Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Rodrigo Pucci Müller De Dante a Maquiavel: culturas do poder entre os séculos XIII e XV em Florença Doutorado em História São Paulo 2022 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em História Rodrigo Pucci Müller De Dante a Maquiavel: culturas do poder entre os séculos XIII e XV em Florença Doutorado em História Social Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em História (área de concentração História Social), sob orientação da Professora Doutora Estefânia Knotz Canguçu Fraga São Paulo 2022 Banca Examinadora _____________________________ _____________________________ _____________________________ _____________________________ _____________________________ À minha família. O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Código de Financiamento – 001. Processo n. 140033/2019-0. This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Finance Code – 001. Process n. 140033/2019-0. Agradecimentos Agradeço, em primeiro lugar, às agências fomentadoras da CAPES, no primeiro ano (2018), e do CNPq, nos três anos subsequentes (2019-2021), pelo apoio financeiro que possibilitou a realização desta pesquisa. Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e ao Programa de Estudos Pós-graduados em História pelo espaço e pela oportunidade de permitir que tal projeto de investigação histórica tomasse corpo em suas dependências até resultar na presente tese de doutorado. Estendo estes agradecimentos ao coordenador do Programa, Professor Doutor Luiz Antonio Dias, e à vice-coordenadora, Professora Doutora Carla Reis Longhi, por todos os direcionamentos e disponibilidade em atender, organizar e solucionar todas as demandas dos alunos; sobretudo nesses tempos de pandemia que geraram tanta incerteza. Agradeço, também, ao assistente de coordenação do Programa, William Fernando Moreira da Silva, por todo auxílio nas questões burocráticas, documentais e de cronograma que se apresentaram ao longo desses anos. Agradeço à minha orientadora, Professora Doutora Estefânia Knotz Canguçu Fraga, que me acolheu em seu círculo de orientandos desde o mestrado, e, amavelmente, acompanhou o trajeto do doutoramento, iluminando caminhos, abordagens e possibilidades de estruturação desta tese com seu imenso carinho e generosidade. Agradeço à Professora Doutora Yone de Carvalho, grande amiga, mestra e guia, por toda dedicação, companheirismo, auxílio, direcionamento e aconselhamento ao longo de tantos anos, desde as monitorias da graduação, onde estão as sementes de grande parte do conhecimento condensado nesta tese e de toda a minha trajetória acadêmica até aqui. Agradeço, além disso, toda a amizade e carinho sempre! Agradeço ao Professor Doutor Álvaro Hashizume Allegrette, presente em toda a minha caminhada na PUC-SP desde a primeira aula da graduação, fonte de um vasto conhecimento que envolve diversas áreas e temporalidades, sempre ajudando a abrir nossas perspectivas e a indicar caminhos acertados, e que concede a honra de sua presença na banca de defesa desta tese. Agradeço à Professora Doutora Ana Paula Tavares Magalhães Tacconi, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), que desde o mestrado tem sido tão gentil por acompanhar o desenvolvimento de minha pesquisa, enriquecendo todas as minhas bancas de qualificação e de defesa, sempre com um olhar atento e generoso que engrandece o trabalho. Agradeço à Professora Doutora Maria Cristina Correia Leandro Pereira, que foi tão solícita ao aceitar compor a minha banca de defesa, trazendo mais um olhar analítico e especializado que contribui para a minha formação e para a legitimação desta tese. Agradeço à Professora Doutora Vera Lúcia Vieira, que acompanhou e orientou os meus primeiros passos nas disciplinas iniciais do doutoramento, por todo o incentivo e por ter aceitado compor a banca de defesa como suplente da PUC-SP. Agradeço ao Professor Doutor Eduardo Wolf Pereira, por ter me acolhido tão calorosamente em seu grupo de estudos “Indivíduo, Democracia e Liberdade” do LABÔ – FUNDASP, cujos encontros, ao longo de dois anos, enriqueceram o meu caminhar no doutorado e foram fundamentais para alicerçar as reflexões teórico-metodológicas desta tese. Agradeço, também, por aceitar o convite de participar da banca de defesa como suplente externo. Agradeço aos demais professores do Departamento de História da PUC- SP que ministraram disciplinas ao longo destes quatro anos, a fim de auxiliar e contribuir para melhor formatação e escrita da tese de doutorado. Entre eles, a Professora Doutora Maria Izilda Santos de Matos e o Professor Doutor Alberto Luiz Schneider. Agradeço aos meus colegas doutorandos, Diógenes Sousa, Henry Mähler-Nakashima, Regiane Luzia Lopes, Maíra Pires Andrade, Fabiano Miranda do Nascimento Tizzo e Bianca Melzi de Lucchesi por todas as experiências compartilhadas, pela cumplicidade e auxílio mútuo, e especialmente, a Paulo Henrique de Oliveira, Cristina Toledo de Carvalho e Fábio Monteiro que, também, confiaram a mim a leitura prévia de suas teses. Agradeço a todos os meus amigos que vêm acompanhando a minha trajetória de pesquisa desde o início, especialmente à Joyce de Freitas Ramos e família que estão sempre presentes em todos os momentos. Agradeço à minha família, a base de tudo, que dá sustento e alimenta as raízes do nosso ser. À minha mãe Ana Maria Gemma Ippolito Pucci, ao meu pai Milton de Paula Müller (In memoriam), e aos meus primos Mário Pucci, Lucila Pucci (Pety), Ebe Reale, Liliana Ciambelli e Haruo Okawara, grato sempre por todo apoio, carinho e motivação na realização desta caminhada. PUCCI MÜLLER, Rodrigo. De Dante a Maquiavel: culturas do poder entre os séculos XIII e XV em Florença. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2022. Resumo Dante Alighieri e Nicolau Maquiavel, apesar dos dois séculos que os separam, foram homens com experiências em comum. Nascidos em Florença, prestaram serviços na esfera governamental desta cidade, e, posteriormente, viveram em exílio, período em que se dedicaram a escrever obras políticas que abarcaram tanto suas experiências empíricas quanto o arcabouço teórico do qual se serviam intelectualmente de acordo com a tendência predominante na época. Ideais de virtude que remontavam aos antigos filósofos da Antiguidade e a noção de ciclos históricos que ressoava desde então, o misticismo do corpo político medieval, as analogias cristãs, as pretensões de príncipes universalistas e particularistas de fins da Idade Média e princípios da Renascença, as correntes de pensamento da Escolástica e do Humanismo, o Republicanismo do norte italiano de princípios do período Moderno, tudo isso faz parte do que aqui se cogitou chamar de “culturas do poder”, presentes na longa duração das ideias e dos discursos que tentavam decifrá-las ou defini-las. Dante e Maquiavel, cada um à sua maneira, foram personagens que articularam essas culturas do poder de acordo com o contexto em que viveram. Um terceiro personagem, ainda, aparece como amálgama destas duas figuras: a própria cidade de Florença, testemunha concreta e abstrata dos discursos, vivênciase temporalidades presentes nestas relações que se pretendem esquadrinhar. Portanto, busca-se investigar de que forma se pode traçar um paralelo entre esses sujeitos históricos, observando como eles articularam as práticas e representações das culturas do poder em seus escritos, e compreendendo, através deles, que Poder e História são indissociáveis, apesar da pluralidade de interpretações ao longo do tempo. Palavras-chave: Dante Alighieri, Nicolau Maquiavel, Florença, Poder, História. PUCCI MÜLLER, Rodrigo. From Dante to Machiavelli: cultures of power between the 13th and 15th centuries in Florence. Thesis (Doctorate degree). Pontificia Universidade Catolica of São Paulo. São Paulo, 2022. Abstract Dante Alighieri and Niccolò Machiavelli were men with common experiences, although the two centuries that set them apart. Both were born in Florence, rendered services in the spheres of government from that city, and, subsequently, both had lived in exile, a time when they had dedicated themselves to writing political works that embraced their empirical experiences as well as their theoretical framework from which they had intellectual bases according to the prevailing trend at the time. Ideals of virtue dated back to the ancient philosophers and the notion of historical cycles that resounded since then, the mysticism of the medieval political body, the Christian analogies, the ambitions of universalists and particularists princes from Later Middle Ages and the dawn of Renaissance, the schools of thought of Scholasticism and Humanism, the Republicanism from the North Italy in the beginnings of Modern period, all of this is part of what is called here “cultures of power”, present in the long-term of ideas and of speeches that tried to decode it or to define it. Dante and Machiavelli were, which one in his way, characters that articulated these cultures of power according to the context in which they lived. In addition, a third character figures as amalgam of such personalities: the city of Florence itself, tangible and abstract witness of the speeches, experiences and temporalities featured in these relations scrutinized here. Therefore, this research intends to investigate how it is possible to draw a parallel between these historical subjects, perceiving how they articulated practices and representations of the cultures of power in their writings, and understanding, through them, that Power and History are inseparable, despite the plurality of interpretations over time. Keywords: Dante Alighieri, Niccolò Machiavelli, Florence, Power, History. Lista de Imagens Imagem 01 – Panorama da cidade de Florença .............................................. 45 Imagem 02 – O Palazzo Vecchio e a Piazza della Signoria ............................. 50 Imagem 03 – Mapa do Corredor Vasariano ..................................................... 53 Imagem 04 – Iluminura - a Roda Fortuna – Carmina Burana ......................... 156 Sumário Introdução ...................................................................................................... 13 Capítulo 1 – Florença, testemunha do tempo e de seus homens ............... 43 1.1 – A Florença concreta: espelho das culturas do poder ............................... 44 1.2 – A Comuna de Dante ................................................................................ 56 1.3 – A República de Maquiavel ....................................................................... 68 Capítulo 2 – Dante Alighieri e a simbologia do poder no Medievo ............. 80 2.1 – Aristóteles, a escolástica e os tratadistas políticos tardo-medievais ........ 86 2.2 – A dupla natureza humana e o Corpo Místico ........................................... 93 2.3 – A Eudaimonia e o Sumo Bem Cristão ................................................... 111 Capítulo 3 – Nicolau Maquiavel e o espírito Renascentista ...................... 117 3.1 – O Príncipe, fim dos espelhos de príncipes ............................................ 124 3.2 – Virtù e Fortuna: as chaves maquiavelianas do poder ............................ 136 3.3 – A decadência e os Ciclos de Poder ....................................................... 143 Capítulo 4 – Culturas do Poder e os Ciclos da História ............................ 154 4.1 – Fortuna, Imperatrix Mundi ..................................................................... 156 4.2 – Concepções de História: tempo cíclico e escatologia ............................ 168 4.3 – O Retorno de Saturno ........................................................................... 179 Considerações Finais .................................................................................. 186 Anexos .......................................................................................................... 189 Anexo I – Commedia de Dante – Inferno – Canto VII ..................................... 189 Anexo II – Da Fortuna, de Nicolau Maquiavel ................................................ 191 Referências Bibliográficas .......................................................................... 200 “Em meio ao jardim do pensamento medieval, entre o crescimento exuberante das sementes antigas, o classicismo desenvolveu-se gradualmente. No início, apenas como um elemento formal da imaginação. Só mais tarde ele iria se tornar um grande e novo estímulo; e o espírito e as formas de expressão que nós costumamos considerar antigos, medievais, também ainda não desapareceram.” - Johan Huizinga1 1 HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. Tradução: Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 553. 13 Introdução À primeira vista, pode soar estranho e ousado um estudo que pretende colocar lado a lado figuras tão distintas como Dante e Maquiavel. Isto porque, de um lado, é lugar comum atribuir a Dante a imagem de um grande poeta, cujos temas filosóficos e cristãos, o amor profundo por uma dama inacessível e a dedicação habilidosa aos vocábulos vernáculos são os pilares de seus versos que compõem uma epopeia magistral que o leva desde as profundezas do Inferno, passando pelas “terras recém-descobertas”1 do Purgatório, até a contemplação da presença divina no Paraíso. Obra esta que lhe garante, mesmo hoje, sete séculos após a sua morte, o reconhecimento como o maior expoente da cultura dos povos de língua italiana. Em contrapartida, a imagem de Maquiavel é facilmente associada a assuntos perniciosos e escusos, a ponto de o seu sobrenome ter se tornado a raiz semântica de adjetivos como “maquiavélico” para se referir a atitudes desleais, calculistas, dolosas, próprias de pessoas pérfidas, astutas e ardilosas que, sobretudo na esfera política e governamental, são capazes de qualquer tipo de atrocidade para atingir os seus objetivos nada ortodoxos, não importando a quem prejudiquem pelo caminho. Sua obra mais conhecida deu-lhe a fama de guia para governantes autoritários, 1 É importante ressaltar que se utiliza aqui a expressão “terras recém-descobertas” como uma figura de linguagem que leva em consideração os estudos levantados por Jacques Le Goff sobre o Purgatório, nos quais se baliza que essa crença cristã de um local intermediário entre o Inferno e o Paraíso foi um fenômeno iniciado por volta do século XII. Não foi Dante quem criou o Purgatório, mas, como o próprio Le Goff afirma no capítulo que encerra seu estudo sobre esta temática, “Se Dante soube dar tão bem ao purgatório todas suas dimensões é porque compreendeu seu papel de intermediário ativo e o mostrou graças à sua encarnação espacial e à figuração da lógica espiritual na qual se insere. Dante soube fazer a ligação entre sua cosmogoniae sua teologia” (LE GOFF, 2017, p. 513). Para além da relação entre Dante e o Purgatório, Le Goff examina que o Cristianismo, apesar de herdeiro direto de muitas tradições dos hebreus, não herda a concepção uniforme do mundo dos mortos judaico – o shéol – mas sim, algo similar à concepção dualista romana que ia do tenebroso Hades aos bem-aventurados Campos Elíseos. Mesmo assim, o historiador francês remonta ao imaginário da geografia do além de diversas sociedades da Antiguidade (hindu, babilônica, egípcia, iraniana, entre outras) em busca de reminiscências ou indícios de uma possibilidade de terceiro lugar. E é como este “terceiro lugar”, ou “lugar intermediário” que ele se fixa no imaginário cristão, mas não antes do século XII: “Até o fim do século XII, a palavra purgatorium não existe como substantivo. O purgatório não existe” (LE GOFF, 2017, p. 12). Portanto, tendo Dante escrito sua epopeia no Purgatório por volta de 1319, é nesse sentido cronológico que se considera o termo figurativo “terras recém-descobertas”. Para mais informações sobre o tema, consultar: LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Tradução: Maria Ferreira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 14 cruéis, tiranos de toda ordem. Enquanto o nome de Dante é proferido solenemente, em alto e bom som, proporcionando honrarias e indícios de que o interlocutor possui riquíssima bagagem de formação intelectual, o nome de Maquiavel é sussurrado pelos cantos, sempre tomando cuidado para que não se interprete mal qualquer argumento que venha acompanhado de sua fama. A partir deste breve prólogo carregado de sínteses triviais recobertas pelos véus e camadas interpretativas que os séculos e os discursos históricos e historiográficos conferiram a estes dois personagens, fica evidente o estranhamento que pode acometer o leitor ao se deparar com um estudo acadêmico que pretende colocar em conjunção estes dois homens em suas páginas. Contudo, é parte do ofício de um historiador lançar novas luzes ao passado, trazer novas perspectivas de análise ao retirar as camadas de verniz que cristalizaram determinados homens como figuras históricas essencialmente heroicizadas ou vilanizadas, e tentar recuperar vestígios, ainda que muito escassos, daquilo que outrora eles foram de fato: pessoas de carne e osso, comuns, que estabeleceram diálogos com a cultura, com as ideias e com os demais homens de seu tempo. Encontrar o Dante e o Nicolau que não haviam sido enaltecidos ou repelidos como grandes nomes a serem perpetuados pelos tempos vindouros, mas aqueles que tiveram que enfrentar as vicissitudes de sua época como é natural a todo ser humano. Neste exercício investigativo aqui proposto, poder-se-á descobrir elementos que os colocam em situações análogas, bem como outros aspectos que corroboram a distinção entre eles. Antes de tudo, é preciso esclarecer qual é o recorte temporal que há entre estes personagens. Dois séculos praticamente exatos separam o tempo de vida dos dois. Dante Alighieri nasceu em 1265 e faleceu em 1321. Nicolau Maquiavel nasceu em 1469 e faleceu em 1527. Assim, com estas breves informações, para um simples conhecedor das atuais balizas cronológicas através das quais se convencionou delimitar e classificar os tempos históricos para sua melhor compreensão e estudo, é fácil atribuir os adjetivos das épocas que lhes são correspondentes: Dante foi um homem medieval, enquanto Maquiavel foi um homem renascentista. Eis a primeira distinção entre eles. Porém, a primeira semelhança é, também, de simples vislumbre: ambos nasceram e viveram grande parte de suas vidas em Florença. Semelhança esta que se desfaz caso 15 se faça uso do argumento de que, apesar de se tratar do mesmo lugar físico, histórica e politicamente, tratam-se de duas Florenças igualmente distintas: a Florença medieval de Dante não era a mesma da Florença renascentista de Maquiavel. Portanto, é neste jogo de similaridades e diferenças que se pedirá licença ao leitor, logo no primeiro capítulo desta tese, para uma breve introdução biográfica e histórica destes personagens, para elucidar os pontos sobre os quais os argumentos do presente estudo irão se debruçar. Não se pretende discorrer sobre os detalhes biográficos muito específicos de ambas as figuras, cujo trabalho já foi muito bem desempenhado por diversos estudiosos2. Mas sim, observar, especificamente, como eles afetaram e foram afetados pelos movimentos políticos que presenciaram em Florença, momentos estes que serviram como uma das bases para o desenvolvimento de suas reflexões sobre a lógica e a mecânica das instâncias de poder e do caminhar histórico, que são os principais objetos de reflexão deste trabalho, alcunhados aqui como “culturas do poder”. Não se pode analisar os discursos e as ideias intelectuais e filosóficas de Dante ou de Maquiavel sem compreender o cenário florentino que lhes dava sustentação. Assim, a cidade de Florença se apresenta como um terceiro (ou primeiro) personagem a ser investigado em sua trajetória, de modo que ela assume o caráter de elo de constante diálogo entre os dois homens que ali viveram em períodos distintos. Para além de um terceiro personagem, Florença se apresenta, também, como recorte espacial e temporal para as reflexões feitas aqui. Esta tese é uma 2 Para biografias de Dante Alighieri, consultar: AUBERT, Eduardo Henrik. Vidas de Dante: escritos biográficos dos séculos XIV e XV. São Paulo: Ateliê, 2011; BARBERO, Alessandro. Dante: a biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021; BOCCACCIO, Giovanni. Vida de Dante. Trad. Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Penguin, 2021; FRANCO JÚNIOR, Hilário. Dante Alighieri: o poeta do absoluto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000; MARTINS, Cristiano. “A Vida Atribulada de Dante Alighieri” In: A Divina Comédia. Tradução: Cristiano Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976; MONTANELLI, Indro. Dante e il suo Secolo. Milano: Rizzoli Editore, 1964; e REYNOLDS, Barbara. Dante: o poeta, o pensador político e o homem. Trad. Fátima Marques. Rio de Janeiro: Record, 2011. Para biografias de Nicolau Maquiavel, consultar: ATKINSON, James B. Niccolo Machiavelli: portrait. Cambridge: The Cambridge Companion to Machiavelli, 2010; HEERS, Jacques. Machiavel. Paris: Fayard, 1985; RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel. Trad. Nelson Canabarro. São Paulo: Musa Editora, 2003 (Ler os Clássicos; v.9); SKINNER, Quentin. Maquiavel. Trad. Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012; VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau: História de Maquiavel. Trad. Valéria Pereira da Silva. São Paulo: Estação Liberdade, 2002; e VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel: nos tempos da política. Trad. Sérgio Maduro. São Paulo: Martins Fontes, 2016 16 espécie de continuação, ou melhor, de aprofundamento de um tema de pesquisa já elaborado na anterior dissertação de mestrado3, que versava sobre uma análise das culturas do poder do Ocidente Cristão Medieval através da obra De Monarchia4 de Dante Alighieri. Note-se bem que se partia da análise de uma obra específica de Dante, inserindo-a numa teia de pensadores e intelectuais tardo-medievais para, assim, alcançar um conjunto de práticas e representações do poder em todo o Ocidente Cristão do baixo-medievo. Entretanto, com base em novos estudos, compreende-se, agora, que estender o campo semântico desta análise histórica para todo o Ocidente é demasiado ousado, posto que, no seio deste Ocidente medieval, há variações inúmeras de interpretações, de sentidos, de representações e de manifestações destas culturas do poder. Como exemplo disto, pode-se citar os estudos de Norbert Elias5 que, ao analisar, numa perspectiva mais ampla, o desenvolvimento dos poderes do Ocidente medieval, estabeleceu uma distinção grande entre as forças centrífugas (que atuavam nas regiões do Sacro Império e da Itália) e as forças centrípetas (que atuavamem monarquias nacionais como as da França e da Inglaterra). O problema que os duques de Frância e Normandia, ou do território angevino, enfrentavam como reis, na luta pela hegemonia nessa região, era inteiramente distinto daquele que se impunha aos governantes do Império Romano-Germânico. Nos primeiros, a centralização ou integração, a despeito de numerosas guinadas para um lado e outro, tomara um curso em 3 Ver: PUCCI MÜLLER, Rodrigo. De Monarchia: Dante Alighieri e as culturas do poder entre os séculos XIII e XIV no Ocidente Cristão Medieval. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. 4 “Sobre a Monarquia”, numa tradução livre do latim. Tal tratado político de Dante foi traduzido, no Brasil, apenas como “Monarquia”. Entretanto, optou-se, nesta tese, por utilizar sempre os títulos originais das obras, tanto de Dante quanto de Maquiavel, em latim ou em dialeto vernáculo florentino (futuramente, a base da língua italiana), sempre indicados em itálico, para facilitar a compreensão de que se está referindo, exatamente, à tais obras. 5 Nobert Elias (1897-1990) foi um sociólogo alemão que se dedicou aos estudos do poder e ao conhecimento histórico. Ele lecionou na Universidade de Leicester entre os anos de 1945 e 1962, mas só teve seus estudos realmente reconhecidos após a publicação da obra “A Sociedade de Corte”, quando já contava com 70 anos de idade. Nesta obra, Elias estuda a corte francesa de Luís XIV, o Rei-Sol, observando como se dava a intricada rede de interdependências na qual estavam mergulhados não apenas o rei e os nobres que orbitavam ao seu redor, mas sim, a função de ser rei, e a lógica por detrás do prestígio e da etiqueta à qual todos estavam submetidos. Entre outras obras importantes que escreveu, estão os dois volumes de “O Processo Civilizador”, na qual, sobretudo no segundo volume, ele se dedicou a estudar os fenômenos de estruturação do poder desde a dinâmica da feudalização no Ocidente medieval até o processo que ele chamou de sociogênese do Estado na sociedade moderna. 17 linhas gerais contínuo. Na segunda área, incomparavelmente mais extensa, uma família de governantes territoriais após outra tentou, em vão, implantar, cingindo a coroa imperial, uma hegemonia realmente estável sobre todo o Império. Uma Casa após outra usara até a exaustão nessa luta infrutífera o que, a despeito de tudo o mais, continuava a ser a fonte principal de sua renda e poder – suas possessões hereditárias ou de raiz. Após cada tentativa frustrada de uma nova Casa, a descentralização e a consolidação das tendências centrífugas davam mais um passo à frente. (ELIAS, 2005, pp.91-92)6 Corroborando esse posicionamento de Elias, numa análise mais minuciosa que será melhor explorada no segundo capítulo desta tese, o historiador alemão Ernst Kantorowicz, em seus estudos sobre o misticismo que envolvia a legitimação da continuidade dinástica por volta do século XIII, irá perceber como, nas regiões do Império e da Itália, a questão da bênção e da sagração no momento de aclamação de um novo governante obedecerá à questões mais pragmáticas - fundamentadas em ordenamentos jurídicos e teóricos de origem teológico-filosófica -, do que na França ou na Inglaterra, onde a questão da hereditariedade do sangue real já bastava para confirmar os desígnios divinos de escolha para aquele novo príncipe que nascia. Seria difícil dizer com certo grau de precisão se, ou em que medida, a discussão acalorada levada a efeito por canonistas e legistas, durante o Interregno, quanto aos direitos pré-coroativos do imperador, pode ter influenciado as decisões políticas dos reinos europeus. Podemos supor, contudo, que as teorias legais estavam em vigor, pelo menos subsidiariamente, quando as duas grandes monarquias ocidentais, França e Inglaterra, intentaram colocar em prática o que os jurisconsultos posteriores teriam tomado quase como dado: separar da consagração eclesiástica o começo do reinado de um monarca e seu exercício pleno do poder. [...] Portanto, a continuidade do “corpo natural” do rei foi assegurada quando as duas monarquias ocidentais não 6 Ver: ELIAS, Norbert. “Digressão sobre Algumas Diferenças nas Trajetórias de Desenvolvimento da Inglaterra, França e Germânia” In: O Processo Civilizador, vol.2 – Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pp. 91-97. 18 só aboliram o “pequeno interregno” entre ascensão e coroação, mas também eliminaram, de uma vez por todas, a possiblidade de um “grande interregno” que poderia ocorrer entre a morte de um rei e a eleição de seu sucessor”. (KANTOROWICZ, 1998, pp 201-202)7 Desta maneira, compreende-se que não se pode pretender encontrar nos discursos, seja de Dante ou de Maquiavel, elementos que abracem toda a Cristandade do Ocidente Medieval, posto que há diferenças profundas de práticas e de representações nessa teia de culturas do poder, que pode se manifestar de diversas maneiras a depender da localidade. Portanto, Florença, para além de personagem, é o referencial espacial e temporal desta análise, pois delimita que as culturas do poder aqui abordadas entre Dante e Maquiavel, ou entre os séculos XIII e XV, são as que dizem respeito, especificamente, às práticas e representações do poder que, de alguma maneira, estavam presentes ou se refletiam nos eventos políticos concernentes à realidade florentina. A escolha de Florença como este referencial se deu não apenas pelo fato de ser o local de nascimento dos dois personagens - Dante e Maquiavel - mas também, porque, apesar de se tratar de uma única cidade dentre tantas que compunham o norte italiano da época, ela foi palco de inúmeras e diversas manifestações das culturas do poder aqui estudadas. O historiador Jacob Burckhardt8, em sua obra mais famosa, “A Cultura do Renascimento na Itália”, faz algumas exortações sobre essa característica especial de Florença, que valem a pena uma breve reflexão crítica aqui, que vai ao encontro do que este estudo se propõe, além de ajudar a justificar a escolha de tal recorte espaço- temporal. A mais elevada consciência política, a maior riqueza em modalidades de desenvolvimento humano encontram-se reunidas na história de Florença, que, nesse sentido, por certo merece o título de primeiro Estado moderno do mundo. Ali, é 7 Ver: KANTOROWICZ, Ernst. “O Rei nunca Morre – Continuidade Dinástica” In: Os Dois Corpos do Rei – Um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 195-205. 8 Jacob Burckhardt (1818 – 1897) foi um historiador suíço dedicado aos campos da História da Arte e da História Cultural. Lecionou nas universidades da Basileia e de Zurique. 19 todo um povo que se dedica àquilo que, nos Estados principescos, constitui assunto de família. O maravilhoso espírito florentino, dotado igualmente de um aguçado caráter racional e artístico, transforma incessantemente as condições políticas e sociais, descrevendo-as e julgando-as com igual frequência. Florença tornou-se, assim, o berço das doutrinas políticas e teorias, dos experimentos e saltos adiante; [...] e, solitária, precedendo todos os demais Estados do mundo, o berço da escrita da história, em seu sentido moderno. Contribuíram para tanto a contemplação da antiga Roma e o conhecimento de seus historiadores. (BURCKHARDT, 2009, p. 98)9. Assim, quem se atém a esta descrição, ao contrário do que já foi explicado anteriormente, não pode deixar de fazer uma analogia que, ao estudar Florença e as culturas do poder que dali podem ser percebidas através dos discursos de seus homens, como Dante e Maquiavel, está se analisando, também, uma espécie de síntese das manifestações de poder do Ocidente. Porém, é claro que há que se ter ressalvas críticas, também, quanto à exaltação de determinados elementos, e este é o caso de Burckhardt com relaçãoà Florença. Se este estudo se propõe a uma análise das culturas do poder no espaço temporal entre Dante e Maquiavel, e se, como já foi observado previamente, Dante se enquadraria (num esquema cronológico e historiográfico atualmente vigente) na definição de “homem medieval”, como poderia, segundo Burckhardt, a riqueza e a diversidade das práticas políticas de Florença se dar, apenas, a partir do período dito “moderno”, ou, em outra perspectiva de análise, como se essa localidade fosse uma vanguardista, atingindo a “modernidade” antes do restante do Ocidente? Ademais, fica claro, na última frase da citação acima, que Burckhardt considera que tal grandeza florentina é herdeira direta da Roma Antiga, subjugando todo o período medieval, e todas as influências e tendências de práticas e ideias do Medievo. Ora, como ficará claro, ao longo da tese, os referenciais teóricos de Dante estão mais voltados aos pensadores medievais da escolástica e da patrística (e, em última instância, aos filósofos gregos 9 Ver: BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. 20 reinterpretados pelos Pais da Igreja), do que a herança do pensamento romano, que está, de fato, mais presente em Maquiavel. O historiador Peter Burke10, na introdução que escrevera para esta mesma obra de Burckhardt, alerta para o fato de que ele havia sido criticado por sua obra definir o Renascimento em oposição à Idade Média - da qual ele pouco conhecia - tanto em ordem de grandeza quanto de importância no desenvolvimento cultural dos homens do Ocidente11. Contudo, estudos mais específicos sobre os ciclos de poder e os eventos políticos florentinos (como será visto no primeiro capítulo através do historiador francês Yves Renouard, ou mesmo nas História de Florença de Maquiavel, analisada no capítulo 3), atestam a afirmação de Burckhardt no que diz respeito à multiplicidade de experiências de poder que Florença testemunhou perante as outras localidades. Porém, o período dito medieval não se exclui destas análises, muito pelo contrário. É no período medieval, mesmo anterior à época de Dante, que essas experiências múltiplas florescem na cidade. Talvez, o que se possa contestar, de fato, assim como Burke faz, é a questão de Burckhardt enxergar o berço das experiências políticas do Ocidente apenas na Florença renascentista; assim como se faz, no senso comum, com os estudos medievais, ao se tentar engessar a Idade Média num único esquema de organização política, social, econômica e cultural que teria vigorado imutável e simultâneo em todas as partes do Ocidente num bloco temporal de mil anos entre 10 Peter Burke (1937 - ) é um historiador inglês renomado no campo de estudos das história das ideias e da história cultural. Lecionou em diversas universidades, tais como as de Essex, de Sussex e de Princeton. Hoje em dia, é professor emérito da Universidade de Cambridge. 11 Nas palavras de Peter Burke: “Burckhardt foi criticado por sua falta de conhecimento e simpatia para com a Idade Média, por oposição à qual ele define seu Renascimento.” (BURKE, 2009, p. 31). Entretanto, ele analisa que a visão que Burckhardt construiu do Renascimento ainda é difícil de substituir por outra, ou pelo menos o método que ele utilizou ao construir seus argumentos. Como exemplo, Peter Burke cita o historiador holandês, Johan Huizinga, que escreve uma grande obra no sentido oposto do de Burckhardt, mas acaba enveredando pelo mesmo método de análise: “O grande historiador holandês Johan Huizinga escreveu seu Outono da Idade Média (1919) como uma espécie de réplica a Burckhardt, enfatizando a temática da decadência, em vez da do renascimento, e as culturas da França e de Flandres, em vez da italiana. Ao mesmo tempo, contudo, seu livro pinta o retrato de uma época ao estilo de Burckhardt: trata-se de uma obra da imaginação, da intuição, da visão.” (BURKE, 2009, p. 32). Para mais detalhes, consultar: BURKE, Peter. “Introdução: Jacob Burckhardt e o Renascimento italiano” In: BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, pp. 15-35. 21 os séculos V e XV12. Como o medievalista Hilário Franco Júnior13, ao tratar dessas questões de periodizações, alerta: “[...] apesar da existência de estruturas básicas ao longo daquele milênio, não se pode pensar, é claro, num imobilismo” (FRANCO JR, 2006, p. 15)14. Aliado a essa ponderação, está uma colocação feita por Jacques Le Goff, ao pensar a própria herança historiográfica que Jacob Burckhardt legou com sua “A Cultura do Renascimento na Itália”. Para nós, medievalistas, aparece então, de fato, uma grande e desagradável personagem: o suíço alemão Jakob15 Burckhardt (1818-1897). Historiador da arte e da civilização, próximo de Nietzsche, amoroso da Grécia, Burckhardt – pioneiro – instaura firmemente a periodização a que estamos amarrados até hoje. 12 Sobre os diversos marcos temporais que a historiografia, ao longo do tempo, foi considerando como possíveis “inícios” e “finais” da Idade Média, o historiador medievalista Hilário Franco Jr, elenca: “Feitas essas ressalvas metodológicas obrigatórias, o que devemos entender por Idade Média, pelo menos no atual momento historiográfico? Trata-se de um período da história europeia de cerca de um milênio, ainda que suas balizas cronológicas continuem sendo discutíveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (às vezes política, às vezes religiosa, às vezes econômica), já se falou, dentre outras datas, em 330 (reconhecimento da liberdade de culto aos cristãos), em 392 (oficialização do cristianismo), em 476 (deposição do último imperador romano) e em 698 (conquista muçulmana de Cartago) como o ponto de partida da Idade Média. Para seu término, já se pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492 (descoberta da América) e 1517 (início da Reforma Protestante)”. (FRANCO JR, 2006, pp.14-15). Para mais informações, consultar: FRANCO JR, Hilário. Idade Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. 13 Hilário Franco Júnior (1948 - ) é um historiador medievalista brasileiro, especializado na área cultural e mitológica deste período histórico. Foi professor da Universidade de São Paulo (USP) e aluno de pós-doutorado de Jacques Le Goff na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. 14 Ainda, sobre este imobilismo atribuído aos séculos medievais, Hilário atribui essas concepções aos homens do dito período do Renascimento, que utilizaram termos relativos à escuridão, para se referir à “Idade Média”. De acordo com Hilário Franco Júnior, uma das primeiras referências a essas alcunhas foi posta por Francesco Petrarca (1304-1374) referindo-se ao período anterior como tenebrae (trevas). Posteriormente, encontra-se, nos escritos de Giovanni Andrea, um bibliotecário papal, o termo media tempestas (tempos médios). “Médios” aqui, não no sentido de intermediário, mas sim, com a conotação de decadência em relação às épocas predecessoras da civilização romana imperial. E, por fim, já no século XVI, Giorgio Vasari populariza o termo “Renascimento” procurando demonstrar como os intelectuais e artistas do século XVI tentavam se conectar ao conhecimento do período greco-romano. Portanto, termos como media aetas (eras médias), media tempora (tempo médio, idade média), e tenebrae tempora (tempos das trevas) passaram a se difundir como um conceito que caracterizava o recorte cronológico entre os séculos V e XIV no Ocidente europeu como uma época em que o conhecimento estava adormecido. Para mais informações, consultar: FRANCO JR, Hilário. Idade Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. 15 A tradução do livro “Em Busca da Idade Média” apresenta o nome de Burckhardt com a letra “K” em Jakob, mas em todas as outras fontes, inclusive em sua própriaobra editada e publicada no Brasil, seu prenome aparece escrito com a letra “C”. Por isso, manteve-se, na citação, a forma como aparece com K, mas, ao longo da tese, utiliza-se o C como nas demais fontes. 22 Apoiando-se em sua paixão pelos Antigos, entusiasmado pela arte italiana do Quatrocentto16 (nosso século XV), ele estabelece a teoria da ruptura. É ele que inventa o Renascimento, com R maiúsculo, isola-o da Idade Média e estabelece esse corte definitivo. Burckhardt joga com a antítese. Opõe esse período – o Renascimento – ao tempo das trevas, que ainda não estava claramente circunscrito, nem datado. Sua Civilização do Renascimento na Itália17 (1860), de resto um grande livro, cria um corte decisivo. (LE GOFF, 2012, p. 60) É justamente este corte temporal entre Idade Média e Renascimento que a presente tese não leva em consideração na proposta que se faz de analisar as culturas do poder entre Dante e Maquiavel. Há sim, como será analisado no decorrer deste trabalho, inúmeras diferenças e nuances nas práticas, nas representações e nas ideias que se concebiam sobre o poder entre a vida dos dois florentinos, e na maneira como a cidade testemunhou essas transformações nesse intervalo de dois séculos. Entretanto, compreende-se esse processo como um continuum18 histórico, uma evolução natural de um ponto ao outro, de Dante 16 A tradução do livro “Em Busca da Idade Média” cometeu mais um erro ortográfico, ao grafar a palavra italiana “Quatrocentto” com duas letras “T” na última sílaba. Manteve-se a forma como se apresenta no livro, contudo, pontua-se, aqui, que a forma correta de escrever essa palavra em italiano é “Quattrocento”, com o T duplo na segunda sílaba. 17 A tradução do livro “Em Busca da Idade Média” de Jacques Le Goff, aqui citado, utiliza este título para a obra de Burckhardt que aqui já foi referenciada como “A cultura do Renascimento na Itália”. Manteve-se a forma como foi digitada no livro, mas se atenta para o fato de que a obra, cujo título original em alemão é Die Cultur der Renaissance in Italien, foi traduzida pela Companhia de Bolso, no Brasil, ao pé da letra do original. A diferença de tradução pode se dever ao fato de que este livro de Le Goff foi traduzido diretamente do original em francês (“A la recherche du Moyen Age”), idioma que, também, traduziu a obra de Burckhardt como “La Civilisation de la Renaissance en Italie”. 18 Utiliza-se aqui a ideia de continuum histórico de acordo com o pensamento de Marc Bloch, quando ele argumenta, em sua “Apologia da História”, que, “Ora, esse tempo verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança. Da antítese desses dois atributos provêm os grandes problemas da pesquisa histórica. Acima de qualquer outro, aquele que questiona até a razão de ser dos nossos trabalhos. Sejam dois períodos sucessivos, recortados na sequência ininterrupta das eras.” (BLOCH, 2001, pp. 55-56). Ou seja, Bloch afirma que esse continuum é uma perpétua mudança, mas também é a continuidade dos eventos, o que gera uma antítese de pensamento, pois se pode pensar em continuum como algo que segue sem cessar. Mas o tempo histórico é, exatamente, um constante seguir sem cessar da ação humana, que muda e se transforma ininterruptamente também. Cabe ao historiador saber articular estes conceitos. Como diz José D’Assunção Barros, “uma última implicação do aforismo blochiano: nessa ciência dos homens no tempo, as temporalidades poderiam dialogar por meio da mediação do historiador”. (BARROS, 2018, p. 202). Para mais informações, consultar: BLOCH, Marc. “O tempo histórico” IN: Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; e, BARROS, José D’Assunção. “Os historiadores e o tempo: a contribuição dos Annales” In: Cadernos de História. Belo Horizonte, v.19, n. 30, 1º semestre de 2018, p.202. 23 a Maquiavel, sem que haja essa ruptura que Burckhardt estaria indicando em sua obra. Por isso, optou-se por seguir a perspectiva que Jacques Le Goff delineou em uma entrevista19 sobre uma longa Idade Média, cujos valores e os fundamentos se estenderiam até o século XVIII. A cultura medieval, como a vejo, marca mesmo uma fase da aventura ocidental muito mais longa do que a “Idade Média” dos manuais. Essa cultura exprime um conjunto de valores – um modelo de organização dos valores – que se desfaz entre 1750 e 1850 [...] Se, ao contrário, se quer uma história profunda, o corte Idade Média/Renascimento vai confundir a investigação. (LE GOFF, 2013, pp.69-70). Para além do olhar de um medievalista, como Jacques Le Goff, o historiador Jean Delumeau20, que dedicou um grande estudo ao período renascentista, corrobora esta perspectiva Os problemas de periodização – um dos pesadelos da historiografia quando se debruça sobre o período intermédio que separou a época feudal da de Descartes – perdem a sua acuidade. Optei por uma história contínua, sem tentar estabelecer cortes artificiais. Tudo aquilo que era elemento de progresso foi chamado a figurar numa vasta paisagem que se estende desde o final do século XIII até à aurora do século XVII” (DELUMEAU, 2011, p. 10)21 Com isto, define-se, portanto, que, a despeito dos marcos cronológicos tradicionais, ou de definições que “encaixam” os personagens aqui analisados em periodizações pós-determinadas por pensadores e pela historiografia num momento não muito distante do nosso, a Florença entre os séculos XIII e XV deste estudo é uma personagem e um marco espaço-temporal que vai se 19 Entrevista de Jacques Le Goff publicada na revista L’Histoire, nº 131, em março de 1990, e transcrita na coletânea “Uma longa Idade Média”, sob o título “A Idade Média acaba em 1800”. Ver: LE GOFF, Jacques. “A Idade Média acaba em 1800” In: Uma longa Idade Média. Tradução: Marcos de Castro. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 67-88. 20 Jean Delumeau (1923 - 2020) foi um historiador francês que se especializou nos temas referentes à história do Cristianismo e das mentalidades religiosas, lecionando no Collège de France. 21 DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2011. 24 transformando, de acordo as influências e ideias de seus homens, em ciclos específicos que podem, ou não, encontrar ecos, similaridades e distinções em relação a outras localidades no mesmo período. Talvez, o excerto de Burckhardt que poderia corresponder melhor ao que se pretende nesta tese, esteja na seguinte passagem: Florença não apenas experimenta um maior número de configurações e nuances políticas, como também delas nos presta contas com um grau de reflexão incomparavelmente maior do que aquele que encontramos nos demais Estados livres italianos e no Ocidente em geral. (BURCKHARDT, 2009, p. 104)22 Note-se, aqui, que as nuances políticas são próprias de Florença. Observar-se-á que, de fato, entre Dante e Maquiavel, Florença passará por períodos distintos, se analisado sob o prisma das estruturas de poder. Nesse intervalo, ela passa por experiências de ser uma comuna, uma signorie, um principado, uma teocracia, uma república e, novamente, um principado. Possivelmente, quando Burckhardt afirma ter Florença uma variação maior do que no Ocidente em geral, pode-se interpretar que outros reinos maiores, como a França, não passam por tantas oscilações de tipos de governo, pois, como já dissera Norbert Elias, este estado passou por um processo de centralização concêntrica e centrípeta desde a ascensão da casa dos Capetíngios23. Então, 22 Ver: BURCKHARDT, Jacob. “As repúblicas – Florença a partir do século XIV” In: A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. 23 Segundo Norbert Elias, a casa dos Capetíngios herdou uma fração de terra extremamente minúscula em relação ao que fora o antigo flanco Ocidental do Império carolíngio,que ficara a cargo do filho de Carlos Magno, Carlos, o Calvo no século IX. “O antigo território dos carolíngios francos do Ocidente, o embrião do que devia transformar-se na França, por essa época se havia desintegrado em grande número de áreas governadas separadamente. [...] Quando a coroa passou aos primeiros na pessoa de Hugo Capeto, eles já estavam, de certa forma, debilitados por um processo semelhante ao que provocara a queda dos carolíngios.” (ELIAS, 2005, pp.30- 31). Contudo, foi a partir deste pequeno ducado que, ao longo dos séculos, mergulhados em disputas entre senhores feudais, a casa reinante dos Capetíngios conseguiu, lentamente, ir conquistando terras vizinhas, a partir deste centro original que permanecia em equilíbrio. “O ‘rei’ limitava-se ao que faziam os outros grandes senhores feudais: concentrava-se em consolidar suas posses, aumentando seu poder na única região onde ainda mandava, o ducado de Frância.” (ELIAS, 2005, p. 87). É somente após a Guerra dos Cem Anos, no século XV, que se pode falar em um reino da França forte e unificado com o rei em seu controle total. Mas, o que se pretende afirmar aqui é que, mesmo diante de tantas oscilações ao longo dos séculos, o poder francês nunca perdeu sua origem, fosse mergulhado nas teias de suserania e vassalagem no período feudal, seja quando se cristalizou como monarquia nacional. Diferente do caso de Florença, que experimentou uma série de diversos tipos de governos de origens, naturezas, lógicas, fundamentos e funcionamentos distintos, todos num período menor de tempo. 25 não se pode afirmar, como havia sido feito na dissertação de mestrado, que esta análise das culturas do poder entre Dante e Maquiavel pode abraçar as experiências de todo o Ocidente, mas apenas, figurar como um exemplo dentre as inúmeras outras formas de manifestação dessas culturas do poder pela civilização ocidental europeia entre esses dois séculos. Esclarecidas estas questões sobre os sujeitos e o recorte espaço- temporal da presente tese de doutorado, delimita-se, agora, o objeto: as culturas do poder. O que realmente nos interessa é pensar o poder como situacionalmente distinto, como sujeito próprio de descrição qualitativa. Pensar o poder como experiência instantânea, como convencional, tradicional, bom e mau, perguntar como o poder era sentido, imaginado, concebido, sofrido, assim como institucionalizado.24 É necessário, em primeiro lugar, definir o que aqui se entende por culturas do poder. Como é descrito por Thomas Bisson25 no trecho acima, para pensar o poder é preciso compreendê-lo como uma experiência que não é dada, ou seja, o poder não é algo pré-determinado, não é uma circunstância que paira sobre os homens, já definido e completo, bastando aos sujeitos humanos, utilizarem- no como uma máquina da qual já se sabe as suas funções, ações e reações de antemão. Pelo contrário, o poder e seus mecanismos são construídos pelos homens em um determinado tempo e espaço. Indo além, ele nunca está pronto, pois, assim como os homens vão se modificando ao longo dos anos e dos séculos, o poder, em qualquer sociedade, acompanha essa transformação contínua, atendendo às demandas daqueles que o detém. 24 Tradução nossa. No original: “What did concern us was to think of power as situationally distinct, as proper subject of qualitative description. To think of it as immediate experience, as conventional, traditional, good and bad; to ask how power was felt, imagined, conceived, suffered, as well as institutionalized.” IN: BISSON, Thomas N. Cultures of Power – Lordship, Status, and Process in Twelfth-Century Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995, p.07. 25 Thomas Noel Bisson (1931 - ) é professor emérito de História na Universidade de Harvard. É pesquisador das questões sobre o poder, principalmente na França, no Languedoc e na Catalunha do período medieval. 26 Logo na introdução de seu texto, Bisson questiona: “Quem foram estes homens e mulheres nascidos para governar?” (BISSON, 1995, p. 02)26. Ora, a depender do interlocutor, da época, do lugar, as respostas são múltiplas. Se essa questão fosse feita a Platão ou a Aristóteles na Atenas do século IV a.C., a resposta seria: “O filósofo”. Se fosse feita a Dante na Florença do século XIV, “os dois homens escolhidos por Deus em suas respectivas esferas de atuação a guiar a humanidade como guias filosóficos”. Se fosse feita a Maquiavel na Florença do século XV, “o príncipe que souber utilizar de sua virtù da maneira que melhor condisser com as oscilações da fortuna”. Percebe-se como as concepções se alteram quando se mudam o tempo e o espaço do interlocutor. O poder pode ser concebido, racionalizado, interpretado, sentido, ou vivenciado de formas múltiplas, inclusive, pelos homens de um mesmo tempo, ou até mesmo, de um mesmo tempo e local. Um exemplo atual, a grosso modo, seria a comparação entre o que se aceita como “poder” no Ocidente americano e no Oriente islâmico, ambos do século XXI, ou o que partidários de ideologias distintas de um mesmo país concebem como poder. Desta maneira, o que se propõe neste trabalho quando se fala em “culturas do poder” é a investigação das concepções de poder de uma determinada sociedade num tempo e espaço bem específicos. Estas concepções podem se manifestar de diversas formas: em discursos orais, em textos escritos, em imagens, em sons, em cores, em gestos, em rituais, em conotações metafísicas, em regras jurídicas, etc. Investigar as culturas do poder, portanto, concerne a analisar os meios pelos quais o poder é desenhado e definido por uma sociedade determinada cronológica e territorialmente. Trabalhar a questão do “poder”, em detrimento da “política” não é uma novidade na historiografia, mas também não é um campo de estudo tão antigo quanto se possa pensar. De acordo com o medievalista Jacques Le Goff, em seu ensaio “A Política será ainda a Ossatura da História?”27, essa mudança de enfoque, da política para o poder, deu-se através dos novos métodos 26 Tradução nossa. No original: “Who were these men and women born to rule […]?” Ver: Ibidem, p. 02. 27 Ver: LE GOFF, Jacques. “A Política será ainda a Ossatura da História?” In: LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 2010, pp. 197-215. 27 historiográficos propostos pelos historiadores franceses da chamada Escola dos Annales28, no início do século XX, em contraponto ao método positivista vigente durante o século XIX, que levava em consideração, para a análise histórica, apenas os documentos oficiais de governos, o que se convencionou dizer que se tratava, apenas, da “história dos vencedores”. A escola dos Annales detestava o trinómio formado pela história política, pela história narrativa e pela crónica ou história episódica (acontecimental). Tudo isso era, para ela, simplesmente pseudo-história, história barata, algo de superficial que preferia a sombra à substância. Era preciso colocar no lugar que lhe competia a história em profundidade – uma história económica, social e mental. (LE GOFF, 2010, p. 200). Partindo deste ponto levantado por Le Goff, é necessário frisar e corroborar o fato de que pensar as culturas do poder, como aqui se propõe, não significa narrar fatos ou episódios em cadeia da história florentina, por exemplo. Quando se fizer, no primeiro capítulo, uma passagem pelos eventos políticos que tomaram o palco em Florença durante as vidas de Dante e de Maquiavel, será uma maneira de discriminar os tipos de poder aos quais estavam submetidos, social e intelectualmente, mas não como finalidade última da investigação histórica aqui proposta. Nisto, converge-se para o mesmo argumento que Le Goff discorre, ainda em sua análise da política como ossatura da História, de que, mesmo que os membros da Escola dos Annales não aceitassem mais a análisenarrativa política e o fazer histórico de outrora, eles recuperam os estudos dos regimes políticos, agora voltados, de fato, para a questão do poder. 28 A Escola dos Annales (e a revista Annales d’histoire économique et sociale) foi um movimento de renovação dos métodos de análises historiográficos iniciado pelos historiadores Marc Bloch (1886 – 1944) e Lucien Febvre (1878 – 1956). Estes compuseram a chamada primeira geração, que gerou grandes frutos para as gerações posteriores. Fernand Braudel (1902 – 1985) e Georges Duby (1919 – 1996) são nomes que compuseram a segunda geração, bem como Jacques Le Goff (1924 – 2014) e Emmanuel Le Roy Ladurie (1929 - ) apresentaram-se como expoentes da terceira geração. Para uma análise mais ampla de toda a trajetória dos estudos da Escola dos Annales, ver: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989) – A Revolução francesa da historiografia. Tradução: Nilo Odália. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista (UNESP), 1991. 28 Mas a história política haveria gradualmente de voltar em força, assumindo os métodos, o espírito e a abordagem teórica própria daquelas ciências sociais que a tinham empurrado para segundo plano. Tentarei delinear este recente retorno tomando como ponto de referência a história medieval. O primeiro e principal contributo da sociologia e da antropologia para a história política foi o terem imposto como seu conceito e objectivo central a noção de “poder” e os fatos relativos ao poder. Como observou Raymond Aron, esta noção e estes factos aplicam-se a todas as sociedades e a todas as civilizações: “O problema do Poder é eterno [...]”. (LE GOFF, 2010, pp.200-201). Outro ponto que vale a pena ressaltar, como se pode observar na citação anterior, é que os historiadores dos Annales partem, nesta nova perspectiva de análise, de um ponto que se assemelha a este recorte espaço-temporal: a Idade Média. Talvez pelo distanciamento temporal, e talvez, também, pelo inúmero arcabouço ritualístico e simbólico que os poderes do período medieval apresentavam, esta época foi um prato cheio para as novas propostas de estudos do poder. Isto fica claro quando Le Goff cita os estudos pioneiros do alemão P. E. Schramm29: Em vários estudos [...], ele mostrou como os objectos que constituíam os sinais característicos dos detentores do poder na Idade Média - coroa, trono, globo imperial, ceptro, mão de justiça, e assim por diante – não devem ser estudados apenas em si mesmos. Eles devem ser reintegrados no contexto de atitudes e cerimónias de que fazem parte, e sobretudo devem 29 Percy Ernst Schramm (1894 – 1970) foi um historiador alemão, que lecionou de 1929 a 1963 (exceto no intervalo do período da Segunda Guerra Mundial) na Universidade de Göttingen. Suas obras giraram em torno dos estudos sobre o simbolismo e os rituais políticos medievais, principalmente no Sacro Império Romano Germânico e as influências e reminiscências do ideário do Império Romano antigo para os homens do Medievo. Sua principal obra nesse sentido foi “Herrschaftszeichen und Staatssymbolik” (Sinais de autoridade e simbolismo do Estado, numa tradução livre). Antes de ingressar na Universidade como professor, trabalhou por dois anos no Instituto Monumenta Germaniae Historica, e, durante o período nazista, foi convocado como historiador oficial do governo de Hitler, o que, posteriormente, rendeu inúmeros trabalhos acadêmicos de Schramm sobre, principalmente, os desesperos e as forças militares nos últimos dias do Terceiro Reich. Infelizmente, nenhuma obra de Schramm foi traduzida, ainda, do alemão para o português, o que faz com que só se conheça seu trabalho através de outros autores, como Le Goff, que o citam. 29 ser vistos à luz do simbolismo político onde vão buscar o seu verdadeiro significado. (Le GOFF, 2010, p. 201) Desta forma, trabalhar no âmbito do que propunha a Nova História Política independe, a partir de então, de analisar a política associada às noções de Estado ou de Nação, como fizeram os historiadores e outros intelectuais do século XIX, que buscavam, na Idade Média, uma espécie de mito fundador dos Estados-nações e dos impérios de então30. Assim, historiograficamente falando, o status do período medieval passou, do século XIX para o XX, de berço de mitos criadores de povos, nações e suas respectivas línguas (além de uma fonte rica para escritores românticos, como Victor Hugo e Walter Scott31), para uma espécie de repositório simbólico de onde era possível observar a lógica ritualística, mística, religiosa, e legitimadora dos poderes de então. A este fenômeno, Le Goff chama de estudar “o poder em si mesmo”32. Mas este novo movimento da análise historiográfica só foi possível a partir do momento em que 30 A esse respeito, Le Goff argumenta que, “Note-se a este propósito que as análises feitas pelos historiadores políticos em termos de “poder” vão além das que são feitas em termos de “Estado” e “Nação”, sejam estas últimas estudos tradicionais ou tentativas de enfrentar a questão a partir de um novo ângulo visual. [...] ao passo que o termo “política” sugeria a ideia de coisa superficial, o termo “poder” evoca centro e profundidade. Perdido o seu fascínio de história de superfície, a história política, transformando-se na história do poder, torna-se história de profundidade”. In: “A Política será ainda a Ossatura da História?” In: LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 201. 31 Estes escritores do século XIX escreveram grandes obras que, hoje, convencionou-se chamar de “romances históricos”. O francês Victor Hugo (1802 - 1885), por exemplo, publicou “Notre Dame de Paris” (hoje, mais conhecido como “O Corcunda de Notre Dame”) em 1831, utilizando a Paris do século XIV como cenário. Já o escocês Walter Scott (1771 – 1832), em uma de suas obras mais famosas, “Ivanhoé” (1819), volta à Inglaterra do século XII, baseado nas baladas de Robin Hood. O imaginário inglês, ainda, rendeu muitos outros romances e poemas, a partir do rico arcabouço das lendas arturianas, como é o caso de Idílios do Rei (1885) de Alfred Tennyson (1809 – 1892). Era comum que, muitos deles, tivessem sua ambientação no período medieval, pois cenários como castelos, florestas e catedrais, além de personagens e símbolos como reis e cavaleiros num cavalo branco, princesas em perigo, bruxas e feiticeiros eram elementos importantes para construir esse imaginário longínquo e fantasioso. Em seu estudo sobre este tipo de apropriação do imaginário medieval, Jacques Le Goff afirma que: “[...] se alicerces essenciais da Europa subsistiram desde a Idade Média, a herança dos mitos, heróis e maravilhas foi vítima de um esquecimento, de uma ‘perda’ nos séculos XVII e XVIII, período no qual constituiu-se e reforçou-se, do humanismo às Luzes, uma imagem ‘negra’ da Idade Média: época de obscurantismo, mundo das trevas, dark ages. Salvo exceção, os heróis e maravilhas da Idade Média voltaram a ser ‘bárbaros’ – a evolução do gótico ligado à catedral é, a esse respeito, exemplar – ou, mais ainda, foram recobertos por um esquecimento parecido com o gesso e à cal que dissimularam os afrescos medievais. Em compensação, o Romantismo ressuscitou as lendas e mitos da Idade Média, fê-los renascer no imaginário, em realidade uma lenda de ouro” (LE GOFF, 2011, p. 25). Para mais informações, consultar: LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Tradução: Stephania Matousek. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 32 “Ela nasceu da incapacidade de ir além do prestígio vazio do Estado até ao estudo do poder em si mesmo” (LE GOFF, 2010, p. 203). 30 os Annales propuseram estudos interdisciplinares da História com as demais Ciências Humanas. Seguindo uma tendência inaugurada pelo antropólogo James Frazer33, o historiador Marc Bloch, um dos fundadores dos Annales, lança mão da interdisciplinaridadeentre a História e a Psicologia em seus estudos sobre o poder de cura dos reis da França e da Inglaterra entre o Medievo e o século XVIII/XIX. É neste estudo, Os Reis Taumaturgos34 (1924), que Bloch não se limita, apenas, a tentar descrever o que acontecia nas cerimônias em que os reis franceses e ingleses tocavam as escrófulas do povo para curá-los, nem entre quais balizas temporais ocorreu essa prática, elencando cada cerimônia por ordem de datas e locais. O propósito desta obra é analisar, sobretudo, porque e como o povo acreditava que seu rei era capaz, realmente, de curar esse tipo de lesão de pele que, na verdade, curava-se sozinho com o tempo. Para isso, ele percorre camadas da psicologia coletiva e de atitudes políticas mentais para discorrer sobre este fenômeno. Este foi um dos primeiros passos em que não se estuda mais a política episódica dos governantes, mas sim, todo um arcabouço do imaginário que envolvia uma determinada prática de poder no Medievo, aliada às mentalidades dos homens da época, ou seja, à forma como o poder não apenas se sustentava, mas como era apropriado por todos envolvidos nessas relações entre governantes e governados, como esse poder era vivido, sentido, compreendido e representado. Mesmo assim, Bloch, na introdução de seu estudo, não deixa de considerá-lo, também, como parte de uma história política, um novo ramo desta. Em suma, o que eu quis dar aqui foi essencialmente uma contribuição à história política da Europa, no sentido amplo, no verdadeiro sentido da expressão ‘história política’. Por força das próprias circunstâncias, este ensaio de história política precisou tomar a forma de um ensaio de história comparada, tanto porque a França e a Inglaterra tiveram ambas reis-médicos quanto 33 James George Frazer (1854 – 1941) foi um antropólogo escocês, estudioso de mitologias e religião. Ele dedicou seu estudo mais famoso, O Ramo de Ouro (1890) às origens mágicas, aliadas a mitos e lendas, das realezas de diversos povos. 34 Título original: Les rois thaumaturges: étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale particulièrement en France et en Angleterre. (Os reis taumaturgos: estudo sobre o caráter sobrenatural atribuído ao poder real particularmente na França e na Inglaterra). 31 porque a ideia da realeza maravilhosa e sagrada foi comum a toda a Europa Ocidental. (BLOCH, 2018, p. 51)35. Da mesma forma que Bloch cita a comparação entre França e Inglaterra, é que se pretende, nesta tese, abordar as culturas do poder considerando não apenas Florença, mas as duas Florenças distintas que se recuperam através das personagens de Dante e de Maquiavel, observando as nuances do poder entre esse intervalo temporal. Ainda levando em consideração o trecho supracitado de Marc Bloch, segue-se, nesta análise introdutória das tendências historiográficas dos estudos sobre o poder, a pista das últimas linhas ali presentes, nas quais ele cita uma realeza ritualizada e sacralizada, cuja ideia, apesar de apresentar inúmeras nuances ao longo dos séculos e dos locais que compreendem o Ocidente, permearam toda a região europeia de então. Essas concepções são a base da análise posterior do historiador alemão Ernst Kantorowicz que, após ter esboçado um rico quadro de um soberano medieval na figura de Frederico II36, mergulhou num estudo profundo sobre a “teologia política medieval”. Quando iniciou suas pesquisas, Kantorowicz se baseava nos ordenamentos jurídicos e nas aclamações litúrgicas e juramentos feitos pelos reis da Inglaterra no momento de sua coroação. Repletos de simbolismos, esses foram os passos iniciais para que se desenvolvesse uma obra que versa não apenas sobre a questão inglesa, mas perpassa, também, pelas questões filosóficas e teológicas das teorias hierocráticas e dualistas (às quais o Sacro Império, a Itália e o Papado foram os mais atingidos), pelo Humanismo presente nas concepções particulares de Dante, pela comparação ritualística e simbólica das cerimônias de coroação, de entradas, e de funerais dos reis ingleses e franceses, e pelo misticismo da realeza, do sangue real, da continuidade dinástica e da duplicidade corporal à qual os reis estavam submetidos, os ditos “dois corpos do Rei”. 35 Ver: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. Tradução: Júlia Mainardi. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 36 Kantorowicz dedicou uma obra inteira ao estudo da figura do imperador Frederico II (1194 – 1250), último governante do Sacro Império da casa dos Hohenstaufen. 32 Apesar de “Os Dois Corpos do Rei” se tratar de um estudo robusto de quase 300 páginas37, já na Introdução de sua obra, Kantorowicz alerta para sua pequena contribuição neste campo de estudos históricos: Tampouco a escrita dessa história, particularmente com relação ao decisivo século XV, deixará de constituir tarefa interessante e promissora para um dos muitos doutos pesquisadores do desenvolvimento jurídico e constitucional na Inglaterra, pois o presente estudo não tem a pretensão de preencher a lacuna. Meramente propõe delinear o problema histórico como tal, esboçar, de um modo totalmente perfunctório, superficial e incompleto, os antecedentes históricos gerais dos “Dois Corpos do Rei”, e colocar este conceito, se possível, em seu contexto próprio ao pensamento e à teoria política medievais. (KANTOROWICZ, 1998, p. 19) Quando ele se refere aos pesquisadores do desenvolvimento jurídico e constitucional da Inglaterra, Kantorowicz se dirige, especificamente, ao historiador e advogado inglês Maitland38, que havia tecido fortes críticas à ideia da duplicidade dos corpos do rei de acordo com o prisma legalista através do qual ele produzia o seu raciocínio. Entretanto, ele argumenta que, mesmo Maitland, em meio à sua crítica com tons de ironia sobre o misticismo dos dois corpos do Rei, não tinha como negar as importantes raízes dessa teoria para se compreender as origens do ordenamento político medieval. Grande medievalista que era, Maitland sabia perfeitamente que a curiosa ficção da “majestade nascida gêmea” tinha uma tradição muito antiga e uma história complexa que “nos levaria 37 Considera-se este número de páginas baseado na tradução brasileira desta obra, editada pela Companhia das Letras em 1998. 38 Frederic William Maitland (1850 – 1906) foi um historiador e advogado inglês que contribuiu com muitos estudos sobre ordenamentos jurídicos e sobre o poder na história inglesa especificamente. Kantorowicz aponta o estudo “The Crown as Corporation” (A Coroa como corporação), como uma crítica irônica de Maitland, que trata esse tema, tentando enxergar uma questão envolta em mística com o olhar de um legalista. “Com um forte toque de sarcasmo e ironia, o grande historiador jurídico inglês demonstrou as tolices a que a ficção do rei enquanto ‘corporação individual’ poderia levar – e de fato levou – e, ao mesmo tempo, mostrou a devastação que a teoria de um rei bicorporificado e de um reinado geminado fatalmente produziria na lógica burocrática”. (KANTOROWICZ, 1998, p. 17). 33 ao fundo do pensamento jurídico e político da Idade Média”. (KANTOROWICZ, 1998, p. 19) Desta forma, elencados os principais nomes precursores dos estudos sobre práticas e representações do poder, todos eles atrelados ao período medieval em específico, nota-se que, em todos eles, estão presentes a ideia de História Política, de pensamento jurídico, bem como de História Cultural, de misticismo, de rituais, de simbologia. assim como Le Goff conclui que “isto reforça as pesquisas em diversos sectores da história medieval que identificaram nos fenómenos de base uma dimensão política, no sentido de uma relação com o poder” (LE GOFF, 2010, p. 205). A esse conjunto todo de perspectivas de análise historiográfica, esta presente tese chama de “culturasdo poder”, porém, a partir de fontes diversas. Enquanto Schramm estudava os símbolos tangíveis do poder (coroa, cetro, trono, etc); Bloch baseou seus estudos com a ajuda da psicologia e de fontes bem esparsas (como ele mesmo relata na introdução de seu livro); e Kantorowicz partiu de juramentos de aclamação como fonte inicial, aqui, pretende-se utilizar o método de análise da História das Ideias, nos textos de Dante e Maquiavel, para identificar esses elementos componentes das culturas do poder. Curiosamente, como uma espécie de prenúncio, encontra-se, no prefácio de “Os Reis Taumaturgos” escrito por Jacques Le Goff, algo que remete a esta linha de pensamento. Ao enumerar as reações que os demais colegas intelectuais, fossem historiadores ou acadêmicos de outras áreas das Ciências Humanas, tiveram com relação à obra de Bloch, chamou a atenção quando Le Goff citou o parecer do historiador Henri Sée39: Se conhecesse sua obra, eu decerto teria modificado um pouco minha exposição sobre a doutrina absolutista. Sem dúvida, não seria conveniente contentar-se com a ‘filosofia social’ dos 39 Henri Eugène Sée (1864 – 1936) foi um historiador francês, formado pela Sorbonne, e muito influenciado pela figura de Fustel de Coulanges (1830 – 1889). Seus estudos iam das questões econômicas (Les origines du Capitalisme Moderne, de 1926, ou, “As origens do capitalismo moderno”), passando pelo campesinato medieval (com estudos sobre os bretões, Étude sur les classes rurales en Bretagne au Moyen Age, de 1896, ou, “Estudos sobre as classes rurais na Bretanha na Idade Média”), até questões políticas (Les Idées politiques en France au XVIIIe siècle, de 1923, ou, “As ideias políticas na França do século XVIII”; e, Le Moyen âge et l’ancien régime, de 1939, ou, “A Idade Média e o Antigo Regime”). 34 escritores, mas não é fácil, como o senhor sabe, penetrar os sentimentos das massas populares. Você orientará nessa direção os historiadores das ideias políticas. (SÉE apud LE GOFF, 2018, p. 35)40 De fato, após todo o apanhado historiográfico aqui realizado, desemboca- se na questão dos historiadores das ideias políticas. Indo mais a fundo, e especificando esta abordagem metodológica, seguem-se os apontamentos que o historiador José D’Assunção Barros41 apresenta em seu artigo “História das Idéias – em torno de um domínio historiográfico”, no qual se delimita a categoria de análise histórica da História das Ideias dentro do quadro de conexões entre as várias modalidades historiográficas, sobretudo o diálogo com a História Política e a História Cultural. Pois, como ele defende, ao se analisar as ideias particulares de um artista ou literato, não se pode empreender uma História das Ideias que esteja desconectada do seu contexto social: Para o caso dos diálogos com a História Política, basta pensar nos trabalhos que investigam mais diretamente as idéias políticas, entre outros. Um diálogo mais intenso com a História Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem explicitamente no primeiro dos limiares possíveis para a História das Idéias: aquele em que são examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as concepções estéticas dos artistas e literatos de diversos tipos e níveis).(BARROS, 2008, p. 5)42 Desta maneira, ele desemboca no pensamento de um dos mais destacados historiadores da atualidade para o estudo das ideias políticas: 40 Le Goff não cita a fonte do texto de Henri Sée. Apenas coloca sua fala entre aspas, no subitem “A recepção a ‘Os Reis Taumaturgos” no Prefácio da obra. Para mais detalhes, consultar: LE GOFF, “Prefácio” In: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. Tradução: Júlia Mainardi. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 9-42. 41 José D’Assunção Barros (1957 - ) é um historiador brasileiro, professor na UFRJ. 42 Ver: BARROS, José D’Assunção. “História das Idéias – em torno de um domínio historiográfico.” In: Revista Eletrônica História em Reflexão – Vol. 02, n. 03 – UFGD – Dourados – Jan-Jun/2008, p.5 35 Quentin Skinner (1940 - ), premiado pela história e teoria do pensamento político, e professor de Ciência Política na Universidade de Cambridge. Segundo ele, é necessário investigar a rede dentro da qual o autor está inserido. Perceber as influências que o autor recebe, e o modo de recepção de seus contemporâneos. Também, dentro deste padrão dos contextualistas ingleses (os precursores no campo de análise da História das Ideias), além da relação entre o texto e o contexto, há que se observar as estruturas linguísticas e o momentum linguístico dentro do qual a ideia foi construída. Ponto fundamental para estudar Dante e Maquiavel. Por exemplo, Dante Alighieri, mesmo defendendo e fazendo uso da língua vernácula florentina, o que o fez ser considerado o pai da língua italiana43, ao escrever seu tratado político “De Monarchia”, fez uso do latim, pois esta ainda era a língua utilizada para se dirigir às questões de poder e às autoridades da época. Maquiavel, em contrapartida, já está num período em que o próprio dialeto florentino já é a língua das autoridades e do poder, a língua da cultura e de homens ilustres. É uma mudança de concepções de poder, uma das inúmeras nuances das culturas do poder. Desta maneira, segue-se a mesma abordagem que foi utilizada na dissertação de mestrado, ao buscar interpretar os textos clássicos como os de Dante e de Maquiavel a partir da metodologia sugerida pelo historiador Quentin Skinner. De acordo com sua visão, não adianta ler e reler os textos clássicos inúmeras vezes, procurando por ideias geniais, vanguardistas e abstratas dos pensadores mais renomados, se não se observar o contexto no qual aqueles homens viveram, quais experiências empíricas afetavam o seu entendimento de mundo, que tipo de sentido era dado às palavras e aos conceitos que eles utilizavam naquela região e naquela época específicas, e qual o arcabouço teórico e intelectual com o qual eles dialogavam, fosse para corroborar ou para negar as vertentes existentes. 43 Quando da unificação da Itália em um único país no século XIX, em longos debates ao se determinar qual seria o idioma da nova nação, o dialeto florentino presente nos escritos de Dante Alighieri, sobretudo no seu poema monumental de “A Divina Comédia”, foi determinado como a base para o estabelecimento da língua italiana. Ainda em vida, Dante escreveu sobre a importância do linguajar vernáculo no ensaio “De Vulgari Eloquentia”, provavelmente redigido entre os anos de 1302 e 1305. 36 Em sua obra mais abrangente, “As fundações do pensamento político moderno”, publicada originalmente em 1978, Skinner apontava que um levantamento das teorias políticas da transição do medievo para a modernidade já havia sido efetuado por Pierre Mesnard44 há mais de 40 anos, provavelmente na década de 1930, mas sem utilizar o método que ele indica como mais preciso. Diz ele que a maneira como Mesnard refez trajetos teóricos de Dante a Calvino era uma maneira “textualista” de interpretar, prendendo-se, apenas, ao corpo escrito da obra de cada autor. Já Skinner argumenta que o próprio ato que ele sugere de buscar o texto entrelaçado ao contexto já é um fazer histórico interpretativo daquelas obras, problematizando o que está lá escrito com as indagações que um historiador costuma fazer para tentar compreender alguma questão desse passado que ainda não está clara. Ou seja, ao interpretar Dante ou Maquiavel, é necessário investigar qual é o contexto em que viveram, que diálogos eles travavam com seus interlocutores, a quem estavam respondendo, que base filosófica ou de instrução eles tinham, quais eram suas concepções de
Compartilhar