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DE DANTE A MAQUIAVEL culturas do poder entre os séculos XIII e XV em FLORENÇA

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 
PUC-SP 
 
 
 
 
Rodrigo Pucci Müller 
 
 
 
 
 
De Dante a Maquiavel: culturas do poder entre os séculos XIII e XV em 
Florença 
 
 
 
 
Doutorado em História 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2022 
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 
Programa de Estudos Pós-Graduados em História 
 
 
 
 
Rodrigo Pucci Müller 
 
 
 
De Dante a Maquiavel: culturas do poder entre os séculos XIII e XV em 
Florença 
 
 
Doutorado em História Social 
 
 
Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de 
Estudos Pós-Graduados em História, da Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo, como exigência 
parcial para a obtenção do título de Doutor em História 
(área de concentração História Social), sob orientação da 
Professora Doutora Estefânia Knotz Canguçu Fraga 
 
 
 
São Paulo 
2022 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Banca Examinadora 
 
 
 
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À minha família. 
 
 
O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de 
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Código de Financiamento – 
001. 
Processo n. 140033/2019-0. 
 
This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento 
Científico e Tecnológico (CNPq) – Finance Code – 001. 
Process n. 140033/2019-0. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Agradecimentos 
 
 Agradeço, em primeiro lugar, às agências fomentadoras da CAPES, no 
primeiro ano (2018), e do CNPq, nos três anos subsequentes (2019-2021), pelo 
apoio financeiro que possibilitou a realização desta pesquisa. 
 Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e ao Programa 
de Estudos Pós-graduados em História pelo espaço e pela oportunidade de 
permitir que tal projeto de investigação histórica tomasse corpo em suas 
dependências até resultar na presente tese de doutorado. Estendo estes 
agradecimentos ao coordenador do Programa, Professor Doutor Luiz Antonio 
Dias, e à vice-coordenadora, Professora Doutora Carla Reis Longhi, por todos 
os direcionamentos e disponibilidade em atender, organizar e solucionar todas 
as demandas dos alunos; sobretudo nesses tempos de pandemia que geraram 
tanta incerteza. Agradeço, também, ao assistente de coordenação do Programa, 
William Fernando Moreira da Silva, por todo auxílio nas questões burocráticas, 
documentais e de cronograma que se apresentaram ao longo desses anos. 
 Agradeço à minha orientadora, Professora Doutora Estefânia Knotz 
Canguçu Fraga, que me acolheu em seu círculo de orientandos desde o 
mestrado, e, amavelmente, acompanhou o trajeto do doutoramento, iluminando 
caminhos, abordagens e possibilidades de estruturação desta tese com seu 
imenso carinho e generosidade. 
 Agradeço à Professora Doutora Yone de Carvalho, grande amiga, mestra 
e guia, por toda dedicação, companheirismo, auxílio, direcionamento e 
aconselhamento ao longo de tantos anos, desde as monitorias da graduação, 
onde estão as sementes de grande parte do conhecimento condensado nesta 
tese e de toda a minha trajetória acadêmica até aqui. Agradeço, além disso, toda 
a amizade e carinho sempre! 
 Agradeço ao Professor Doutor Álvaro Hashizume Allegrette, presente em 
toda a minha caminhada na PUC-SP desde a primeira aula da graduação, fonte 
de um vasto conhecimento que envolve diversas áreas e temporalidades, 
sempre ajudando a abrir nossas perspectivas e a indicar caminhos acertados, e 
que concede a honra de sua presença na banca de defesa desta tese. 
Agradeço à Professora Doutora Ana Paula Tavares Magalhães Tacconi, 
do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), que desde o 
mestrado tem sido tão gentil por acompanhar o desenvolvimento de minha 
pesquisa, enriquecendo todas as minhas bancas de qualificação e de defesa, 
sempre com um olhar atento e generoso que engrandece o trabalho. 
 Agradeço à Professora Doutora Maria Cristina Correia Leandro Pereira, 
que foi tão solícita ao aceitar compor a minha banca de defesa, trazendo mais 
um olhar analítico e especializado que contribui para a minha formação e para a 
legitimação desta tese. 
 Agradeço à Professora Doutora Vera Lúcia Vieira, que acompanhou e 
orientou os meus primeiros passos nas disciplinas iniciais do doutoramento, por 
todo o incentivo e por ter aceitado compor a banca de defesa como suplente da 
PUC-SP. 
 Agradeço ao Professor Doutor Eduardo Wolf Pereira, por ter me acolhido 
tão calorosamente em seu grupo de estudos “Indivíduo, Democracia e 
Liberdade” do LABÔ – FUNDASP, cujos encontros, ao longo de dois anos, 
enriqueceram o meu caminhar no doutorado e foram fundamentais para alicerçar 
as reflexões teórico-metodológicas desta tese. Agradeço, também, por aceitar o 
convite de participar da banca de defesa como suplente externo. 
 Agradeço aos demais professores do Departamento de História da PUC-
SP que ministraram disciplinas ao longo destes quatro anos, a fim de auxiliar e 
contribuir para melhor formatação e escrita da tese de doutorado. Entre eles, a 
Professora Doutora Maria Izilda Santos de Matos e o Professor Doutor Alberto 
Luiz Schneider. 
 Agradeço aos meus colegas doutorandos, Diógenes Sousa, Henry 
Mähler-Nakashima, Regiane Luzia Lopes, Maíra Pires Andrade, Fabiano 
Miranda do Nascimento Tizzo e Bianca Melzi de Lucchesi por todas as 
experiências compartilhadas, pela cumplicidade e auxílio mútuo, e 
especialmente, a Paulo Henrique de Oliveira, Cristina Toledo de Carvalho e 
Fábio Monteiro que, também, confiaram a mim a leitura prévia de suas teses. 
 Agradeço a todos os meus amigos que vêm acompanhando a minha 
trajetória de pesquisa desde o início, especialmente à Joyce de Freitas Ramos 
e família que estão sempre presentes em todos os momentos. 
 Agradeço à minha família, a base de tudo, que dá sustento e alimenta as 
raízes do nosso ser. À minha mãe Ana Maria Gemma Ippolito Pucci, ao meu pai 
Milton de Paula Müller (In memoriam), e aos meus primos Mário Pucci, Lucila 
Pucci (Pety), Ebe Reale, Liliana Ciambelli e Haruo Okawara, grato sempre por 
todo apoio, carinho e motivação na realização desta caminhada. 
PUCCI MÜLLER, Rodrigo. De Dante a Maquiavel: culturas do poder entre os 
séculos XIII e XV em Florença. Tese (Doutorado em História). Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2022. 
 
Resumo 
 
Dante Alighieri e Nicolau Maquiavel, apesar dos dois séculos que os separam, 
foram homens com experiências em comum. Nascidos em Florença, prestaram 
serviços na esfera governamental desta cidade, e, posteriormente, viveram em 
exílio, período em que se dedicaram a escrever obras políticas que abarcaram 
tanto suas experiências empíricas quanto o arcabouço teórico do qual se serviam 
intelectualmente de acordo com a tendência predominante na época. Ideais de 
virtude que remontavam aos antigos filósofos da Antiguidade e a noção de ciclos 
históricos que ressoava desde então, o misticismo do corpo político medieval, as 
analogias cristãs, as pretensões de príncipes universalistas e particularistas de 
fins da Idade Média e princípios da Renascença, as correntes de pensamento 
da Escolástica e do Humanismo, o Republicanismo do norte italiano de princípios 
do período Moderno, tudo isso faz parte do que aqui se cogitou chamar de 
“culturas do poder”, presentes na longa duração das ideias e dos discursos que 
tentavam decifrá-las ou defini-las. Dante e Maquiavel, cada um à sua maneira, 
foram personagens que articularam essas culturas do poder de acordo com o 
contexto em que viveram. Um terceiro personagem, ainda, aparece como 
amálgama destas duas figuras: a própria cidade de Florença, testemunha 
concreta e abstrata dos discursos, vivênciase temporalidades presentes nestas 
relações que se pretendem esquadrinhar. Portanto, busca-se investigar de que 
forma se pode traçar um paralelo entre esses sujeitos históricos, observando 
como eles articularam as práticas e representações das culturas do poder em 
seus escritos, e compreendendo, através deles, que Poder e História são 
indissociáveis, apesar da pluralidade de interpretações ao longo do tempo. 
 
Palavras-chave: Dante Alighieri, Nicolau Maquiavel, Florença, Poder, História. 
PUCCI MÜLLER, Rodrigo. From Dante to Machiavelli: cultures of power 
between the 13th and 15th centuries in Florence. Thesis (Doctorate degree). 
Pontificia Universidade Catolica of São Paulo. São Paulo, 2022. 
 
Abstract 
 
Dante Alighieri and Niccolò Machiavelli were men with common experiences, 
although the two centuries that set them apart. Both were born in Florence, 
rendered services in the spheres of government from that city, and, subsequently, 
both had lived in exile, a time when they had dedicated themselves to writing 
political works that embraced their empirical experiences as well as their 
theoretical framework from which they had intellectual bases according to the 
prevailing trend at the time. Ideals of virtue dated back to the ancient philosophers 
and the notion of historical cycles that resounded since then, the mysticism of the 
medieval political body, the Christian analogies, the ambitions of universalists 
and particularists princes from Later Middle Ages and the dawn of Renaissance, 
the schools of thought of Scholasticism and Humanism, the Republicanism from 
the North Italy in the beginnings of Modern period, all of this is part of what is 
called here “cultures of power”, present in the long-term of ideas and of speeches 
that tried to decode it or to define it. Dante and Machiavelli were, which one in his 
way, characters that articulated these cultures of power according to the context 
in which they lived. In addition, a third character figures as amalgam of such 
personalities: the city of Florence itself, tangible and abstract witness of the 
speeches, experiences and temporalities featured in these relations scrutinized 
here. Therefore, this research intends to investigate how it is possible to draw a 
parallel between these historical subjects, perceiving how they articulated 
practices and representations of the cultures of power in their writings, and 
understanding, through them, that Power and History are inseparable, despite 
the plurality of interpretations over time. 
Keywords: Dante Alighieri, Niccolò Machiavelli, Florence, Power, History. 
 
Lista de Imagens 
 
 
Imagem 01 – Panorama da cidade de Florença .............................................. 45 
 
Imagem 02 – O Palazzo Vecchio e a Piazza della Signoria ............................. 50 
 
Imagem 03 – Mapa do Corredor Vasariano ..................................................... 53 
 
Imagem 04 – Iluminura - a Roda Fortuna – Carmina Burana ......................... 156 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sumário 
Introdução ...................................................................................................... 13 
 
Capítulo 1 – Florença, testemunha do tempo e de seus homens ............... 43 
1.1 – A Florença concreta: espelho das culturas do poder ............................... 44 
1.2 – A Comuna de Dante ................................................................................ 56 
1.3 – A República de Maquiavel ....................................................................... 68 
 
Capítulo 2 – Dante Alighieri e a simbologia do poder no Medievo ............. 80 
2.1 – Aristóteles, a escolástica e os tratadistas políticos tardo-medievais ........ 86 
2.2 – A dupla natureza humana e o Corpo Místico ........................................... 93 
2.3 – A Eudaimonia e o Sumo Bem Cristão ................................................... 111 
 
Capítulo 3 – Nicolau Maquiavel e o espírito Renascentista ...................... 117 
3.1 – O Príncipe, fim dos espelhos de príncipes ............................................ 124 
3.2 – Virtù e Fortuna: as chaves maquiavelianas do poder ............................ 136 
3.3 – A decadência e os Ciclos de Poder ....................................................... 143 
 
Capítulo 4 – Culturas do Poder e os Ciclos da História ............................ 154 
4.1 – Fortuna, Imperatrix Mundi ..................................................................... 156 
4.2 – Concepções de História: tempo cíclico e escatologia ............................ 168 
4.3 – O Retorno de Saturno ........................................................................... 179 
 
Considerações Finais .................................................................................. 186 
 
Anexos .......................................................................................................... 189 
Anexo I – Commedia de Dante – Inferno – Canto VII ..................................... 189 
Anexo II – Da Fortuna, de Nicolau Maquiavel ................................................ 191 
 
Referências Bibliográficas .......................................................................... 200 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Em meio ao jardim do pensamento medieval, entre o 
crescimento exuberante das sementes antigas, o 
classicismo desenvolveu-se gradualmente. No início, 
apenas como um elemento formal da imaginação. Só mais 
tarde ele iria se tornar um grande e novo estímulo; e o 
espírito e as formas de expressão que nós costumamos 
considerar antigos, medievais, também ainda não 
desapareceram.” 
- Johan Huizinga1 
 
1 HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. Tradução: Francis Petra Janssen. São Paulo: 
Cosac Naify, 2010, p. 553. 
13 
 
Introdução 
 
 
 À primeira vista, pode soar estranho e ousado um estudo que pretende 
colocar lado a lado figuras tão distintas como Dante e Maquiavel. Isto porque, de 
um lado, é lugar comum atribuir a Dante a imagem de um grande poeta, cujos 
temas filosóficos e cristãos, o amor profundo por uma dama inacessível e a 
dedicação habilidosa aos vocábulos vernáculos são os pilares de seus versos 
que compõem uma epopeia magistral que o leva desde as profundezas do 
Inferno, passando pelas “terras recém-descobertas”1 do Purgatório, até a 
contemplação da presença divina no Paraíso. Obra esta que lhe garante, mesmo 
hoje, sete séculos após a sua morte, o reconhecimento como o maior expoente 
da cultura dos povos de língua italiana. Em contrapartida, a imagem de 
Maquiavel é facilmente associada a assuntos perniciosos e escusos, a ponto de 
o seu sobrenome ter se tornado a raiz semântica de adjetivos como 
“maquiavélico” para se referir a atitudes desleais, calculistas, dolosas, próprias 
de pessoas pérfidas, astutas e ardilosas que, sobretudo na esfera política e 
governamental, são capazes de qualquer tipo de atrocidade para atingir os seus 
objetivos nada ortodoxos, não importando a quem prejudiquem pelo caminho. 
Sua obra mais conhecida deu-lhe a fama de guia para governantes autoritários, 
 
1 É importante ressaltar que se utiliza aqui a expressão “terras recém-descobertas” como uma 
figura de linguagem que leva em consideração os estudos levantados por Jacques Le Goff sobre 
o Purgatório, nos quais se baliza que essa crença cristã de um local intermediário entre o Inferno 
e o Paraíso foi um fenômeno iniciado por volta do século XII. Não foi Dante quem criou o 
Purgatório, mas, como o próprio Le Goff afirma no capítulo que encerra seu estudo sobre esta 
temática, “Se Dante soube dar tão bem ao purgatório todas suas dimensões é porque 
compreendeu seu papel de intermediário ativo e o mostrou graças à sua encarnação espacial e 
à figuração da lógica espiritual na qual se insere. Dante soube fazer a ligação entre sua 
cosmogoniae sua teologia” (LE GOFF, 2017, p. 513). Para além da relação entre Dante e o 
Purgatório, Le Goff examina que o Cristianismo, apesar de herdeiro direto de muitas tradições 
dos hebreus, não herda a concepção uniforme do mundo dos mortos judaico – o shéol – mas 
sim, algo similar à concepção dualista romana que ia do tenebroso Hades aos bem-aventurados 
Campos Elíseos. Mesmo assim, o historiador francês remonta ao imaginário da geografia do 
além de diversas sociedades da Antiguidade (hindu, babilônica, egípcia, iraniana, entre outras) 
em busca de reminiscências ou indícios de uma possibilidade de terceiro lugar. E é como este 
“terceiro lugar”, ou “lugar intermediário” que ele se fixa no imaginário cristão, mas não antes do 
século XII: “Até o fim do século XII, a palavra purgatorium não existe como substantivo. O 
purgatório não existe” (LE GOFF, 2017, p. 12). Portanto, tendo Dante escrito sua epopeia no 
Purgatório por volta de 1319, é nesse sentido cronológico que se considera o termo figurativo 
“terras recém-descobertas”. Para mais informações sobre o tema, consultar: LE GOFF, Jacques. 
O Nascimento do Purgatório. Tradução: Maria Ferreira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 
14 
 
cruéis, tiranos de toda ordem. Enquanto o nome de Dante é proferido 
solenemente, em alto e bom som, proporcionando honrarias e indícios de que o 
interlocutor possui riquíssima bagagem de formação intelectual, o nome de 
Maquiavel é sussurrado pelos cantos, sempre tomando cuidado para que não se 
interprete mal qualquer argumento que venha acompanhado de sua fama. 
A partir deste breve prólogo carregado de sínteses triviais recobertas 
pelos véus e camadas interpretativas que os séculos e os discursos históricos e 
historiográficos conferiram a estes dois personagens, fica evidente o 
estranhamento que pode acometer o leitor ao se deparar com um estudo 
acadêmico que pretende colocar em conjunção estes dois homens em suas 
páginas. Contudo, é parte do ofício de um historiador lançar novas luzes ao 
passado, trazer novas perspectivas de análise ao retirar as camadas de verniz 
que cristalizaram determinados homens como figuras históricas essencialmente 
heroicizadas ou vilanizadas, e tentar recuperar vestígios, ainda que muito 
escassos, daquilo que outrora eles foram de fato: pessoas de carne e osso, 
comuns, que estabeleceram diálogos com a cultura, com as ideias e com os 
demais homens de seu tempo. Encontrar o Dante e o Nicolau que não haviam 
sido enaltecidos ou repelidos como grandes nomes a serem perpetuados pelos 
tempos vindouros, mas aqueles que tiveram que enfrentar as vicissitudes de sua 
época como é natural a todo ser humano. Neste exercício investigativo aqui 
proposto, poder-se-á descobrir elementos que os colocam em situações 
análogas, bem como outros aspectos que corroboram a distinção entre eles. 
Antes de tudo, é preciso esclarecer qual é o recorte temporal que há entre 
estes personagens. Dois séculos praticamente exatos separam o tempo de vida 
dos dois. Dante Alighieri nasceu em 1265 e faleceu em 1321. Nicolau Maquiavel 
nasceu em 1469 e faleceu em 1527. Assim, com estas breves informações, para 
um simples conhecedor das atuais balizas cronológicas através das quais se 
convencionou delimitar e classificar os tempos históricos para sua melhor 
compreensão e estudo, é fácil atribuir os adjetivos das épocas que lhes são 
correspondentes: Dante foi um homem medieval, enquanto Maquiavel foi um 
homem renascentista. Eis a primeira distinção entre eles. Porém, a primeira 
semelhança é, também, de simples vislumbre: ambos nasceram e viveram 
grande parte de suas vidas em Florença. Semelhança esta que se desfaz caso 
15 
 
se faça uso do argumento de que, apesar de se tratar do mesmo lugar físico, 
histórica e politicamente, tratam-se de duas Florenças igualmente distintas: a 
Florença medieval de Dante não era a mesma da Florença renascentista de 
Maquiavel. Portanto, é neste jogo de similaridades e diferenças que se pedirá 
licença ao leitor, logo no primeiro capítulo desta tese, para uma breve introdução 
biográfica e histórica destes personagens, para elucidar os pontos sobre os quais 
os argumentos do presente estudo irão se debruçar. 
Não se pretende discorrer sobre os detalhes biográficos muito específicos 
de ambas as figuras, cujo trabalho já foi muito bem desempenhado por diversos 
estudiosos2. Mas sim, observar, especificamente, como eles afetaram e foram 
afetados pelos movimentos políticos que presenciaram em Florença, momentos 
estes que serviram como uma das bases para o desenvolvimento de suas 
reflexões sobre a lógica e a mecânica das instâncias de poder e do caminhar 
histórico, que são os principais objetos de reflexão deste trabalho, alcunhados 
aqui como “culturas do poder”. Não se pode analisar os discursos e as ideias 
intelectuais e filosóficas de Dante ou de Maquiavel sem compreender o cenário 
florentino que lhes dava sustentação. Assim, a cidade de Florença se apresenta 
como um terceiro (ou primeiro) personagem a ser investigado em sua trajetória, 
de modo que ela assume o caráter de elo de constante diálogo entre os dois 
homens que ali viveram em períodos distintos. 
Para além de um terceiro personagem, Florença se apresenta, também, 
como recorte espacial e temporal para as reflexões feitas aqui. Esta tese é uma 
 
2 Para biografias de Dante Alighieri, consultar: AUBERT, Eduardo Henrik. Vidas de Dante: 
escritos biográficos dos séculos XIV e XV. São Paulo: Ateliê, 2011; BARBERO, Alessandro. 
Dante: a biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021; BOCCACCIO, Giovanni. Vida de 
Dante. Trad. Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Penguin, 2021; FRANCO JÚNIOR, Hilário. Dante 
Alighieri: o poeta do absoluto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000; MARTINS, Cristiano. “A Vida 
Atribulada de Dante Alighieri” In: A Divina Comédia. Tradução: Cristiano Martins. Belo Horizonte: 
Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976; MONTANELLI, Indro. Dante e il suo Secolo. Milano: Rizzoli 
Editore, 1964; e REYNOLDS, Barbara. Dante: o poeta, o pensador político e o homem. Trad. 
Fátima Marques. Rio de Janeiro: Record, 2011. 
Para biografias de Nicolau Maquiavel, consultar: ATKINSON, James B. Niccolo Machiavelli: 
portrait. Cambridge: The Cambridge Companion to Machiavelli, 2010; HEERS, Jacques. 
Machiavel. Paris: Fayard, 1985; RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel. Trad. Nelson 
Canabarro. São Paulo: Musa Editora, 2003 (Ler os Clássicos; v.9); SKINNER, Quentin. 
Maquiavel. Trad. Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012; VIROLI, Maurizio. O sorriso 
de Nicolau: História de Maquiavel. Trad. Valéria Pereira da Silva. São Paulo: Estação Liberdade, 
2002; e VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel: nos tempos da política. Trad. Sérgio Maduro. São 
Paulo: Martins Fontes, 2016 
16 
 
espécie de continuação, ou melhor, de aprofundamento de um tema de pesquisa 
já elaborado na anterior dissertação de mestrado3, que versava sobre uma 
análise das culturas do poder do Ocidente Cristão Medieval através da obra De 
Monarchia4 de Dante Alighieri. Note-se bem que se partia da análise de uma 
obra específica de Dante, inserindo-a numa teia de pensadores e intelectuais 
tardo-medievais para, assim, alcançar um conjunto de práticas e representações 
do poder em todo o Ocidente Cristão do baixo-medievo. Entretanto, com base 
em novos estudos, compreende-se, agora, que estender o campo semântico 
desta análise histórica para todo o Ocidente é demasiado ousado, posto que, no 
seio deste Ocidente medieval, há variações inúmeras de interpretações, de 
sentidos, de representações e de manifestações destas culturas do poder. Como 
exemplo disto, pode-se citar os estudos de Norbert Elias5 que, ao analisar, numa 
perspectiva mais ampla, o desenvolvimento dos poderes do Ocidente medieval, 
estabeleceu uma distinção grande entre as forças centrífugas (que atuavam nas 
regiões do Sacro Império e da Itália) e as forças centrípetas (que atuavamem 
monarquias nacionais como as da França e da Inglaterra). 
O problema que os duques de Frância e Normandia, ou do 
território angevino, enfrentavam como reis, na luta pela 
hegemonia nessa região, era inteiramente distinto daquele que 
se impunha aos governantes do Império Romano-Germânico. 
Nos primeiros, a centralização ou integração, a despeito de 
numerosas guinadas para um lado e outro, tomara um curso em 
 
3 Ver: PUCCI MÜLLER, Rodrigo. De Monarchia: Dante Alighieri e as culturas do poder entre os 
séculos XIII e XIV no Ocidente Cristão Medieval. Dissertação de Mestrado, Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo, 2017. 
4 “Sobre a Monarquia”, numa tradução livre do latim. Tal tratado político de Dante foi traduzido, 
no Brasil, apenas como “Monarquia”. Entretanto, optou-se, nesta tese, por utilizar sempre os 
títulos originais das obras, tanto de Dante quanto de Maquiavel, em latim ou em dialeto vernáculo 
florentino (futuramente, a base da língua italiana), sempre indicados em itálico, para facilitar a 
compreensão de que se está referindo, exatamente, à tais obras. 
5 Nobert Elias (1897-1990) foi um sociólogo alemão que se dedicou aos estudos do poder e ao 
conhecimento histórico. Ele lecionou na Universidade de Leicester entre os anos de 1945 e 1962, 
mas só teve seus estudos realmente reconhecidos após a publicação da obra “A Sociedade de 
Corte”, quando já contava com 70 anos de idade. Nesta obra, Elias estuda a corte francesa de 
Luís XIV, o Rei-Sol, observando como se dava a intricada rede de interdependências na qual 
estavam mergulhados não apenas o rei e os nobres que orbitavam ao seu redor, mas sim, a 
função de ser rei, e a lógica por detrás do prestígio e da etiqueta à qual todos estavam 
submetidos. Entre outras obras importantes que escreveu, estão os dois volumes de “O Processo 
Civilizador”, na qual, sobretudo no segundo volume, ele se dedicou a estudar os fenômenos de 
estruturação do poder desde a dinâmica da feudalização no Ocidente medieval até o processo 
que ele chamou de sociogênese do Estado na sociedade moderna. 
17 
 
linhas gerais contínuo. Na segunda área, incomparavelmente 
mais extensa, uma família de governantes territoriais após outra 
tentou, em vão, implantar, cingindo a coroa imperial, uma 
hegemonia realmente estável sobre todo o Império. Uma Casa 
após outra usara até a exaustão nessa luta infrutífera o que, a 
despeito de tudo o mais, continuava a ser a fonte principal de 
sua renda e poder – suas possessões hereditárias ou de raiz. 
Após cada tentativa frustrada de uma nova Casa, a 
descentralização e a consolidação das tendências centrífugas 
davam mais um passo à frente. (ELIAS, 2005, pp.91-92)6 
 Corroborando esse posicionamento de Elias, numa análise mais 
minuciosa que será melhor explorada no segundo capítulo desta tese, o 
historiador alemão Ernst Kantorowicz, em seus estudos sobre o misticismo que 
envolvia a legitimação da continuidade dinástica por volta do século XIII, irá 
perceber como, nas regiões do Império e da Itália, a questão da bênção e da 
sagração no momento de aclamação de um novo governante obedecerá à 
questões mais pragmáticas - fundamentadas em ordenamentos jurídicos e 
teóricos de origem teológico-filosófica -, do que na França ou na Inglaterra, onde 
a questão da hereditariedade do sangue real já bastava para confirmar os 
desígnios divinos de escolha para aquele novo príncipe que nascia. 
Seria difícil dizer com certo grau de precisão se, ou em que 
medida, a discussão acalorada levada a efeito por canonistas e 
legistas, durante o Interregno, quanto aos direitos pré-coroativos 
do imperador, pode ter influenciado as decisões políticas dos 
reinos europeus. Podemos supor, contudo, que as teorias legais 
estavam em vigor, pelo menos subsidiariamente, quando as 
duas grandes monarquias ocidentais, França e Inglaterra, 
intentaram colocar em prática o que os jurisconsultos posteriores 
teriam tomado quase como dado: separar da consagração 
eclesiástica o começo do reinado de um monarca e seu exercício 
pleno do poder. [...] Portanto, a continuidade do “corpo natural” 
do rei foi assegurada quando as duas monarquias ocidentais não 
 
6 Ver: ELIAS, Norbert. “Digressão sobre Algumas Diferenças nas Trajetórias de Desenvolvimento 
da Inglaterra, França e Germânia” In: O Processo Civilizador, vol.2 – Formação do Estado e 
Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pp. 91-97. 
18 
 
só aboliram o “pequeno interregno” entre ascensão e coroação, 
mas também eliminaram, de uma vez por todas, a possiblidade 
de um “grande interregno” que poderia ocorrer entre a morte de 
um rei e a eleição de seu sucessor”. (KANTOROWICZ, 1998, pp 
201-202)7 
Desta maneira, compreende-se que não se pode pretender encontrar nos 
discursos, seja de Dante ou de Maquiavel, elementos que abracem toda a 
Cristandade do Ocidente Medieval, posto que há diferenças profundas de 
práticas e de representações nessa teia de culturas do poder, que pode se 
manifestar de diversas maneiras a depender da localidade. Portanto, Florença, 
para além de personagem, é o referencial espacial e temporal desta análise, pois 
delimita que as culturas do poder aqui abordadas entre Dante e Maquiavel, ou 
entre os séculos XIII e XV, são as que dizem respeito, especificamente, às 
práticas e representações do poder que, de alguma maneira, estavam presentes 
ou se refletiam nos eventos políticos concernentes à realidade florentina. 
A escolha de Florença como este referencial se deu não apenas pelo fato 
de ser o local de nascimento dos dois personagens - Dante e Maquiavel - mas 
também, porque, apesar de se tratar de uma única cidade dentre tantas que 
compunham o norte italiano da época, ela foi palco de inúmeras e diversas 
manifestações das culturas do poder aqui estudadas. O historiador Jacob 
Burckhardt8, em sua obra mais famosa, “A Cultura do Renascimento na Itália”, 
faz algumas exortações sobre essa característica especial de Florença, que 
valem a pena uma breve reflexão crítica aqui, que vai ao encontro do que este 
estudo se propõe, além de ajudar a justificar a escolha de tal recorte espaço-
temporal. 
A mais elevada consciência política, a maior riqueza em 
modalidades de desenvolvimento humano encontram-se 
reunidas na história de Florença, que, nesse sentido, por certo 
merece o título de primeiro Estado moderno do mundo. Ali, é 
 
7 Ver: KANTOROWICZ, Ernst. “O Rei nunca Morre – Continuidade Dinástica” In: Os Dois Corpos 
do Rei – Um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 
pp. 195-205. 
8 Jacob Burckhardt (1818 – 1897) foi um historiador suíço dedicado aos campos da História da 
Arte e da História Cultural. Lecionou nas universidades da Basileia e de Zurique. 
19 
 
todo um povo que se dedica àquilo que, nos Estados 
principescos, constitui assunto de família. O maravilhoso espírito 
florentino, dotado igualmente de um aguçado caráter racional e 
artístico, transforma incessantemente as condições políticas e 
sociais, descrevendo-as e julgando-as com igual frequência. 
Florença tornou-se, assim, o berço das doutrinas políticas e 
teorias, dos experimentos e saltos adiante; [...] e, solitária, 
precedendo todos os demais Estados do mundo, o berço da 
escrita da história, em seu sentido moderno. Contribuíram para 
tanto a contemplação da antiga Roma e o conhecimento de seus 
historiadores. (BURCKHARDT, 2009, p. 98)9. 
 Assim, quem se atém a esta descrição, ao contrário do que já foi explicado 
anteriormente, não pode deixar de fazer uma analogia que, ao estudar Florença 
e as culturas do poder que dali podem ser percebidas através dos discursos de 
seus homens, como Dante e Maquiavel, está se analisando, também, uma 
espécie de síntese das manifestações de poder do Ocidente. Porém, é claro que 
há que se ter ressalvas críticas, também, quanto à exaltação de determinados 
elementos, e este é o caso de Burckhardt com relaçãoà Florença. 
Se este estudo se propõe a uma análise das culturas do poder no espaço 
temporal entre Dante e Maquiavel, e se, como já foi observado previamente, 
Dante se enquadraria (num esquema cronológico e historiográfico atualmente 
vigente) na definição de “homem medieval”, como poderia, segundo Burckhardt, 
a riqueza e a diversidade das práticas políticas de Florença se dar, apenas, a 
partir do período dito “moderno”, ou, em outra perspectiva de análise, como se 
essa localidade fosse uma vanguardista, atingindo a “modernidade” antes do 
restante do Ocidente? Ademais, fica claro, na última frase da citação acima, que 
Burckhardt considera que tal grandeza florentina é herdeira direta da Roma 
Antiga, subjugando todo o período medieval, e todas as influências e tendências 
de práticas e ideias do Medievo. Ora, como ficará claro, ao longo da tese, os 
referenciais teóricos de Dante estão mais voltados aos pensadores medievais 
da escolástica e da patrística (e, em última instância, aos filósofos gregos 
 
9 Ver: BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução: Sérgio Tellaroli. 
São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. 
20 
 
reinterpretados pelos Pais da Igreja), do que a herança do pensamento romano, 
que está, de fato, mais presente em Maquiavel. 
O historiador Peter Burke10, na introdução que escrevera para esta 
mesma obra de Burckhardt, alerta para o fato de que ele havia sido criticado por 
sua obra definir o Renascimento em oposição à Idade Média - da qual ele pouco 
conhecia - tanto em ordem de grandeza quanto de importância no 
desenvolvimento cultural dos homens do Ocidente11. Contudo, estudos mais 
específicos sobre os ciclos de poder e os eventos políticos florentinos (como será 
visto no primeiro capítulo através do historiador francês Yves Renouard, ou 
mesmo nas História de Florença de Maquiavel, analisada no capítulo 3), atestam 
a afirmação de Burckhardt no que diz respeito à multiplicidade de experiências 
de poder que Florença testemunhou perante as outras localidades. Porém, o 
período dito medieval não se exclui destas análises, muito pelo contrário. É no 
período medieval, mesmo anterior à época de Dante, que essas experiências 
múltiplas florescem na cidade. 
 Talvez, o que se possa contestar, de fato, assim como Burke faz, é a 
questão de Burckhardt enxergar o berço das experiências políticas do Ocidente 
apenas na Florença renascentista; assim como se faz, no senso comum, com os 
estudos medievais, ao se tentar engessar a Idade Média num único esquema de 
organização política, social, econômica e cultural que teria vigorado imutável e 
simultâneo em todas as partes do Ocidente num bloco temporal de mil anos entre 
 
10 Peter Burke (1937 - ) é um historiador inglês renomado no campo de estudos das história das 
ideias e da história cultural. Lecionou em diversas universidades, tais como as de Essex, de 
Sussex e de Princeton. Hoje em dia, é professor emérito da Universidade de Cambridge. 
11 Nas palavras de Peter Burke: “Burckhardt foi criticado por sua falta de conhecimento e simpatia 
para com a Idade Média, por oposição à qual ele define seu Renascimento.” (BURKE, 2009, p. 
31). Entretanto, ele analisa que a visão que Burckhardt construiu do Renascimento ainda é difícil 
de substituir por outra, ou pelo menos o método que ele utilizou ao construir seus argumentos. 
Como exemplo, Peter Burke cita o historiador holandês, Johan Huizinga, que escreve uma 
grande obra no sentido oposto do de Burckhardt, mas acaba enveredando pelo mesmo método 
de análise: “O grande historiador holandês Johan Huizinga escreveu seu Outono da Idade Média 
(1919) como uma espécie de réplica a Burckhardt, enfatizando a temática da decadência, em 
vez da do renascimento, e as culturas da França e de Flandres, em vez da italiana. Ao mesmo 
tempo, contudo, seu livro pinta o retrato de uma época ao estilo de Burckhardt: trata-se de uma 
obra da imaginação, da intuição, da visão.” (BURKE, 2009, p. 32). Para mais detalhes, consultar: 
BURKE, Peter. “Introdução: Jacob Burckhardt e o Renascimento italiano” In: BURCKHARDT, 
Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia 
de Bolso, 2009, pp. 15-35. 
21 
 
os séculos V e XV12. Como o medievalista Hilário Franco Júnior13, ao tratar 
dessas questões de periodizações, alerta: “[...] apesar da existência de 
estruturas básicas ao longo daquele milênio, não se pode pensar, é claro, num 
imobilismo” (FRANCO JR, 2006, p. 15)14. 
 Aliado a essa ponderação, está uma colocação feita por Jacques Le Goff, 
ao pensar a própria herança historiográfica que Jacob Burckhardt legou com sua 
“A Cultura do Renascimento na Itália”. 
Para nós, medievalistas, aparece então, de fato, uma grande e 
desagradável personagem: o suíço alemão Jakob15 Burckhardt 
(1818-1897). Historiador da arte e da civilização, próximo de 
Nietzsche, amoroso da Grécia, Burckhardt – pioneiro – instaura 
firmemente a periodização a que estamos amarrados até hoje. 
 
12 Sobre os diversos marcos temporais que a historiografia, ao longo do tempo, foi considerando 
como possíveis “inícios” e “finais” da Idade Média, o historiador medievalista Hilário Franco Jr, 
elenca: “Feitas essas ressalvas metodológicas obrigatórias, o que devemos entender por Idade 
Média, pelo menos no atual momento historiográfico? Trata-se de um período da história 
europeia de cerca de um milênio, ainda que suas balizas cronológicas continuem sendo 
discutíveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (às vezes política, às vezes religiosa, 
às vezes econômica), já se falou, dentre outras datas, em 330 (reconhecimento da liberdade de 
culto aos cristãos), em 392 (oficialização do cristianismo), em 476 (deposição do último 
imperador romano) e em 698 (conquista muçulmana de Cartago) como o ponto de partida da 
Idade Média. Para seu término, já se pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra 
dos Cem Anos), 1492 (descoberta da América) e 1517 (início da Reforma Protestante)”. 
(FRANCO JR, 2006, pp.14-15). Para mais informações, consultar: FRANCO JR, Hilário. Idade 
Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. 
13 Hilário Franco Júnior (1948 - ) é um historiador medievalista brasileiro, especializado na área 
cultural e mitológica deste período histórico. Foi professor da Universidade de São Paulo (USP) 
e aluno de pós-doutorado de Jacques Le Goff na École des Hautes Études en Sciences Sociales, 
na França. 
14 Ainda, sobre este imobilismo atribuído aos séculos medievais, Hilário atribui essas concepções 
aos homens do dito período do Renascimento, que utilizaram termos relativos à escuridão, para 
se referir à “Idade Média”. De acordo com Hilário Franco Júnior, uma das primeiras referências 
a essas alcunhas foi posta por Francesco Petrarca (1304-1374) referindo-se ao período anterior 
como tenebrae (trevas). Posteriormente, encontra-se, nos escritos de Giovanni Andrea, um 
bibliotecário papal, o termo media tempestas (tempos médios). “Médios” aqui, não no sentido de 
intermediário, mas sim, com a conotação de decadência em relação às épocas predecessoras 
da civilização romana imperial. E, por fim, já no século XVI, Giorgio Vasari populariza o termo 
“Renascimento” procurando demonstrar como os intelectuais e artistas do século XVI tentavam 
se conectar ao conhecimento do período greco-romano. Portanto, termos como media aetas 
(eras médias), media tempora (tempo médio, idade média), e tenebrae tempora (tempos das 
trevas) passaram a se difundir como um conceito que caracterizava o recorte cronológico entre 
os séculos V e XIV no Ocidente europeu como uma época em que o conhecimento estava 
adormecido. Para mais informações, consultar: FRANCO JR, Hilário. Idade Média – Nascimento 
do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. 
15 A tradução do livro “Em Busca da Idade Média” apresenta o nome de Burckhardt com a letra 
“K” em Jakob, mas em todas as outras fontes, inclusive em sua própriaobra editada e publicada 
no Brasil, seu prenome aparece escrito com a letra “C”. Por isso, manteve-se, na citação, a forma 
como aparece com K, mas, ao longo da tese, utiliza-se o C como nas demais fontes. 
22 
 
Apoiando-se em sua paixão pelos Antigos, entusiasmado pela 
arte italiana do Quatrocentto16 (nosso século XV), ele estabelece 
a teoria da ruptura. É ele que inventa o Renascimento, com R 
maiúsculo, isola-o da Idade Média e estabelece esse corte 
definitivo. Burckhardt joga com a antítese. Opõe esse período – 
o Renascimento – ao tempo das trevas, que ainda não estava 
claramente circunscrito, nem datado. Sua Civilização do 
Renascimento na Itália17 (1860), de resto um grande livro, cria 
um corte decisivo. (LE GOFF, 2012, p. 60) 
 É justamente este corte temporal entre Idade Média e Renascimento que 
a presente tese não leva em consideração na proposta que se faz de analisar as 
culturas do poder entre Dante e Maquiavel. Há sim, como será analisado no 
decorrer deste trabalho, inúmeras diferenças e nuances nas práticas, nas 
representações e nas ideias que se concebiam sobre o poder entre a vida dos 
dois florentinos, e na maneira como a cidade testemunhou essas transformações 
nesse intervalo de dois séculos. Entretanto, compreende-se esse processo como 
um continuum18 histórico, uma evolução natural de um ponto ao outro, de Dante 
 
16 A tradução do livro “Em Busca da Idade Média” cometeu mais um erro ortográfico, ao grafar a 
palavra italiana “Quatrocentto” com duas letras “T” na última sílaba. Manteve-se a forma como 
se apresenta no livro, contudo, pontua-se, aqui, que a forma correta de escrever essa palavra 
em italiano é “Quattrocento”, com o T duplo na segunda sílaba. 
17 A tradução do livro “Em Busca da Idade Média” de Jacques Le Goff, aqui citado, utiliza este 
título para a obra de Burckhardt que aqui já foi referenciada como “A cultura do Renascimento 
na Itália”. Manteve-se a forma como foi digitada no livro, mas se atenta para o fato de que a obra, 
cujo título original em alemão é Die Cultur der Renaissance in Italien, foi traduzida pela 
Companhia de Bolso, no Brasil, ao pé da letra do original. A diferença de tradução pode se dever 
ao fato de que este livro de Le Goff foi traduzido diretamente do original em francês (“A la 
recherche du Moyen Age”), idioma que, também, traduziu a obra de Burckhardt como “La 
Civilisation de la Renaissance en Italie”. 
18 Utiliza-se aqui a ideia de continuum histórico de acordo com o pensamento de Marc Bloch, 
quando ele argumenta, em sua “Apologia da História”, que, “Ora, esse tempo verdadeiro é, por 
natureza, um continuum. É também perpétua mudança. Da antítese desses dois atributos 
provêm os grandes problemas da pesquisa histórica. Acima de qualquer outro, aquele que 
questiona até a razão de ser dos nossos trabalhos. Sejam dois períodos sucessivos, recortados 
na sequência ininterrupta das eras.” (BLOCH, 2001, pp. 55-56). Ou seja, Bloch afirma que esse 
continuum é uma perpétua mudança, mas também é a continuidade dos eventos, o que gera 
uma antítese de pensamento, pois se pode pensar em continuum como algo que segue sem 
cessar. Mas o tempo histórico é, exatamente, um constante seguir sem cessar da ação humana, 
que muda e se transforma ininterruptamente também. Cabe ao historiador saber articular estes 
conceitos. Como diz José D’Assunção Barros, “uma última implicação do aforismo blochiano: 
nessa ciência dos homens no tempo, as temporalidades poderiam dialogar por meio da mediação 
do historiador”. (BARROS, 2018, p. 202). Para mais informações, consultar: BLOCH, Marc. “O 
tempo histórico” IN: Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; 
e, BARROS, José D’Assunção. “Os historiadores e o tempo: a contribuição dos Annales” In: 
Cadernos de História. Belo Horizonte, v.19, n. 30, 1º semestre de 2018, p.202. 
23 
 
a Maquiavel, sem que haja essa ruptura que Burckhardt estaria indicando em 
sua obra. Por isso, optou-se por seguir a perspectiva que Jacques Le Goff 
delineou em uma entrevista19 sobre uma longa Idade Média, cujos valores e os 
fundamentos se estenderiam até o século XVIII. 
A cultura medieval, como a vejo, marca mesmo uma fase da 
aventura ocidental muito mais longa do que a “Idade Média” dos 
manuais. Essa cultura exprime um conjunto de valores – um 
modelo de organização dos valores – que se desfaz entre 1750 
e 1850 [...] Se, ao contrário, se quer uma história profunda, o 
corte Idade Média/Renascimento vai confundir a investigação. 
(LE GOFF, 2013, pp.69-70). 
 Para além do olhar de um medievalista, como Jacques Le Goff, o 
historiador Jean Delumeau20, que dedicou um grande estudo ao período 
renascentista, corrobora esta perspectiva 
Os problemas de periodização – um dos pesadelos da 
historiografia quando se debruça sobre o período intermédio que 
separou a época feudal da de Descartes – perdem a sua 
acuidade. Optei por uma história contínua, sem tentar 
estabelecer cortes artificiais. Tudo aquilo que era elemento de 
progresso foi chamado a figurar numa vasta paisagem que se 
estende desde o final do século XIII até à aurora do século XVII” 
(DELUMEAU, 2011, p. 10)21 
 Com isto, define-se, portanto, que, a despeito dos marcos cronológicos 
tradicionais, ou de definições que “encaixam” os personagens aqui analisados 
em periodizações pós-determinadas por pensadores e pela historiografia num 
momento não muito distante do nosso, a Florença entre os séculos XIII e XV 
deste estudo é uma personagem e um marco espaço-temporal que vai se 
 
19 Entrevista de Jacques Le Goff publicada na revista L’Histoire, nº 131, em março de 1990, e 
transcrita na coletânea “Uma longa Idade Média”, sob o título “A Idade Média acaba em 1800”. 
Ver: LE GOFF, Jacques. “A Idade Média acaba em 1800” In: Uma longa Idade Média. Tradução: 
Marcos de Castro. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 67-88. 
20 Jean Delumeau (1923 - 2020) foi um historiador francês que se especializou nos temas 
referentes à história do Cristianismo e das mentalidades religiosas, lecionando no Collège de 
France. 
21 DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: 
Edições 70, 2011. 
24 
 
transformando, de acordo as influências e ideias de seus homens, em ciclos 
específicos que podem, ou não, encontrar ecos, similaridades e distinções em 
relação a outras localidades no mesmo período. Talvez, o excerto de Burckhardt 
que poderia corresponder melhor ao que se pretende nesta tese, esteja na 
seguinte passagem: 
Florença não apenas experimenta um maior número de 
configurações e nuances políticas, como também delas nos 
presta contas com um grau de reflexão incomparavelmente 
maior do que aquele que encontramos nos demais Estados 
livres italianos e no Ocidente em geral. (BURCKHARDT, 2009, 
p. 104)22 
Note-se, aqui, que as nuances políticas são próprias de Florença. 
Observar-se-á que, de fato, entre Dante e Maquiavel, Florença passará por 
períodos distintos, se analisado sob o prisma das estruturas de poder. Nesse 
intervalo, ela passa por experiências de ser uma comuna, uma signorie, um 
principado, uma teocracia, uma república e, novamente, um principado. 
Possivelmente, quando Burckhardt afirma ter Florença uma variação maior do 
que no Ocidente em geral, pode-se interpretar que outros reinos maiores, como 
a França, não passam por tantas oscilações de tipos de governo, pois, como já 
dissera Norbert Elias, este estado passou por um processo de centralização 
concêntrica e centrípeta desde a ascensão da casa dos Capetíngios23. Então, 
 
22 Ver: BURCKHARDT, Jacob. “As repúblicas – Florença a partir do século XIV” In: A Cultura do 
Renascimento na Itália. Tradução: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. 
23 Segundo Norbert Elias, a casa dos Capetíngios herdou uma fração de terra extremamente 
minúscula em relação ao que fora o antigo flanco Ocidental do Império carolíngio,que ficara a 
cargo do filho de Carlos Magno, Carlos, o Calvo no século IX. “O antigo território dos carolíngios 
francos do Ocidente, o embrião do que devia transformar-se na França, por essa época se havia 
desintegrado em grande número de áreas governadas separadamente. [...] Quando a coroa 
passou aos primeiros na pessoa de Hugo Capeto, eles já estavam, de certa forma, debilitados 
por um processo semelhante ao que provocara a queda dos carolíngios.” (ELIAS, 2005, pp.30-
31). Contudo, foi a partir deste pequeno ducado que, ao longo dos séculos, mergulhados em 
disputas entre senhores feudais, a casa reinante dos Capetíngios conseguiu, lentamente, ir 
conquistando terras vizinhas, a partir deste centro original que permanecia em equilíbrio. “O ‘rei’ 
limitava-se ao que faziam os outros grandes senhores feudais: concentrava-se em consolidar 
suas posses, aumentando seu poder na única região onde ainda mandava, o ducado de Frância.” 
(ELIAS, 2005, p. 87). É somente após a Guerra dos Cem Anos, no século XV, que se pode falar 
em um reino da França forte e unificado com o rei em seu controle total. Mas, o que se pretende 
afirmar aqui é que, mesmo diante de tantas oscilações ao longo dos séculos, o poder francês 
nunca perdeu sua origem, fosse mergulhado nas teias de suserania e vassalagem no período 
feudal, seja quando se cristalizou como monarquia nacional. Diferente do caso de Florença, que 
experimentou uma série de diversos tipos de governos de origens, naturezas, lógicas, 
fundamentos e funcionamentos distintos, todos num período menor de tempo. 
25 
 
não se pode afirmar, como havia sido feito na dissertação de mestrado, que esta 
análise das culturas do poder entre Dante e Maquiavel pode abraçar as 
experiências de todo o Ocidente, mas apenas, figurar como um exemplo dentre 
as inúmeras outras formas de manifestação dessas culturas do poder pela 
civilização ocidental europeia entre esses dois séculos. 
Esclarecidas estas questões sobre os sujeitos e o recorte espaço-
temporal da presente tese de doutorado, delimita-se, agora, o objeto: as culturas 
do poder. 
O que realmente nos interessa é pensar o poder como 
situacionalmente distinto, como sujeito próprio de descrição 
qualitativa. Pensar o poder como experiência instantânea, como 
convencional, tradicional, bom e mau, perguntar como o poder 
era sentido, imaginado, concebido, sofrido, assim como 
institucionalizado.24 
 
 É necessário, em primeiro lugar, definir o que aqui se entende por culturas 
do poder. Como é descrito por Thomas Bisson25 no trecho acima, para pensar o 
poder é preciso compreendê-lo como uma experiência que não é dada, ou seja, 
o poder não é algo pré-determinado, não é uma circunstância que paira sobre 
os homens, já definido e completo, bastando aos sujeitos humanos, utilizarem-
no como uma máquina da qual já se sabe as suas funções, ações e reações de 
antemão. Pelo contrário, o poder e seus mecanismos são construídos pelos 
homens em um determinado tempo e espaço. Indo além, ele nunca está pronto, 
pois, assim como os homens vão se modificando ao longo dos anos e dos 
séculos, o poder, em qualquer sociedade, acompanha essa transformação 
contínua, atendendo às demandas daqueles que o detém. 
 
24 Tradução nossa. No original: “What did concern us was to think of power as situationally 
distinct, as proper subject of qualitative description. To think of it as immediate experience, as 
conventional, traditional, good and bad; to ask how power was felt, imagined, conceived, suffered, 
as well as institutionalized.” IN: BISSON, Thomas N. Cultures of Power – Lordship, Status, and 
Process in Twelfth-Century Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995, p.07. 
25 Thomas Noel Bisson (1931 - ) é professor emérito de História na Universidade de Harvard. É 
pesquisador das questões sobre o poder, principalmente na França, no Languedoc e na 
Catalunha do período medieval. 
26 
 
 Logo na introdução de seu texto, Bisson questiona: “Quem foram estes 
homens e mulheres nascidos para governar?” (BISSON, 1995, p. 02)26. Ora, a 
depender do interlocutor, da época, do lugar, as respostas são múltiplas. Se essa 
questão fosse feita a Platão ou a Aristóteles na Atenas do século IV a.C., a 
resposta seria: “O filósofo”. Se fosse feita a Dante na Florença do século XIV, 
“os dois homens escolhidos por Deus em suas respectivas esferas de atuação a 
guiar a humanidade como guias filosóficos”. Se fosse feita a Maquiavel na 
Florença do século XV, “o príncipe que souber utilizar de sua virtù da maneira 
que melhor condisser com as oscilações da fortuna”. 
 Percebe-se como as concepções se alteram quando se mudam o tempo 
e o espaço do interlocutor. O poder pode ser concebido, racionalizado, 
interpretado, sentido, ou vivenciado de formas múltiplas, inclusive, pelos homens 
de um mesmo tempo, ou até mesmo, de um mesmo tempo e local. Um exemplo 
atual, a grosso modo, seria a comparação entre o que se aceita como “poder” no 
Ocidente americano e no Oriente islâmico, ambos do século XXI, ou o que 
partidários de ideologias distintas de um mesmo país concebem como poder. 
 Desta maneira, o que se propõe neste trabalho quando se fala em 
“culturas do poder” é a investigação das concepções de poder de uma 
determinada sociedade num tempo e espaço bem específicos. Estas 
concepções podem se manifestar de diversas formas: em discursos orais, em 
textos escritos, em imagens, em sons, em cores, em gestos, em rituais, em 
conotações metafísicas, em regras jurídicas, etc. Investigar as culturas do poder, 
portanto, concerne a analisar os meios pelos quais o poder é desenhado e 
definido por uma sociedade determinada cronológica e territorialmente. 
 Trabalhar a questão do “poder”, em detrimento da “política” não é uma 
novidade na historiografia, mas também não é um campo de estudo tão antigo 
quanto se possa pensar. De acordo com o medievalista Jacques Le Goff, em seu 
ensaio “A Política será ainda a Ossatura da História?”27, essa mudança de 
enfoque, da política para o poder, deu-se através dos novos métodos 
 
26 Tradução nossa. No original: “Who were these men and women born to rule […]?” Ver: Ibidem, 
p. 02. 
27 Ver: LE GOFF, Jacques. “A Política será ainda a Ossatura da História?” In: LE GOFF, Jacques. 
O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 2010, pp. 197-215. 
27 
 
historiográficos propostos pelos historiadores franceses da chamada Escola dos 
Annales28, no início do século XX, em contraponto ao método positivista vigente 
durante o século XIX, que levava em consideração, para a análise histórica, 
apenas os documentos oficiais de governos, o que se convencionou dizer que 
se tratava, apenas, da “história dos vencedores”. 
A escola dos Annales detestava o trinómio formado pela história 
política, pela história narrativa e pela crónica ou história 
episódica (acontecimental). Tudo isso era, para ela, 
simplesmente pseudo-história, história barata, algo de 
superficial que preferia a sombra à substância. Era preciso 
colocar no lugar que lhe competia a história em profundidade – 
uma história económica, social e mental. (LE GOFF, 2010, p. 
200). 
 Partindo deste ponto levantado por Le Goff, é necessário frisar e 
corroborar o fato de que pensar as culturas do poder, como aqui se propõe, não 
significa narrar fatos ou episódios em cadeia da história florentina, por exemplo. 
Quando se fizer, no primeiro capítulo, uma passagem pelos eventos políticos 
que tomaram o palco em Florença durante as vidas de Dante e de Maquiavel, 
será uma maneira de discriminar os tipos de poder aos quais estavam 
submetidos, social e intelectualmente, mas não como finalidade última da 
investigação histórica aqui proposta. Nisto, converge-se para o mesmo 
argumento que Le Goff discorre, ainda em sua análise da política como ossatura 
da História, de que, mesmo que os membros da Escola dos Annales não 
aceitassem mais a análisenarrativa política e o fazer histórico de outrora, eles 
recuperam os estudos dos regimes políticos, agora voltados, de fato, para a 
questão do poder. 
 
28 A Escola dos Annales (e a revista Annales d’histoire économique et sociale) foi um movimento 
de renovação dos métodos de análises historiográficos iniciado pelos historiadores Marc Bloch 
(1886 – 1944) e Lucien Febvre (1878 – 1956). Estes compuseram a chamada primeira geração, 
que gerou grandes frutos para as gerações posteriores. Fernand Braudel (1902 – 1985) e 
Georges Duby (1919 – 1996) são nomes que compuseram a segunda geração, bem como 
Jacques Le Goff (1924 – 2014) e Emmanuel Le Roy Ladurie (1929 - ) apresentaram-se como 
expoentes da terceira geração. Para uma análise mais ampla de toda a trajetória dos estudos da 
Escola dos Annales, ver: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989) – A Revolução 
francesa da historiografia. Tradução: Nilo Odália. São Paulo: Editora Universidade Estadual 
Paulista (UNESP), 1991. 
28 
 
Mas a história política haveria gradualmente de voltar em força, 
assumindo os métodos, o espírito e a abordagem teórica própria 
daquelas ciências sociais que a tinham empurrado para segundo 
plano. Tentarei delinear este recente retorno tomando como 
ponto de referência a história medieval. O primeiro e principal 
contributo da sociologia e da antropologia para a história política 
foi o terem imposto como seu conceito e objectivo central a 
noção de “poder” e os fatos relativos ao poder. Como observou 
Raymond Aron, esta noção e estes factos aplicam-se a todas as 
sociedades e a todas as civilizações: “O problema do Poder é 
eterno [...]”. (LE GOFF, 2010, pp.200-201). 
 Outro ponto que vale a pena ressaltar, como se pode observar na citação 
anterior, é que os historiadores dos Annales partem, nesta nova perspectiva de 
análise, de um ponto que se assemelha a este recorte espaço-temporal: a Idade 
Média. Talvez pelo distanciamento temporal, e talvez, também, pelo inúmero 
arcabouço ritualístico e simbólico que os poderes do período medieval 
apresentavam, esta época foi um prato cheio para as novas propostas de 
estudos do poder. Isto fica claro quando Le Goff cita os estudos pioneiros do 
alemão P. E. Schramm29: 
Em vários estudos [...], ele mostrou como os objectos que 
constituíam os sinais característicos dos detentores do poder na 
Idade Média - coroa, trono, globo imperial, ceptro, mão de 
justiça, e assim por diante – não devem ser estudados apenas 
em si mesmos. Eles devem ser reintegrados no contexto de 
atitudes e cerimónias de que fazem parte, e sobretudo devem 
 
29 Percy Ernst Schramm (1894 – 1970) foi um historiador alemão, que lecionou de 1929 a 1963 
(exceto no intervalo do período da Segunda Guerra Mundial) na Universidade de Göttingen. Suas 
obras giraram em torno dos estudos sobre o simbolismo e os rituais políticos medievais, 
principalmente no Sacro Império Romano Germânico e as influências e reminiscências do ideário 
do Império Romano antigo para os homens do Medievo. Sua principal obra nesse sentido foi 
“Herrschaftszeichen und Staatssymbolik” (Sinais de autoridade e simbolismo do Estado, numa 
tradução livre). Antes de ingressar na Universidade como professor, trabalhou por dois anos no 
Instituto Monumenta Germaniae Historica, e, durante o período nazista, foi convocado como 
historiador oficial do governo de Hitler, o que, posteriormente, rendeu inúmeros trabalhos 
acadêmicos de Schramm sobre, principalmente, os desesperos e as forças militares nos últimos 
dias do Terceiro Reich. Infelizmente, nenhuma obra de Schramm foi traduzida, ainda, do alemão 
para o português, o que faz com que só se conheça seu trabalho através de outros autores, 
como Le Goff, que o citam. 
29 
 
ser vistos à luz do simbolismo político onde vão buscar o seu 
verdadeiro significado. (Le GOFF, 2010, p. 201) 
 Desta forma, trabalhar no âmbito do que propunha a Nova História Política 
independe, a partir de então, de analisar a política associada às noções de 
Estado ou de Nação, como fizeram os historiadores e outros intelectuais do 
século XIX, que buscavam, na Idade Média, uma espécie de mito fundador dos 
Estados-nações e dos impérios de então30. Assim, historiograficamente falando, 
o status do período medieval passou, do século XIX para o XX, de berço de mitos 
criadores de povos, nações e suas respectivas línguas (além de uma fonte rica 
para escritores românticos, como Victor Hugo e Walter Scott31), para uma 
espécie de repositório simbólico de onde era possível observar a lógica 
ritualística, mística, religiosa, e legitimadora dos poderes de então. A este 
fenômeno, Le Goff chama de estudar “o poder em si mesmo”32. Mas este novo 
movimento da análise historiográfica só foi possível a partir do momento em que 
 
30 A esse respeito, Le Goff argumenta que, “Note-se a este propósito que as análises feitas pelos 
historiadores políticos em termos de “poder” vão além das que são feitas em termos de “Estado” 
e “Nação”, sejam estas últimas estudos tradicionais ou tentativas de enfrentar a questão a partir 
de um novo ângulo visual. [...] ao passo que o termo “política” sugeria a ideia de coisa superficial, 
o termo “poder” evoca centro e profundidade. Perdido o seu fascínio de história de superfície, a 
história política, transformando-se na história do poder, torna-se história de profundidade”. In: “A 
Política será ainda a Ossatura da História?” In: LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano 
no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 201. 
31 Estes escritores do século XIX escreveram grandes obras que, hoje, convencionou-se chamar 
de “romances históricos”. O francês Victor Hugo (1802 - 1885), por exemplo, publicou “Notre 
Dame de Paris” (hoje, mais conhecido como “O Corcunda de Notre Dame”) em 1831, utilizando 
a Paris do século XIV como cenário. Já o escocês Walter Scott (1771 – 1832), em uma de suas 
obras mais famosas, “Ivanhoé” (1819), volta à Inglaterra do século XII, baseado nas baladas de 
Robin Hood. O imaginário inglês, ainda, rendeu muitos outros romances e poemas, a partir do 
rico arcabouço das lendas arturianas, como é o caso de Idílios do Rei (1885) de Alfred Tennyson 
(1809 – 1892). Era comum que, muitos deles, tivessem sua ambientação no período medieval, 
pois cenários como castelos, florestas e catedrais, além de personagens e símbolos como reis e 
cavaleiros num cavalo branco, princesas em perigo, bruxas e feiticeiros eram elementos 
importantes para construir esse imaginário longínquo e fantasioso. Em seu estudo sobre este 
tipo de apropriação do imaginário medieval, Jacques Le Goff afirma que: “[...] se alicerces 
essenciais da Europa subsistiram desde a Idade Média, a herança dos mitos, heróis e maravilhas 
foi vítima de um esquecimento, de uma ‘perda’ nos séculos XVII e XVIII, período no qual 
constituiu-se e reforçou-se, do humanismo às Luzes, uma imagem ‘negra’ da Idade Média: época 
de obscurantismo, mundo das trevas, dark ages. Salvo exceção, os heróis e maravilhas da Idade 
Média voltaram a ser ‘bárbaros’ – a evolução do gótico ligado à catedral é, a esse respeito, 
exemplar – ou, mais ainda, foram recobertos por um esquecimento parecido com o gesso e à cal 
que dissimularam os afrescos medievais. Em compensação, o Romantismo ressuscitou as 
lendas e mitos da Idade Média, fê-los renascer no imaginário, em realidade uma lenda de ouro” 
(LE GOFF, 2011, p. 25). Para mais informações, consultar: LE GOFF, Jacques. Heróis e 
maravilhas da Idade Média. Tradução: Stephania Matousek. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 
2011. 
32 “Ela nasceu da incapacidade de ir além do prestígio vazio do Estado até ao estudo do poder 
em si mesmo” (LE GOFF, 2010, p. 203). 
30 
 
os Annales propuseram estudos interdisciplinares da História com as demais 
Ciências Humanas. 
Seguindo uma tendência inaugurada pelo antropólogo James Frazer33, o 
historiador Marc Bloch, um dos fundadores dos Annales, lança mão da 
interdisciplinaridadeentre a História e a Psicologia em seus estudos sobre o 
poder de cura dos reis da França e da Inglaterra entre o Medievo e o século 
XVIII/XIX. É neste estudo, Os Reis Taumaturgos34 (1924), que Bloch não se 
limita, apenas, a tentar descrever o que acontecia nas cerimônias em que os reis 
franceses e ingleses tocavam as escrófulas do povo para curá-los, nem entre 
quais balizas temporais ocorreu essa prática, elencando cada cerimônia por 
ordem de datas e locais. O propósito desta obra é analisar, sobretudo, porque e 
como o povo acreditava que seu rei era capaz, realmente, de curar esse tipo de 
lesão de pele que, na verdade, curava-se sozinho com o tempo. Para isso, ele 
percorre camadas da psicologia coletiva e de atitudes políticas mentais para 
discorrer sobre este fenômeno. Este foi um dos primeiros passos em que não se 
estuda mais a política episódica dos governantes, mas sim, todo um arcabouço 
do imaginário que envolvia uma determinada prática de poder no Medievo, aliada 
às mentalidades dos homens da época, ou seja, à forma como o poder não 
apenas se sustentava, mas como era apropriado por todos envolvidos nessas 
relações entre governantes e governados, como esse poder era vivido, sentido, 
compreendido e representado. Mesmo assim, Bloch, na introdução de seu 
estudo, não deixa de considerá-lo, também, como parte de uma história política, 
um novo ramo desta. 
Em suma, o que eu quis dar aqui foi essencialmente uma 
contribuição à história política da Europa, no sentido amplo, no 
verdadeiro sentido da expressão ‘história política’. Por força das 
próprias circunstâncias, este ensaio de história política precisou 
tomar a forma de um ensaio de história comparada, tanto porque 
a França e a Inglaterra tiveram ambas reis-médicos quanto 
 
33 James George Frazer (1854 – 1941) foi um antropólogo escocês, estudioso de mitologias e 
religião. Ele dedicou seu estudo mais famoso, O Ramo de Ouro (1890) às origens mágicas, 
aliadas a mitos e lendas, das realezas de diversos povos. 
34 Título original: Les rois thaumaturges: étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance 
royale particulièrement en France et en Angleterre. (Os reis taumaturgos: estudo sobre o caráter 
sobrenatural atribuído ao poder real particularmente na França e na Inglaterra). 
31 
 
porque a ideia da realeza maravilhosa e sagrada foi comum a 
toda a Europa Ocidental. (BLOCH, 2018, p. 51)35. 
Da mesma forma que Bloch cita a comparação entre França e Inglaterra, 
é que se pretende, nesta tese, abordar as culturas do poder considerando não 
apenas Florença, mas as duas Florenças distintas que se recuperam através das 
personagens de Dante e de Maquiavel, observando as nuances do poder entre 
esse intervalo temporal. 
Ainda levando em consideração o trecho supracitado de Marc Bloch, 
segue-se, nesta análise introdutória das tendências historiográficas dos estudos 
sobre o poder, a pista das últimas linhas ali presentes, nas quais ele cita uma 
realeza ritualizada e sacralizada, cuja ideia, apesar de apresentar inúmeras 
nuances ao longo dos séculos e dos locais que compreendem o Ocidente, 
permearam toda a região europeia de então. Essas concepções são a base da 
análise posterior do historiador alemão Ernst Kantorowicz que, após ter 
esboçado um rico quadro de um soberano medieval na figura de Frederico II36, 
mergulhou num estudo profundo sobre a “teologia política medieval”. Quando 
iniciou suas pesquisas, Kantorowicz se baseava nos ordenamentos jurídicos e 
nas aclamações litúrgicas e juramentos feitos pelos reis da Inglaterra no 
momento de sua coroação. Repletos de simbolismos, esses foram os passos 
iniciais para que se desenvolvesse uma obra que versa não apenas sobre a 
questão inglesa, mas perpassa, também, pelas questões filosóficas e teológicas 
das teorias hierocráticas e dualistas (às quais o Sacro Império, a Itália e o 
Papado foram os mais atingidos), pelo Humanismo presente nas concepções 
particulares de Dante, pela comparação ritualística e simbólica das cerimônias 
de coroação, de entradas, e de funerais dos reis ingleses e franceses, e pelo 
misticismo da realeza, do sangue real, da continuidade dinástica e da duplicidade 
corporal à qual os reis estavam submetidos, os ditos “dois corpos do Rei”. 
 
35 Ver: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e 
Inglaterra. Tradução: Júlia Mainardi. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 
36 Kantorowicz dedicou uma obra inteira ao estudo da figura do imperador Frederico II (1194 – 
1250), último governante do Sacro Império da casa dos Hohenstaufen. 
32 
 
Apesar de “Os Dois Corpos do Rei” se tratar de um estudo robusto de 
quase 300 páginas37, já na Introdução de sua obra, Kantorowicz alerta para sua 
pequena contribuição neste campo de estudos históricos: 
Tampouco a escrita dessa história, particularmente com relação 
ao decisivo século XV, deixará de constituir tarefa interessante 
e promissora para um dos muitos doutos pesquisadores do 
desenvolvimento jurídico e constitucional na Inglaterra, pois o 
presente estudo não tem a pretensão de preencher a lacuna. 
Meramente propõe delinear o problema histórico como tal, 
esboçar, de um modo totalmente perfunctório, superficial e 
incompleto, os antecedentes históricos gerais dos “Dois Corpos 
do Rei”, e colocar este conceito, se possível, em seu contexto 
próprio ao pensamento e à teoria política medievais. 
(KANTOROWICZ, 1998, p. 19) 
Quando ele se refere aos pesquisadores do desenvolvimento jurídico e 
constitucional da Inglaterra, Kantorowicz se dirige, especificamente, ao 
historiador e advogado inglês Maitland38, que havia tecido fortes críticas à ideia 
da duplicidade dos corpos do rei de acordo com o prisma legalista através do 
qual ele produzia o seu raciocínio. Entretanto, ele argumenta que, mesmo 
Maitland, em meio à sua crítica com tons de ironia sobre o misticismo dos dois 
corpos do Rei, não tinha como negar as importantes raízes dessa teoria para se 
compreender as origens do ordenamento político medieval. 
Grande medievalista que era, Maitland sabia perfeitamente que 
a curiosa ficção da “majestade nascida gêmea” tinha uma 
tradição muito antiga e uma história complexa que “nos levaria 
 
37 Considera-se este número de páginas baseado na tradução brasileira desta obra, editada pela 
Companhia das Letras em 1998. 
38 Frederic William Maitland (1850 – 1906) foi um historiador e advogado inglês que contribuiu 
com muitos estudos sobre ordenamentos jurídicos e sobre o poder na história inglesa 
especificamente. Kantorowicz aponta o estudo “The Crown as Corporation” (A Coroa como 
corporação), como uma crítica irônica de Maitland, que trata esse tema, tentando enxergar uma 
questão envolta em mística com o olhar de um legalista. “Com um forte toque de sarcasmo e 
ironia, o grande historiador jurídico inglês demonstrou as tolices a que a ficção do rei enquanto 
‘corporação individual’ poderia levar – e de fato levou – e, ao mesmo tempo, mostrou a 
devastação que a teoria de um rei bicorporificado e de um reinado geminado fatalmente 
produziria na lógica burocrática”. (KANTOROWICZ, 1998, p. 17). 
33 
 
ao fundo do pensamento jurídico e político da Idade Média”. 
(KANTOROWICZ, 1998, p. 19) 
Desta forma, elencados os principais nomes precursores dos estudos 
sobre práticas e representações do poder, todos eles atrelados ao período 
medieval em específico, nota-se que, em todos eles, estão presentes a ideia de 
História Política, de pensamento jurídico, bem como de História Cultural, de 
misticismo, de rituais, de simbologia. assim como Le Goff conclui que “isto 
reforça as pesquisas em diversos sectores da história medieval que identificaram 
nos fenómenos de base uma dimensão política, no sentido de uma relação com 
o poder” (LE GOFF, 2010, p. 205). A esse conjunto todo de perspectivas de 
análise historiográfica, esta presente tese chama de “culturasdo poder”, porém, 
a partir de fontes diversas. Enquanto Schramm estudava os símbolos tangíveis 
do poder (coroa, cetro, trono, etc); Bloch baseou seus estudos com a ajuda da 
psicologia e de fontes bem esparsas (como ele mesmo relata na introdução de 
seu livro); e Kantorowicz partiu de juramentos de aclamação como fonte inicial, 
aqui, pretende-se utilizar o método de análise da História das Ideias, nos textos 
de Dante e Maquiavel, para identificar esses elementos componentes das 
culturas do poder. 
Curiosamente, como uma espécie de prenúncio, encontra-se, no prefácio 
de “Os Reis Taumaturgos” escrito por Jacques Le Goff, algo que remete a esta 
linha de pensamento. Ao enumerar as reações que os demais colegas 
intelectuais, fossem historiadores ou acadêmicos de outras áreas das Ciências 
Humanas, tiveram com relação à obra de Bloch, chamou a atenção quando Le 
Goff citou o parecer do historiador Henri Sée39: 
Se conhecesse sua obra, eu decerto teria modificado um pouco 
minha exposição sobre a doutrina absolutista. Sem dúvida, não 
seria conveniente contentar-se com a ‘filosofia social’ dos 
 
39 Henri Eugène Sée (1864 – 1936) foi um historiador francês, formado pela Sorbonne, e muito 
influenciado pela figura de Fustel de Coulanges (1830 – 1889). Seus estudos iam das questões 
econômicas (Les origines du Capitalisme Moderne, de 1926, ou, “As origens do capitalismo 
moderno”), passando pelo campesinato medieval (com estudos sobre os bretões, Étude sur les 
classes rurales en Bretagne au Moyen Age, de 1896, ou, “Estudos sobre as classes rurais na 
Bretanha na Idade Média”), até questões políticas (Les Idées politiques en France au XVIIIe 
siècle, de 1923, ou, “As ideias políticas na França do século XVIII”; e, Le Moyen âge et l’ancien 
régime, de 1939, ou, “A Idade Média e o Antigo Regime”). 
34 
 
escritores, mas não é fácil, como o senhor sabe, penetrar os 
sentimentos das massas populares. Você orientará nessa 
direção os historiadores das ideias políticas. (SÉE apud LE 
GOFF, 2018, p. 35)40 
De fato, após todo o apanhado historiográfico aqui realizado, desemboca-
se na questão dos historiadores das ideias políticas. Indo mais a fundo, e 
especificando esta abordagem metodológica, seguem-se os apontamentos que 
o historiador José D’Assunção Barros41 apresenta em seu artigo “História das 
Idéias – em torno de um domínio historiográfico”, no qual se delimita a categoria 
de análise histórica da História das Ideias dentro do quadro de conexões entre 
as várias modalidades historiográficas, sobretudo o diálogo com a História 
Política e a História Cultural. Pois, como ele defende, ao se analisar as ideias 
particulares de um artista ou literato, não se pode empreender uma História das 
Ideias que esteja desconectada do seu contexto social: 
 
Para o caso dos diálogos com a História Política, basta pensar 
nos trabalhos que investigam mais diretamente as idéias 
políticas, entre outros. Um diálogo mais intenso com a História 
Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem 
explicitamente no primeiro dos limiares possíveis para a História 
das Idéias: aquele em que são examinadas as idéias 
relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos 
específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias 
políticas escritas por grandes ou pequenos pensadores políticos, 
ou as concepções estéticas dos artistas e literatos de diversos 
tipos e níveis).(BARROS, 2008, p. 5)42 
Desta maneira, ele desemboca no pensamento de um dos mais 
destacados historiadores da atualidade para o estudo das ideias políticas: 
 
40 Le Goff não cita a fonte do texto de Henri Sée. Apenas coloca sua fala entre aspas, no subitem 
“A recepção a ‘Os Reis Taumaturgos” no Prefácio da obra. Para mais detalhes, consultar: LE 
GOFF, “Prefácio” In: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, 
França e Inglaterra. Tradução: Júlia Mainardi. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 
2018, pp. 9-42. 
41 José D’Assunção Barros (1957 - ) é um historiador brasileiro, professor na UFRJ. 
42 Ver: BARROS, José D’Assunção. “História das Idéias – em torno de um domínio 
historiográfico.” In: Revista Eletrônica História em Reflexão – Vol. 02, n. 03 – UFGD – Dourados 
– Jan-Jun/2008, p.5 
35 
 
Quentin Skinner (1940 - ), premiado pela história e teoria do pensamento político, 
e professor de Ciência Política na Universidade de Cambridge. Segundo ele, é 
necessário investigar a rede dentro da qual o autor está inserido. Perceber as 
influências que o autor recebe, e o modo de recepção de seus contemporâneos. 
Também, dentro deste padrão dos contextualistas ingleses (os 
precursores no campo de análise da História das Ideias), além da relação entre 
o texto e o contexto, há que se observar as estruturas linguísticas e o momentum 
linguístico dentro do qual a ideia foi construída. Ponto fundamental para estudar 
Dante e Maquiavel. Por exemplo, Dante Alighieri, mesmo defendendo e fazendo 
uso da língua vernácula florentina, o que o fez ser considerado o pai da língua 
italiana43, ao escrever seu tratado político “De Monarchia”, fez uso do latim, pois 
esta ainda era a língua utilizada para se dirigir às questões de poder e às 
autoridades da época. Maquiavel, em contrapartida, já está num período em que 
o próprio dialeto florentino já é a língua das autoridades e do poder, a língua da 
cultura e de homens ilustres. É uma mudança de concepções de poder, uma das 
inúmeras nuances das culturas do poder. 
Desta maneira, segue-se a mesma abordagem que foi utilizada na 
dissertação de mestrado, ao buscar interpretar os textos clássicos como os de 
Dante e de Maquiavel a partir da metodologia sugerida pelo historiador Quentin 
Skinner. De acordo com sua visão, não adianta ler e reler os textos clássicos 
inúmeras vezes, procurando por ideias geniais, vanguardistas e abstratas dos 
pensadores mais renomados, se não se observar o contexto no qual aqueles 
homens viveram, quais experiências empíricas afetavam o seu entendimento de 
mundo, que tipo de sentido era dado às palavras e aos conceitos que eles 
utilizavam naquela região e naquela época específicas, e qual o arcabouço 
teórico e intelectual com o qual eles dialogavam, fosse para corroborar ou para 
negar as vertentes existentes. 
 
43 Quando da unificação da Itália em um único país no século XIX, em longos debates ao se 
determinar qual seria o idioma da nova nação, o dialeto florentino presente nos escritos de Dante 
Alighieri, sobretudo no seu poema monumental de “A Divina Comédia”, foi determinado como a 
base para o estabelecimento da língua italiana. Ainda em vida, Dante escreveu sobre a 
importância do linguajar vernáculo no ensaio “De Vulgari Eloquentia”, provavelmente redigido 
entre os anos de 1302 e 1305. 
36 
 
Em sua obra mais abrangente, “As fundações do pensamento político 
moderno”, publicada originalmente em 1978, Skinner apontava que um 
levantamento das teorias políticas da transição do medievo para a modernidade 
já havia sido efetuado por Pierre Mesnard44 há mais de 40 anos, provavelmente 
na década de 1930, mas sem utilizar o método que ele indica como mais preciso. 
Diz ele que a maneira como Mesnard refez trajetos teóricos de Dante a Calvino 
era uma maneira “textualista” de interpretar, prendendo-se, apenas, ao corpo 
escrito da obra de cada autor. Já Skinner argumenta que o próprio ato que ele 
sugere de buscar o texto entrelaçado ao contexto já é um fazer histórico 
interpretativo daquelas obras, problematizando o que está lá escrito com as 
indagações que um historiador costuma fazer para tentar compreender alguma 
questão desse passado que ainda não está clara. Ou seja, ao interpretar Dante 
ou Maquiavel, é necessário investigar qual é o contexto em que viveram, que 
diálogos eles travavam com seus interlocutores, a quem estavam respondendo, 
que base filosófica ou de instrução eles tinham, quais eram suas concepções de

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