutil acrescentar, depois do que dissemos anteriormente a respeito das atuais condi~6es de trabalho infantil, que supor que a escola repila uma enorme parte da popula~ao infantil - e nao pelo fato de serem indivfduos incapazes biologicamente, porque esta afirma~ao e inad- missfvel - por nao conseguir rete-la mediante urn adequado plano edu- cacional constitui uma afirma~ao perfidamente calculada. Em vez ·de confessar que as crian~as que abandonaram a escola primaria sao as mesmas crian~as que a burguesia obriga desde cedo a trabalhar para ajudar a manuten~ao de urn lar que essa mesma burguesia destruiu previamente, prefere-se jogar a culpa sobre os "desgranados escolares", para usar a expressao com que se comer;a a designa-los, sobre a insuficiencia dos programas, sobre a dificuldade do ensino, sobre a rigidez dos horarios. "Alguns dias atras - conta-nos Fernandez de los Rios - ao regressar de Granada, eu me detive num pequeno povoado de Serra Morena para reabastecer-me de gasolina. Passamos pela frente de algumas escolinhas, que visitei tao logo pude, nessa mesma ocasiao. Eram dois os pr6fessores: urn deles reconheceu-me, mas o outro permaneceu alheio a minha presen~a. Tratava-se de urn rapaz, em que reconheci, a primeira vista, voca~ao e desejo de ensinar. Observei os cadernos dos alunos, e dava gosto folhea-los. Tudo aquilo me agradava, mas eu !he observei que os alunos eram pouco numerosos. Efetivamente, respondeu-me ele, quase todos estao .trabalhando com os seus pais, na colheita da azeitona. Eis af uma verdade: na maioria dos casos, as crianr;as contribuem com o seu trabalho para o orr;amento familiar. E isso faz com que elas se afastem durante muitos meses da escola, e quando esse afastamento se da logo no infcio da vida escolar, ela esquece tudo o que aprendeu".8 Esta e a realidade crua que a burguesia dissimula, da mesma forma que disfar~a a enorme subalimentar;ao que existe entre as crianr;as que freqiientam a escola.9 Mas, a parte desta hipocrisia, a que o pensamento burgues nos acostumou bastante, e importante reconhecer, agora, que a burguesia nao 8. De los Rios: "Orientaci6n Social de Ia Educaci6n Moderna". 9. Uma pesquisa realizada em Paris revelou que havia 30% de escolares subnutridos entre os alunos das escolas do XI Distrito, 50% entre as do XIII Distrito e 60% em Belleville e Menilmontant. Ver uma descric;;ao exatfssima em Marcel Prenant: L'Ecole en Detresse, e em Peri: La Grande Pitie de /'Instruction Publique. Urn psic6logo frances, admirador de Maurras, faz notar que as crianc;;as operarias nao podem alcanc;;ar o seu completo desenvolvimento intelectual. Cf. Pichon: Le Developpement Psychique, pag. 154. 157 ~~ 1 I , I se teria apressado a culpar os programas e os metodos escolares por esse fato, se ela propria ja nao tivesse, ha tempo, reconhecido a necessidade de reforma-los. Essa necessidade se tornou mais visfvel nos ultimos anos e engendrou entre os tecnicos em pedagogia uma proveitosa frutificac,:ao de "sistemas" e de "pianos". E, dentro da nova educaf;ao, a corrente que poderiamos chamar "metodol6gica". Sem se preocupar muito com problemas doutrinarios e filos6ficos, ela encara a questao de urn ponto de vista tecnico: mediante que inovac,:oes didaticas obterfamos para o ensino primario urn rendimento maximo? Mas, ao !ado dessa corrente silenciosa e calma, surgiu, desde os fins do seculo passado, outra corrente turbulenta, que lanc,:a mensagens e "decalogos", mas que se acentuou ha muito pouco tempo. Sem desconhecer a urgencia de uma reforma didatica, isto e, da tecnica de ensino, essa corrente afirma que o nucleo do problema nao esta nisso e sim no aspecto cultural. Educar nao seria para ela reformar este metodo ou corrigir aquele horario, mas, sim, "mergulhar urn a alma no seio da cultura". E a corrente que poderiamos chamar "doutrindria", par oposif;ao a que denominamos metodol6gica. Tendo uma orientac,:ao muito mais filos6fica do que pratica, essa corrente e, naturalmente, a mais inflada, presunc,:osa e solene, das duas mencionadas. Olha a outra com desdem, gosta de usar uma linguagem rfspida, empregando urn tom cada vez mais doutoral. Os espfritos simples a contemplam pasmados, e ainda que alguns suspeitem, usando esse born sentido que e a defesa das almas honradas, que ha em toda ela - como diria Moliere - trap de brouillamini et trap de tintamarre, nem por isso deixam de escuta-la com o respeito que o pedantismo esoterico, reservadoe distante, inspira. Para dar urn exemplo que saliente as caracterfsticas diferenciais dessas duas correntes, imaginemos uma aula comum de Matematica. Para os "metodologistas", o cerne do problema residira na seguinte pergunta: De que modo deverei organizar ~ meu ensino, para que o aluno adquira noc,:oes claras, com urn mfnimo de esforc,:o? Para os "doutrinarios", as coisas seriam diferentes: no primeiro plano das suas preocupac,:oes ja nao estara o fato de a crianc,:a adquirir uma clara noc,:ao da Matematica, mas sim no fato de ela se aproximar do "ethos do temperamento matematico". Dizendo de outro modo, de urn modo, alias, grato aos "doutrinarios", e que, por vir deles, nao aclara muito o assunto: os metodologistas viveriam dentro do "saber de domfnio", ao pas so que os doutrinarios viveriam dentro do "saber de salvac,:ao" ... Que significam essas tendencias? Qual e o sentido social que as orienta e anima? E o que trataremos de esclarecer nas duas aulas que ainda nos sobram. Mas como nas anteriores fomos elaborando os materiais necessarios para resolver essas questoes, agora, s6 temos de recolhe-los e 158 de aplica-los. Consideramos, primeiro, os "metodologistas", pelo simples fato de serem eles os mais humildes. Nao e necessaria muito esforc,:o para reconhecer que a sua pos1c,:ao c uma conseqiiencia longfnqua das inovac,:oes tecnicas que constituem a base e a condic,:ao da prosperidade burguesa. Muito antes de as primeiras maquinas terem sido incorporadas a economia, como urn recurso poderoso para aumentar o rendimento do trabalho, a burguesia ja havia sentido, como uma necessidade imposta pela vida do comercio, a urgencia de metodizar o esforc,:o, de submete-lo a urn plano. Esse carater met6dico da burguesia - tao distinto dos meios de vida desordenados e violentos do senhor feudal - deu ao burgues dos primeiros tempos urn carater regular, preciso, parcimonioso. Os entraves que as corporac,:oes impunham ao trabalho, com a intenc,:ao de Iimitar a concorrencia, acentuavam essa tranqiiilidade sem sobressaltos que encontramos nos burgueses das primeiras gerac,:oes. Trabalhar alguns anos para reunir uma soma nao muito grande, e retirar-se depois, para desfrutar a sua renda tranqiiilamente, esse foi durante alguns seculos 0 ideal do burgues. Mas a introduc,:ao da manufatura, em primeiro Iugar, e da fabrica, logo depois, com uma produc,:ao cada vez mais intensa e acelerada, nao s6 repercutiu nos neg6cios da burguesia, como tambem nos metodos educativos. Vimos, em uma das nossas ultimas aulas, de que maneira Comenio procurou satisfazer essa exigencia de acordo com os recursos do seu tempo, no Capitulo XIX da sua Diddtica Magna (1657), que se denomina "Bases para Fundar a Rapidez do Ensino, com Economia de Tempo e de Fadiga". Urn seculo e meio mais tarde, Pestalozzi se propunha o mesmo objetivo, e, para demonstrar a superioridade do seu metodo sobre os tradicionais, ele proclamava com orgulho que, na sua escola, se aprendia em tres meses o que, em outras, requeria mais de urn ano. 10 Porem, tanto Comenio quanto Pestalozzi fundamentaram OS seus metodos num conhecimento empfrico e deficiente da natureza do material com que trabalhavam. Nao basta gostar muito de crianc,:as para compreender as suas necessidades, tao diversas das nossas, ou a sua organizac,:ao mental, de estrutura nao menos diferente. Mais do que Comenio, Pestalozzi viveu toda a sua vida em fntimo contato com os seus discfpulos, e ainda que este santo da Pedagogia distribufsse bons cascudos a torto e a direito 11 , 10. Guillaume: Pestalou.i: Estudio Biogrdfico, pag. 132. No mesmo sentido, pag. 112. II. Guillaume, ob. cit., pag. 125: "Ainda que Pestalozzi tenha proibido sempre aos seus colaboradores o emprego de castigos corporais, o certo e que ele os empregava pessoalmente em sua escola, distribuindo liberalmente cascudos it direita e it esquerda". Parece que este e urn costume muito dificil de ser abandonado, mesmo pelos mais ilustres pedagogos. Vittorino da Feltre, o maior pedagogo do Renascimento, o fundador da Casa Gioiosa, tambem distribuia bons bofet5es ... Cf. Monier: Le Quattrocento, tomo I, pag. 243. 159 I na• 1 podt:IHOS ncgar que ele teve ao seu alcance urn enorme material de ohsnv:H,:ao. Mas, a observa~ao cientffica, que parece na<\ exigir /mais do qul· o claro mirar, esta fatalmente impregnada, em cada morhentOhistorico, COlli as ideias dominanteS da epoca, a tal pontO que 0 observador - conscicntemente ou nao - interpreta o fenomeno no proprio momento em que o registra. Pestalozzi - da mesma forma que os que seguiram a sua trilha, desde Froebel e Herbart, ate Spencer - nao pOde se subtrair as concep~5es medinicas que dominavam a psicologia do seu tempo. A tecnica educativa que surgiu dessa psicologia, nao obstante as vantagens que apresentava em rela~ao a antiga, resultou muito abstrata, intelectual e formalista. Sob a sua influencia, o espfrito infantil foi obrigado a suportar a fadiga e a tortura de uma educa~ao que atribufa a inteligencia da crian~a mais imporHincia do que a sua espontaneidade. A crian~a era sobrecarregada com conhecimentos, sem se !he dar previamente, ou concomitantemente, a enzima de que necessitava para assimila-los. Pouco importa que esses conhecimentos ja nao fossem as "explana- ~5es", "conjun~5es" e "disjun~5es" escolasticas, que tanto fizeram rir a Vives; o modo de ensinar Historia, Geometria, Qufmica ou Gramatica continuava sendo tao analista e falso como o ensino meio cientffico e meio escolastico dos jesuftas. Esse atraso da tecnica escolar em relac;ao ao nfvel de desenvolvimento ja alcanc;ado pelas tecnicas fundamentais nao nos deve causar especie: seria ingenuidade pensar que as mudanc;as sofridas pelos processos de produc;ao provocam imediatamente mudan~as corres- pondentes nas tecnicas a eles vinculadas. No caso particular do ensino, OS seUS metodos dependem em grande parte do desenvolvimento previo da Psicologia da Crianc;a. Ora, no ultimo terc;o do seculo XIX12, este ramo cientffico ainda estava ensaiando os seus primeiros passos e nao poderia mesmo dar a Didatica as suas premissas fundamentais. E, de fato, so por volta de 1900 e que surge a "nova didatica", com iniciadores familiarizados com a alma infantil por meio da Antropologia, Psiquiatria e trabalhos de laboratorio: Binet, Decroly, Montessori, Dewey, Claparecte. Em substituic;ao ao malbarato de tempo e de esforc;o que as velhas tecnicas traziam consigo - soletramento, memorizac;ao, fragmentac;ao do ensino etc. -, a nova tecnica se propunha aumentar o rendimento do trabalho escolar cingindo-se a personalidade biol6gica e psicol6gica da crianra. Surge daf a parte da nova educac;ao que ataca a rigidez dos velhos programas, a tortura dos horarios inflexfveis, dos exames desnecessarios; a corrente que pretende que se leve em conta a personalidade dos alunos, tal como eles a manifestam par meio do interesseY 12. 0 livro de Preyer, a respeito da Alma Jnfantil, basico em Psico1ogia, s6 apareceu em 1881. 13. Claparede: L'Education Fonctionnelle. 160 Mas a nova tecnica nao se reduzia a isso. Tal como a escola se mostrava ate ha pouco, e continua sendo, nao havia nela nem uma sombra de trabalho coletivo. Exatamente como acontecia nos primeiros tempos da manufatura, em que o patrao agrupava os seus operarios no mesmo local para economizar espac;o, luz etc., mas em que deixava que cada urn realizasse isoladamente a sua tarefa, tambem na escola as trinta ou quarenta crianc;as que comp5em uma classe, nao obstante a comunidade local, constituem o que poderfamos chamar metaforicamente de "produtores independentes". Mas, nesse interregna, as necessidades da industria acentuaram a necessidade de haver cooperac;ao no trabalho, de modo que, apesar da rivalidade existente entre os fabricantes, cada patrao exigia dos seus operarios o maximo de coopera~ao possfvel; em outras palavras, se fora da fabrica o antagonismo se tornavamais agudo, dentro dela, ao contrario, o patrao organizava o trabalho de tal modo que tudo era colaborac;ao e solidariedade. Os tecnicos da nova didatica aceitaram essa sugestao, sem, talvez, suspeitarem qual a sua fonte, de tal modo que se pretendeu reunir os alunos ao redor de "centros de interesse" e associa-los mediante' trabalhos em comum, em vez de cada crianc;a estudar por conta propria as suas lic;oes e preparar individualmente os seus deveres escolares: depois do individualismo da velha escola, temos a socializac;ao da nova. Mas, da mesma forma que a socializac;ao do trabalho industrial nao se reduziu a uma simples coletivizac;ao do trabalho dentro de cada fabrica, mas impos formas cada vez mais complexas de solidariedade, assim tambem a coletivizac;ao do trabalho dentro de cada grau escolar sugeriu a possibilidade de associar o trabalho de urn grau com o de outro, de modo que a crian~a, em vez de permanecer encerrada no seu grau, pudesse sair dele para entrar em contato com os demais graus ou grupos, mediante pianos comuns e trabalhos coletivos. E claro que, uma vez realizada essa aspirac;ao, a escola deixa de ser uma reuniao de unidades, para se converter no que hoje se chama uma "comunidade escolar", isto e, uma unidade de ordem superior. Com essa no~ao de "comunidade escolar", parece-nos que a corrente que chamamos metodologica alcanc;ou a sua expressao mais completa. Pouco preocupada com teorias, mas muito interessada em realidades, a corrente metodol6gica, atraves das suas diversas express5es - Plano Dalton, Plano Howard, Tecnica Winetka, Sistema Montessori, Sistema Decroly etc. - constitui, no fundo, a racionalizariio do ensino. Neste momenta em que o imperialismo capitalista lanc;a mao da totalidade dos seus recursos, em que os psicotecnicos selecionam sofregamente operarios, em que as linhas de montagem aproveitam ao absurdo a sistematiza~ao 161 ajustada do movimento, e justo que a escola fosse arrastada na avalancha. Para expressar pitorescamente a nossa interpreta<;ao, dirfamos que, nl!:as:e .. da nova tecnica do trabalho escolar, estd Ford e nao Comenio E e natural que seja assim: a Diddtica Magna corresponde a epoca do capita . mo manufatureiro, ao passo que o Sistema Decroly e o Montessori correspondem a epoca do capitalismo imperialista. Ja dissemos que a chamada "nova educa<;ao" compreende tambem outra corrente alem da metodologica, uma corrente que, as vezes, se superpoe a esta e que, outras vezes, segue paralelamente a esta ou, mesmo, muitas vezes, se opoe a esta: batizamo-la de "corrente doutrinaria". Sem contradizer a metodologica, esta corrente somente se propoe arranca-la das suas preocupa<;5es estritamente tecnicas, e critica o seu objetivo de preparar as crian(:as para a vida prdtica do nosso tempo. Alem disso, esta corrente pretende tambem proporcionar as crian<;as urn desenvolvimento que "esteja de acordo com a ideia de humanidade e com o seu destino completo". Nao prepara, pois, para a vida, entendendo-se por vida as formas sociais do presente. Olhando para o futuro, ela pretende superar o presente e substituir as formas atuais por outras formas - "que nao !he interessam quais sejam" - que permitam a livre atua<;iio da personalidade humana. Para renovar essa personalidade - e "conseguir uma nova imagem do homem", como diz Wyneken -, essa corrente acredita que e urgente transformar a escola e modificar por seu intermedio a propria sociedade. Nas suas maos, o presente nao e mais do que urn instrumento para preparar o homem do futuro. Mas como o Estado tern dado repetidas provas de que considera a escola como urn instrumento para assegurar o seu proprio domfnio, a corrente doutrinaria - afirma Wyneken 14 - "exige, tanto do Estado quanta da sociedade burguesa, uma a(:ao de renuncia e de auto- limita(:ao fundamental; a a<;ao pela qual o Estado so chega a ser Estado cultural; que reconhe<;a os seus limites, que mantenha suas maos afastadas de tudo aquila que, como a Justi<;a, a Ciencia, a Arte, esta a servi<;o de poderes superiores, superpolfticos, eternos". Como, depois destas palavras, e possfvel que algum dos senhores julgue ter entendido mal, repito que a corrente "doutrinaria" exige do Estado que ele deixe de ser urn Estado burgues, isto e, urn instrumento de opressao a servi<;o da burguesia, para converter-se num "Estado cultural", isto e, num Estado que retire as suas maos da escola, para que nao ressoe nela mais do que "a voz da humanidade, o espfrito da humanidade" ... 15 Nas li<;5es anteriores, vimos de que modo a educa<;ao tern sempre estado a servi<;o das classes dominantes, ate o momento em que outra 14. Wyneken: Las Comunidades Escolares Libres, pag. 26. 15. Wyneken, ob. cit., pag. 25. 162 classe revolucionaria consegue desaloja-las do poder e impor a sociedade a sua propria educa<;ao. Todavia, quando a nova classe ainda nao se sente suficientemente forte, ela se conforma provisoriamente em esperar que a classe dominante se esgote urn pouco antes de assedia-la. Neste caso, nao ha revolu<;ao no campo da educa<;ao, ha uma reforma. Encontramos reformas educacionais na Grecia do seculo V a.C. com os sofistas, na Roma do seculo II a.C. com os retores, no Feudalismo do seculo XI com as universidades, no Renascimento do seculo XVI com os humanistas. Em todos esses casos, as reformas educacionais foram precedidas de transforma<;5es sociais, mas nao de convulsoes; em todos esses casos, houve previamente modifica<;oes no equilfbrio das classes, mas nao houve ruptura desse equilfbrio. As quatro reformas mencionadas foram o contra- golpe no terreno educacional de urn processo econ6mico mediante o qual uma sociedade aristocratica e agricola retrocedia sem claudicar diante de uma sociedade 'comerciante e industrial. Revoluf:oes no campo educativo, nao vimos mais do que duas: quando a sociedade primitiva se dividiu em classes e quando a burguesia do seculo XVIII substituiu o Feudalismo. 16 Podemos, entao, perguntar: depois da revolu<;ao burguesa do seculo XVIII ocorreu algum novo desequilfbrio ou ruptura entre as classes sociais, capaz de tornar urgente uma nova educa<;ao? Ja afirmamos que a burguesia do seculo XVIII, depois de fazer em seu proveito a sua revolu<;ao, barrou imediatamente as aspira<;oes das massas populares. De fato, a Revolu<;ao de 89 ainda nao tinha dez· anos de existencia e ja Babeuf encarnava obscuramente os desenganos das massas operarias. E, desde essa epoca, com convulsoes cada vez mais violentas - 1848, 1871, 1905 -, a sociedade quedou dividida em duas classes hostis, com interesses incon- ciliaveis: de urn !ado, uma minoria de exploradores burgueses e, do outro, uma enorme massa de proletarios explorados. E enquanto a burguesia mais desesperadamente aperfei<;oava as tecnicas de produ<;ao, numa conquista raivosa de riqueza e de novos mercados, durante todo o seculo XIX, mais o proletariado ia-se convertendo num simples acessorio das maquinas. No entanto, a maquina, ao reunir ao seu servi<;o enormes massas de operarios, nao so despertou neles os primeiros albores de sua consciencia de classe, como tambem criou as condi<;oes objetivas que tornaram necessaria a sua liberta<;ao. 16. Nao estou contando o brevfssimo perfodo em que dominou a Comuna de Paris, porque esta apenas teve tempo de impor uma nova educa~ao. Em todo caso, nao seria mau consultar os seus magnificos projetos em La Commune de Paris. Textes et Documents Recueillis et Commentes par A. Dunois, pag. 27. . i 163 i Diante da enorme expansao das fon;as produtivas, a burguesia se mostrou impotente, exatamente como o mago a que Marx se ~efere no seu Manifesto Comunista, aterrado diante dos poderes formidavei:~ ele proprio havia conjurado. De fato, o modo capitalista de apropria<;ao resulta incompatfvel com o carater cada vez mais social da prodw;:ao. Enquanto milhares de operarios criam as riquezas que saem das fabricas, urn reduzido numero de parasitasaumenta fabulosamente o seu capital. Em outros tempos, a burguesia foi urn fator para o progresso social, nao ha duvida, mas, atualmente, ela se converteu num obstaculo a esse progresso, e de tal modo que nao so nao tern interesse em continuar aperfei<;oando o poder do homem sobre a natureza, como ainda procura dete-lo. Por outro !ado, o proletariado, cada vez mais forte, vern derrubando por toda parte as barreiras burguesas que o impedem de viver, exatamente como a burguesia, na sua bora historica, rompeu as barreiras feudais que a asfixiavam. Desde o mes de outubro de 1917 - a data da sua grande revolu<;ao - que o proletariado russo dividiu a nossa era em duas idades que coexistem: a nossa, a burguesa, que ja pertence ao passado, e a outra, a socialista, que na Russia e quase presente, mas que para nos ainda pertence ao futuro. Diante dessa realidade atual, que classe social interpreta a "doutrina" da nova educa<;ao? Vamo-nos limitar, agora, apenas a propor em termos exatos o problema, para so resolve-lo cabalmente no proximo capitulo. A investiga<;ao pode ser conduzida em duas dire<;6es bern distintas. Se a burguesia e, historicamente falando, uma classe social ja condenada, seria quase urn sarcasmo indagar se a "nova educa<;ao" interpreta os seus ideais. No atual momento em que vivemos, a agonizante burguesia sabe que so lan<;ando mao do terror, isto e, do fascismo, podera prolongar por mais algum tempo a sua vida. Uma a uma, foi ela perdendo as caracterfsticas que !he deram uma fei<;ao propria: a concorrencia do mercado a havia feito individualista; as necessidades de calculo, racionalista; a liberdade de imprensa, liberal. Agora, as limita<;6es da concorrencia, provocadas pelo monopolio, obrigaram-na a rcnunciar ao individualismo; a certeza de que o seu fim csta proximo lcvou-a de novo ao pe dos altares; o desejo de sobrevivcr arrastou-a para o caminho da ditadura declarada. Monopolista, religiosa e fascista, a burgucsia contcmporanea nao so renunciou ao ensino leigo por que havia batalhado tantos anos 17, como imp6s a escola urn tao 17. No Congresso de Orienta<;:iio Profissional Feminina, de 24 de setembro de 1926, urn dos ex-campe6es do laicismo, Ferdinand Buisson, afirmou: "A Igreja, a Escola e a Famflia, as tres grandes for<;:as educadoras. deverao unir-se para contribuir para o progresso, porque, isoladas, nao poderao realizar a obra necessaria". Cf. Boyer: L' Ecole Lai"que Contre Ia Classe Ouvriere, pag. 36. 164 ostensivo carater de instrumento a servi<;o do Estado, que a crian<;a italiana e a alema nao sao mais do que futuros soldados do fascismo. Encarnara, entao, a "doutrina" da nova educa<;ao os ideais do proletariado? A pergunta pode fazer com que vacilemos uns segundos. 0 socialismo, ainda que os seus inimigos digam o contrario, aspira a realizar a plenitude do homem, isto e, libertar 0 homem da opressao das classes, para que recupere, com a totalidade das suas for<;as, a totalidade do seu eu. 0 proletariado libertara o homem ao libertar-se a si proprio, dizia Marx, porque representando ele, como classe social, a perda total do homem, "so podera libertar-se a si proprio se encontrar de novo o homem perdido". 18 No Projeto de Profissiio de Fe Comunista, escrito por Engels, em 1847, que foi urn dos mais importantes materiais usados por Marx para compor o seu Manifesto, podemos ler um pagina formosfssima que nos mostra de que modo o desenvolvimento da produ<;ao, sob o impulso de toda a sociedade, reclamani e engendrara "homens fntegros", homens totalmente novos. 19 Mas, se em alguns pontos, a "doutrina" da nova educa<;ao parece coincidir com o ideal socialista, as diferen<;as sao tao grandes em outros que nos parece ridfculo insistir a respeito delas. A nova educa(:iio se propoe, com efeito, construir o novo homem a partir da escola burguesa; de uma escola, na realidade, na qual o Estado burgues se comprometa a nao interferir em nada, de uma escola em que os professores deverao, portanto, ingressar completamente isentos de qualquer mentalidade de classe. Aspira<;ao absurda, desmentida por toda experiencia historica, e que supoe nesses teoricos uma ingenuidade a toda prova. Em todas as li<;6es anteriores, vimos que a educa<;ao ministrada por meio de uma escola renovada so aparecia depois que a classe social que a reclamava ja havia conseguido afirmar em grande parte os seus interesses e mantinha a distancia o Estado inimigo. Quando, em 1792, Condorcet exigia a Monarquia que nao mais interferisse na educa<;ao, nao lhe faltava mais do que cinco meses para derruba-la. Por causa disso, porque a classe em cujo nome falava ja tinha em suas maos a vitoria, e que as exigencias de Condorcet, Ionge de nos parecer ingenuas, revelaram-nos a sua profunda habilidade. Mas "exigir" do Estado burgues, nao em nome de uma classe inimiga, porque, neste caso, esse pedido estaria dissimulando urn ultimato, mas em nome da "cultura" e do "espfrito", que ele "autolimite" os seus poderes de forma a se converter num Estado cultural, deixando assim de exercer 18. Marx: Oeuvres Philosophiques, tomo I, pag. 106. 19. Engels: Proyecto de Profesirin de Fe Comunista, pags. 397-399, publicado como Apendice do Manifesto Comunista da Edi<;:iio Cenit. 165 qualqucr controle sobre o ensino, que e uma das suas mais de o~~essao, constitui uma ingenuidade tao grande que )toea cpopc1a. _____/ sutis armas as raias da Na proxima aula, n6s iremos ver tudo o que hade ingenuo, reacionario c suicida nessa absurda pretensao, mas, agora, apenas iremos ver que os te6ricos que encarnam a corrente mais ruidosa da "nova educac;ao" repetem hoje, diante do Estado burgues, a mesma atitude grotesca que Pestalozzi assumiu diante do Estado absoluto da sua epoca. Em 1814, as tropas do Imperador da Russia quiseram instalar urn hospital no internato que Pestalozzi dirigia. Muito indignado, o grande educador foi queixar-se ao lmperador Alexandre, que, na ocasiao, encontrava-se em Basileia. 0 Imperador recebeu-o com bondade e concordou de boa vontade com as suas reclamac;oes. Pestalozzi, entao, satisfeito com o exito obtido, resolveu fazer outro pedido ao Imperador. Se este ja o havia atendido uma vez, par que nao haveria de atende-lo uma segunda? Mastigando urn pouco a gravata, como fazia cada vez que estava emocionado, Pestalozzi pediu, entao, ao Imperador, que proclamasse a emancipac;ao dos servos na Russia. 0 Imperador olhou-o par urn instante e, sem dizer uma palavra, sorriu. 0 primeiro exemplo de urn professor pedindo a urn Chefe de Estado que "autolimite" OS seus poderes nao e realmente muito alentador. .. 166 CAPITULO VIII A NOV A EDUCA<::AO Segunda Parte No capitulo anterior, deixamos estabelecido que duas correntes, uma metodol6gica e outra doutrinaria, conflufam para o leito desse grande movimento pedag6gico que teve as suas primeiras manifestac;oes par volta de 1900, mas que se afirmou ultimamente sob formas ruidosas e dfspares. A corrente "metodol6gica", ja dissemos, descansa fundamentalmente para empregar as palavras de Cousinet - no maximo respeito "a atividade livre e espontanea da crianc;a". 1 Posta que a crianc;a deveria ser o seu proprio educador, seria necessaria abrir-lhe urn credito de confianc;a ilimitado. Mas, se esse e o postulado fundamental, elevado a categoria de princfpio, tambem ja vimos que 0 respeito a personalidade da crianc;a nao deve ser entendido no sentido individualista, porque a nota dominante na nova "didatica" consistia principalmente em substituir o trabalho escolar individual, pelo trabalho coletivo. A corrente "doutrinaria" extrai desses mesmos postulados certas conseqtiencias necessarias e, se se admite que a crianc;a deve ser respeitada no que tern de mais fntimo, e 16gico que se obtenha do Estado a autonomia do ensino. "Quanta mais claramente se ve que 0 sentido da educac;ao e I. Vidal: La Doctrina de Ia Nueva Educacidn, pag. 3 de ~La Nueva Educacir5n, deCousinet, Vidal e Vauthier. 2. Lombardo Radice: Athena Fanciulla, Scienza e Poesia della Scuola Serena, pag. 453. 167 l ,'Ill 11! 1;1 ,Ill II' 111! Ill'' ,I i:' I I' II; I'll) auttmomo - escreve Spranger - tanto mais sei?.stru urara a escola do Estado, nao s6 no nfvel universitario, mas em todos o graus, em formas de administra~ao que garantam a educa~ao dian e da pressao espiritual dos poderes do Estado". 3 "A escola e a nega~ao de todo partido e de toda seita- dizia Gentile no VI Congresso Nacional da Federa~ao ltaliana do Magisterio, em 24 de setembro de 1907 -, e a negar,;ao de toda Igreja e de todo dogma, porque a escola e a vida do espfrito, e o espirito vive na plenitude da sua liberdade".4 Assim como para o catolicismo - afirma Wyneken -, a Igreja e a boca nunca emudecida da divindade, "a escola deve ser o 6rgao do espfrito humano mediante o qual este expressa o seu conteudo atual".5 Formar uma gera~ao apta para "o servi~o do espfrito", eis af, nas palavras de Wyneken6, o conteudo essencial da corrente doutrimiria. Sup6e esta, portanto, uma confian~a absoluta na educar,;ao, como meio de transformar a sociedade. A esse respeito, sao ilustrativas as seguintes palavras de Jose Ortega y Gasset, o ilustre fil6sofo da "republica dos trabalhadores": "Se educa~ao e a transforma~ao de uma realidade, de acordo com certa ideia melhor que possufmos, e se a educa~ao s6 pode ser de carater social, resultara que a Pedagogia e a ciencia de transformar sociedades"? Esta confian~a na educar,;ao como uma alavanca da hist6ria, corrente entre os te6ricos da nova educa~ao, sup6e, como ja vimos na ultima li~ao, um desconhecimento absoluto da realidade social.8 Ligada 3. Spranger: Fundamentos Cient(ficos de la Teoria de la Constitucir5n y de la Politica E~colares, pags. 85-86. 4. Gentile: Educazione e Scuola Laica, pag. I 02. 5. Wyneken: Escuela y Cultura Juvenil, tomo I, pag. 113. 6. Wyneken, ob. cit., tomo II, pag. Ill. 7. Citado por Llopis in Hacia Una Escuela Mds Humana, pag. 25. 8. Como uma prova grotesca dessa ignorilncia absoluta transcrevo esta pagma do "eminente soci6logo" espanhol Dom Antonio Posada: "Ao termino das tarefas da Universidade Popular, que funciona na cidade de Oviedo ha cinco ou seis anos, os professores e os alunos operarios se reunem nessa mesma Universidade, para tomar cafe. Ficam juntos, conversando, duas, tres ou mais horas. Isto que nao parece nada, este fato muito simples e comum de tomarem cafe juntos na Universidade, professores e operarios, tern, a meu jufzo, uma alta significa~ao: e uma ocasiao excelente para as pessoas se conhecerem; desse modo, a pretexto de uma educa~ao, celebrando-a, faz-se com que pessoas de diversa posi~ao social e distinta cultura conversem entre si, conhe~am-se mutuamente, estabelecendo rela~5es de cordialidade e de carinho. Imaginem voces que, em Bilbao, ocorresse fato semelhante, que os trabalhadores das minas ou das fabricas tivessem varios cfrculos, onde, algumas noites, eles, as suas mulheres - operarias ou nao, isto nao importa - e os seus filhos tomassem uma xfcara de cha, ou de cafe, com o patrao, sua mulher e os seus filhos. Seria is to prejudicial? Fazendo-se isto constantemente, vencendo-se toda repugnilncia e todas as preocupa~5es sociais, nao se faria mais pela paz social, do que com todas as leis proibitivas, violencias e repress5es, 168 estreitamente a estrutura econ6mica das classes socialS, a educar;ao, em l'ada momento hist6rico, nao pode ser outra coisa a nao ser urn rcllexo necessario e fatal dos interesses e aspira~6es dessas classes. A confianr;a na educa~ao, como urn meio de transformar a sociedade, explicavel numa ¢poca em que a ciencia social ainda nao estava construfda, resulta totalmente inadmissfvel depois que a burguesia do seculo XIX descobriu a existencia das lutas de classe. E e necessario insistir neste ponto: a descoberta da existencia de uma luta de classes foi uma das contribui~6es mais felizes dos historiadores burgueses do primeiro ter~o do seculo XIX: Thierry, Guizot e Mignet.9 0 conceito da evolu~ao hist6rica como urn resultado das lutas de classe nos mostrou, com efeito, que a educar,;ao e o processo mediante o qual as classes dominantes preparam na mentalidade e na conduta das crianr,;as as condir,;oes fundamentais da sua propria existencia. Pedir ao Estado que deixe de interferir na educa~ao e o mesmo que pedir-lhe que proceda dessa forma em rela~ao ao Exercito, a Polfcia e a Justi~a. Os ideais pedag6gicos nao sao cria~6es artificiais que urn pensador elabora em isolamento e que, depois, procura tornar realidade, por acreditar que elas sao justas. Formula~6es necessarias das classes que estao empenhadas na luta, esses ideais nao sao capazes de transformar a sociedade, a nao ser depois que a classe que os inspirou tenha triunfado e subjugado as classes rivais. A classe que domina materialmente e tambem a que domina com a sua moral, a sua educa~ao e as suas ideias. Nenhuma reforma pedag6gica fundamental pode impor-se antes do triunfo da classe revo- luciondria que a reclama, e se essa afirma~ao parece ter sido desmentida alguma vez pelos fatos e porque, freqiientemente, a palavra dos te6ricos oculta, conscientemente ou nao, as exigencias da classe que representam. Para urn observador superficial, que ignorasse o carater de classe das lutas hist6ricas, te6ricos tao diferentes, como Wyneken, Gentile e Lunatcharsqui poderiam figurar no mesmo plano da "nova educar;ao". Se n6s nos preocuparmos unicamente com o aspecto exterior das coisas, poderemos afirmar que todos eles pretendem formar uma "nova imagem do homem". Mas, tao logo abandonamos essa proposi~ao superficial do problema e procuramos indagar quais as classes sociais que esses te6ricos representam, como mudam as coisas! que tanto 6dio engendram e tantas tempestades provocam? Quantas oposi~5es, explicaveis ou infundadas, se apagariam! Que corrente de amor e de simpatia social nao se poderia provocar!" Antonio Posada: Pedagogia, pags. 94-95. 9. Assim o reconheceu varias vezes Marx, especialmente numa carta que endere~ou a Engels. Cf. Marx-Engels: Correspondance, tomo IV, pag. 55. 169 "Queremos na escola - diz Gentile - o espfrito humano em toda a sua plenitude, e em toda a sua realidade" 10, "esse espfrito que forma, por assim dizer, a verdadeira humanidade do hom em" .11 Nao ha duvida de que essas afirmac;;oes nao sao muito claras, mas logo mais "esse espfrito" comec;;a a precisar-se: "Os estudos [secundarios], dizem alguns, devem ser democraticos, como se dissessemos lanc;;ar milho aos porcos. Os estudos secundarios sao, por sua propria natureza, aristocrat~os, no sentido otimo da palavra; estudos para poucos, para os melhores, p rque preparam para uma formac;;ao desinteressada, a qual nao podem corresponder senao aqueles poucos que estao destinados de Jato, pela sua capacidade ou pela sua situarao familiar, ao culto dos mais altos ideais humanos". 12 E, como se essa afirmac;;ao nao bastasse, logo mais adiante Gentile nos diz qual e o homem que e necessaria formar em toda a sua plenitude. "0 homem nao e o animal bfpede e implume que sempre vemos. Nem chega a converter-se em homem quando se transforma no autonomo que, introduzido em determinada engrenagem hierarquica e social, cumpre mais ou menos mecanicamente a sua missao, como que para assegurar a ele e aos seus filhos uma vida opaca. A este animal, nao importara jamais o destino de Prometeu, ou o destino do homem. Para ele, nem o grego, nem a filosofia servirao para algo; para ele, nenhuma delicadeza do espfrito perturbara a digest~o. Mas esta nao e a humanidade, ou, pelo menos, nao e desta humanidade que eu quero falar. 0 nosso homem e aquele que possui aquila que se chama consciencia; trata-se do homem, digamos claramente, das classes dirigentes, sem o qual nem ao menos poderia existir o outro homem, o da boa digestao, porque ate as boas digest6es necessitam doapoio da sociedade, e nao podemos concebe-la sem classes dirigentes, sem homens que pensem por si e pelos outros. Penso que todos os que reclamam que a escola deve ser para a vida estao pensando nesse homem. Sim, para a vida do homem, da consciencia humana".'3 Por intermedio de urn filosofo ilustre, esta explicado, e com uma clareza que impede quaisquer confus6es, o pensamento da burguesia contemporanea a respeito da "nova educac;;ao": nao lanc;;ar as massas as flores da cultura, e reservar apenas para o homem das classes superiores "o completo desenvolvimento do espfrito". Convencida do seu proprio fracasso, acuada por urn proletariado cada vez mais consciente de si mesmo, a burguesia fascista que se expressa por intermedio de Gentile nao so declara que se deve impedir o acesso das massas a cultura, como 170 10. Gentile: La Nuova Scuola Media, pag. 7. II. Gentile, ob. cit., pag. 35. 12. Gentile, ob. cit., p:ig. 35. 13. Gentile, ob. cit., pag. 91. tambem que se deve confiar a religiao o controle espiritual da plebe desprezfvel. "Estou convencido - diz - de que, para formar urn povo verdadeiramente grande e uma nac;;ao verdadeiramente forte, e necessaria que os cidadaos tenham uma concepc;;ao religiosa da vida. Para conseguir isso e preciso ensinar religiao as crianc;;as. E, uma vez que estamos na Italia, onde a catolica e a dominante, as crianc;;as devem ser instrufdas nela. Mais tarde, quando ja forem homens, eles tratarao por si mesmos, por meio da critica e do pensamento, de superar essa fase pueril do ensino religioso. Mas, este e necessdrio". 14 Observe o leitor, de passagem, o escasso fervor do reformador: Gentile sabe que a religiao catolica, que ele mesmo introduz nas escolas italianas, e uma forma de pensamento subalterno. Mas, exige que as massas que passam pelas escolas, e que adquirirao nelas toda a sua cultura, permanec;;am durante toda a sua vida15 impregnadas por essas mesmas concepc;;oes que o filosofo despreza. Para a burguesia que Gentile interpreta, a plebe nao merece muito mais. Urn educador intimamente vinculado ao ex-ministro, a ponto de ter sido urn seu colaborador eminente na Reforma de 1923, Giuseppe Lombardo Radice nos conta na sua Vida nas Escolas Populares qual era o povo ideal que essas "escolas religiosas" pretendiam formar: "Eu desejo urn povo gentil, meditativo, capaz de escutar o canto dos seus poetas e o concerto dos seus musicos, de encantar-se diante de urn quadro, de urn museu ou de uma igreja. Nao quero o povo torpe da taberna, mas urn povo que saiba ornar-se como respeito a si mesmo e aos outros (ainda que seja pobremente), que nao cuspa em qualquer Iugar, que nao destrua as plantas, que nao persiga OS passaros, que nao discuta demasiado, que nao bata em sua mulher e em seus filhos" .16 Urn povo manso e resignado, respeitoso e discreto, urn povo para quem os patr6es sempre tenham razao, como nao haveria ele de ser o ideal de uma burguesia que so aspira resolver \1 sua propria crise, descarregando todo o peso sobre os ombros das massas oprimidas? So urn povo "gentil e meditativo" e que poderia suportar sem "discussao" a explorac;;ao feroz. E esse povo de que o fascismo necessita e o que a sua escola se apressa em preparar. 14. Este trecho consta de uma reportagem transcrita por Poggi em I Gesuiti Contro lo Stato Liberate, pag. 137. 15. Cf., no mesmo sentido, Carlini, Lll Religione nella Scuola, pag. 38: "Quando se tomar adulto, o indivfduo escoihera o seu caminho: sera rico ou pobre, culto ou ignorante, feliz ou desgra~ado; o importante e que ele seja guiado por uma estrela: a ideia de urn princfpio superior que se introduza na sua mente de uma vez para sempre e acenda no seu 0 corar;iio uma chama que as vicissitudes da vida niio extinguiriio." 16. Lombardo Radice: Vita Nuova della Scuola del Popolo, pag. LXXVI. 171 " Que diferenr;a entre as crianr;as que Lombardo Radice nos anunciava em seus primeiros livros, e estas crianr;as italianas de hoje, tal como Dolores Mingozzi nos mostra, adulando Mussolini e o fascismo na mais inconsciente de todas as linguagens! 17 Que diferenr;a, tambem, entre o quadro idflico que Wyneken entrevia ao escrever: "Seria urn g~ande exito cultural e hist6rico urn Estado que compreendesse a necessidade ideal da escola aut6noma, que a fomentasse com uma elevada modestia e que a fundasse em seus domfnios: que Estado alemao sera o primeiro? N6s que pertencemos as comunidades escolares livres, que fomos os primeiros a reconhecer as linhas diretoras do desenvolvimento, que proclamamos a ideia da nova escola, estamos a sua disposir;ao" 18, e a realidade brutal da Alemanha de hoje, em que a escola foi convertida em quartel. 19 Sabemos o que significam nas maos da burguesia "liberdade da crianr;a", "formar;ao do homem", "direitos do espfrito". A imageiJl do novo homem que a burguesia nos prometia e a velha imagem ja bern nossa conhecida: a de uma classe opressora que monopoliza a rique2:a e a cultura diante de uma classe oprimida, para a qual s6 e permitida a superstir;ao religiosa e urn saber bern dosado. Que representa a nova educar;ao em maos do proletariado? Desde as primeiras tentativas de Owen nas suas fabricas20, ate as mais recentes conquistas do primeiro Estado proletario e campesino, o operariado sempre pretendeu transformar as suas escolas em escolas do trabalho. Numa sociedade sem classes, isto e, numa sociedade fraternal de produtores que trabalham de acordo com urn plano, a escola ja nao pode ser nem a precaria escola elementar, nem a fechada escola superior. Para formar os trabalhadores conscientes de uma sociedade em que desapareceram a dominar;ao e a submissao, e preciso criar uma escola que fixe com extraordinaria precisao o prop6sito imediato que !he corresponde. E, uma vez que a escola da burguesia nao pronuncia jamais uma s6 palavra que nao sirva aos seus interesses, a escola do proletariado tambem quer defender os seus interesses; mas ha uma grande diferenr;a nestas duas posir;oes: enquanto aquela apenas encarnava os interesses de uma exfgua minoria, 17. Mingozzi: Mussolini Visto dai Ragazzi. 18. Wyneken: Escue Ia y Cultura Juvenil, tomo I, pag. II 0. 19. Cf. Noth: La Tragedie de Ia Jeunesse Allemande. 20. "Como se pode ver em minucias nas obras de Robert Owen, do sistema fabril brotou o germe da educa<;:ao do futuro, que, para todas as crian9as que tenham ultrapassado certa idade, combinara o trabalho produtivo com a instru9ao e a ginastica, nao s6 como urn metoda de elevar a produ9ao social, como tambem como o unico metoda capaz de formar homens completos". Marx: El Capital, tomo I, pag. 374 da tradu9ao de Justo. 172 esta defende as aspirar;oes das grandes massas trabalhadoras. Quando do Primeiro Congresso Pan-Russo de 1918, Lenine disse: "Ha quem nos acuse pelo fato de transformarmos a nossa escola numa escola de classe. Mas a escola sempre foi uma escola de classe. 0 nosso ensino defendera por isso, exclusivamente, os interesses da classe laboriosa da sociedade".21 E, dois anos depois, por ocasiao do Terceiro Congresso Pan-Russo da Uniao dos Jovens, acrescentava ele que a nova educar;ao ligava indissoluvelmente a instrur;ao e a formar;ao da juventude com a !uta ininterrupta de todos os trabalhadores contra o velho regime de explorar;ao. A milenaria separa~ao entre as for~as mentais e as forfas fisicas, que surgiu na hist6ria no mesmo instante em que a comunidade primitiva se converteu em sociedade de classes, desaparece, assim, sob o impulso do proletariado. Os filhos dos proletarios e dos camponeses russos ja nao vao a escola para "se subtrair" a sua classe social e adquirir a mentalidade da classe inimiga; vao para se unir a vanguarda consciente do proletariado e para acelerar desse modo a construr;ao do socialismo. "Eu quero trabalhar com os operarios e os camponeses, quero ser urn colaborador eficaz dos nossos cm;naradas adultos, quero lutar junto com eles contra o inimigo
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