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1 INTRODUÇÃO Discutir sobre a surdez e seus temas subjacentes exige um posicionamento sobre duas questões básicas: a primeira fortemente ligada ao discurso bioclínico de normalidade, onde no passado legitimou-se toda uma prática com relação a normalização e medicalização do corpo defeituoso do sujeito surdo; e uma segunda de ordem cultural, onde a comunidade surda é compreendida como um grupo social minoritário com uma cultura inferior, quando não sem cultura. Ao me propor olhar para a história dos surdos destaco a importância de um olhar fora do convencional, não preocupado com a patologia, mas sim com os aspectos culturais. Com base em duas correntes teóricas: os Estudos Surdos e os Estudos Culturais, apresento a história da surdez ao longo dos séculos. As diferentes concepções de surdez e de sujeito surdo ao longo dos tempos. Neste capítulo abordaremos da negação do direito de existir na Antiguidade, passaremos pela defesa do direito de acesso a educação no século XVI, o surgimento das metodologias de ensino para surdos e a constituição de uma língua, também serão temas abordados neste capítulo. Em oposição ao Congresso de Milão e a proibição do uso da língua de sinais, surgem as associações de surdos com o objetivo de organizar a luta surda e o reconhecimento de seu ethos. Encerraremos nossos estudos com as principais conquistas obtidas pela comunidade surda. 2 História da Surdez: o que contam sobre os surdos Olhar o passado pode ser um recurso, como tantos outros, para se entender o presente, questioná-lo e projetar o futuro. Mas antes de voltar nosso olhar para o passado é importante ter presente que o “passado oficial” da humanidade, a história, enquanto registro científico, é determinada não simplesmente pelo fato em si, mas pelo olhar daquele que o registra. Isso faz com que nenhum registro seja neutro, há sempre uma intenção por traz do que é apresentado. Que é determinado por um grupo, em geral dominante responsável por definir o que deve ser lembrado e como ser lembrado e o que deve ser esquecido. Quantos grupos, quantas tribos, quantos sujeitos, quantos nomes não integram o corredor da história da humanidade? Quantos quadros de fatos importantes não são disponibilizados na grande exposição da história oficial? Muitos, centenas, milhares, não há como saber. Outros surgem em um determinado tempo e espaço, quando na realidade sempre sub- existiram, mas que só passaram a existir por reivindicação, por organização política, por luta, mas que ainda assim são descritos e representados conforme os olhos dominantes. 3 Com os surdos não foi muito diferente. Por muito tempo não existiram historicamente, e quando passaram a existir foram descritos por seus opostos, atribuindo-lhe como marca identificatória a incapacidade de ouvir, de comunicar-se, o defeito a ser corrigido, a patologia a ser curada. Os primeiros registros históricos sobre surdos, remetem a passagens bíblicas e escritos sagrados: “Quem deu uma boca ao homem? Quem fez o mudo e o surdo, o que vê e o cego? Não sou eu o Senhor? Vai, pois e eu serei na tua boca e te ensinarei o que hás de falar” (Êxodo,4: 11-12). Para a tradição judaica o surdo é considerado um anormal, mas ainda sim um filho de Deus, o que significa que está sob sua proteção. No antigo Egito os surdos eram considerados seres enviados pelos deuses, por isso eram muito respeitados, mas por serem capazes de falar com os deuses eram mantidos em segurança e não tinham uma vida social. Na Grécia Antiga o direito de viver era concedido somente àqueles que eram considerados produtivos, o que na concepção da época não era atribuído ao surdo, já que era considerado incapaz de desenvolver linguagem e por conseqüência pensamentos, o que os impediria de aprender. Aristóteles faz menção à surdez em seus escritos, obviamente ressaltando a marca da deficiência e da incapacidade. Para Aristóteles a educação só poderia ser obtida através da audição, sendo assim um surdo não poderia ser educado, conforme Quirós (1996). Ainda que possa ter ocorrido um problema de tradução das obras de Aristóteles como defendem algumas correntes 4 filosóficas, tal afirmação colocou em hibernação a possibilidade de acesso a educação dos surdos até o final da Idade Média. Sem acesso a educação coube ao surdo viver à margem da sociedade mendigando concessões: “Plínio, hablando Del arte de la pintura em Roma em su tratado La História Natural refiere el caso de Quinto Pódio, el nieto sordo del cónsul romano homónimo. Por ser descendiente de la família de Massala, el Imperador César Augusto le concedió la possibilidad de cultivar su talento artístico, pero no de cursar una carrera normal”. (SKLIAR, 1997, p. 17). O cristianismo promoveu uma certa mudança no trato com deficientes, portadores de limitações e outras minorias, já não considerados como impuros, mas seres inferiores que necessitavam da piedade e benevolência dos que aspiram a santidade. Os surdos, no entanto não teriam acesso a salvação, já que por não serem capazes de falar não poderiam confessar seus pecados. Os primeiros registros a cerca de educadores para surdos são do século XVI. O médico Girolano Cardano (1501 – 1576) é considerado o primeiro a defender o direito à educação dos surdos. Segundo Radutzky (1992) sua motivação deve-se ao fato de seu primogênito ser surdo. Porém, é na figura do espanhol Beneditino Pedro Ponce de Leon (1520 – 1584) que se encontrou a primeira metodologia sistematizada para a educação de surdos, que baseava-se na datilologia (representação manual das letras do alfabeto), na escrita e na oralização. Ponce de Leon ensinava latim, grego, 5 italiano e conceitos de física e astronomia a surdos filhos de famílias nobres espanholas. Pode-se dizer que os surdos só tiveram acesso a educação, em virtude de sua condição social: “Até 1760 apenas surdos provenientes de famílias abastadas tinham acesso à educação. Cada tutor desenvolvia sua própria práxis pedagógica e a guardava em absoluto segredo. Um segredo que, quando convertido em sucesso, conferia fama e muito dinheiro a quem o dominasse. Sucesso, por sua vez, que trazia em conseguir que o surdo escrevesse e lesse mais do que fazê-lo falar” (SOUZA, 1998, p. 130). Outro nome bastante importante na história da educação dos surdos é o do abade francês Charles Michel de L’Épee (1712 – 1789), que pesquisou os sinais utilizados entre os surdos para comunicar-se, combinando-os com a gramática francesa, dando origem aos sinais metódicos, o que não significa dizer que L’Épee tenha sido o criador da língua de sinais francesa, na realidade os surdos a desenvolveram, mas é através da defesa do abade que ela passa a ter credibilidade. L’Épee fundou ainda uma escola pública para surdos, em 1771, em sua própria casa, onde ensinava surdos pobres e ricos. Em 1785, o Instituto para Jovens Surdos e Mudos de Paris, já atendia 75 alunos, um número expressivo para a época. A escola é responsável ainda pela formação de inúmeros professores surdos. 6 Nesta mesma época, em 1750, surge na Alemanha Samuel Heinick, fundador da primeira escola pública utilizadora da metodologia oralista, que acreditava ser o ensino da língua oral o único meio de incluir o surdo na comunidade geral. O século XVIII é considerado o período mais fértil da educação de surdos: “Esse período que agora parece uma espécie de época áurea na história dos surdos testemunhou a rápida criação de escolas para surdos, de um modo geral dirigidos por professores surdos, em todo mundo civilizado, saída dos surdos da negligência e da obscuridade, sua emancipação e cidadania, a rápida conquista de posições de eminência e responsabilidade __ escritores surdos, engenheiros surdos, filósofos surdos, intelectuaissurdos, antes inconcebíveis, tornam-se subitamente possíveis” (SACKS, 1997, p. 26). O professor americano Thomas Hopkins Gallaudet (1742 – 1822), em 1815, segue para Europa em busca de dados sobre a educação de surdos. Conhece o Instituto fundado por L’Épee e seu método manual de ensinar. Em 1817, auxiliado pelo melhor aluno da escola de L’Épee, Laurent Clerec, Gallaudet funda a primeira escola para surdos dos Estados Unidos, que adota como forma de comunicação uma espécie de francês sinalizado, adaptado, obviamente, ao inglês. 7 É a partir de 1821 que se inicia o movimento rumo à ASL (Linguagem de Sinais Americana), ainda muito influenciada pelo francês sinalizado. Somente em 1850 é que a ASL passa a ser utilizada nas escolas americanas. Ao mesmo tempo, as escolas da Europa começam utilizar a língua de sinais, promovendo assim uma enorme mudança no nível de escolarização dos surdos. Através disso eles podem compreender com maior facilidade, os conteúdos trabalhados nas disciplinas. A Universidade de Gallaudet, a primeira universidade nacional para surdos é fundada em 1864 em Washington, nos Estados Unidos, tendo como reitor Edward Gallaudet, filho de Thomas Gallaudet. 8 Estima-se que em 1869 havia cerca de 550 professores de surdos e 41% dos professores de surdos eram surdos. (LANE, 1989). Embora fosse comprobatório o desenvolvimento intelectual dos surdos alcançado pela utilização da língua de sinais, o método oralista fortaleceu- se muito, em função do avanço tecnológico que potencializava o aprendizado da fala pelo surdo. Embalados pelo entusiasmo da possibilidade de aprendizado da língua oral, muitos profissionais defendiam, e até hoje defendem, que a língua de sinais é prejudicial ao aprendizado da língua oral. Alexander Graham Bell, pesquisador muito conhecido premiado pela invenção do telefone, é também, uma das figuras significativas na defesa do oralismo, pois afirmava que a língua de sinais era inferior à língua oral e não contribuía para o desenvolvimento intelectual dos surdos. Exerceu forte influência na votação do Congresso Internacional de Educadores Surdos, em 1880, na cidade de Milão, onde os surdos foram impedidos de votar na metodologia que seria utilizada em sua educação. Sem a participação dos surdos, estabeleceu-se que o método de ensino utilizado na educação de surdos seria o oralismo, tornando oficialmente proibido o uso da língua de sinais. Proibir o uso da língua natural de um povo significa muito mais do que não utilizá-la, significa extinguir de forma violenta e silenciosa a identidade cultural de uma comunidade inteira. Pois a língua é um importante facilitador de compreensão entre os seres humanos. As palavras e os termos de um idioma expressam muito mais do que o nome das coisas. O significado 9 carrega em si toda a história de um povo, seus valores éticos, suas crenças, mas, sobretudo, sua cultura. Concentrados todos os esforços no ensino da língua oral, as demais disciplinas componentes do currículo escolar foram postas em segundo plano, provocando uma significativa queda no nível de escolarização, deixando marcas profundas no desenvolvimento lingüístico e cognitivo dos surdos. Não é possível apagar uma língua como se faz com uma palavra mal escrita, pois a língua possui vida própria que independe do poder de um grupo sobre outro. 10 Em resposta a tentativa de “adestramento” imposta pelos ouvintes justificada através do discurso científico, os surdos começam a organizar- se em associações para defender sua língua, sua cultura, seu desenvolvimento. Até a publicação das pesquisas de Stocke, na década de setenta, o oralismo imperou em todo o mundo. Stocke procurou demonstrar que a ASL era uma língua com todas as características da língua oral, o que suscitou inúmeras pesquisas nesta área. Promoveu, assim, o retorno da língua de sinais e outros métodos manuais ao contexto escolar. Em 1968 surge a Filosofia da Comunicação Total e a partir da década de oitenta o Bilingüismo. O “surgimento” do surdo brasileiro Os surdos brasileiros também possuem sua história, que inicia “oficialmente” em 1855, com a vinda do professor surdo Hernest Huet, francês que, a convite do imperador D. Pedro II, inicia um trabalho, custeado pelo governo, com duas crianças surdas. Em 26 de setembro de 1857 é fundado o Instituto Nacional de Surdos Mudos, posteriormente passou a chamar-se de Instituo Nacional de Educação dos Surdos - INES. Inicialmente, esse instituto utiliza a língua de 11 sinais como língua oficial, mas seguindo a tendência mundial referente a decisão do Congresso de Milão, em 1911 opta pelo oralismo em toda a sua grade curricular. Ainda assim a língua de sinais permaneceu em sala de aula até 1957 quando é proibida oficialmente pela diretora Ana Rímola de Faria Doria. Num ato de revolta os alunos continuavam a se comunicar em sinais pelo pátio e corredores da escola. A Comunicação Total chegou ao Brasil somente no fim da década de setenta, através de Ivete Vasconcelos, educadora da Universidade Gallaudet. 12 As pesquisas do lingüista Willian Stoke sobre a língua de sinais americana serviram como base para estudos em lingüística na Europa e no Brasil. O bilingüismo chega na década de oitenta, através das pesquisas da professora lingüista Lucinda Ferreira Brito, sobre a língua de sinais utilizada em uma aldeia indígena da Amazônia e a língua de sinais utilizada pelos surdos dos centros urbanos. Grande parte das conquistas da comunidade surda são resultados das lutas e reivindicações articuladas nos movimentos de surdos. As associações e clubes de surdos do país são espaços de socialização, constituição e discussão da cultura surda e de seus artefatos. As associações inicialmente pensadas para dar assistência e informações aos surdos constituem ainda hoje em um espaço político, onde articulam-se as lutas de uma comunidade local. A Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos – FENEIS, fundada em vinte e cinco de novembro de 1988, sob a presidência de uma mulher, Ana Regina e Souza Campello, nasceu para mostrar a capacidade dos surdos em organizar-se para lutar e pensar propostas de educação, defender sua identidade e divulgar a cultura surda e lutar pelos direitos de surdos brasileiros. A sede nacional está no Rio de Janeiro e possui regionais em vários estados do país. O dia do surdo, comemorado no dia 26 de setembro, data da fundação da primeira escola de surdos no Brasil, é uma conquista para a comunidade 13 surda brasileira, pois representa, simbolicamente, o reconhecimento de sua cidadania, da luta organizada de um grupo minoritário e não de deficientes. É válido dizer que mesmo participando da experiência visual do mundo, nem todo surdo é igual, haverá diferenças dentro da comunidade surda. Visto que a subjetividade é um fator a ser considerado, pois está relacionado aos pensamentos que temos de nós mesmos sobre quem somos. No entanto, cabe lembrar que o fato dos surdos e surdas terem uma inserção tardia na comunidade sua subjetividade é determinada inicialmente no mundo ouvinte o que pode gerar marcas profundas. “As identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da cultura surda, elas moldam-se de acordo com o maior ou menor receptividade cultural assumida pelo sujeito. E dentro dessa receptividade cultural, também surge aquela luta política ou consciência oposicional pela qual o indivíduo representa a si mesmo, se defende da homogeneização, dos aspectos que o tornam corpo menos habitável, da sensação de invalidez, de inclusão entre os deficientes, de menos valia social”. (PERLIN apud STROBEL, 2009. p. 27). A língua portuguesa representou por muito tempo um símbolo da cultura ouvintee um instrumento de colonização do surdo, quando imposta pela maioria dominante como o modelo a ser alcançado na busca por uma normalização. Em 2002, depois de muitas lutas, conseguiu-se a conquista e vitória da homologação da Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002, também conhecida como lei de libras, que reconheceu a língua de sinais como língua 14 da comunidade surda brasileira e garante o direito de seu uso em todos os espaços. Com o intuito de regulamentar a lei de libras em dezembro de 2005 é publicado o Decreto Nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005. De forma geral, o decreto discorre sobre vários itens, entre eles: a definição de pessoa surda; a colocação de Libras como disciplina curricular obrigatória e a ampliação dos cursos que a ensinem, e em alguns casos a opção nos cursos; a formação do professor e do instrutor de Libras; exames de proficiência e outras avaliações; medidas para difusão e uso de Libras e Língua Portuguesa como forma de dar ao surdo acesso à educação; a formação do tradutor/intérprete de Libras/ Português; a garantia dos direitos dos surdos à educação e à saúde; o papel do poder público no apoio à difusão da Libras; o controle do orçamento público e o controle do uso e difusão das medidas legisladas. O surdo passa a ser Surdo e não mais deficiente. 15 REFERÊNCIAS BRASIL . Lei 10436 de 24/04/2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – e dá outras providências. Diário Oficial de 25/04/2002, da República Federativa do Brasil. Brasília. LABORIT, Emmanuelle. O vôo da gaivota. São Paulo: Best Seller, 1994. MEC, Ministério da Educação e Cultura. O tradutor Intérprete de Língua Brasileira de Sinais. Brasília: MEC, 2004. SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. ______. Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 7º ed. Petrópolis: Vozes, 2000 SKLIAR, Carlos Bernardo. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse a? Rio de Janeiro: DP&A, 2003. SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma jornada no mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago, 1997. STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2009. 16 THOMA, Adriana da Silva; LOPES, Maura Corcini (Org.). A invenção da surdez: cultura, alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da UNISC, 2004. VILHALVA, Shirley. Despertar do Silêncio. Petrópolis: Ed. Arara Azul, 2004.